Editora: Record
Opinião: ★★★★★
Tradução: Eric Nepomuceno
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ISBN: 978-85-01-11036-7
Páginas: 432
Sinopse: Em Cem anos de solidão, um dos maiores clássicos
da literatura, o prestigiado autor narra a incrível e triste história dos Buendía
— a estirpe de solitários para a qual não será dada “uma segunda oportunidade sobre
a terra” e apresenta o maravilhoso universo da fictícia Macondo, onde se passa o
romance. É lá que acompanhamos diversas gerações dessa família, assim como a ascensão
e a queda do vilarejo. Para além dos artifícios técnicos e das influências literárias
que transbordam do livro, ainda vemos em suas páginas o que por muitos é considerado
uma autêntica enciclopédia do imaginário, num estilo que consagrou o colombiano
como um dos maiores autores do século XX.
Em nenhum outro livro García Márquez empenhou-se tanto para
alcançar o tom com que sua avó materna lhe contava os episódios mais fantásticos
sem alterar um só traço do rosto. Assim, ao mesmo tempo em que a incrível e triste
história dos Buendía pode ser entendida como uma autêntica enciclopédia do imaginário,
ela é narrada de modo a parecer que tudo faz parte da mais banal das realidades.
Gabo, apelido de Gabriel García Márquez, costumava dizer que
todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro. “E qual seria o seu?”,
perguntaram-lhe. “O livro da solidão”, foi a resposta. Apesar disso, ele não considerava
Cem anos sua melhor obra (gostava demais
de O outono do patriarca). O que importa?
O certo é que nenhum outro romance resume tão completamente o formidável talento
deste contador de histórias de solitários — que se espalham e se espalharão por
muito mais de cem anos pelas Macondos de todo o mundo.
Cem anos de solidão é uma obra grandiosa e atemporal, sobre a qual é possível construir diversos
paralelos com a nossa própria existência.
““Esta manhã, quando me trouxeram, tive a impressão de que já havia
passado por tudo isso.” Na verdade, enquanto a multidão trovejava ao seu passo,
ele estava concentrado em seus pensamentos, assombrado pela forma como todo
mundo havia envelhecido em um ano. As amendoeiras tinham as folhas
avermelhadas. As casas pintadas de azul, pintadas depois de vermelho e depois
pintadas de azul outra vez, tinham adquirido uma coloração indefinível.
— E o
que você esperava? — suspirou Úrsula. — O tempo passa.
—
Pois é — admitiu Aureliano —, mas não tanto.”
“Na verdade, não se atreviam a executar a sentença. A rebeldia do povo
fez os militares pensarem que o fuzilamento do coronel Aureliano Buendía teria
graves consequências políticas não apenas em Macondo, mas em toda a região do
pantanal, e decidiram consultar as autoridades da capital provincial. Na noite
do sábado, enquanto esperavam pela resposta, o capitão Roque Carnicero foi com
outros oficiais até a taberna de Catarino. Uma única mulher, quase pressionada
pelas ameaças, atreveu-se a levá-lo para o quarto. “Elas não querem ir para a
cama com um homem que sabem que vai morrer”, confessou ela. “Ninguém sabe como
vai ser, mas todo mundo anda dizendo que o oficial que fuzilar o coronel
Aureliano Buendía, e todos os soldados do pelotão, um por um, serão
assassinados sem remédio, mais cedo ou mais tarde, nem que se escondam no fim
do mundo.” O capitão Roque Carnicero comentou essa história com os outros
oficiais, que comentaram com seus superiores. No domingo, embora ninguém
houvesse revelado com franqueza, embora nenhum ato militar tivesse turvado a
calma tensa daqueles dias, o povoado inteiro sabia que os oficiais estavam
dispostos a evitar com tudo que é tipo de pretexto a responsabilidade da
execução. No correio da segunda-feira chegou a ordem oficial: a execução teria
de ser cumprida num prazo de vinte e quatro horas. Naquela noite os oficiais
puseram num quepe sete papeizinhos com seus nomes, e o inclemente destino do capitão
Roque Carnicero apontou-o com o papel premiado. “O meu azar não perde ocasião”,
disse ele com profunda amargura. “Nasci filho da puta e filho da puta morro”.”
“Naquela
noite, no jantar, o suposto Aureliano Segundo despedaçou o pão com a mão
direita e tomou a sopa com a esquerda. Seu irmão gêmeo, o suposto José Arcádio
Segundo, despedaçou o pão com a mão esquerda e tomou a sopa com a direita. Era
tão precisa a coordenação de seus movimentos que não pareciam dois irmãos
sentados um na frente do outro, mas um artifício de espelhos. O espetáculo que
os gêmeos haviam concebido desde que tiveram consciência de serem iguais foi
repetido em homenagem ao recém-chegado. Mas o coronel Aureliano Buendía não
percebeu nada. Parecia tão alheio a tudo que nem mesmo reparou em Remédios, a
Bela, que passou nua para o dormitório. Úrsula foi a única que se atreveu a
perturbar sua abstração.
— Se
é para ir embora outra vez — disse a ele no meio do jantar —, pelo menos trate
de recordar como éramos esta noite.
Então
o coronel Aureliano Buendía percebeu, e não sem assombro, que Úrsula era o
único ser humano que havia conseguido desentranhar sua miséria, e pela primeira
vez em muitos anos se atreveu a olhar seu rosto. Tinha a pele curtida, os
dentes carcomidos, os cabelos murchos e sem cor, e o olhar atônito. Comparou-a
com a lembrança mais antiga que tinha dela, na tarde em que ele teve o
presságio de que uma caçarola de caldo fervendo ia cair da mesa, e a encontrou
despedaçada. Num instante descobriu os arranhões, os vergões, as chagas, as
úlceras e cicatrizes que mais de meio século de vida cotidiana havia deixado
nela, e comprovou que esses estragos não suscitavam nele nem mesmo um
sentimento de piedade. Fez então um último esforço para buscar em seu coração o
lugar onde os afetos tinham apodrecido, e não conseguiu encontrá-lo. Em outro
tempo, pelo menos sentia um confuso sentimento de vergonha quando surpreendia
em sua própria pele o cheiro de Úrsula, e em mais de uma ocasião sentiu seus
pensamentos interferidos pelo pensamento dela. Mas tudo isso havia sido
arrasado pela guerra. A própria Remédios, sua esposa, era naquele momento a
imagem enevoada de alguém que podia ter sido sua filha. As incontáveis mulheres
que conheceu no deserto do amor, e que dispersaram sua semente por todo o
litoral, não haviam deixado rastro algum em seus sentimentos. A maioria delas
entrava no quarto no escuro e ia embora antes do alvorecer, e no dia seguinte
eram apenas um pouco de tédio na memória corporal. O único afeto que prevalecia
contra o tempo e a guerra foi o que ele sentiu por seu irmão José Arcádio,
quando os dois eram crianças, e não estava baseado no amor, e sim na
cumplicidade.
—
Perdão — desculpou-se diante do pedido de Úrsula. — É que a guerra acabou com
tudo.”
“Ninguém ficou sabendo em que momento começou
a tocar os sinos do campanário da torre e a ajudar o padre Antônio Isabel,
sucessor do Filhote, na missa, e a cuidar dos galos de briga no quintal da casa
paroquial. Quando o coronel Gerineldo Márquez soube, repreendeu-o duramente por
estar aprendendo ofícios repudiados pelos liberais. “A questão — respondeu ele
— é que eu acho que saí conservador.” Acreditava nisso como se fosse uma
determinação da fatalidade. O coronel Gerineldo Márquez, escandalizado, contou
para Úrsula.
— Melhor assim — ela aprovou. — Tomara que
vire padre, para que Deus enfim entre nesta casa.
Num minuto ficaram sabendo que o padre
Antônio Isabel estava preparando José Arcádio Segundo para a primeira comunhão.
Ensinava o catecismo a ele enquanto pelava o pescoço dos galos a navalha. Explicava
com exemplos simples, enquanto punham em seus ninhos as galinhas chocas, como
Deus teve a ideia no segundo dia da criação de que os frangos se formassem
dentro dos ovos. Desde aquela época o pároco manifestava os primeiros sintomas
do delírio senil que o levou a dizer, anos mais tarde, que o diabo
provavelmente havia ganho a rebelião contra Deus, e era quem estava sentado no
trono celestial, sem revelar sua verdadeira identidade para pegar os incautos.
Estimulado pela intrepidez de seu preceptor, José Arcádio Segundo chegou em
poucos meses a ser tão sábio nas artimanhas teológicas a ponto de ser capaz de
confundir o demônio, e ao mesmo tempo se fez perito nos truques da rinha de
galos.”
“Taciturno, silencioso, insensível ao novo
sopro de vitalidade que estremeceu a casa, o coronel Aureliano Buendía quase
conseguiu compreender que o segredo de uma boa velhice não é mais que um pacto
honrado com a solidão.”
“Certa manhã encontrou Úrsula chorando debaixo da castanheira, nos
joelhos do marido morto. O coronel Aureliano Buendía era o único habitante da
casa que continuava não vendo o potente ancião consumido por meio século de
intempérie. “Cumprimente seu pai”, disse Úrsula. Ele se deteve um instante na
frente da castanheira, e uma vez mais comprovou que aquele espaço vazio
tampouco suscitava nele qualquer afeto.
— O
que ele está dizendo? — perguntou.
—
Está muito triste — respondeu Úrsula — porque acha que você vai morrer.
—
Diga a ele — sorriu o coronel — que a gente não morre quando deve, mas quando
pode.”
“Foi por essa época que ouviram o coronel
dizer: “A única diferença atual entre liberais e conservadores é que os
liberais vão à missa das cinco e os conservadores vão à missa das oito”.”
“Assim foi passando o tempo, entre o Colosso de Rodes e os encantadores
de serpentes, até que sua esposa anunciou que não restavam mais do que seis
quilos de carne-seca e um saco de arroz na despensa.
— E o
que você quer que eu faça agora? — ele perguntou.
— Eu
não sei — respondeu Fernanda. — Isso é assunto de homem.
— Bom
— disse Aureliano Segundo —, alguma coisa a gente vai fazer quando parar de
chover.
Continuou
mais interessado na enciclopédia que no problema doméstico, mesmo quando teve de
se contentar com uma pelanca ressecada e um pouco de arroz no almoço. “Agora é
impossível fazer qualquer coisa”, dizia. “Não vai chover a vida inteira.” E
quanto mais voltas adiava as urgências da despensa, mais intensa ia se fazendo
a indignação de Fernanda, até que seus protestos eventuais, seus desabafos
pouco frequentes, transbordaram numa torrente desembestada, desatada, que
começou certa manhã como o monótono bordão de um violão, e que à medida que o
dia avançava foi subindo de tom, cada vez mais rico, mais esplêndido. Aureliano
Segundo não teve consciência da ladainha até o dia seguinte, depois do café da
manhã, quando sentiu-se atordoado por um zumbido que era mais fluido e mais
alto que o rumor da chuva, e era Fernanda que passeava pela casa inteira
lamentando ter sido educada como uma rainha para acabar como mucama numa casa
de loucos, com um marido folgazão, idólatra, libertino, que se deitava de
barriga para cima esperando que chovessem pães do céu, enquanto ela destroncava
os rins tratando de manter flutuando um lar que só se mantinha de pé com
alfinetes, onde havia tanta coisa a ser feita, tanta a ser suportada e
corrigida desde que Deus amanhecia até a hora de dormir, e que chegava na cama
com os olhos cheios de pó de vidro, e no entanto ninguém nunca tinha lhe dado
um bom-dia, Fernanda, como passou a noite, Fernanda?, nem perguntado a ela, nem
que fosse só por cortesia, por que estava tão pálida nem por que despertava com
essas olheiras cor de violeta, apesar de ela não esperar, é claro, que aquilo
saísse do resto de uma família que, afinal de contas, sempre a teve como um
estorvo, como o trapinho de segurar panela, como um boneco pintado na parede, e
que sempre andavam fazendo futrica contra ela pelos cantos, chamando-a de
santarrona, chamando-a de fariseia, chamando-a de boa bisca, e até Amaranta,
que em paz descanse, havia dito a viva voz que ela era das que confundiam o cu
com as têmporas, bendito seja Deus, que palavras, e ela havia aguentado tudo
com resignação em nome do Santo Padre, mas não havia conseguido suportar mais
quando o malvado do José Arcádio Segundo disse que a perdição da família tinha
sido abrir as portas para uma janotinha pedante, imagine só, uma janotinha
mandona, valha-me Deus, uma filha de má saliva, da mesma índole dos pedantões
que o governo mandou para matar trabalhadores, veja se é possível, e se referia
a ninguém menos que ela, ela, a afilhada do Duque de Alba, uma dama com tanta
estirpe que revolvia o fígado das esposas dos presidentes, uma filhod’alga de
sangue como ela, que tinha direito de assinar onze sobrenomes peninsulares, e
que era o único mortal naquela aldeia de bastardos que não se sentia atarantada
diante de dezesseis talheres, para que depois o adúltero do seu marido
dissesse, morrendo de rir, que tantas colheres e garfos, e tantas facas e
colherinhas não eram coisa de cristãos e sim de centopeias, e a única que podia
determinar de olhos fechados quando se servia o vinho branco, e de que lado e
em que taça, e quando se servia o vinho tinto, e não como a troglodita da
Amaranta, que em paz descanse, que achava que o vinho branco devia ser servido
de dia e o tinto de noite, e a única em todo o litoral que podia se vangloriar
de não ter feito nada do corpo que não fosse em peniquinhos de ouro, para que
depois viesse o coronel Aureliano Buendía, que em paz descanse, e tivesse o
atrevimento de perguntar com seu humor de fel de maçom de onde ela tinha
merecido aquele privilégio, e se ela cagava merda ou bromélias celestiais,
imaginem só, com essas palavras, e para que Renata, sua própria filha, que por
indiscrição havia visto seus excrementos no quarto, respondesse que na verdade
o peniquinho era de muito ouro e muita heráldica, mas que o que tinha dentro
era pura merda, merda física, e pior ainda que as outras porque era merda
metida a besta, imaginem só, sua própria filha, de maneira que nunca tinha se
deixado iludir com o resto da família, mas fosse como fosse tinha direito de
esperar um pouco mais de consideração da parte do esposo, já que bem ou mal era
seu cônjuge pelo próprio sacramento, seu autor, seu violador por direito e
dever, que tinha jogado sobre si próprio e por livre e soberana vontade a grave
responsabilidade de tirá-la do solar paterno, onde nunca se privou do que fosse
nem sofreu por coisa alguma, onde tecia coroas fúnebres porque gostava de se
distrair, posto que seu padrinho havia mandado uma carta com a assinatura de
próprio punho e o selo de seu anel impresso no lacre, só para dizer que as mãos
de sua afilhada não tinham sido feitas para afazeres deste mundo, a não ser
tocar o clavicórdio, e ainda assim o insensato de seu marido a tinha tirado de
sua casa com todas as admoestações e advertências para levá-la para aquele
caldeirão do Diabo onde não se podia nem respirar de tanto calor, e antes que
ela acabasse de guardar suas abstinências de Pentecostes já tinha ido embora
com seus baús andarilhos e sua sanfona de perdulário para madracear em
adultério com uma pobre coitada de quem bastava olhar as nádegas, bom, já que
disse o que disse, a quem bastava ver remexer as nádegas de potranca para
adivinhar que era uma, que era uma..., ao contrário dela, que era uma dama no
palácio ou na pocilga, na mesa ou na cama, uma dama com berço, temente a Deus,
obediente às suas leis e submissa aos seus desígnios, e com quem não se podia
fazer, é claro, as piruetas e safadezas de mulher à toa que fazia com a outra,
que é claro que se prestava a tudo, como as matronas francesas, e pensando bem,
pior ainda, porque elas pelo menos tinham a honradez de pôr uma lâmpada
vermelha na porta, semelhantes porcarias, imagine só, e só faltava essa, com a
filha única e bem-amada de dona Renata Argote e dom Fernando del Carpio, principalmente
ele, é claro, um santo varão, um cristão dos grandes, Cavalheiro da Ordem do
Santo Sepulcro, desses que recebem diretamente de Deus o privilégio de se
conservarem intactos na tumba, com a pele tersa feito cetim de noiva e os olhos
vivos e diáfanos como as esmeraldas.
—
Isto sim, que não é verdade — interrompeu Aureliano Segundo —, quando o trouxeram
aqui, já estava fedendo.”