segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Os versos satânicos (Parte II), de Salman Rushdie

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★☆

Tradução: Misael Dursan

ISBN: 978-85-3591-287-6

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 600

Sinopse: Ver Parte I



Sonhando com banquetes havia muito perdidos, Baal subiu a instável escada de madeira que levava ao seu quarto no segundo andar. O que tinha para roubarem? Ele não valia o fio de um punhal. Abriu a porta, estava entrando, quando um empurrão o fez arrebentar o nariz contra a parede oposta. “Não me mate”, guinchou, às cegas. “Ai, meu Deus, não me mate, eu imploro, ai.”

A mão do outro fechou a porta. Baal sabia que por mais que gritasse, continuariam sozinhos, isolados do mundo naquele cômodo abandonado. Ninguém viria; ele próprio, se ouvisse o vizinho gritando, teria escorado a porta com o catre.

O capuz da capa do intruso escondia inteiramente seu rosto. Baal enxugou o sangue do nariz, de joelhos, tremendo incontrolavelmente. “Não tenho dinheiro nenhum”, implorou. “Não tenho nada.” E o estranho falou: “Se um cão faminto quer comida, não procura no canil”. E depois de uma pausa: “Baal. Sobrou pouco de você. Eu esperava mais”.

Além do terror, Baal sentiu a afronta. Seria alguma espécie de fã enlouquecido, capaz de matá-lo porque não estava mais à altura da força de sua obra anterior? Ainda tremendo, tentou a linha da autodepreciação. “É quase sempre decepcionante conhecer pessoalmente um escritor”, tateou. O outro ignorou a observação. “Mahound está a caminho”, disse.

Essa frase direta encheu Baal do mais profundo terror. “E o que eu tenho com isso?”, gritou. “O que ele quer? Faz muito tempo... uma vida inteira... mais que uma vida inteira. O que ele quer? Você veio, foi ele que mandou você?”

“A memória dele é tão longa quanto seu rosto”, disse o intruso, removendo o capuz. “Não, não sou mensageiro dele. Você e eu temos uma coisa em comum. Ambos temos medo dele.”

“Conheço você”, disse Baal.

“Conhece.”

“Esse jeito de falar. Você é estrangeiro.”

“‘Uma revolução de carregadores de água, imigrantes e escravos’”, citou o estranho. “Palavras suas.”

“Você é o imigrante”, recordou Baal. “O persa. Sulaiman.” O persa deu o seu sorriso torto. “Salman”, corrigiu. “Não prudente, mas pacífico.”

“Você era um dos mais chegados a ele”, Baal disse, perplexo.

“Quanto mais perto do ilusionista”, Salman respondeu, amargo, “mais fácil descobrir o truque”. 

 

E Gibreel sonhou assim:

No oásis de Yathrib os seguidores da nova fé da Submissão viram-se sem terra e, portanto, pobres. Durante muitos anos, eles se financiaram por meio de atos de banditismo, atacando ricas caravanas de camelos no caminho de ida e volta a Jahilia. Mahound não tinha tempo a perder com escrúpulos, Salman contou a Baal, não tinha nenhuma hesitação quanto a fins e meios. Os fiéis viviam fora da lei, mas, naqueles anos, Mahound — ou deve-se dizer o Arcanjo Gibreel? — ou Al-Lah? — ficou obcecado com a lei. Entre as palmeiras do oásis, Gibreel apareceu ao Profeta e viu-se vomitando regras, regras, regras, a tal ponto que os fiéis não aguentavam mais a perspectiva de mais revelações, Salman disse, regras sobre tudo, se um homem peida, que se vire de frente para o vento, uma regra determinando qual mão se deve usar com o propósito de limpar o próprio traseiro. Era como se nenhum aspecto da existência humana pudesse ser deixado livre de regulamentação. A revelação — a recitação — determinava aos fiéis o quanto deviam comer, se o sono devia ou não ser profundo, e quais posições sexuais recebiam sanção divina. Assim, aprenderam que a sodomia e a posição papai-e-mamãe eram aprovadas pelo arcanjo, enquanto as posturas proibidas compreendiam todas aquelas em que a mulher ficava por cima. Gibreel listou também todos os assuntos de conversa permitidos e proibidos, e marcou as partes do corpo que não podiam ser coçadas por mais intolerável que fosse a coceira. Vetou o consumo de camarões, essas bizarras criaturas de outro mundo, que nenhum dos membros da seita jamais tinha visto, e exigiu que os animais fossem abatidos devagar, por sangramento, de forma que, ao experimentarem plenamente a própria morte, compreendessem o significado de suas vidas, porque é só no momento da morte que a criatura viva compreende que a vida foi real, e não uma espécie de sonho. E Gibreel, o arcanjo, especificou a maneira como um homem deve ser enterrado, e como a sua propriedade deve ser dividida, o que fez Salman, o persa, começar a imaginar que tipo de Deus era esse que soava tão parecido com um homem de negócios. Foi quando teve a ideia que destruiu sua fé, porque se lembrou que, é claro, Mahound tinha sido ele próprio um negociante, e ainda por cima muito bem-sucedido, uma pessoa para quem a organização e as regras vinham como coisa natural, portanto, quão extremamente conveniente que tivesse cruzado com um arcanjo tão empreendedor, que comunicava as decisões de gerenciamento desse Deus tão corporativo, mesmo que não corpóreo.

Depois disso, Salman começou a notar como as revelações do anjo tendiam a ser úteis e oportunas, de forma que quando os fiéis questionavam as posições de Mahound sobre qualquer assunto, da possibilidade de viagem no espaço à permanência no Inferno, o anjo vinha com uma resposta, e sempre apoiando Mahound, afirmando sem sombra de qualquer dúvida que era impossível um homem jamais caminhar sobre a superfície da Lua, e sendo igualmente taxativo quanto à natureza transitória da danação: até o pior dos malfeitores acabaria purificado pelo fogo do Inferno para encontrar seu caminho aos jardins perfumados de Gulistan e Bostan. Salman reclamou com Baal que seria muito diferente se Mahound tomasse suas posições depois de receber a revelação de Gibreel; mas não, ele simplesmente baixava a lei e o anjo a confirmava a posteriori; então comecei a sentir um mau cheiro no nariz, e pensei, esse deve ser o odor daquelas criaturas imundas fabulosas e legendárias, como é mesmo?, os camarões.

O cheiro duvidoso começou a obcecar Salman, que era o mais bem formado dos íntimos de Mahound, devido ao sistema educacional superior então em vigor na Pérsia. Por conta desse desenvolvimento escolástico, Salman foi nomeado escriba oficial de Mahound, e cabia a ele registrar por escrito as regras que proliferavam, inesgotáveis. Todas aquelas convenientes revelações, ele disse a Baal, e quanto mais eu fazia o trabalho, pior a coisa ficava. — Durante algum tempo, porém, suas suspeitas tiveram de ser arquivadas porque os exércitos de Jahilia marcharam sobre Yathrib, decididos a esmagar as moscas que infernizavam as caravanas de camelos e interferiam nos negócios. O que ocorreu em seguida é bem sabido, não preciso repetir, disse Salman. Mas então sua falta de modéstia o dominou e ele se viu forçado a contar a Baal que ele, pessoalmente, tinha salvado Yathrib da destruição certa, que tinha salvado o pescoço de Mahound com a ideia de um fosso. Salman persuadiu o Profeta a mandar cavar uma trincheira em volta de todo o assentamento sem muros do oásis, tão larga que nem mesmo os fabulosos cavalos árabes da famosa cavalaria de Jahilia conseguissem saltar. Um fosso: com estacas pontudas no fundo. Quando os jahilianos viram essa indigna obra de escavação, o seu senso de cavalheirismo e honra obrigou-os a se comportarem como se o buraco não existisse, avançando com os cavalos a toda a velocidade. A flor do exército de Jahilia, tanto humana como equina, acabou empalada nas estacas pontudas da desonestidade persa de Salman, porque um imigrante não respeita as regras do jogo. — E depois da derrota de Jahilia? Salman lamentou-se com Baal: Era de esperar que eu tivesse virado herói, não sou homem vaidoso, mas onde estavam as honras públicas, onde a gratidão de Mahound, por que o arcanjo não mencionava a mim em seus despachos? Nada, nem uma sílaba, era como se os fiéis achassem meu fosso um truque barato, uma coisa de outro mundo, desonrosa, injusta; como se sua hombridade tivesse sido prejudicada pela coisa, como se eu tivesse ferido seu orgulho ao salvar-lhes as vidas. Fiquei de boca fechada e não disse nada, mas perdi uma porção de amigos depois disso. Vou lhe dizer uma coisa, as pessoas passam a odiar quem fez um bem a elas.

Mesmo com o fosso de Yathrib, os fiéis perderam muitos homens na guerra contra Jahilia. Em suas investidas perdiam tantas vidas quantas roubavam. E depois do fim da guerra, pronto, lá estava o Arcanjo Gibreel instruindo os sobreviventes a se casarem com as viúvas, porque se se casassem fora da fé iriam perder-se da Submissão. Ah, que anjo mais prático, Salman disse entredentes a Baal. Nesse momento, já tinha tirado das dobras da roupa um frasco de vinho de palmeira e os dois homens bebiam à luz que caía. Salman ficou ainda mais falante à medida que descia o nível do líquido amarelo dentro do frasco; Baal não se lembrava de ter ouvido nunca ninguém falar tanto. Ah, aquelas revelações tão diretas, Salman gritou, disseram-nos até que não importava que já fôssemos casados, que podíamos casar até quatro vezes, se tivéssemos dinheiro para isso. Você pode imaginar o quanto os rapazes gostaram disso.

O que realmente acabou com Mahound para Salman: a questão das mulheres; e a dos versos satânicos. Olhe, eu não sou intrigante, Salman confidenciou, bêbado, mas depois da morte da mulher, Mahound não foi nenhum anjo, está me entendendo? Só que em Yathrib ele quase encontrou alguém à altura. Aquelas mulheres lá: deixaram a barba dele grisalha em um ano. O problema com o nosso Profeta, meu querido Baal, é que ele não gosta que as mulheres dele respondam, o que ele queria era mães ou filhas, pense na primeira mulher dele, depois em Ayesha: uma velha demais, outra jovem demais, os dois amores dele. Ele não queria ninguém do porte dele. Mas em Yathrib as mulheres são diferentes, não sei, aqui em Jahilia a gente está acostumado a mandar nas mulheres, mas lá elas não aceitam isso. Quando um homem se casa, vai morar com a família da mulher! Imagine! Chocante, não é? E durante todo o casamento, a mulher tem a sua própria tenda. Se quer se livrar do marido, vira a tenda para o outro lado, e o marido encontra lona no lugar onde ficava a porta, e acabou-se, está expulso, divorciado, não pode fazer nada a respeito. Bom, as nossas moças estavam começando a seguir esse exemplo, sabe-se lá que ideias tinham na cabeça, então, de repente, bang, aparece o livro de regras, o anjo começa a vomitar regras sobre as coisas que as mulheres não devem fazer, começa a forçar as mulheres de volta às atitudes dóceis que o Profeta prefere, dócil ou maternal, andando sempre três passos atrás ou sentadas em casa, ficando sábias e gordas. Como as mulheres de Yathrib caçoavam dos fiéis, juro, mas aquele homem é um mago, ninguém resiste ao charme dele; as mulheres fiéis fizeram como ele mandou. Submeteram-se: afinal de contas, era o paraíso que ele oferecia a elas.

“Enfim”, Salman disse, já perto do fim da garrafa, “eu resolvi fazer um teste com ele.”

Uma noite, o escriba persa sonhou que estava pairando acima da figura de Mahound na caverna do Profeta no monte Cone. Primeiro, Salman julgou que se tratava apenas de uma fantasia nostálgica dos velhos dias de Jahilia, mas então lhe ocorreu que o seu ponto de vista, no sonho, era o do arcanjo, e naquele momento a lembrança do incidente dos versos satânicos lhe voltou à mente, tão vívido como se a coisa tivesse acontecido na véspera. “Talvez eu não tenha sonhado que era Gibreel”, Salman disse. “Talvez eu fosse Shaitan.” A admissão dessa possibilidade lhe deu a ideia diabólica. A partir de então, quando se sentava aos pés do Profeta, registrando regras regras regras, mudava, sub-repticiamente, algumas coisas.

“Primeiro pequenas coisas. Se Mahound recitava um verso em que Deus era descrito como alguém que tudo ouve, tudo sabe, eu escrevia tudo sabe, tudo entende. Essa é a questão: Mahound não notou as alterações. E ali estava eu, escrevendo o Livro, ou reescrevendo, enfim, poluindo a palavra de Deus com minha linguagem profana. Mas, meu Deus do céu!, se as minhas pobres palavras não podiam ser distinguidas da Revelação do próprio Mensageiro de Deus, então o que significava aquilo? O que é que isso revelava da qualidade da poesia divina? Olhe, juro, fiquei abalado até a alma. Uma coisa é ser um filho-da-puta esperto e ficar meio desconfiado com uns negócios estranhos, outra coisa muito diferente é descobrir que você está certo. Ouça: mudei a minha vida por causa daquele homem. Saí da minha terra, atravessei o mundo, mudei para o meio de gente que me achava um vil estrangeiro covarde por tê-la salvado, que nunca avaliaram o que eu, mas isso não interessa. A verdade é que o que eu esperava quando fiz a primeira mudancinha, que tudo sabe em vez de que tudo ouve — o que eu queria — o que eu queria era que, quando lesse para o Profeta, ele dissesse: O que está acontecendo com você, Salman, está ficando surdo? E eu diria, Epa, nossa!, foi um deslize, desculpe, e me corrigiria. Mas não aconteceu nada disso; e agora eu é que estava escrevendo a Revelação e ninguém notava, e eu não tinha coragem de me entregar. Estava morrendo de medo, juro para você. Além disso, estava mais triste do que nunca. Então tive de continuar com a coisa. Talvez ele só tivesse deixado passar uma vez, pensei, todo mundo pode errar. Então, na vez seguinte, mudei uma coisa maior. Ele disse cristão, eu escrevi judeu. Isso ele ia notar, claro, como é que não ia notar? Mas quando eu li para ele o capítulo, ele balançou a cabeça e me agradeceu educadamente, e eu saí da tenda com lágrimas nos olhos. Depois disso, eu sabia que os meus dias em Yathrib estavam contados; mas tinha de continuar. Tinha. Não existe amargura maior do que a de um homem que descobre que acreditava num fantasma. Eu cairia, sabia disso, mas ele cairia comigo. Então continuei com minha diabrura, mudando versos, até que um dia li para ele o que tinha escrito e vi que ele franziu a testa e sacudiu a cabeça, como que para clarear as ideias, e depois fez que sim devagar, mas com uma certa dúvida. Eu entendi que tinha chegado ao meu limite e que na próxima vez que eu reescrevesse o Livro ele ia descobrir tudo. Passei acordado essa noite, o destino dele e o meu em minhas mãos. Se permitisse que eu mesmo fosse destruído, podia destruir a ele também. Tive de escolher, nessa noite terrível, se preferia a morte como vingança ou a vida sem nada. Como pode ver, escolhi: a vida. Antes do amanhecer, parti de Yathrib no meu camelo, e no caminho de volta para Jahilia sofri mil desventuras, que não vou me dar ao trabalho de contar. E agora Mahound está voltando em triunfo; e eu vou acabar perdendo a vida afinal. E o poder dele agora ficou grande demais para que eu possa desmanchar.”

Baal perguntou: “Por que tem certeza de que ele vai matar você?”.

Salman, o persa, respondeu: “É a Palavra dele contra a minha”.

 

 

“Onde não há crença não há blasfêmia.”

 

 

“Quando a garrafa se esvaziou, Salman começou a falar de novo, como Baal sabia que faria, sobre a fonte de todos os seus males, o Mensageiro e sua mensagem. Contou a Baal sobre a briga de Mahound com Ayesha, relatando os boatos como se fossem fatos incontroversos. “A menina não conseguiu engolir o fato de o marido querer tantas outras mulheres”, disse. “Ele falou de necessidades, de alianças políticas e tal, mas ela não se deixou enganar. E quem pode censurar? Ele acabou entrando — é claro — num daqueles transes, e voltou a si com uma mensagem do arcanjo. Gibreel recitou versos dando a ele total apoio divino. A permissão do próprio Deus para trepar com quantas mulheres quisesse. Então: o que a coitada da Ayesha podia dizer contra os versos de Deus? Sabe o que ela disse? Assim: ‘Seu Deus está sempre às ordens quando você precisa que ele arranje as coisas para você’. Bom! Se não fosse Ayesha, quem sabe o que ele podia ter feito, mas nenhuma das outras teria tido coragem.”

 

 

“Deixe eu contar uma coisa para você, isso sim. A história mais quente da cidade. Uh-hu! E tem a ver com o que, o que você disse.”

A história de Salman: Ayesha e o Profeta tinham ido em expedição a uma aldeia distante, e no caminho de volta a Yathrib, junto com a comitiva, acamparam nas dunas para passar a noite. O acampamento foi desmontado no escuro, antes do amanhecer. No último momento, Ayesha, forçada por uma necessidade do corpo, correu para um baixio escondido. Enquanto estava lá, os carregadores de liteira pegaram o palanquim e foram embora. Como era uma mulher leve, eles não perceberam grande diferença naquele palanquim tão pesado, e acharam que estava lá dentro. Depois de se aliviar, Ayesha voltou e viu-se sozinha; sabe-se lá o que poderia lhe acontecer se não fosse um jovem, um certo Safwan, estar passando ali por acaso, com seu camelo... Safwan levou Ayesha de volta a Yathrib sã e salva; nessa altura, as más línguas começaram a funcionar, principalmente no harém, onde as oponentes não perdiam nenhuma oportunidade de minar o poder de Ayesha. Os dois jovens tinham estado sozinhos no deserto por muitas horas, e o que se insinuou, cada vez com maior insistência, era que Safwan era um sujeito incrivelmente bonito e que o Profeta, afinal de contas, era muito mais velho que a moça, e quem sabe se ela não teria sentido atração por alguém mais próximo da sua idade? “Um escândalo e tanto”, Salman comentou, contente.

“E o que é que Mahound vai fazer?”, Baal perguntou.

“Ah, já fez”, Salman respondeu. “A mesma coisa de sempre. Foi ver o queridinho dele, o Arcanjo, e aí informou todo mundo que Gibreel tinha absolvido Ayesha.” Salman abriu os braços em mundana resignação. “E dessa vez, meu senhor, madame não reclamou do oportunismo dos versos.””

 

 

(...) E ele foi condenado a ser decapitado, dentro de uma hora, e quando os soldados o empurraram para fora da tenda, para o local da execução, ele gritou por cima do ombro: “Putas e escritores, Mahound. Somos nós que você não consegue perdoar”.

Mahound respondeu: “Escritores e putas. Não vejo nenhuma diferença”.”

 

 

“O mal não está tão longe das nossas superfícies como gostamos de dizer que está.”

 

 

“Se amar é um desejo de ser como (ou mesmo se tornar) o amante, devemos afirmar que o ódio pode ser engendrado pela mesma ambição, quando ela não pode ser satisfeita.”

 

 

“Alicja, momentos antes de tomar o avião para o oeste, ralhou com a filha no Terminal Três. “Não sei de onde você tira essas ideias”, gritou entre mochileiros, malas e chorosas mães asiáticas. “Pode-se dizer que a vida de seu pai também não saiu de acordo com os planos. Mas será que os campos de concentração eram culpa dele? Estude história, Alleluia. Neste século, a história parou de dar atenção à velha orientação psicológica da realidade. O que eu quero dizer é que, hoje em dia, a personalidade não é mais um destino. A economia é destino. A ideologia é destino. Bombas são destino. Que importa para a fome, para a câmara de gás, para uma granada, a maneira como você viveu sua vida? Vem a crise, vem a morte, e o seu patético eu individual não tem nada a ver com isso, sofre os efeitos apenas. Esse seu Gibreel: talvez ele seja a história para você.”

 

 

“A decisão de fazer o mal nunca é tomada definitivamente até o próprio momento do ato; sempre existe uma última chance de retirada.”

 

 

“Há um momento prévio ao mal; depois o momento do; depois um tempo posterior ao, quando o passo já foi dado, e cada passo subsequente fica progressivamente mais fácil.”

 

 

“O que é um arcanjo senão um marionete?”

 

 

“Em minha família nós também sofremos de uma espécie de doença: o alheamento, a incapacidade de nos ligarmos às coisas, aos fatos, aos sentimentos. A maior parte das pessoas se define pelo trabalho que faz, ou pelo lugar de onde vem, ou algo assim; nós vivemos demais para dentro de nossas cabeças. Isso torna muito difícil lidar com a realidade.”

 

 

““Hoje em dia”, insistiu, “nossas posições têm de ser expressas com clareza cristalina. Todas as metáforas podem ser mal interpretadas.” Ela enunciou sua própria teoria. A sociedade era orquestrada pelo que chamava de grandes narrativas: a história, a economia, a ética. Na Índia, o desenvolvimento de um aparelho de Estado corrupto e fechado havia “excluído as massas populares do projeto ético”. O resultado era que o povo buscava satisfações éticas na mais antiga das grandes narrativas, ou seja, na fé religiosa. “Mas essas narrativas estão sendo manipuladas pela teocracia e por vários elementos políticos, de maneira inteiramente retrógrada.” Bhupen disse: “Não se pode negar a ubiquidade da fé. Se escrevermos de maneira preconceituosa colocando essa crença como ilusória ou falsa, não seríamos culpados de elitismo, de impor nossa visão de mundo às massas?”. Swatilekha reagiu com desdém. “Na Índia de hoje, se estão traçando linhas de batalha”, disse. “Secular versus religioso, luz versus sombra. Melhor escolher de que lado você está”.”

Os versos satânicos (Parte I), de Salman Rushdie

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★☆

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Tradução: Misael Dursan

ISBN: 978-85-3591-287-6

Páginas: 600

Sinopse: Dois homens caem do céu para a terra, depois que terroristas explodem o avião em que viajavam. Ambos são indianos e atores. Ambos chegam incólumes ao solo da Inglaterra e se metamorfoseiam - um em diabo, outro em anjo. Muitas coisas opõem e associam os acidentados: um é apolíneo, o outro dionisíaco; um é apocalíptico, o outro integrado; um é apegado a sua origem, o outro está decidido a conquistar a nova nacionalidade. Transitando livremente entre o real e o fantástico, entre o bem e o mal, entre a infinidade de opostos complementares e inconciliáveis da vida, este romance alegórico, impregnado de magia, é claramente autobiográfico no conjunto de seus episódios e, principalmente, em sua questão filosófica central: quem sou eu?



Cinco horas e meia de fusos horários; vire o relógio de cabeça para baixo em Bombaim e você tem a hora de Londres. Meu pai, Chamcha pensaria, anos depois, mergulhado em amargura, eu o acuso de ter invertido o Tempo.

Que distância voaram? Cinco mil e quinhentas milhas em linha reta. Ou: da indianidade para a anglicidade, uma distância incomensurável. Ou, nada longe, porque eles decolaram de uma grande cidade e caíram em outra. A distância entre cidades é sempre pequena; um aldeão, atravessando centenas de milhas até a cidade, atravessa espaços mais vazios, mais escuros, mais aterrorizantes.”

 

 

“Fiz de você um homem”. Mas que homem? Isso é o que os pais nunca sabem. Não com antecedência; não até ser tarde demais.”

 

 

Um homem que se propõe construir a si mesmo está assumindo o papel do Criador, segundo uma determinada maneira de ver as coisas; ele é antinatural, blasfemador, abominação das abominações. Sob outro ângulo, pode-se ver carisma nele, heroísmo em sua luta, em sua disposição de arriscar: nem todos os mutantes sobrevivem. Ou se pode considerá-lo sociopoliticamente: a maioria dos migrantes aprende, e pode se transformar em disfarces. Nossas próprias descrições falsas para contrapor às falsidades inventadas sobre nós, escondendo, por questão de segurança, os nossos eus secretos.

Um homem que inventa a si mesmo precisa de alguém que acredite nele para provar que conseguiu. Fazendo o papel de Deus outra vez, você poderia dizer. Ou você poderia descer um tom e pensar em Sininho; as fadas não aparecem se as crianças não baterem palmas. Ou você poderia simplesmente dizer: isso é que é ser um homem.

Não só a necessidade de ser acreditado, mas de acreditar no outro. Isso mesmo: Amor.”

 

 

“Não é fácil dizer isto, mas estou casado agora; e não só com a esposa, mas com a vida.”

 

 

“Quando o progenitor, o criador, revela-se satânico, o filho quase sempre acaba puritano.”

 

 

“Triste destino ser um norte-americano no estrangeiro e nem suspeitar por que era odiado.”

 

 

Pergunta: O que é o oposto de fé?

Não é a descrença. Definitiva demais, exata, fechada. Ela própria uma espécie de crença.

É a dúvida.

A condição humana, mas e a condição angélica? A meio caminho entre Aládeus e o homosap, terão os anjos jamais duvidado? Duvidaram: desafiando a vontade de Deus, um dia eles se esconderam murmurando atrás do Trono, ousando perguntar coisas proibidas: antiquestões. Isso mesmo. Não podiam ser questionadas. Liberdade, a velha antiquestão. Ele os acalmou, naturalmente, usando suas habilidades gerenciais à la deus. Elogiou-os: serão o instrumento de minha vontade na terra, da salvaçãodanação do homem, e todos os et cetera de sempre. E pronto, fim do protesto, auréolas a postos, de volta ao trabalho. Anjos são fáceis de pacificar; transforme-os em instrumentos e eles tocam sua harpia melodia. Seres humanos são mais difíceis, podem duvidar de qualquer coisa, até do que está diante de seus próprios olhos. Do que está detrás de seus próprios olhos. Daquilo que, quando mergulham com as pálpebras pesadas, transpira detrás dos olhos fechados... anjos, eles não são muito dotados de vontade. Ter vontade é discordar; não se submeter; divergir.”

 

 

“Em tempos remotos, o patriarca Ibrahim veio a este vale com Hagar e Ismail, seu filho. Aqui, na vastidão sem água, abandonou-a. Ela lhe perguntou, será esta a vontade de Deus? Ele respondeu, é. E partiu, o maldito. Desde o começo, os homens usaram Deus para justificar o injustificável. Ele age por caminhos misteriosos, dizem os homens. Não é de admirar, portanto, que as mulheres tenham se voltado para mim.”

 

 

“O fato de estar vivo compensa o que a vida faz com a gente.”

 

 

““Eu? Quem sou eu?” Perplexo, Gibreel fez a pergunta absurda. O outro acenou com a cabeça ponderosamente, as sobrancelhas se mexendo como galhadas macias. “A mais importante das perguntas, em minha opinião. Vivemos tempos problemáticos, meu senhor, para um homem ético. Quando um homem não tem certeza de sua essência, como pode saber se é bom ou mau?””

 

 

“Alguma coisa deve estar profundamente deslocada na vida espiritual do planeta, pensou Gibreel Farishta. Demônios demais dentro das pessoas que alegam acreditar em Deus.”

 

 

“Quem é ele? Um exilado. O que não deve ser confundido, não se deve permitir que seja, com todas as outras palavras que as pessoas pronunciam: emigrado, expatriado, refugiado, imigrante, silêncio, astúcia. Exilado é um sonho de glorioso retorno. Exilado é uma visão de revolução: Elba, não Santa Helena. É um paradoxo infindável: olhar para a frente olhando sempre para trás. O exilado é um bola atirada para muito alto no ar. Ele ali fica, dependurado, congelado no tempo, traduzido numa fotografia; negação de movimento, impossivelmente suspenso acima de sua terra natal, esperando o momento inevitável em que a fotografia comece a se mexer e a terra reclame o que é dela. (...)

O exílio é um país sem alma.”

 

 

““Pa-pai”, Anahita Sufyan interrompeu essas cogitações, olhos virados para o teto, cara apoiada na mão. “Desista. A questão é saber como ele se transformou nesse, nesse” — admirada — “monstro.”

Diante disso, o próprio diabo, levantando os olhos da sopa de galinha, gritou: “Não, não. Não sou um monstro, ah, não, não sou mesmo”. Sua voz, que parecia brotar de um abismo de dor, tocou e alarmou a jovem, e ela correu para se sentar ao lado dele e, impetuosamente, acariciou um ombro da fera infeliz, dizendo, numa tentativa de retificação: “Claro que não é, desculpe, claro que eu não acho que você é um monstro; só parece”. Saladin Chamcha caiu em prantos.”

 

 

Seu pai, Otto Cone, historiador da arte e biógrafo de Picabia, tinha conversado com ela, no ano que era o décimo quarto para ela e o último para ele, sobre “a mais perigosa de todas as mentiras que nos contam na vida” e que era, na opinião dele, a ideia de continuum. “Se alguém algum dia tentar convencer você que este belíssimo e mais perverso dos planetas é de alguma forma homogêneo, composto apenas de materiais conciliáveis, que tudo se soma, pegue o telefone e ligue para o fabricante de camisas-de-força”, ele aconselhou, conseguindo dar a impressão de ter visitado mais planetas que este antes de chegar a essas conclusões. “O mundo é incompatível, nunca se esqueça: é gagá. Fantasmas, nazistas, santos, todos vivos ao mesmo tempo; num lugar, felicidade perfeita, enquanto virando a esquina está o inferno. Não existe lugar mais maluco.”

 

 

“Otto Cone era um homem de setenta e tantos anos quando pulou no fosso do elevador e morreu. Agora, aí estava um assunto em que Alicja, sempre pronta a discutir as questões mais tabus, se recusava a tocar: por que um sobrevivente dos campos sobrevive quarenta anos e acaba completando o serviço que os monstros não conseguiram fazer? Será que o grande mal sempre triunfa no final, por mais que se resista contra ele? Será que deixa um laivo de gelo no sangue, circulando até encontrar o coração? Ou, pior ainda: a morte de um homem pode ser incompatível com sua vida? Allie, cuja primeira reação ao saber da morte do pai tinha sido um ataque de fúria, fez essas perguntas à mãe. Que, com expressão de pedra debaixo de um grande chapéu negro, disse apenas: “Você herdou dele a falta de controle, minha querida”.”

 

 

“Um iceberg é água lutando para ser terra; uma montanha, principalmente no Himalaia, principalmente o Everest, é terra tentando se metamorfosear em céu; é voo aterrado, é terra transmutada — quase — em ar, e que se torna, no sentido exato da palavra, exaltada.”

 

 

“Acho que está tudo bem fugir das câmeras, se a gente tem certeza que elas estão atrás da gente. Mas imagine se elas param? O que eu acho é que você ia virar e correr na direção oposta”.

 

 

Na vigésima primeira noite que passavam juntos, depois de ter dado conta de cinco doses duplas de Jameson, ela disse: “Sabe por que eu subi lá de verdade? Não dê risada: para escapar do bem e do mal”. Ele não deu risada. “Você acha que as montanhas estão acima da moralidade?”, ele perguntou, sério. “Foi o que eu aprendi no movimento revolucionário”, ela continuou. “É o seguinte: a informação foi abolida em algum momento do século XX, não sei exatamente quando; e não sei justamente porque isso também faz parte da informação que foi abolida, abolida. Desde então vivemos um conto de fadas. Entende? Tudo acontece por mágica. Nós, as fadas, não temos a menor noção do que está acontecendo. Então, como dá para saber o que é certo e errado? Não sabemos nem o que é. Então o que pensei foi o seguinte, ou você se arrebenta tentando entender as coisas, ou você vai e senta no alto de uma montanha, porque para lá é que foi a verdade, acredite se quiser, a verdade simplesmente subiu e fugiu destas cidades onde até o chão debaixo dos nossos pés é todo fabricado, é uma mentira, e se escondeu lá em cima, no ar muito, muito rarefeito, onde os mentirosos não têm coragem de ir atrás dela com medo de explodir os miolos. Ela está lá em cima agora. Eu estive lá. Pode perguntar para mim.” E adormeceu. Ele a carregou para a cama.”

 

 

A queda dos anjos, Gibreel refletia, não era a mesma coisa que a Queda do Homem e da Mulher. No caso dos seres humanos, a questão tinha sido a moralidade. Do fruto da árvore do bem e do mal eles não deviam comer, e comeram. Primeiro a mulher, e depois, por sugestão dela, o homem, adquiriram padrões éticos verboten, com delicioso aroma de maçã: a serpente lhes deu um sistema de valores. Permitindo, entre outras coisas, que julgassem a própria Divindade, possibilitando a ocorrência de todos os mais estranhos questionamentos: para que o mal? Para que o sofrimento? Para que a morte? — E lá se foram os dois. Ele não queria que Suas belas criaturas fossem além dos limites. (...) Enquanto a queda dos anjos tinha sido uma mera questão de poder: um ato direto de política celestial, castigo pela rebelião, curto e grosso, pour encourager les autres. — Como era insegura de si mesma essa Divindade, que não queria que Sua melhor criação distinguisse o certo do errado; e que governava pelo terror, exigindo a submissão inquestionável até dos Seus auxiliares mais próximos, expulsando todos os dissidentes para suas ardentes sibérias, para os gulags do Inferno... ele se controlou. Eram ideias satânicas, infiltradas em sua cabeça por Iblis-Belzebu-Shaitan. Se a Entidade ainda o estava punindo por sua falta de fé anterior, essa não era a melhor maneira de conquistar a remissão.”

 

 

Você talvez não conheça ainda a história do paranoico esquizofrênico que acreditava que era o imperador Napoleão Bonaparte e concordou em fazer um teste com o detector de mentiras?”, Alicja Cohen perguntou, devorando gefilte fish e sacudindo um garfo da Bloom’s debaixo do nariz da filha. “Perguntaram a ele: você é Napoleão? E a resposta dele, sem dúvida com um sorriso maldoso: Não. E eles olharam a máquina, que indicava, com toda a precisão da ciência moderna, que o lunático estava mentindo.” Blake de novo, Allie pensou. Então eu perguntei: uma convicção firme de que uma determinada coisa é de um determinado modo faz com que seja assim? Ele — i. e., Isaías — replicou: Todos os poetas acreditam que sim. E em muitas eras de imaginação essa firme convicção removeu montanhas; mas muitos não são capazes de uma firme convicção a respeito de nada.

 

 

“Ela o deixava brindando Farishta com suas inexauríveis anedotas, opiniões e papo generalizado, e ao voltar o encontrava ainda com a corda toda. Acabou por identificar diversos temas principais, sobretudo o corpo de conceitos sobre Os Problemas dos Ingleses. “O problema dos Inglegleses é que toda a his his história deles aconteceu no estrangeiro, e por isso eles na na não sabem que sentido tem.” — “O se segredo de um jantar em Londres é estar em nu nu número superior aos ingleses. Se eles são minoria, se cococomportam; se não, dão problema.” — “Visite a Ca Ca Câmara dos Horrores e vai descobrir qual é o po po problema dos ingleses. Aquilo é a caca cara deles, cadadáveres em baba banhos de sangue, barbeiros malucos etc. etc. etc. Os jo jornais cheios de morte e depravação. Mas declaram para o mu mundo que são reservados, du du durões, essas coisas, e a gente é ididiota de acreditar.” Gibreel ouvia essa coleção de preconceitos com algo que parecia completa concordância, irritando Allie profundamente. Será que o que viam da Inglaterra eram realmente essas generalizações? “Não”, Sisodia acedeu com um sorriso descarado. “Mas é gogostoso desabafafar essas coisas.”

 

 

““Cidade”, ele gritou, e sua voz rolou pela metrópole como trovão, “vou tropicalizar você.”

Gibreel enumerou os benefícios da proposta de metamorfose de Londres em uma cidade tropical: aumento de definição moral, instituição de uma siesta nacional, desenvolvimento de padrões de comportamento vívido e expansivo entre o populacho, música popular de melhor qualidade, novos pássaros nas árvores (araras, pavões, cacatuas), novas árvores para os pássaros (coqueiros, tamarindos, figueiras com longas barbas). Melhoria de vida nas ruas, flores muito coloridas (magenta, vermelhão, verde-néon), macacos-aranha nos carvalhos. Um novo mercado de massa para aparelhos domésticos de ar-condicionado, ventiladores de teto, espirais e sprays antimosquitos. Uma indústria de fibra de coco e copra. Ênfase nas possibilidades de Londres como centro de conferências etc.; melhores jogadores de críquete; maior ênfase no controle de bola entre jogadores profissionais, o mui inglês compromisso tradicional e desalmado pela “alta produtividade no trabalho” tornado obsoleto pelo calor. Fervor religioso, fermento político, renovação de interesse na intelligentsia. Fim da reserva britânica; bolsas de água quente abolidas para sempre, substituídas por fétidas noites de amor feito lento e olorosamente. Emergência de novos valores sociais: amigos começando a se visitar sem marcar hora com antecedência, fechamento dos asilos de velhos, ênfase nas famílias grandes. Comida mais temperada: uso de água além do papel nas privadas inglesas; a alegria de correr inteiramente vestido pelas primeiras chuvas das monções.

Desvantagens: cólera, tifo, doença de legionário, baratas, poeira, barulho, uma cultura de excessos.”