Editora: Record
ISBN: 98-85-01-1124-1
Opinião: ★★★★☆
Tradução: Valerie Rumjanek
Páginas: 288
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Sinopse: Romance
que destaca a mudança na vida da cidade de Orã, na Argélia, depois que ela é
atingida por uma terrível peste, transmitida por ratos, que dizima a população.
É inegável a dimensão política deste livro, um dos mais lidos do pós-guerra,
uma vez que a cidade assolada pela epidemia lembra a ocupação nazista na França
durante a Segunda Guerra Mundial. A peste é uma obra de resistência em
todos os sentidos da palavra.
Narrado do ponto de vista de um médico envolvido nos
esforços para conter a doença, o texto de Albert Camus ressalta a
solidariedade, a solidão, a morte e outros temas fundamentais para a
compreensão dos dilemas do homem moderno.
“Nada mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem da
manhã à noite e optarem, em seguida, por desperdiçar no jogo, nos cafés e em
tagarelices o tempo que lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que
as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista algo mais. Isso, em geral,
não muda a vida delas. Simplesmente houve a suspeita, o que já é alguma coisa.
Orã, ao contrário, é uma cidade aparentemente moderna. Não é necessário,
portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou
se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar de ato de amor, ou se
entregam ao hábito de uma longa vida a dois. Tampouco isso é original. Em Orã,
como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar
sem saber.”
“Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum,
mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual
número de pestes e de guerras. E contudo as pestes, como as guerras, encontram
sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido, assim
como os nossos concidadãos; é necessário compreender assim as duas hesitações.
Por isso é preciso compreender, também, que ele estivesse dividido entre a
inquietação e a confiança. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não
vai durar muito, seria estúpido.” Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que
não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não
pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo
mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não
acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então
que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele
passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em
primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções. Nossos concidadãos não
eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e
pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os
flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e
tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os
deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres e jamais alguém será livre
enquanto houver flagelos.”
“O médico continuava a olhar pela janela. De um
lado da vidraça, o céu fresco da primavera; do outro, a palavra que ressoava
ainda na sala: peste. A palavra não continha apenas o que a ciência queria
efetivamente lhe atribuir, e sim uma longa série de imagens extraordinárias que
não combinavam com essa cidade amarela e cinzenta, moderadamente animada a essa
hora, ruidosa, ou melhor, zumbindo feliz, em suma, se é possível ser ao mesmo
tempo feliz e taciturno. E uma tranquilidade tão pacífica e tão indiferente
negava quase sem esforço as velhas imagens do flagelo: Atenas empestada e
abandonada pelos pássaros; as cidades chinesas cheias de moribundos
silenciosos; os condenados de Marselha empilhando em covas os corpos que se
liquefaziam; a construção, na Provença, de uma muralha para deter o vento
furioso da peste; Jafa e os seus mendigos horrendos; os catres úmidos e podres
colados à terra batida do hospital de Constantinopla; os doentes suspensos por
ganchos; o carnaval dos médicos mascarados durante a Peste Negra; os acasalamentos
dos vivos nos cemitérios de Milão; as carretas de mortos na aterrada Londres;
as noites e os dias em toda parte e sempre cheios dos gritos intermináveis dos
homens. Não, tudo isso não era ainda bastante forte para matar a paz desse dia.
Do outro lado da vidraça, a campainha de um bonde invisível tilintava de
repente e refutava num segundo a crueldade e a dor. Só o mar, ao fundo do
tabuleiro baço das casas, comprovava o que há de inquietação e de eterna falta
de tranquilidade neste mundo. E o Dr. Rieux, que olhava para o golfo, pensava
nas fogueiras citadas por Lucrécio e que os atenienses atacados pela doença
acendiam à beira-mar. Levavam os mortos para lá durante a noite, mas o lugar
era pequeno e os vivos batiam-se a golpes de archote para colocar os que lhes
tinham sido queridos, sustentando lutas sangrentas para não abandonar os
cadáveres. Podiam-se imaginar as fogueiras rubras diante da água tranquila e
escura, os combates de archotes na noite crepitante de fagulhas e densos
vapores envenenados subindo para o céu atento. Podia-se recear...”
“Cottard balbuciara que ser artista devia resolver muitas coisas.”
“Na maioria dos casos, era evidente que a separação não devia ter fim
senão com a epidemia. E, para todos nós, o sentimento que fazia a nossa vida e
que, no entanto, julgávamos conhecer bem (os naturais de Orã, como já foi dito,
têm paixões simples) assumia um novo aspecto. Maridos e amantes que tinham a
maior confiança nas companheiras revelavam-se ciumentos. Homens que se julgavam
volúveis no amor redescobriam-se constantes. Filhos que tinham vivido junto da
mãe mal olhando para ela depositavam toda a preocupação e angústia numa ruga de
seu rosto que lhes povoava a lembrança. Essa separação brutal, sem meio-termo,
sem futuro previsível, deixava-nos perturbados, incapazes de reagir contra a
lembrança dessa presença, ainda tão próxima e já tão distante, que ocupava
agora os nossos dias. Na verdade, sofríamos duas vezes: o nosso sofrimento, em
primeiro lugar, e em seguida aquele que atribuíamos aos ausentes — filho,
esposa ou amante.
Em outras circunstâncias, aliás,
nossos concidadãos teriam encontrado uma solução numa vida mais exterior ou
mais ativa. Mas, ao mesmo tempo, a peste deixava-os ociosos, reduzidos a vagar
sem destino pela cidade triste e entregues, dia após dia, aos jogos enganosos
da recordação, pois nos seus passeios sem rumo eram levados a passar sempre
pelos mesmos caminhos, e a maior parte das vezes, numa cidade tão pequena, os
caminhos eram precisamente os mesmos que, em outra época, haviam percorrido com
o ausente.
Assim, a primeira coisa que a
peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio. E o narrador está convencido
de que pode escrever aqui, em nome de todos, o que ele próprio sentiu então, já
que o sentiu ao mesmo tempo que muitos dos nossos concidadãos. Sim, era
realmente o sentimento do exílio esse vazio que trazíamos constantemente em
nós, essa emoção precisa, o desejo irracional de voltar atrás ou, pelo
contrário, de acelerar a marcha do tempo, essas flechas ardentes da memória. Se
algumas vezes dávamos asas à imaginação e nos comprazíamos em esperar pelo
toque de campainha que anuncia o regresso, ou pelos passos familiares na
escada; se, nesses momentos, consentíamos em esquecer que os trens estavam
imobilizados; se nos organizávamos para ficar em casa à hora em que normalmente
um viajante podia ser trazido pelo expresso da tarde até o nosso bairro, esses
jogos, obviamente, podiam durar. Chegava sempre um momento em que nos dávamos
conta claramente de que os trens não chegavam. Sabíamos, então, que a nossa separação
estava destinada a durar e que devíamos tentar entender-nos com o tempo. A
partir de então, reintegrávamo-nos, afinal, à nossa condição de prisioneiros,
estávamos reduzidos ao nosso passado e, ainda que alguém fosse tentado a viver
no futuro, logo renunciava, ao experimentar as feridas que a imaginação
finalmente inflige aos que nela confiam.”
“Nesse momento, o desmoronar da coragem, da vontade e da paciência era
tão brusco que lhes parecia que não poderiam jamais sair desse precipício.
Então, restringiam-se a não pensar mais na libertação, a não se voltar para o
futuro e a manter sempre, por assim dizer, os olhos baixos. Mas, naturalmente,
essa prudência, essa maneira de enganar a dor, de fechar a guarda para recusar
o combate, eram mal recompensadas. Ao mesmo tempo que evitavam esse
desmoronamento que não queriam por preço algum, privavam-se, na verdade, dos
momentos bastante frequentes em que podiam esquecer a peste nas imagens de seu
futuro reencontro. E assim, encalhados a meia distância entre esses abismos e
esses cumes, mais flutuavam que viviam, abandonados a dias sem rumo e
recordações estéreis, sombras errantes, incapazes de se fortalecerem a não ser
aceitando enraizar-se na terra de sua própria dor.
Experimentavam
assim o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e de todos os exilados, ou
seja, viver com uma memória que não serve para nada. Esse próprio passado,
sobre o qual refletiam sem cessar, tinha apenas o gosto do arrependimento. Na
verdade, gostariam de poder acrescentar-lhe tudo quanto lamentavam não ter
feito, quando ainda podiam fazê-lo, junto a esse ou àquela que esperavam —
assim como a todas as circunstâncias, mesmo relativamente felizes, da sua vida
de prisioneiros misturavam o ausente, e o resultado não podia satisfazê-los.
Impacientes com o presente, inimigos do passado e privados do futuro,
parecíamo-nos assim efetivamente com aqueles que a justiça ou o ódio humano
fazem viver atrás das grades. Para terminar, o único meio de escapar a essas
férias insuportáveis era, através da imaginação, recolocar em movimento os
trens e encher as horas com os repetidos sons de uma campainha que, no entanto,
se obstinava no silêncio.”
“Enquanto
somos amados, somos compreendidos sem palavras. Mas uma pessoa não ama sempre.”
“Segundo
ele próprio dizia, a obstinação acaba por triunfar sobre tudo.”
“Ah, se fosse um terremoto! Uma boa
sacudidela, e não se fala mais nisso... Contam-se os mortos, os vivos, e
pronto. Mas esta porcaria de doença! Até os que não a apanham parecem trazê-la
no coração.”
“É no momento da desgraça que a gente se
habitua à verdade, quer dizer, ao silêncio.”
“O narrador fica mais tentado a acreditar que, ao dar demasiada
importância às belas ações, se presta finalmente uma homenagem indireta e
poderosa ao mal. Isto porque deixaria então supor que essas belas ações só
valem tanto por serem raras e que a maldade e a indiferença são forças motrizes
bem mais frequentes nas ações dos homens. Essa é uma ideia que o narrador não
compartilha. O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a
boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade.
Os homens são mais bons que maus, e na verdade a questão não é essa. Mas
ignoram mais ou menos, e é a isso que se chama virtude ou vício, sendo o vício
mais desesperado o da ignorância, que julga saber tudo e se autoriza, então, a
matar. A alma do assassino é cega, e não há verdadeira bondade nem belo amor
sem toda a clarividência possível.”
“— Aos
30 anos, começa-se a envelhecer e é preciso aproveitar tudo.”
“—
Sabe, doutor, pensei muito na sua organização. Se não estou nela, é porque
tenho as minhas razões. Quanto ao resto, creio que saberia ainda sacrificar a
minha vida: fiz a guerra na Espanha.
— De
que lado? — perguntou Tarrou.
— Do
lado dos vencidos. Mas, desde então, pensei um pouco.
— Em
quê? — insistiu Tarrou.
— Na
coragem. Agora sei que o homem é capaz de grandes ações. Mas, se não for capaz
de um grande sentimento, não me interessa.
—
Tem-se a impressão de que o homem é capaz de tudo — disse Tarrou.
—
Não. É incapaz de sofrer ou de ser feliz por muito tempo. Portanto, não é capaz
de nada que preste.”
“De
qualquer forma era esse tipo de evidência ou de apreensão que mantinha, nos
nossos concidadãos, o sentimento do exílio e da separação. A este respeito, o
narrador sabe perfeitamente quanto é lamentável não poder relatar algo de
verdadeiramente espetacular, como, por exemplo, algum herói altruísta ou alguma
ação brilhante, semelhantes aos que se encontram nas velhas histórias. É que
nada é menos espetacular que um flagelo e, pela sua própria duração, as grandes
desgraças são monótonas. Na lembrança dos sobreviventes, os dias terríveis da
peste não surgem como chamas grandes e cruéis, e sim como um interminável
tropel que tudo esmaga à sua passagem.”
“Teriam
os nossos concidadãos, pelo menos os que mais haviam sofrido com essa
separação, se habituado à situação? Não seria inteiramente justo afirmar tal
coisa. Seria mais exato dizer que, tanto moral quanto fisicamente, sofriam de
descarnação. No começo da peste, lembravam-se nitidamente do ente que haviam
perdido e sentiam saudade. Mas, se se lembravam nitidamente do rosto amado, de
seu riso, de determinado dia que agora reconheciam ter sido feliz, tinham
dificuldade de imaginar o que o outro podia estar fazendo no próprio momento em
que o evocavam e em lugares de ora em diante tão longínquos. Em suma, nesse
momento, tinham memória, mas uma imaginação insuficiente. Na segunda fase da
peste, perderam também a memória. Não que tivessem esquecido esse rosto, mas, o
que vem a dar no mesmo, ele perdera a carne, já não o sentiam no interior de si
próprios. E, enquanto tendiam a queixar-se, nas primeiras semanas, de só lhes
restarem sombras dos objetos de seu amor, compreenderam, com a continuação, que
essas sombras podiam tornar-se ainda mais descarnadas ao perderem até as cores
ínfimas que a recordação conservava. Ao fim desse longo tempo de separação, já
não imaginavam essa intimidade que fora sua, nem como havia podido viver perto
deles um ser em que podiam a todo momento pousar a mão.
Deste
ponto de vista, tinham entrado na própria ordem da peste, tanto mais eficaz
quanto mais medíocre era. Ninguém mais, entre nós, tinha grandes sentimentos.
Mas todos experimentavam sentimentos monótonos. (...)
Os
nossos concidadãos tinham se adaptado, como se costuma dizer, porque não havia
outro modo de proceder. Tinham ainda, naturalmente, a atitude da desgraça e do
sofrimento, mas já não os sentiam. De resto, o Dr. Rieux, por exemplo, achava
que essa era justamente a desgraça e que o hábito do desespero é pior que o
próprio desespero. Antes, os separados não eram realmente infelizes, pois havia
no seu sofrimento uma luz que acabava de se extinguir. Agora, eram vistos pelas
esquinas, nos cafés ou em casa dos amigos, plácidos e distraídos, e com um ar
tão entediado que, graças a eles, toda a cidade parecia uma sala de espera. Os
que tinham uma profissão executavam-na ao ritmo da própria peste,
meticulosamente e sem brilho. Todos eram modestos. Pela primeira vez, os
separados não tinham aversão a falar dos ausentes, a usar a linguagem de todos,
a examinar a sua separação sob o mesmo enfoque que as estatísticas da epidemia.
Enquanto, até então, tinham subtraído ferozmente o seu sofrimento à desgraça
coletiva, aceitavam agora a confusão. Sem memória e sem esperança,
instalavam-se no presente. Na verdade, tudo se tornava presente para eles. A
peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da
amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes.”
“Era
por tais fraquezas que Rieux podia julgar o seu cansaço. A sensibilidade lhe
fugia. Amarrada a maior parte do tempo, endurecida e seca, irrompia de vez em
quando e abandonava-o a emoções que já não conseguia dominar. Sua única defesa
era refugiar-se nesse endurecimento e apertar o nó que nele se formara. Sabia
efetivamente que essa era a melhor maneira de continuar. Quanto ao resto, não
tinha muitas ilusões e o seu cansaço tirava-lhe as que ainda conservava. Porque
sabia que, durante um período cujo término não conseguia vislumbrar, o seu
papel já não era o de curar. O seu papel era diagnosticar. Descobrir, ver,
descrever, registrar, depois condenar, essa era a sua tarefa. Esposas
agarravam-lhe as mãos e gritavam: “Doutor, dê-lhe a vida!” Mas ele não estava
ali para dar vida, estava ali para ordenar o isolamento. De que servia o ódio
que lia, então, nas fisionomias? “O senhor não tem coração”, tinham-lhe dito um
dia. Sim, ele tinha um coração. Servia-lhe para suportar as vinte horas por dia
em que via morrer homens que haviam sido feitos para viver. Servia-lhe para
recomeçar todos os dias. De agora em diante, o coração mal dava para isso. Como
esse coração seria suficiente para dar vida?
Não,
não eram socorros que ele distribuía durante todo o dia, e sim informações.
Aquilo, é claro, não se podia chamar uma profissão de homem. Mas afinal a quem,
então, aquela multidão aterrorizada e dizimada tinha deixado tempo para exercer
uma profissão de homem? Ainda bem que havia a fadiga. Se Rieux estivesse mais
vigoroso, aquele cheiro de morte espalhado por toda parte poderia tê-lo tornado
sentimental. Mas quando só se dorme quatro horas, não se é sentimental. Veem-se
as coisas como elas são, isto é, veem-se segundo a justiça, a horrenda e
irrisória justiça. E os outros, os condenados, também eles o sentiam bem. Antes
da peste, recebiam-no como um salvador. Ele ia consertar tudo com três pílulas
e uma seringa, e apertavam-lhe o braço ao conduzi-lo pelos corredores. Era
lisonjeiro, mas perigoso. Agora, pelo contrário, apresentava-se acompanhado de
soldados, era necessário dar coronhadas para que a família se decidisse a abrir
a porta. Teriam desejado arrastá-lo e arrastar toda a humanidade com eles para a
morte. (...)
Eram
pelo menos essas as ideias que o Dr. Rieux, durante essas intermináveis
semanas, ventilava com as que se relacionavam à sua situação de separado. E
eram também aquelas cujo reflexo ele lia no semblante dos amigos. Mas o efeito
mais perigoso do esgotamento que vencia, pouco a pouco, todos os que
continuavam a luta contra o flagelo não estava nessa indiferença aos
acontecimentos exteriores e às emoções dos outros, e sim na negligência a que
haviam chegado. Porque tinham então tendência a evitar todos os gestos que não
fossem absolutamente indispensáveis e que lhes pareciam sempre acima das suas
forças. Foi assim que esses homens chegaram a desprezar cada vez mais as regras
de higiene que tinham codificado, a esquecer algumas das desinfecções que
deviam praticar em si próprios, a correr por vezes, sem se prevenirem contra o
contágio, para junto de doentes atacados de peste pulmonar, porque, alertados
no último momento de que deviam dirigir-se a casas infectadas, tinha-lhes
parecido de antemão exaustivo voltarem a qualquer local para fazerem as
instilações necessárias. Nisso residia o verdadeiro perigo, pois era a própria
luta contra a peste que os tornava então mais vulneráveis à peste. Apostavam,
em suma, no acaso e o acaso não pertence a ninguém.”
“— Na
minha idade, é preciso ser sincero. Mentir é cansativo demais.”
“—
Nada no mundo vale que nos afastemos daquilo que amamos. E, contudo, também eu
me afasto, sem que possa saber por quê.
Deixou-se
cair de novo sobre a almofada.
— É
um fato, é só. Registremo-lo e aceitemos as suas consequências.”
“Um
autor profano, no século passado, pretendera revelar o segredo da Igreja ao
afirmar que não havia Purgatório. Subentendia, assim, que não havia meias
medidas, que só havia o Paraíso e o Inferno, e que só se podia ser salvo ou
condenado, segundo o que se tinha escolhido. Era, na opinião de Paneloux, uma
heresia que só podia nascer no seio de uma alma libertina. Pois existia um
Purgatório. Mas havia épocas, sem dúvida, em que não se podia contar muito com
esse Purgatório, havia épocas em que não se podia falar de pecado venial. Todo
pecado era mortal e toda indiferença, criminosa. Tudo ou nada.”
“Ele
tinha consciência de quanto é estéril uma vida sem ilusões.”
“Mas
essa exuberância banal não dizia tudo, e os que enchiam as ruas ao fim da
tarde, ao lado de Rambert, disfarçavam muitas vezes, sob uma atitude plácida,
felicidades mais delicadas. Muitos casais e muitas famílias pareciam apenas
transeuntes pacíficos. Na realidade, a maior parte efetuava peregrinações aos
lugares onde tinham sofrido. Tratava-se de mostrar aos recém-chegados os sinais
evidentes ou ocultos da peste, os vestígios da sua história. Em alguns casos,
contentavam-se com o papel de guias, daquele que viu muitas coisas, do
contemporâneo da peste, e falavam do perigo sem evocar o medo. Esses prazeres
eram inofensivos. Em outros casos, porém, tratava-se de itinerários mais
frementes, em que um amante, abandonado à doce angústia da recordação, podia
dizer à sua companheira: “Neste lugar, nessa época, eu desejei você, e você não
estava aqui.” Esses turistas da paixão eram então facilmente reconhecíveis:
formavam ilhotas de sussurros e de confidências no meio do tumulto em que
caminhavam. Mais que as orquestras nas praças, eram eles que anunciavam a
verdadeira libertação. Porque esses casais encantados, estreitamente enlaçados
e avarentos de palavras, afirmavam, no meio do tumulto, com todo o triunfo e
toda a injustiça da felicidade, que acabara a peste e o terror chegara ao fim.
Negavam tranquilamente, contra toda a evidência, que tivéssemos jamais conhecido
esse mundo insensato em que o assassinato de um homem era tão quotidiano quanto
o das moscas, essa selvageria bem definida, esse delírio calculado, essa prisão
que trazia consigo uma pavorosa liberdade em relação a tudo o que não era o
presente, esse cheiro de morte que entorpecia todos aqueles a quem não matava —
negavam, enfim, que tivéssemos sido esse povo atordoado de que todos os dias
uma parte, empilhada na boca de um forno, se evaporava em fumaça gordurosa,
enquanto a outra, carregada com as correntes da impotência e do medo, esperava
a sua vez.”
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