segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Os versos satânicos (Parte I), de Salman Rushdie

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★☆

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Tradução: Misael Dursan

ISBN: 978-85-3591-287-6

Páginas: 600

Sinopse: Dois homens caem do céu para a terra, depois que terroristas explodem o avião em que viajavam. Ambos são indianos e atores. Ambos chegam incólumes ao solo da Inglaterra e se metamorfoseiam - um em diabo, outro em anjo. Muitas coisas opõem e associam os acidentados: um é apolíneo, o outro dionisíaco; um é apocalíptico, o outro integrado; um é apegado a sua origem, o outro está decidido a conquistar a nova nacionalidade. Transitando livremente entre o real e o fantástico, entre o bem e o mal, entre a infinidade de opostos complementares e inconciliáveis da vida, este romance alegórico, impregnado de magia, é claramente autobiográfico no conjunto de seus episódios e, principalmente, em sua questão filosófica central: quem sou eu?



Cinco horas e meia de fusos horários; vire o relógio de cabeça para baixo em Bombaim e você tem a hora de Londres. Meu pai, Chamcha pensaria, anos depois, mergulhado em amargura, eu o acuso de ter invertido o Tempo.

Que distância voaram? Cinco mil e quinhentas milhas em linha reta. Ou: da indianidade para a anglicidade, uma distância incomensurável. Ou, nada longe, porque eles decolaram de uma grande cidade e caíram em outra. A distância entre cidades é sempre pequena; um aldeão, atravessando centenas de milhas até a cidade, atravessa espaços mais vazios, mais escuros, mais aterrorizantes.”

 

 

“Fiz de você um homem”. Mas que homem? Isso é o que os pais nunca sabem. Não com antecedência; não até ser tarde demais.”

 

 

Um homem que se propõe construir a si mesmo está assumindo o papel do Criador, segundo uma determinada maneira de ver as coisas; ele é antinatural, blasfemador, abominação das abominações. Sob outro ângulo, pode-se ver carisma nele, heroísmo em sua luta, em sua disposição de arriscar: nem todos os mutantes sobrevivem. Ou se pode considerá-lo sociopoliticamente: a maioria dos migrantes aprende, e pode se transformar em disfarces. Nossas próprias descrições falsas para contrapor às falsidades inventadas sobre nós, escondendo, por questão de segurança, os nossos eus secretos.

Um homem que inventa a si mesmo precisa de alguém que acredite nele para provar que conseguiu. Fazendo o papel de Deus outra vez, você poderia dizer. Ou você poderia descer um tom e pensar em Sininho; as fadas não aparecem se as crianças não baterem palmas. Ou você poderia simplesmente dizer: isso é que é ser um homem.

Não só a necessidade de ser acreditado, mas de acreditar no outro. Isso mesmo: Amor.”

 

 

“Não é fácil dizer isto, mas estou casado agora; e não só com a esposa, mas com a vida.”

 

 

“Quando o progenitor, o criador, revela-se satânico, o filho quase sempre acaba puritano.”

 

 

“Triste destino ser um norte-americano no estrangeiro e nem suspeitar por que era odiado.”

 

 

Pergunta: O que é o oposto de fé?

Não é a descrença. Definitiva demais, exata, fechada. Ela própria uma espécie de crença.

É a dúvida.

A condição humana, mas e a condição angélica? A meio caminho entre Aládeus e o homosap, terão os anjos jamais duvidado? Duvidaram: desafiando a vontade de Deus, um dia eles se esconderam murmurando atrás do Trono, ousando perguntar coisas proibidas: antiquestões. Isso mesmo. Não podiam ser questionadas. Liberdade, a velha antiquestão. Ele os acalmou, naturalmente, usando suas habilidades gerenciais à la deus. Elogiou-os: serão o instrumento de minha vontade na terra, da salvaçãodanação do homem, e todos os et cetera de sempre. E pronto, fim do protesto, auréolas a postos, de volta ao trabalho. Anjos são fáceis de pacificar; transforme-os em instrumentos e eles tocam sua harpia melodia. Seres humanos são mais difíceis, podem duvidar de qualquer coisa, até do que está diante de seus próprios olhos. Do que está detrás de seus próprios olhos. Daquilo que, quando mergulham com as pálpebras pesadas, transpira detrás dos olhos fechados... anjos, eles não são muito dotados de vontade. Ter vontade é discordar; não se submeter; divergir.”

 

 

“Em tempos remotos, o patriarca Ibrahim veio a este vale com Hagar e Ismail, seu filho. Aqui, na vastidão sem água, abandonou-a. Ela lhe perguntou, será esta a vontade de Deus? Ele respondeu, é. E partiu, o maldito. Desde o começo, os homens usaram Deus para justificar o injustificável. Ele age por caminhos misteriosos, dizem os homens. Não é de admirar, portanto, que as mulheres tenham se voltado para mim.”

 

 

“O fato de estar vivo compensa o que a vida faz com a gente.”

 

 

““Eu? Quem sou eu?” Perplexo, Gibreel fez a pergunta absurda. O outro acenou com a cabeça ponderosamente, as sobrancelhas se mexendo como galhadas macias. “A mais importante das perguntas, em minha opinião. Vivemos tempos problemáticos, meu senhor, para um homem ético. Quando um homem não tem certeza de sua essência, como pode saber se é bom ou mau?””

 

 

“Alguma coisa deve estar profundamente deslocada na vida espiritual do planeta, pensou Gibreel Farishta. Demônios demais dentro das pessoas que alegam acreditar em Deus.”

 

 

“Quem é ele? Um exilado. O que não deve ser confundido, não se deve permitir que seja, com todas as outras palavras que as pessoas pronunciam: emigrado, expatriado, refugiado, imigrante, silêncio, astúcia. Exilado é um sonho de glorioso retorno. Exilado é uma visão de revolução: Elba, não Santa Helena. É um paradoxo infindável: olhar para a frente olhando sempre para trás. O exilado é um bola atirada para muito alto no ar. Ele ali fica, dependurado, congelado no tempo, traduzido numa fotografia; negação de movimento, impossivelmente suspenso acima de sua terra natal, esperando o momento inevitável em que a fotografia comece a se mexer e a terra reclame o que é dela. (...)

O exílio é um país sem alma.”

 

 

““Pa-pai”, Anahita Sufyan interrompeu essas cogitações, olhos virados para o teto, cara apoiada na mão. “Desista. A questão é saber como ele se transformou nesse, nesse” — admirada — “monstro.”

Diante disso, o próprio diabo, levantando os olhos da sopa de galinha, gritou: “Não, não. Não sou um monstro, ah, não, não sou mesmo”. Sua voz, que parecia brotar de um abismo de dor, tocou e alarmou a jovem, e ela correu para se sentar ao lado dele e, impetuosamente, acariciou um ombro da fera infeliz, dizendo, numa tentativa de retificação: “Claro que não é, desculpe, claro que eu não acho que você é um monstro; só parece”. Saladin Chamcha caiu em prantos.”

 

 

Seu pai, Otto Cone, historiador da arte e biógrafo de Picabia, tinha conversado com ela, no ano que era o décimo quarto para ela e o último para ele, sobre “a mais perigosa de todas as mentiras que nos contam na vida” e que era, na opinião dele, a ideia de continuum. “Se alguém algum dia tentar convencer você que este belíssimo e mais perverso dos planetas é de alguma forma homogêneo, composto apenas de materiais conciliáveis, que tudo se soma, pegue o telefone e ligue para o fabricante de camisas-de-força”, ele aconselhou, conseguindo dar a impressão de ter visitado mais planetas que este antes de chegar a essas conclusões. “O mundo é incompatível, nunca se esqueça: é gagá. Fantasmas, nazistas, santos, todos vivos ao mesmo tempo; num lugar, felicidade perfeita, enquanto virando a esquina está o inferno. Não existe lugar mais maluco.”

 

 

“Otto Cone era um homem de setenta e tantos anos quando pulou no fosso do elevador e morreu. Agora, aí estava um assunto em que Alicja, sempre pronta a discutir as questões mais tabus, se recusava a tocar: por que um sobrevivente dos campos sobrevive quarenta anos e acaba completando o serviço que os monstros não conseguiram fazer? Será que o grande mal sempre triunfa no final, por mais que se resista contra ele? Será que deixa um laivo de gelo no sangue, circulando até encontrar o coração? Ou, pior ainda: a morte de um homem pode ser incompatível com sua vida? Allie, cuja primeira reação ao saber da morte do pai tinha sido um ataque de fúria, fez essas perguntas à mãe. Que, com expressão de pedra debaixo de um grande chapéu negro, disse apenas: “Você herdou dele a falta de controle, minha querida”.”

 

 

“Um iceberg é água lutando para ser terra; uma montanha, principalmente no Himalaia, principalmente o Everest, é terra tentando se metamorfosear em céu; é voo aterrado, é terra transmutada — quase — em ar, e que se torna, no sentido exato da palavra, exaltada.”

 

 

“Acho que está tudo bem fugir das câmeras, se a gente tem certeza que elas estão atrás da gente. Mas imagine se elas param? O que eu acho é que você ia virar e correr na direção oposta”.

 

 

Na vigésima primeira noite que passavam juntos, depois de ter dado conta de cinco doses duplas de Jameson, ela disse: “Sabe por que eu subi lá de verdade? Não dê risada: para escapar do bem e do mal”. Ele não deu risada. “Você acha que as montanhas estão acima da moralidade?”, ele perguntou, sério. “Foi o que eu aprendi no movimento revolucionário”, ela continuou. “É o seguinte: a informação foi abolida em algum momento do século XX, não sei exatamente quando; e não sei justamente porque isso também faz parte da informação que foi abolida, abolida. Desde então vivemos um conto de fadas. Entende? Tudo acontece por mágica. Nós, as fadas, não temos a menor noção do que está acontecendo. Então, como dá para saber o que é certo e errado? Não sabemos nem o que é. Então o que pensei foi o seguinte, ou você se arrebenta tentando entender as coisas, ou você vai e senta no alto de uma montanha, porque para lá é que foi a verdade, acredite se quiser, a verdade simplesmente subiu e fugiu destas cidades onde até o chão debaixo dos nossos pés é todo fabricado, é uma mentira, e se escondeu lá em cima, no ar muito, muito rarefeito, onde os mentirosos não têm coragem de ir atrás dela com medo de explodir os miolos. Ela está lá em cima agora. Eu estive lá. Pode perguntar para mim.” E adormeceu. Ele a carregou para a cama.”

 

 

A queda dos anjos, Gibreel refletia, não era a mesma coisa que a Queda do Homem e da Mulher. No caso dos seres humanos, a questão tinha sido a moralidade. Do fruto da árvore do bem e do mal eles não deviam comer, e comeram. Primeiro a mulher, e depois, por sugestão dela, o homem, adquiriram padrões éticos verboten, com delicioso aroma de maçã: a serpente lhes deu um sistema de valores. Permitindo, entre outras coisas, que julgassem a própria Divindade, possibilitando a ocorrência de todos os mais estranhos questionamentos: para que o mal? Para que o sofrimento? Para que a morte? — E lá se foram os dois. Ele não queria que Suas belas criaturas fossem além dos limites. (...) Enquanto a queda dos anjos tinha sido uma mera questão de poder: um ato direto de política celestial, castigo pela rebelião, curto e grosso, pour encourager les autres. — Como era insegura de si mesma essa Divindade, que não queria que Sua melhor criação distinguisse o certo do errado; e que governava pelo terror, exigindo a submissão inquestionável até dos Seus auxiliares mais próximos, expulsando todos os dissidentes para suas ardentes sibérias, para os gulags do Inferno... ele se controlou. Eram ideias satânicas, infiltradas em sua cabeça por Iblis-Belzebu-Shaitan. Se a Entidade ainda o estava punindo por sua falta de fé anterior, essa não era a melhor maneira de conquistar a remissão.”

 

 

Você talvez não conheça ainda a história do paranoico esquizofrênico que acreditava que era o imperador Napoleão Bonaparte e concordou em fazer um teste com o detector de mentiras?”, Alicja Cohen perguntou, devorando gefilte fish e sacudindo um garfo da Bloom’s debaixo do nariz da filha. “Perguntaram a ele: você é Napoleão? E a resposta dele, sem dúvida com um sorriso maldoso: Não. E eles olharam a máquina, que indicava, com toda a precisão da ciência moderna, que o lunático estava mentindo.” Blake de novo, Allie pensou. Então eu perguntei: uma convicção firme de que uma determinada coisa é de um determinado modo faz com que seja assim? Ele — i. e., Isaías — replicou: Todos os poetas acreditam que sim. E em muitas eras de imaginação essa firme convicção removeu montanhas; mas muitos não são capazes de uma firme convicção a respeito de nada.

 

 

“Ela o deixava brindando Farishta com suas inexauríveis anedotas, opiniões e papo generalizado, e ao voltar o encontrava ainda com a corda toda. Acabou por identificar diversos temas principais, sobretudo o corpo de conceitos sobre Os Problemas dos Ingleses. “O problema dos Inglegleses é que toda a his his história deles aconteceu no estrangeiro, e por isso eles na na não sabem que sentido tem.” — “O se segredo de um jantar em Londres é estar em nu nu número superior aos ingleses. Se eles são minoria, se cococomportam; se não, dão problema.” — “Visite a Ca Ca Câmara dos Horrores e vai descobrir qual é o po po problema dos ingleses. Aquilo é a caca cara deles, cadadáveres em baba banhos de sangue, barbeiros malucos etc. etc. etc. Os jo jornais cheios de morte e depravação. Mas declaram para o mu mundo que são reservados, du du durões, essas coisas, e a gente é ididiota de acreditar.” Gibreel ouvia essa coleção de preconceitos com algo que parecia completa concordância, irritando Allie profundamente. Será que o que viam da Inglaterra eram realmente essas generalizações? “Não”, Sisodia acedeu com um sorriso descarado. “Mas é gogostoso desabafafar essas coisas.”

 

 

““Cidade”, ele gritou, e sua voz rolou pela metrópole como trovão, “vou tropicalizar você.”

Gibreel enumerou os benefícios da proposta de metamorfose de Londres em uma cidade tropical: aumento de definição moral, instituição de uma siesta nacional, desenvolvimento de padrões de comportamento vívido e expansivo entre o populacho, música popular de melhor qualidade, novos pássaros nas árvores (araras, pavões, cacatuas), novas árvores para os pássaros (coqueiros, tamarindos, figueiras com longas barbas). Melhoria de vida nas ruas, flores muito coloridas (magenta, vermelhão, verde-néon), macacos-aranha nos carvalhos. Um novo mercado de massa para aparelhos domésticos de ar-condicionado, ventiladores de teto, espirais e sprays antimosquitos. Uma indústria de fibra de coco e copra. Ênfase nas possibilidades de Londres como centro de conferências etc.; melhores jogadores de críquete; maior ênfase no controle de bola entre jogadores profissionais, o mui inglês compromisso tradicional e desalmado pela “alta produtividade no trabalho” tornado obsoleto pelo calor. Fervor religioso, fermento político, renovação de interesse na intelligentsia. Fim da reserva britânica; bolsas de água quente abolidas para sempre, substituídas por fétidas noites de amor feito lento e olorosamente. Emergência de novos valores sociais: amigos começando a se visitar sem marcar hora com antecedência, fechamento dos asilos de velhos, ênfase nas famílias grandes. Comida mais temperada: uso de água além do papel nas privadas inglesas; a alegria de correr inteiramente vestido pelas primeiras chuvas das monções.

Desvantagens: cólera, tifo, doença de legionário, baratas, poeira, barulho, uma cultura de excessos.”

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