domingo, 15 de dezembro de 2024

A peste, de Albert Camus

Editora: Record

ISBN: 98-85-01-1124-1

Opinião: ★★★★☆

Tradução: Valerie Rumjanek

Páginas: 288

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Sinopse: Romance que destaca a mudança na vida da cidade de Orã, na Argélia, depois que ela é atingida por uma terrível peste, transmitida por ratos, que dizima a população. É inegável a dimensão política deste livro, um dos mais lidos do pós-guerra, uma vez que a cidade assolada pela epidemia lembra a ocupação nazista na França durante a Segunda Guerra Mundial. A peste é uma obra de resistência em todos os sentidos da palavra.

Narrado do ponto de vista de um médico envolvido nos esforços para conter a doença, o texto de Albert Camus ressalta a solidariedade, a solidão, a morte e outros temas fundamentais para a compreensão dos dilemas do homem moderno.



Nada mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem da manhã à noite e optarem, em seguida, por desperdiçar no jogo, nos cafés e em tagarelices o tempo que lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista algo mais. Isso, em geral, não muda a vida delas. Simplesmente houve a suspeita, o que já é alguma coisa. Orã, ao contrário, é uma cidade aparentemente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar de ato de amor, ou se entregam ao hábito de uma longa vida a dois. Tampouco isso é original. Em Orã, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.”

 

 

“Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido, assim como os nossos concidadãos; é necessário compreender assim as duas hesitações. Por isso é preciso compreender, também, que ele estivesse dividido entre a inquietação e a confiança. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria estúpido.” Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos.”

 

 

O médico continuava a olhar pela janela. De um lado da vidraça, o céu fresco da primavera; do outro, a palavra que ressoava ainda na sala: peste. A palavra não continha apenas o que a ciência queria efetivamente lhe atribuir, e sim uma longa série de imagens extraordinárias que não combinavam com essa cidade amarela e cinzenta, moderadamente animada a essa hora, ruidosa, ou melhor, zumbindo feliz, em suma, se é possível ser ao mesmo tempo feliz e taciturno. E uma tranquilidade tão pacífica e tão indiferente negava quase sem esforço as velhas imagens do flagelo: Atenas empestada e abandonada pelos pássaros; as cidades chinesas cheias de moribundos silenciosos; os condenados de Marselha empilhando em covas os corpos que se liquefaziam; a construção, na Provença, de uma muralha para deter o vento furioso da peste; Jafa e os seus mendigos horrendos; os catres úmidos e podres colados à terra batida do hospital de Constantinopla; os doentes suspensos por ganchos; o carnaval dos médicos mascarados durante a Peste Negra; os acasalamentos dos vivos nos cemitérios de Milão; as carretas de mortos na aterrada Londres; as noites e os dias em toda parte e sempre cheios dos gritos intermináveis dos homens. Não, tudo isso não era ainda bastante forte para matar a paz desse dia. Do outro lado da vidraça, a campainha de um bonde invisível tilintava de repente e refutava num segundo a crueldade e a dor. Só o mar, ao fundo do tabuleiro baço das casas, comprovava o que há de inquietação e de eterna falta de tranquilidade neste mundo. E o Dr. Rieux, que olhava para o golfo, pensava nas fogueiras citadas por Lucrécio e que os atenienses atacados pela doença acendiam à beira-mar. Levavam os mortos para lá durante a noite, mas o lugar era pequeno e os vivos batiam-se a golpes de archote para colocar os que lhes tinham sido queridos, sustentando lutas sangrentas para não abandonar os cadáveres. Podiam-se imaginar as fogueiras rubras diante da água tranquila e escura, os combates de archotes na noite crepitante de fagulhas e densos vapores envenenados subindo para o céu atento. Podia-se recear...”

 

 

Cottard balbuciara que ser artista devia resolver muitas coisas.”

 

 

Na maioria dos casos, era evidente que a separação não devia ter fim senão com a epidemia. E, para todos nós, o sentimento que fazia a nossa vida e que, no entanto, julgávamos conhecer bem (os naturais de Orã, como já foi dito, têm paixões simples) assumia um novo aspecto. Maridos e amantes que tinham a maior confiança nas companheiras revelavam-se ciumentos. Homens que se julgavam volúveis no amor redescobriam-se constantes. Filhos que tinham vivido junto da mãe mal olhando para ela depositavam toda a preocupação e angústia numa ruga de seu rosto que lhes povoava a lembrança. Essa separação brutal, sem meio-termo, sem futuro previsível, deixava-nos perturbados, incapazes de reagir contra a lembrança dessa presença, ainda tão próxima e já tão distante, que ocupava agora os nossos dias. Na verdade, sofríamos duas vezes: o nosso sofrimento, em primeiro lugar, e em seguida aquele que atribuíamos aos ausentes — filho, esposa ou amante.

Em outras circunstâncias, aliás, nossos concidadãos teriam encontrado uma solução numa vida mais exterior ou mais ativa. Mas, ao mesmo tempo, a peste deixava-os ociosos, reduzidos a vagar sem destino pela cidade triste e entregues, dia após dia, aos jogos enganosos da recordação, pois nos seus passeios sem rumo eram levados a passar sempre pelos mesmos caminhos, e a maior parte das vezes, numa cidade tão pequena, os caminhos eram precisamente os mesmos que, em outra época, haviam percorrido com o ausente.

Assim, a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio. E o narrador está convencido de que pode escrever aqui, em nome de todos, o que ele próprio sentiu então, já que o sentiu ao mesmo tempo que muitos dos nossos concidadãos. Sim, era realmente o sentimento do exílio esse vazio que trazíamos constantemente em nós, essa emoção precisa, o desejo irracional de voltar atrás ou, pelo contrário, de acelerar a marcha do tempo, essas flechas ardentes da memória. Se algumas vezes dávamos asas à imaginação e nos comprazíamos em esperar pelo toque de campainha que anuncia o regresso, ou pelos passos familiares na escada; se, nesses momentos, consentíamos em esquecer que os trens estavam imobilizados; se nos organizávamos para ficar em casa à hora em que normalmente um viajante podia ser trazido pelo expresso da tarde até o nosso bairro, esses jogos, obviamente, podiam durar. Chegava sempre um momento em que nos dávamos conta claramente de que os trens não chegavam. Sabíamos, então, que a nossa separação estava destinada a durar e que devíamos tentar entender-nos com o tempo. A partir de então, reintegrávamo-nos, afinal, à nossa condição de prisioneiros, estávamos reduzidos ao nosso passado e, ainda que alguém fosse tentado a viver no futuro, logo renunciava, ao experimentar as feridas que a imaginação finalmente inflige aos que nela confiam.”

 

 

Nesse momento, o desmoronar da coragem, da vontade e da paciência era tão brusco que lhes parecia que não poderiam jamais sair desse precipício. Então, restringiam-se a não pensar mais na libertação, a não se voltar para o futuro e a manter sempre, por assim dizer, os olhos baixos. Mas, naturalmente, essa prudência, essa maneira de enganar a dor, de fechar a guarda para recusar o combate, eram mal recompensadas. Ao mesmo tempo que evitavam esse desmoronamento que não queriam por preço algum, privavam-se, na verdade, dos momentos bastante frequentes em que podiam esquecer a peste nas imagens de seu futuro reencontro. E assim, encalhados a meia distância entre esses abismos e esses cumes, mais flutuavam que viviam, abandonados a dias sem rumo e recordações estéreis, sombras errantes, incapazes de se fortalecerem a não ser aceitando enraizar-se na terra de sua própria dor.

Experimentavam assim o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e de todos os exilados, ou seja, viver com uma memória que não serve para nada. Esse próprio passado, sobre o qual refletiam sem cessar, tinha apenas o gosto do arrependimento. Na verdade, gostariam de poder acrescentar-lhe tudo quanto lamentavam não ter feito, quando ainda podiam fazê-lo, junto a esse ou àquela que esperavam — assim como a todas as circunstâncias, mesmo relativamente felizes, da sua vida de prisioneiros misturavam o ausente, e o resultado não podia satisfazê-los. Impacientes com o presente, inimigos do passado e privados do futuro, parecíamo-nos assim efetivamente com aqueles que a justiça ou o ódio humano fazem viver atrás das grades. Para terminar, o único meio de escapar a essas férias insuportáveis era, através da imaginação, recolocar em movimento os trens e encher as horas com os repetidos sons de uma campainha que, no entanto, se obstinava no silêncio.”

 

 

“Enquanto somos amados, somos compreendidos sem palavras. Mas uma pessoa não ama sempre.”

 

 

“Segundo ele próprio dizia, a obstinação acaba por triunfar sobre tudo.”

 

 

“Ah, se fosse um terremoto! Uma boa sacudidela, e não se fala mais nisso... Contam-se os mortos, os vivos, e pronto. Mas esta porcaria de doença! Até os que não a apanham parecem trazê-la no coração.”

 

 

“É no momento da desgraça que a gente se habitua à verdade, quer dizer, ao silêncio.”

 

 

“O narrador fica mais tentado a acreditar que, ao dar demasiada importância às belas ações, se presta finalmente uma homenagem indireta e poderosa ao mal. Isto porque deixaria então supor que essas belas ações só valem tanto por serem raras e que a maldade e a indiferença são forças motrizes bem mais frequentes nas ações dos homens. Essa é uma ideia que o narrador não compartilha. O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Os homens são mais bons que maus, e na verdade a questão não é essa. Mas ignoram mais ou menos, e é a isso que se chama virtude ou vício, sendo o vício mais desesperado o da ignorância, que julga saber tudo e se autoriza, então, a matar. A alma do assassino é cega, e não há verdadeira bondade nem belo amor sem toda a clarividência possível.”

 

 

“— Aos 30 anos, começa-se a envelhecer e é preciso aproveitar tudo.”

 

 

“— Sabe, doutor, pensei muito na sua organização. Se não estou nela, é porque tenho as minhas razões. Quanto ao resto, creio que saberia ainda sacrificar a minha vida: fiz a guerra na Espanha.

— De que lado? — perguntou Tarrou.

— Do lado dos vencidos. Mas, desde então, pensei um pouco.

— Em quê? — insistiu Tarrou.

— Na coragem. Agora sei que o homem é capaz de grandes ações. Mas, se não for capaz de um grande sentimento, não me interessa.

— Tem-se a impressão de que o homem é capaz de tudo — disse Tarrou.

— Não. É incapaz de sofrer ou de ser feliz por muito tempo. Portanto, não é capaz de nada que preste.”

 

 

“De qualquer forma era esse tipo de evidência ou de apreensão que mantinha, nos nossos concidadãos, o sentimento do exílio e da separação. A este respeito, o narrador sabe perfeitamente quanto é lamentável não poder relatar algo de verdadeiramente espetacular, como, por exemplo, algum herói altruísta ou alguma ação brilhante, semelhantes aos que se encontram nas velhas histórias. É que nada é menos espetacular que um flagelo e, pela sua própria duração, as grandes desgraças são monótonas. Na lembrança dos sobreviventes, os dias terríveis da peste não surgem como chamas grandes e cruéis, e sim como um interminável tropel que tudo esmaga à sua passagem.”

 

 

“Teriam os nossos concidadãos, pelo menos os que mais haviam sofrido com essa separação, se habituado à situação? Não seria inteiramente justo afirmar tal coisa. Seria mais exato dizer que, tanto moral quanto fisicamente, sofriam de descarnação. No começo da peste, lembravam-se nitidamente do ente que haviam perdido e sentiam saudade. Mas, se se lembravam nitidamente do rosto amado, de seu riso, de determinado dia que agora reconheciam ter sido feliz, tinham dificuldade de imaginar o que o outro podia estar fazendo no próprio momento em que o evocavam e em lugares de ora em diante tão longínquos. Em suma, nesse momento, tinham memória, mas uma imaginação insuficiente. Na segunda fase da peste, perderam também a memória. Não que tivessem esquecido esse rosto, mas, o que vem a dar no mesmo, ele perdera a carne, já não o sentiam no interior de si próprios. E, enquanto tendiam a queixar-se, nas primeiras semanas, de só lhes restarem sombras dos objetos de seu amor, compreenderam, com a continuação, que essas sombras podiam tornar-se ainda mais descarnadas ao perderem até as cores ínfimas que a recordação conservava. Ao fim desse longo tempo de separação, já não imaginavam essa intimidade que fora sua, nem como havia podido viver perto deles um ser em que podiam a todo momento pousar a mão.

Deste ponto de vista, tinham entrado na própria ordem da peste, tanto mais eficaz quanto mais medíocre era. Ninguém mais, entre nós, tinha grandes sentimentos. Mas todos experimentavam sentimentos monótonos. (...)

Os nossos concidadãos tinham se adaptado, como se costuma dizer, porque não havia outro modo de proceder. Tinham ainda, naturalmente, a atitude da desgraça e do sofrimento, mas já não os sentiam. De resto, o Dr. Rieux, por exemplo, achava que essa era justamente a desgraça e que o hábito do desespero é pior que o próprio desespero. Antes, os separados não eram realmente infelizes, pois havia no seu sofrimento uma luz que acabava de se extinguir. Agora, eram vistos pelas esquinas, nos cafés ou em casa dos amigos, plácidos e distraídos, e com um ar tão entediado que, graças a eles, toda a cidade parecia uma sala de espera. Os que tinham uma profissão executavam-na ao ritmo da própria peste, meticulosamente e sem brilho. Todos eram modestos. Pela primeira vez, os separados não tinham aversão a falar dos ausentes, a usar a linguagem de todos, a examinar a sua separação sob o mesmo enfoque que as estatísticas da epidemia. Enquanto, até então, tinham subtraído ferozmente o seu sofrimento à desgraça coletiva, aceitavam agora a confusão. Sem memória e sem esperança, instalavam-se no presente. Na verdade, tudo se tornava presente para eles. A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes.”

 

 

“Era por tais fraquezas que Rieux podia julgar o seu cansaço. A sensibilidade lhe fugia. Amarrada a maior parte do tempo, endurecida e seca, irrompia de vez em quando e abandonava-o a emoções que já não conseguia dominar. Sua única defesa era refugiar-se nesse endurecimento e apertar o nó que nele se formara. Sabia efetivamente que essa era a melhor maneira de continuar. Quanto ao resto, não tinha muitas ilusões e o seu cansaço tirava-lhe as que ainda conservava. Porque sabia que, durante um período cujo término não conseguia vislumbrar, o seu papel já não era o de curar. O seu papel era diagnosticar. Descobrir, ver, descrever, registrar, depois condenar, essa era a sua tarefa. Esposas agarravam-lhe as mãos e gritavam: “Doutor, dê-lhe a vida!” Mas ele não estava ali para dar vida, estava ali para ordenar o isolamento. De que servia o ódio que lia, então, nas fisionomias? “O senhor não tem coração”, tinham-lhe dito um dia. Sim, ele tinha um coração. Servia-lhe para suportar as vinte horas por dia em que via morrer homens que haviam sido feitos para viver. Servia-lhe para recomeçar todos os dias. De agora em diante, o coração mal dava para isso. Como esse coração seria suficiente para dar vida?

Não, não eram socorros que ele distribuía durante todo o dia, e sim informações. Aquilo, é claro, não se podia chamar uma profissão de homem. Mas afinal a quem, então, aquela multidão aterrorizada e dizimada tinha deixado tempo para exercer uma profissão de homem? Ainda bem que havia a fadiga. Se Rieux estivesse mais vigoroso, aquele cheiro de morte espalhado por toda parte poderia tê-lo tornado sentimental. Mas quando só se dorme quatro horas, não se é sentimental. Veem-se as coisas como elas são, isto é, veem-se segundo a justiça, a horrenda e irrisória justiça. E os outros, os condenados, também eles o sentiam bem. Antes da peste, recebiam-no como um salvador. Ele ia consertar tudo com três pílulas e uma seringa, e apertavam-lhe o braço ao conduzi-lo pelos corredores. Era lisonjeiro, mas perigoso. Agora, pelo contrário, apresentava-se acompanhado de soldados, era necessário dar coronhadas para que a família se decidisse a abrir a porta. Teriam desejado arrastá-lo e arrastar toda a humanidade com eles para a morte. (...)

Eram pelo menos essas as ideias que o Dr. Rieux, durante essas intermináveis semanas, ventilava com as que se relacionavam à sua situação de separado. E eram também aquelas cujo reflexo ele lia no semblante dos amigos. Mas o efeito mais perigoso do esgotamento que vencia, pouco a pouco, todos os que continuavam a luta contra o flagelo não estava nessa indiferença aos acontecimentos exteriores e às emoções dos outros, e sim na negligência a que haviam chegado. Porque tinham então tendência a evitar todos os gestos que não fossem absolutamente indispensáveis e que lhes pareciam sempre acima das suas forças. Foi assim que esses homens chegaram a desprezar cada vez mais as regras de higiene que tinham codificado, a esquecer algumas das desinfecções que deviam praticar em si próprios, a correr por vezes, sem se prevenirem contra o contágio, para junto de doentes atacados de peste pulmonar, porque, alertados no último momento de que deviam dirigir-se a casas infectadas, tinha-lhes parecido de antemão exaustivo voltarem a qualquer local para fazerem as instilações necessárias. Nisso residia o verdadeiro perigo, pois era a própria luta contra a peste que os tornava então mais vulneráveis à peste. Apostavam, em suma, no acaso e o acaso não pertence a ninguém.”

 

 

 

“— Na minha idade, é preciso ser sincero. Mentir é cansativo demais.”

 

 

“— Nada no mundo vale que nos afastemos daquilo que amamos. E, contudo, também eu me afasto, sem que possa saber por quê.

Deixou-se cair de novo sobre a almofada.

— É um fato, é só. Registremo-lo e aceitemos as suas consequências.”

 

 

“Um autor profano, no século passado, pretendera revelar o segredo da Igreja ao afirmar que não havia Purgatório. Subentendia, assim, que não havia meias medidas, que só havia o Paraíso e o Inferno, e que só se podia ser salvo ou condenado, segundo o que se tinha escolhido. Era, na opinião de Paneloux, uma heresia que só podia nascer no seio de uma alma libertina. Pois existia um Purgatório. Mas havia épocas, sem dúvida, em que não se podia contar muito com esse Purgatório, havia épocas em que não se podia falar de pecado venial. Todo pecado era mortal e toda indiferença, criminosa. Tudo ou nada.”

 

 

“Ele tinha consciência de quanto é estéril uma vida sem ilusões.”

 

 

“Mas essa exuberância banal não dizia tudo, e os que enchiam as ruas ao fim da tarde, ao lado de Rambert, disfarçavam muitas vezes, sob uma atitude plácida, felicidades mais delicadas. Muitos casais e muitas famílias pareciam apenas transeuntes pacíficos. Na realidade, a maior parte efetuava peregrinações aos lugares onde tinham sofrido. Tratava-se de mostrar aos recém-chegados os sinais evidentes ou ocultos da peste, os vestígios da sua história. Em alguns casos, contentavam-se com o papel de guias, daquele que viu muitas coisas, do contemporâneo da peste, e falavam do perigo sem evocar o medo. Esses prazeres eram inofensivos. Em outros casos, porém, tratava-se de itinerários mais frementes, em que um amante, abandonado à doce angústia da recordação, podia dizer à sua companheira: “Neste lugar, nessa época, eu desejei você, e você não estava aqui.” Esses turistas da paixão eram então facilmente reconhecíveis: formavam ilhotas de sussurros e de confidências no meio do tumulto em que caminhavam. Mais que as orquestras nas praças, eram eles que anunciavam a verdadeira libertação. Porque esses casais encantados, estreitamente enlaçados e avarentos de palavras, afirmavam, no meio do tumulto, com todo o triunfo e toda a injustiça da felicidade, que acabara a peste e o terror chegara ao fim. Negavam tranquilamente, contra toda a evidência, que tivéssemos jamais conhecido esse mundo insensato em que o assassinato de um homem era tão quotidiano quanto o das moscas, essa selvageria bem definida, esse delírio calculado, essa prisão que trazia consigo uma pavorosa liberdade em relação a tudo o que não era o presente, esse cheiro de morte que entorpecia todos aqueles a quem não matava — negavam, enfim, que tivéssemos sido esse povo atordoado de que todos os dias uma parte, empilhada na boca de um forno, se evaporava em fumaça gordurosa, enquanto a outra, carregada com as correntes da impotência e do medo, esperava a sua vez.”

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