Editora: Companhia das Letras
Opinião: ★★★★☆
Tradução: Misael Dursan
ISBN: 978-85-3591-287-6
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Páginas: 600
Sinopse: Ver Parte
I
“Sonhando com banquetes havia muito perdidos, Baal
subiu a instável escada de madeira que levava ao seu quarto no segundo andar. O
que tinha para roubarem? Ele não valia o fio de um punhal. Abriu a porta,
estava entrando, quando um empurrão o fez arrebentar o nariz contra a parede
oposta. “Não me mate”, guinchou, às cegas. “Ai, meu Deus, não me mate, eu
imploro, ai.”
A
mão do outro fechou a porta. Baal sabia que por mais que gritasse, continuariam
sozinhos, isolados do mundo naquele cômodo abandonado. Ninguém viria; ele
próprio, se ouvisse o vizinho gritando, teria escorado a porta com o catre.
O
capuz da capa do intruso escondia inteiramente seu rosto. Baal enxugou o sangue
do nariz, de joelhos, tremendo incontrolavelmente. “Não tenho dinheiro nenhum”,
implorou. “Não tenho nada.” E o estranho falou: “Se um cão faminto quer comida,
não procura no canil”. E depois de uma pausa: “Baal. Sobrou pouco de você. Eu
esperava mais”.
Além
do terror, Baal sentiu a afronta. Seria alguma espécie de fã enlouquecido,
capaz de matá-lo porque não estava mais à altura da força de sua obra anterior?
Ainda tremendo, tentou a linha da autodepreciação. “É quase sempre
decepcionante conhecer pessoalmente um escritor”, tateou. O outro ignorou a
observação. “Mahound está a caminho”, disse.
Essa
frase direta encheu Baal do mais profundo terror. “E o que eu tenho com isso?”,
gritou. “O que ele quer? Faz muito tempo... uma vida inteira... mais que uma
vida inteira. O que ele quer? Você veio, foi ele que mandou você?”
“A
memória dele é tão longa quanto seu rosto”, disse o intruso, removendo o capuz.
“Não, não sou mensageiro dele. Você e eu temos uma coisa em comum. Ambos temos
medo dele.”
“Conheço
você”, disse Baal.
“Conhece.”
“Esse
jeito de falar. Você é estrangeiro.”
“‘Uma
revolução de carregadores de água, imigrantes e escravos’”, citou o estranho.
“Palavras suas.”
“Você
é o imigrante”, recordou Baal. “O persa. Sulaiman.” O persa deu o seu sorriso
torto. “Salman”, corrigiu. “Não prudente, mas pacífico.”
“Você
era um dos mais chegados a ele”, Baal disse, perplexo.
“Quanto mais perto do ilusionista”, Salman respondeu, amargo, “mais fácil descobrir o truque”.
E
Gibreel sonhou assim:
No
oásis de Yathrib os seguidores da nova fé da Submissão viram-se sem terra e,
portanto, pobres. Durante muitos anos, eles se financiaram por meio de atos de
banditismo, atacando ricas caravanas de camelos no caminho de ida e volta a Jahilia.
Mahound não tinha tempo a perder com escrúpulos, Salman contou a Baal, não
tinha nenhuma hesitação quanto a fins e meios. Os fiéis viviam fora da lei,
mas, naqueles anos, Mahound — ou deve-se dizer o Arcanjo Gibreel? — ou Al-Lah?
— ficou obcecado com a lei. Entre as palmeiras do oásis, Gibreel apareceu ao
Profeta e viu-se vomitando regras, regras, regras, a tal ponto que os fiéis não
aguentavam mais a perspectiva de mais revelações, Salman disse, regras sobre
tudo, se um homem peida, que se vire de frente para o vento, uma regra
determinando qual mão se deve usar com o propósito de limpar o próprio
traseiro. Era como se nenhum aspecto da existência humana pudesse ser deixado
livre de regulamentação. A revelação — a recitação — determinava aos
fiéis o quanto deviam comer, se o sono devia ou não ser profundo, e quais
posições sexuais recebiam sanção divina. Assim, aprenderam que a sodomia e a
posição papai-e-mamãe eram aprovadas pelo arcanjo, enquanto as posturas
proibidas compreendiam todas aquelas em que a mulher ficava por cima. Gibreel
listou também todos os assuntos de conversa permitidos e proibidos, e marcou as
partes do corpo que não podiam ser coçadas por mais intolerável que fosse a
coceira. Vetou o consumo de camarões, essas bizarras criaturas de outro mundo,
que nenhum dos membros da seita jamais tinha visto, e exigiu que os animais
fossem abatidos devagar, por sangramento, de forma que, ao experimentarem
plenamente a própria morte, compreendessem o significado de suas vidas, porque
é só no momento da morte que a criatura viva compreende que a vida foi real, e
não uma espécie de sonho. E Gibreel, o arcanjo, especificou a maneira como um
homem deve ser enterrado, e como a sua propriedade deve ser dividida, o que fez
Salman, o persa, começar a imaginar que tipo de Deus era esse que soava tão
parecido com um homem de negócios. Foi quando teve a ideia que destruiu sua fé,
porque se lembrou que, é claro, Mahound tinha sido ele próprio um negociante, e
ainda por cima muito bem-sucedido, uma pessoa para quem a organização e as
regras vinham como coisa natural, portanto, quão extremamente conveniente que
tivesse cruzado com um arcanjo tão empreendedor, que comunicava as decisões de
gerenciamento desse Deus tão corporativo, mesmo que não corpóreo.
Depois
disso, Salman começou a notar como as revelações do anjo tendiam a ser úteis e
oportunas, de forma que quando os fiéis questionavam as posições de Mahound
sobre qualquer assunto, da possibilidade de viagem no espaço à permanência no
Inferno, o anjo vinha com uma resposta, e sempre apoiando Mahound, afirmando
sem sombra de qualquer dúvida que era impossível um homem jamais caminhar sobre
a superfície da Lua, e sendo igualmente taxativo quanto à natureza transitória
da danação: até o pior dos malfeitores acabaria purificado pelo fogo do Inferno
para encontrar seu caminho aos jardins perfumados de Gulistan e Bostan. Salman
reclamou com Baal que seria muito diferente se Mahound tomasse suas posições
depois de receber a revelação de Gibreel; mas não, ele simplesmente baixava a
lei e o anjo a confirmava a posteriori; então comecei a sentir um mau
cheiro no nariz, e pensei, esse deve ser o odor daquelas criaturas imundas
fabulosas e legendárias, como é mesmo?, os camarões.
O
cheiro duvidoso começou a obcecar Salman, que era o mais bem formado dos
íntimos de Mahound, devido ao sistema educacional superior então em vigor na
Pérsia. Por conta desse desenvolvimento escolástico, Salman foi nomeado escriba
oficial de Mahound, e cabia a ele registrar por escrito as regras que
proliferavam, inesgotáveis. Todas aquelas convenientes revelações, ele disse a
Baal, e quanto mais eu fazia o trabalho, pior a coisa ficava. — Durante algum
tempo, porém, suas suspeitas tiveram de ser arquivadas porque os exércitos de
Jahilia marcharam sobre Yathrib, decididos a esmagar as moscas que infernizavam
as caravanas de camelos e interferiam nos negócios. O que ocorreu em seguida é
bem sabido, não preciso repetir, disse Salman. Mas então sua falta de modéstia
o dominou e ele se viu forçado a contar a Baal que ele, pessoalmente, tinha
salvado Yathrib da destruição certa, que tinha salvado o pescoço de Mahound com
a ideia de um fosso. Salman persuadiu o Profeta a mandar cavar uma trincheira
em volta de todo o assentamento sem muros do oásis, tão larga que nem mesmo os
fabulosos cavalos árabes da famosa cavalaria de Jahilia conseguissem saltar. Um
fosso: com estacas pontudas no fundo. Quando os jahilianos viram essa indigna
obra de escavação, o seu senso de cavalheirismo e honra obrigou-os a se
comportarem como se o buraco não existisse, avançando com os cavalos a toda a
velocidade. A flor do exército de Jahilia, tanto humana como equina, acabou
empalada nas estacas pontudas da desonestidade persa de Salman, porque um
imigrante não respeita as regras do jogo. — E depois da derrota de Jahilia?
Salman lamentou-se com Baal: Era de esperar que eu tivesse virado herói, não
sou homem vaidoso, mas onde estavam as honras públicas, onde a gratidão de
Mahound, por que o arcanjo não mencionava a mim em seus despachos? Nada,
nem uma sílaba, era como se os fiéis achassem meu fosso um truque barato, uma
coisa de outro mundo, desonrosa, injusta; como se sua hombridade tivesse sido
prejudicada pela coisa, como se eu tivesse ferido seu orgulho ao salvar-lhes as
vidas. Fiquei de boca fechada e não disse nada, mas perdi uma porção de amigos
depois disso. Vou lhe dizer uma coisa, as pessoas passam a odiar quem fez um
bem a elas.
Mesmo
com o fosso de Yathrib, os fiéis perderam muitos homens na guerra contra
Jahilia. Em suas investidas perdiam tantas vidas quantas roubavam. E depois do
fim da guerra, pronto, lá estava o Arcanjo Gibreel instruindo os sobreviventes
a se casarem com as viúvas, porque se se casassem fora da fé iriam perder-se da
Submissão. Ah, que anjo mais prático, Salman disse entredentes a Baal. Nesse
momento, já tinha tirado das dobras da roupa um frasco de vinho de palmeira e
os dois homens bebiam à luz que caía. Salman ficou ainda mais falante à medida
que descia o nível do líquido amarelo dentro do frasco; Baal não se lembrava de
ter ouvido nunca ninguém falar tanto. Ah, aquelas revelações tão diretas,
Salman gritou, disseram-nos até que não importava que já fôssemos casados, que
podíamos casar até quatro vezes, se tivéssemos dinheiro para isso. Você pode
imaginar o quanto os rapazes gostaram disso.
O
que realmente acabou com Mahound para Salman: a questão das mulheres; e a dos
versos satânicos. Olhe, eu não sou intrigante, Salman confidenciou, bêbado, mas
depois da morte da mulher, Mahound não foi nenhum anjo, está me entendendo? Só
que em Yathrib ele quase encontrou alguém à altura. Aquelas mulheres lá:
deixaram a barba dele grisalha em um ano. O problema com o nosso Profeta, meu
querido Baal, é que ele não gosta que as mulheres dele respondam, o que ele
queria era mães ou filhas, pense na primeira mulher dele, depois em Ayesha: uma
velha demais, outra jovem demais, os dois amores dele. Ele não queria ninguém
do porte dele. Mas em Yathrib as mulheres são diferentes, não sei, aqui em
Jahilia a gente está acostumado a mandar nas mulheres, mas lá elas não aceitam
isso. Quando um homem se casa, vai morar com a família da mulher! Imagine!
Chocante, não é? E durante todo o casamento, a mulher tem a sua própria tenda.
Se quer se livrar do marido, vira a tenda para o outro lado, e o marido
encontra lona no lugar onde ficava a porta, e acabou-se, está expulso,
divorciado, não pode fazer nada a respeito. Bom, as nossas moças estavam
começando a seguir esse exemplo, sabe-se lá que ideias tinham na cabeça, então,
de repente, bang, aparece o livro de regras, o anjo começa a vomitar regras
sobre as coisas que as mulheres não devem fazer, começa a forçar as mulheres de
volta às atitudes dóceis que o Profeta prefere, dócil ou maternal, andando
sempre três passos atrás ou sentadas em casa, ficando sábias e gordas. Como as
mulheres de Yathrib caçoavam dos fiéis, juro, mas aquele homem é um mago,
ninguém resiste ao charme dele; as mulheres fiéis fizeram como ele mandou.
Submeteram-se: afinal de contas, era o paraíso que ele oferecia a elas.
“Enfim”,
Salman disse, já perto do fim da garrafa, “eu resolvi fazer um teste com ele.”
Uma
noite, o escriba persa sonhou que estava pairando acima da figura de Mahound na
caverna do Profeta no monte Cone. Primeiro, Salman julgou que se tratava apenas
de uma fantasia nostálgica dos velhos dias de Jahilia, mas então lhe ocorreu
que o seu ponto de vista, no sonho, era o do arcanjo, e naquele momento a
lembrança do incidente dos versos satânicos lhe voltou à mente, tão vívido como
se a coisa tivesse acontecido na véspera. “Talvez eu não tenha sonhado que era
Gibreel”, Salman disse. “Talvez eu fosse Shaitan.” A admissão dessa
possibilidade lhe deu a ideia diabólica. A partir de então, quando se sentava
aos pés do Profeta, registrando regras regras regras, mudava,
sub-repticiamente, algumas coisas.
“Primeiro
pequenas coisas. Se Mahound recitava um verso em que Deus era descrito como
alguém que tudo ouve, tudo sabe, eu escrevia tudo sabe, tudo entende.
Essa é a questão: Mahound não notou as alterações. E ali estava eu, escrevendo
o Livro, ou reescrevendo, enfim, poluindo a palavra de Deus com minha linguagem
profana. Mas, meu Deus do céu!, se as minhas pobres palavras não podiam ser
distinguidas da Revelação do próprio Mensageiro de Deus, então o que
significava aquilo? O que é que isso revelava da qualidade da poesia divina?
Olhe, juro, fiquei abalado até a alma. Uma coisa é ser um filho-da-puta esperto
e ficar meio desconfiado com uns negócios estranhos, outra coisa muito
diferente é descobrir que você está certo. Ouça: mudei a minha vida por causa
daquele homem. Saí da minha terra, atravessei o mundo, mudei para o meio de
gente que me achava um vil estrangeiro covarde por tê-la salvado, que nunca
avaliaram o que eu, mas isso não interessa. A verdade é que o que eu esperava
quando fiz a primeira mudancinha, que tudo sabe em vez de que tudo
ouve — o que eu queria — o que eu queria era que, quando lesse para
o Profeta, ele dissesse: O que está acontecendo com você, Salman, está ficando
surdo? E eu diria, Epa, nossa!, foi um deslize, desculpe, e me corrigiria. Mas
não aconteceu nada disso; e agora eu é que estava escrevendo a Revelação e
ninguém notava, e eu não tinha coragem de me entregar. Estava morrendo de medo,
juro para você. Além disso, estava mais triste do que nunca. Então tive de
continuar com a coisa. Talvez ele só tivesse deixado passar uma vez, pensei,
todo mundo pode errar. Então, na vez seguinte, mudei uma coisa maior. Ele disse
cristão, eu escrevi judeu. Isso ele ia notar, claro, como é que
não ia notar? Mas quando eu li para ele o capítulo, ele balançou a cabeça e me
agradeceu educadamente, e eu saí da tenda com lágrimas nos olhos. Depois disso,
eu sabia que os meus dias em Yathrib estavam contados; mas tinha de continuar.
Tinha. Não existe amargura maior do que a de um homem que descobre que
acreditava num fantasma. Eu cairia, sabia disso, mas ele cairia comigo. Então
continuei com minha diabrura, mudando versos, até que um dia li para ele o que
tinha escrito e vi que ele franziu a testa e sacudiu a cabeça, como que para
clarear as ideias, e depois fez que sim devagar, mas com uma certa dúvida. Eu
entendi que tinha chegado ao meu limite e que na próxima vez que eu
reescrevesse o Livro ele ia descobrir tudo. Passei acordado essa noite, o destino
dele e o meu em minhas mãos. Se permitisse que eu mesmo fosse destruído, podia
destruir a ele também. Tive de escolher, nessa noite terrível, se preferia a
morte como vingança ou a vida sem nada. Como pode ver, escolhi: a vida. Antes
do amanhecer, parti de Yathrib no meu camelo, e no caminho de volta para
Jahilia sofri mil desventuras, que não vou me dar ao trabalho de contar. E
agora Mahound está voltando em triunfo; e eu vou acabar perdendo a vida afinal.
E o poder dele agora ficou grande demais para que eu possa desmanchar.”
Baal
perguntou: “Por que tem certeza de que ele vai matar você?”.
Salman,
o persa, respondeu: “É a Palavra dele contra a minha”.
“Onde não há crença não há blasfêmia.”
“Quando a garrafa se esvaziou, Salman começou
a falar de novo, como Baal sabia que faria, sobre a fonte de todos os seus males,
o Mensageiro e sua mensagem. Contou a Baal sobre a briga de Mahound com Ayesha,
relatando os boatos como se fossem fatos incontroversos. “A menina não conseguiu
engolir o fato de o marido querer tantas outras mulheres”, disse. “Ele falou de
necessidades, de alianças políticas e tal, mas ela não se deixou enganar. E quem
pode censurar? Ele acabou entrando — é claro — num daqueles transes, e voltou a
si com uma mensagem do arcanjo. Gibreel recitou versos dando a ele total apoio divino.
A permissão do próprio Deus para trepar com quantas mulheres quisesse. Então: o
que a coitada da Ayesha podia dizer contra os versos de Deus? Sabe o que ela disse?
Assim: ‘Seu Deus está sempre às ordens quando você precisa que ele arranje as coisas
para você’. Bom! Se não fosse Ayesha, quem sabe o que ele podia ter feito, mas nenhuma
das outras teria tido coragem.”
““Deixe eu contar uma coisa para você, isso sim. A história mais quente da
cidade. Uh-hu! E tem a ver com o que, o que você disse.”
A
história de Salman: Ayesha e o Profeta tinham ido em expedição a uma aldeia
distante, e no caminho de volta a Yathrib, junto com a comitiva, acamparam nas
dunas para passar a noite. O acampamento foi desmontado no escuro, antes do
amanhecer. No último momento, Ayesha, forçada por uma necessidade do corpo,
correu para um baixio escondido. Enquanto estava lá, os carregadores de liteira
pegaram o palanquim e foram embora. Como era uma mulher leve, eles não
perceberam grande diferença naquele palanquim tão pesado, e acharam que estava
lá dentro. Depois de se aliviar, Ayesha voltou e viu-se sozinha; sabe-se lá o
que poderia lhe acontecer se não fosse um jovem, um certo Safwan, estar
passando ali por acaso, com seu camelo... Safwan levou Ayesha de volta a
Yathrib sã e salva; nessa altura, as más línguas começaram a funcionar,
principalmente no harém, onde as oponentes não perdiam nenhuma oportunidade de
minar o poder de Ayesha. Os dois jovens tinham estado sozinhos no deserto por
muitas horas, e o que se insinuou, cada vez com maior insistência, era que
Safwan era um sujeito incrivelmente bonito e que o Profeta, afinal de contas,
era muito mais velho que a moça, e quem sabe se ela não teria sentido atração
por alguém mais próximo da sua idade? “Um escândalo e tanto”, Salman comentou,
contente.
“E o que
é que Mahound vai fazer?”, Baal perguntou.
“Ah, já
fez”, Salman respondeu. “A mesma coisa de sempre. Foi ver o queridinho dele, o
Arcanjo, e aí informou todo mundo que Gibreel tinha absolvido Ayesha.” Salman
abriu os braços em mundana resignação. “E dessa vez, meu senhor, madame não
reclamou do oportunismo dos versos.””
“(...) E ele foi condenado a ser decapitado, dentro de uma hora, e quando os
soldados o empurraram para fora da tenda, para o local da execução, ele gritou
por cima do ombro: “Putas e escritores, Mahound. Somos nós que você não
consegue perdoar”.
Mahound
respondeu: “Escritores e putas. Não vejo nenhuma diferença”.”
“O mal não está tão longe das nossas superfícies
como gostamos de dizer que está.”
“Se amar é um desejo de ser como (ou mesmo se
tornar) o amante, devemos afirmar que o ódio pode ser engendrado pela mesma ambição,
quando ela não pode ser satisfeita.”
“Alicja, momentos antes de tomar o avião para
o oeste, ralhou com a filha no Terminal Três. “Não sei de onde você tira essas ideias”,
gritou entre mochileiros, malas e chorosas mães asiáticas. “Pode-se dizer que a
vida de seu pai também não saiu de acordo com os planos. Mas será que os campos
de concentração eram culpa dele? Estude história, Alleluia. Neste século, a história
parou de dar atenção à velha orientação psicológica da realidade. O que eu quero
dizer é que, hoje em dia, a personalidade não é mais um destino. A economia é destino.
A ideologia é destino. Bombas são destino. Que importa para a fome, para a câmara
de gás, para uma granada, a maneira como você viveu sua vida? Vem a crise, vem a
morte, e o seu patético eu individual não tem nada a ver com isso, sofre os efeitos
apenas. Esse seu Gibreel: talvez ele seja a história para você.”
“A decisão de fazer o mal nunca é tomada definitivamente
até o próprio momento do ato; sempre existe uma última chance de retirada.”
“Há um momento prévio ao mal; depois o momento
do; depois um tempo posterior ao, quando o passo já foi dado, e cada passo subsequente
fica progressivamente mais fácil.”
“O que é um arcanjo senão um marionete?”
“Em minha família nós também sofremos de uma espécie
de doença: o alheamento, a incapacidade de nos ligarmos às coisas, aos fatos, aos
sentimentos. A maior parte das pessoas se define pelo trabalho que faz, ou pelo
lugar de onde vem, ou algo assim; nós vivemos demais para dentro de nossas cabeças.
Isso torna muito difícil lidar com a realidade.”
““Hoje em dia”, insistiu, “nossas posições têm
de ser expressas com clareza cristalina. Todas as metáforas podem ser mal interpretadas.”
Ela enunciou sua própria teoria. A sociedade era orquestrada pelo que chamava de
grandes narrativas: a história, a economia, a ética. Na Índia, o desenvolvimento
de um aparelho de Estado corrupto e fechado havia “excluído as massas populares
do projeto ético”. O resultado era que o povo buscava satisfações éticas na mais
antiga das grandes narrativas, ou seja, na fé religiosa. “Mas essas narrativas estão
sendo manipuladas pela teocracia e por vários elementos políticos, de maneira inteiramente
retrógrada.” Bhupen disse: “Não se pode negar a ubiquidade da fé. Se escrevermos
de maneira preconceituosa colocando essa crença como ilusória ou falsa, não seríamos
culpados de elitismo, de impor nossa visão de mundo às massas?”. Swatilekha reagiu
com desdém. “Na Índia de hoje, se estão traçando linhas de batalha”, disse. “Secular
versus religioso, luz versus sombra. Melhor escolher de que lado você está”.”