domingo, 22 de dezembro de 2024

Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez

Editora: Record

Opinião: ★★★★★

Tradução: Eric Nepomuceno

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ISBN: 978-85-01-11036-7

Páginas: 432

Sinopse: Em Cem anos de solidão, um dos maiores clássicos da literatura, o prestigiado autor narra a incrível e triste história dos Buendía — a estirpe de solitários para a qual não será dada “uma segunda oportunidade sobre a terra” e apresenta o maravilhoso universo da fictícia Macondo, onde se passa o romance. É lá que acompanhamos diversas gerações dessa família, assim como a ascensão e a queda do vilarejo. Para além dos artifícios técnicos e das influências literárias que transbordam do livro, ainda vemos em suas páginas o que por muitos é considerado uma autêntica enciclopédia do imaginário, num estilo que consagrou o colombiano como um dos maiores autores do século XX.

Em nenhum outro livro García Márquez empenhou-se tanto para alcançar o tom com que sua avó materna lhe contava os episódios mais fantásticos sem alterar um só traço do rosto. Assim, ao mesmo tempo em que a incrível e triste história dos Buendía pode ser entendida como uma autêntica enciclopédia do imaginário, ela é narrada de modo a parecer que tudo faz parte da mais banal das realidades.

Gabo, apelido de Gabriel García Márquez, costumava dizer que todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro. “E qual seria o seu?”, perguntaram-lhe. “O livro da solidão”, foi a resposta. Apesar disso, ele não considerava Cem anos sua melhor obra (gostava demais de O outono do patriarca). O que importa? O certo é que nenhum outro romance resume tão completamente o formidável talento deste contador de histórias de solitários — que se espalham e se espalharão por muito mais de cem anos pelas Macondos de todo o mundo.

Cem anos de solidão é uma obra grandiosa e atemporal, sobre a qual é possível construir diversos paralelos com a nossa própria existência.



“Esta manhã, quando me trouxeram, tive a impressão de que já havia passado por tudo isso.” Na verdade, enquanto a multidão trovejava ao seu passo, ele estava concentrado em seus pensamentos, assombrado pela forma como todo mundo havia envelhecido em um ano. As amendoeiras tinham as folhas avermelhadas. As casas pintadas de azul, pintadas depois de vermelho e depois pintadas de azul outra vez, tinham adquirido uma coloração indefinível.

— E o que você esperava? — suspirou Úrsula. — O tempo passa.

— Pois é — admitiu Aureliano —, mas não tanto.”

 

 

Na verdade, não se atreviam a executar a sentença. A rebeldia do povo fez os militares pensarem que o fuzilamento do coronel Aureliano Buendía teria graves consequências políticas não apenas em Macondo, mas em toda a região do pantanal, e decidiram consultar as autoridades da capital provincial. Na noite do sábado, enquanto esperavam pela resposta, o capitão Roque Carnicero foi com outros oficiais até a taberna de Catarino. Uma única mulher, quase pressionada pelas ameaças, atreveu-se a levá-lo para o quarto. “Elas não querem ir para a cama com um homem que sabem que vai morrer”, confessou ela. “Ninguém sabe como vai ser, mas todo mundo anda dizendo que o oficial que fuzilar o coronel Aureliano Buendía, e todos os soldados do pelotão, um por um, serão assassinados sem remédio, mais cedo ou mais tarde, nem que se escondam no fim do mundo.” O capitão Roque Carnicero comentou essa história com os outros oficiais, que comentaram com seus superiores. No domingo, embora ninguém houvesse revelado com franqueza, embora nenhum ato militar tivesse turvado a calma tensa daqueles dias, o povoado inteiro sabia que os oficiais estavam dispostos a evitar com tudo que é tipo de pretexto a responsabilidade da execução. No correio da segunda-feira chegou a ordem oficial: a execução teria de ser cumprida num prazo de vinte e quatro horas. Naquela noite os oficiais puseram num quepe sete papeizinhos com seus nomes, e o inclemente destino do capitão Roque Carnicero apontou-o com o papel premiado. “O meu azar não perde ocasião”, disse ele com profunda amargura. “Nasci filho da puta e filho da puta morro”.”

 

 

“Naquela noite, no jantar, o suposto Aureliano Segundo despedaçou o pão com a mão direita e tomou a sopa com a esquerda. Seu irmão gêmeo, o suposto José Arcádio Segundo, despedaçou o pão com a mão esquerda e tomou a sopa com a direita. Era tão precisa a coordenação de seus movimentos que não pareciam dois irmãos sentados um na frente do outro, mas um artifício de espelhos. O espetáculo que os gêmeos haviam concebido desde que tiveram consciência de serem iguais foi repetido em homenagem ao recém-chegado. Mas o coronel Aureliano Buendía não percebeu nada. Parecia tão alheio a tudo que nem mesmo reparou em Remédios, a Bela, que passou nua para o dormitório. Úrsula foi a única que se atreveu a perturbar sua abstração.

— Se é para ir embora outra vez — disse a ele no meio do jantar —, pelo menos trate de recordar como éramos esta noite.

Então o coronel Aureliano Buendía percebeu, e não sem assombro, que Úrsula era o único ser humano que havia conseguido desentranhar sua miséria, e pela primeira vez em muitos anos se atreveu a olhar seu rosto. Tinha a pele curtida, os dentes carcomidos, os cabelos murchos e sem cor, e o olhar atônito. Comparou-a com a lembrança mais antiga que tinha dela, na tarde em que ele teve o presságio de que uma caçarola de caldo fervendo ia cair da mesa, e a encontrou despedaçada. Num instante descobriu os arranhões, os vergões, as chagas, as úlceras e cicatrizes que mais de meio século de vida cotidiana havia deixado nela, e comprovou que esses estragos não suscitavam nele nem mesmo um sentimento de piedade. Fez então um último esforço para buscar em seu coração o lugar onde os afetos tinham apodrecido, e não conseguiu encontrá-lo. Em outro tempo, pelo menos sentia um confuso sentimento de vergonha quando surpreendia em sua própria pele o cheiro de Úrsula, e em mais de uma ocasião sentiu seus pensamentos interferidos pelo pensamento dela. Mas tudo isso havia sido arrasado pela guerra. A própria Remédios, sua esposa, era naquele momento a imagem enevoada de alguém que podia ter sido sua filha. As incontáveis mulheres que conheceu no deserto do amor, e que dispersaram sua semente por todo o litoral, não haviam deixado rastro algum em seus sentimentos. A maioria delas entrava no quarto no escuro e ia embora antes do alvorecer, e no dia seguinte eram apenas um pouco de tédio na memória corporal. O único afeto que prevalecia contra o tempo e a guerra foi o que ele sentiu por seu irmão José Arcádio, quando os dois eram crianças, e não estava baseado no amor, e sim na cumplicidade.

— Perdão — desculpou-se diante do pedido de Úrsula. — É que a guerra acabou com tudo.”

 

 

“Ninguém ficou sabendo em que momento começou a tocar os sinos do campanário da torre e a ajudar o padre Antônio Isabel, sucessor do Filhote, na missa, e a cuidar dos galos de briga no quintal da casa paroquial. Quando o coronel Gerineldo Márquez soube, repreendeu-o duramente por estar aprendendo ofícios repudiados pelos liberais. “A questão — respondeu ele — é que eu acho que saí conservador.” Acreditava nisso como se fosse uma determinação da fatalidade. O coronel Gerineldo Márquez, escandalizado, contou para Úrsula.

— Melhor assim — ela aprovou. — Tomara que vire padre, para que Deus enfim entre nesta casa.

Num minuto ficaram sabendo que o padre Antônio Isabel estava preparando José Arcádio Segundo para a primeira comunhão. Ensinava o catecismo a ele enquanto pelava o pescoço dos galos a navalha. Explicava com exemplos simples, enquanto punham em seus ninhos as galinhas chocas, como Deus teve a ideia no segundo dia da criação de que os frangos se formassem dentro dos ovos. Desde aquela época o pároco manifestava os primeiros sintomas do delírio senil que o levou a dizer, anos mais tarde, que o diabo provavelmente havia ganho a rebelião contra Deus, e era quem estava sentado no trono celestial, sem revelar sua verdadeira identidade para pegar os incautos. Estimulado pela intrepidez de seu preceptor, José Arcádio Segundo chegou em poucos meses a ser tão sábio nas artimanhas teológicas a ponto de ser capaz de confundir o demônio, e ao mesmo tempo se fez perito nos truques da rinha de galos.”

 

 

“Taciturno, silencioso, insensível ao novo sopro de vitalidade que estremeceu a casa, o coronel Aureliano Buendía quase conseguiu compreender que o segredo de uma boa velhice não é mais que um pacto honrado com a solidão.”

 

 

Certa manhã encontrou Úrsula chorando debaixo da castanheira, nos joelhos do marido morto. O coronel Aureliano Buendía era o único habitante da casa que continuava não vendo o potente ancião consumido por meio século de intempérie. “Cumprimente seu pai”, disse Úrsula. Ele se deteve um instante na frente da castanheira, e uma vez mais comprovou que aquele espaço vazio tampouco suscitava nele qualquer afeto.

— O que ele está dizendo? — perguntou.

— Está muito triste — respondeu Úrsula — porque acha que você vai morrer.

— Diga a ele — sorriu o coronel — que a gente não morre quando deve, mas quando pode.”

 

 

“Foi por essa época que ouviram o coronel dizer: “A única diferença atual entre liberais e conservadores é que os liberais vão à missa das cinco e os conservadores vão à missa das oito”.”

 

 

Assim foi passando o tempo, entre o Colosso de Rodes e os encantadores de serpentes, até que sua esposa anunciou que não restavam mais do que seis quilos de carne-seca e um saco de arroz na despensa.

— E o que você quer que eu faça agora? — ele perguntou.

— Eu não sei — respondeu Fernanda. — Isso é assunto de homem.

— Bom — disse Aureliano Segundo —, alguma coisa a gente vai fazer quando parar de chover.

Continuou mais interessado na enciclopédia que no problema doméstico, mesmo quando teve de se contentar com uma pelanca ressecada e um pouco de arroz no almoço. “Agora é impossível fazer qualquer coisa”, dizia. “Não vai chover a vida inteira.” E quanto mais voltas adiava as urgências da despensa, mais intensa ia se fazendo a indignação de Fernanda, até que seus protestos eventuais, seus desabafos pouco frequentes, transbordaram numa torrente desembestada, desatada, que começou certa manhã como o monótono bordão de um violão, e que à medida que o dia avançava foi subindo de tom, cada vez mais rico, mais esplêndido. Aureliano Segundo não teve consciência da ladainha até o dia seguinte, depois do café da manhã, quando sentiu-se atordoado por um zumbido que era mais fluido e mais alto que o rumor da chuva, e era Fernanda que passeava pela casa inteira lamentando ter sido educada como uma rainha para acabar como mucama numa casa de loucos, com um marido folgazão, idólatra, libertino, que se deitava de barriga para cima esperando que chovessem pães do céu, enquanto ela destroncava os rins tratando de manter flutuando um lar que só se mantinha de pé com alfinetes, onde havia tanta coisa a ser feita, tanta a ser suportada e corrigida desde que Deus amanhecia até a hora de dormir, e que chegava na cama com os olhos cheios de pó de vidro, e no entanto ninguém nunca tinha lhe dado um bom-dia, Fernanda, como passou a noite, Fernanda?, nem perguntado a ela, nem que fosse só por cortesia, por que estava tão pálida nem por que despertava com essas olheiras cor de violeta, apesar de ela não esperar, é claro, que aquilo saísse do resto de uma família que, afinal de contas, sempre a teve como um estorvo, como o trapinho de segurar panela, como um boneco pintado na parede, e que sempre andavam fazendo futrica contra ela pelos cantos, chamando-a de santarrona, chamando-a de fariseia, chamando-a de boa bisca, e até Amaranta, que em paz descanse, havia dito a viva voz que ela era das que confundiam o cu com as têmporas, bendito seja Deus, que palavras, e ela havia aguentado tudo com resignação em nome do Santo Padre, mas não havia conseguido suportar mais quando o malvado do José Arcádio Segundo disse que a perdição da família tinha sido abrir as portas para uma janotinha pedante, imagine só, uma janotinha mandona, valha-me Deus, uma filha de má saliva, da mesma índole dos pedantões que o governo mandou para matar trabalhadores, veja se é possível, e se referia a ninguém menos que ela, ela, a afilhada do Duque de Alba, uma dama com tanta estirpe que revolvia o fígado das esposas dos presidentes, uma filhod’alga de sangue como ela, que tinha direito de assinar onze sobrenomes peninsulares, e que era o único mortal naquela aldeia de bastardos que não se sentia atarantada diante de dezesseis talheres, para que depois o adúltero do seu marido dissesse, morrendo de rir, que tantas colheres e garfos, e tantas facas e colherinhas não eram coisa de cristãos e sim de centopeias, e a única que podia determinar de olhos fechados quando se servia o vinho branco, e de que lado e em que taça, e quando se servia o vinho tinto, e não como a troglodita da Amaranta, que em paz descanse, que achava que o vinho branco devia ser servido de dia e o tinto de noite, e a única em todo o litoral que podia se vangloriar de não ter feito nada do corpo que não fosse em peniquinhos de ouro, para que depois viesse o coronel Aureliano Buendía, que em paz descanse, e tivesse o atrevimento de perguntar com seu humor de fel de maçom de onde ela tinha merecido aquele privilégio, e se ela cagava merda ou bromélias celestiais, imaginem só, com essas palavras, e para que Renata, sua própria filha, que por indiscrição havia visto seus excrementos no quarto, respondesse que na verdade o peniquinho era de muito ouro e muita heráldica, mas que o que tinha dentro era pura merda, merda física, e pior ainda que as outras porque era merda metida a besta, imaginem só, sua própria filha, de maneira que nunca tinha se deixado iludir com o resto da família, mas fosse como fosse tinha direito de esperar um pouco mais de consideração da parte do esposo, já que bem ou mal era seu cônjuge pelo próprio sacramento, seu autor, seu violador por direito e dever, que tinha jogado sobre si próprio e por livre e soberana vontade a grave responsabilidade de tirá-la do solar paterno, onde nunca se privou do que fosse nem sofreu por coisa alguma, onde tecia coroas fúnebres porque gostava de se distrair, posto que seu padrinho havia mandado uma carta com a assinatura de próprio punho e o selo de seu anel impresso no lacre, só para dizer que as mãos de sua afilhada não tinham sido feitas para afazeres deste mundo, a não ser tocar o clavicórdio, e ainda assim o insensato de seu marido a tinha tirado de sua casa com todas as admoestações e advertências para levá-la para aquele caldeirão do Diabo onde não se podia nem respirar de tanto calor, e antes que ela acabasse de guardar suas abstinências de Pentecostes já tinha ido embora com seus baús andarilhos e sua sanfona de perdulário para madracear em adultério com uma pobre coitada de quem bastava olhar as nádegas, bom, já que disse o que disse, a quem bastava ver remexer as nádegas de potranca para adivinhar que era uma, que era uma..., ao contrário dela, que era uma dama no palácio ou na pocilga, na mesa ou na cama, uma dama com berço, temente a Deus, obediente às suas leis e submissa aos seus desígnios, e com quem não se podia fazer, é claro, as piruetas e safadezas de mulher à toa que fazia com a outra, que é claro que se prestava a tudo, como as matronas francesas, e pensando bem, pior ainda, porque elas pelo menos tinham a honradez de pôr uma lâmpada vermelha na porta, semelhantes porcarias, imagine só, e só faltava essa, com a filha única e bem-amada de dona Renata Argote e dom Fernando del Carpio, principalmente ele, é claro, um santo varão, um cristão dos grandes, Cavalheiro da Ordem do Santo Sepulcro, desses que recebem diretamente de Deus o privilégio de se conservarem intactos na tumba, com a pele tersa feito cetim de noiva e os olhos vivos e diáfanos como as esmeraldas.

— Isto sim, que não é verdade — interrompeu Aureliano Segundo —, quando o trouxeram aqui, já estava fedendo.”

Um comentário:

Só o Melhor Livro disse...

Sucesso ai so os melhores livros de todos os tempos