Editora: Paz &
Terra
ISBN: 978-85-2190-551-6
Tradução: Maria Inês
Rolim
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 572
Sinopse: Ver Parte I
“O foco das desavenças de política internacional foram as
avaliações conflitantes acerca do vigor do capitalismo ocidental e da provável
iminência de situações revolucionárias. Daí nasceram controvérsias sobre a
natureza do “terceiro período”, cujo advento fora oficialmente anunciado e
definido de várias maneiras em 1927. Segundo os stalinistas, eram eminentes
profundas crises internas e levantes revolucionários nas sociedades
capitalistas avançadas, desde a Alemanha até os Estados Unidos. Por isso,
impunham-se três exigências táticas. Primeiro, os partidos comunistas dos
outros países tinham de se preparar para tempos tempestuosos, e para tanto
traçar rumos absolutamente independentes, recusar toda colaboração de
socialdemocratas e — sobretudo — criar seus próprios sindicatos rivais — em
suma, cindir o movimento operário europeu. Segundo, os partidos comunistas
deveriam anular neste processo a influência reformista sobre a classe operária,
atacando os partidos socialdemocratas. Na opinião dos stalinistas, estes
últimos estavam abandonando o pretenso reformismo em prol do “social-fascismo”
e tornavam-se o inimigo principal do movimento operário. E por fim, todos os
partidos comunistas deviam preparar-se para a luta revolucionária, expulsando
de suas fileiras qualquer dissidente, em especial os “desviacionistas de
direita” que as novas circunstâncias haviam transformado no maior perigo
interno.99 (...)
Como principal inimigo, foram apontados os partidos socialistas — ou
melhor, os reformistas em geral —, considerados inapelavelmente “fascistas”. O
expurgo dos moderados do Comintern assumiu proporções mais amplas, e os
partidos comunistas foram instruídos a romper todos os laços com os movimentos
socialdemocratas, denunciar-lhes o caráter de “social-fascismo”, e criar
sindicatos que se opusessem a eles — em suma, cindir o movimento operário
europeu.257 Deste modo começou a malfadada trajetória do Comintern
para o extremismo. Ela terminaria em desastre cinco anos depois, tendo
contribuído para a destruição do antes poderoso movimento operário alemão,
tanto do Partido Comunista quanto do Partido Socialista, e assim propiciando a
ascensão de Hitler ao poder. (...)
Tudo isto representava um violento repúdio à política de Bukharin
para o Comintern. Como vimos, a concepção bukharinista dos sistemas
capitalistas avançados — atualizada e reafirmada em 1926-27 e novamente no VI
congresso do Comintern — vinha de sua teoria do “capitalismo de Estado”,
anterior à guerra. Segundo Bukharin, no “terceiro período” do capitalismo não
haveria colapsos internos, e sim uma estabilização maior, em nível tecnológico
e organizacional mais elevado. Seriam inevitáveis levantes revolucionários; mas
no Ocidente tais levantes nasceriam de “contradições externas” trazidas pela
guerra imperialista, e não de crises internas isoladas. Logo, para Bukharin e
seus seguidores, a assertiva de que o capitalismo ocidental estaria à beira do
colapso revolucionário era “radicalmente errada, taticamente nociva e
cruelmente equivocada do ponto de vista teórico”; aceitar tal assertiva seria
“perder contato com as relações reais”100. O constante
desenvolvimento dos sistemas de capitalismo de Estado pedia a união da classe
operária, e não aventuras sectárias quixotescas, que só poderiam levar ao
“isolamento” dos partidos comunistas e à “tragédia” da classe operária.101”
99. O problema é examinado em Letter
of an Old Bolshevik: The Key to the Moscow Trials (New York, 1937), pp.
48-50, da qual Bukharin foi autor ou então a principal fonte.
257 Quanto aos trabalhos do pleno, ver Inprecor, IX (1929), nº 35, 40-1, 44-9, 51, 53, 55, 57, 59. A nova
linha foi enunciada por Molotov, Kuusinen e Manuilski. Stalin não falou durante
o pleno, mas já mostrara os novos rumos em dois discursos proferidos em maio. STALIN,
I. O pravykh fraktsionerakh v
amerikanskoi Kompartii (Moscou, 1930).
100. Ibid., p. 55. No
Décimo-Sétimo Congresso do Partido, chama Stalin de “glorioso marechal das forças
proletárias”, denominação pouco comum no contexto bolchevique, como demonstrou
o próprio Bukharin dois meses depois, ao elogiar o presidente soviético,
Kalinin, por “não ser o marechal Hindenburg”. XVII s’’ezd, p. 129; Kalinich’. Izvestiia,
30 Mar. 1934, p. 2. Em ocasiões importantes, não fez qualquer menção a Stalin,
omissão também pouco comum. Ver, por exemplo, seu artigo de 1º de maio, Pochemu
my pobedim? Izvestiia, 1º maio 1934,
p. 3. Em outras ocasiões, referiu-se a Lenin em termos que na época só eram
empregados em relação a Stalin. Ver o artigo “Our Leader, Our Teacher, our
Father, Izvestiia, 21 jan. 1936, p.
2. Só mais tarde, quando já corria sério risco, aderiu com menos restrições ao
culto a Stalin. Ver o artigo Piramida velikikh del, Izvestiia, 15 de maio, 1936, p. 3.
101. Vtoroi vsesoiuznyi s’’ezd
kolkhoznikov-udarnikov 11-17 fevralia 1935 goda - stenograficheskii otchet
(Moscou, 1935), pp. 145-53; Bukharin, 'Nujna li nam marksistskaia
istoricheskaia nauka?, Izvestiia, 27
jan., 1936, pp. 3-4.
“Bukharin também cita uma carta inédita escrita por Lênin a ele e
a Zinoviev no início dos anos 20: “Se descartarmos todas as pessoas
inteligentes, ainda que não muito obedientes, e mantivermos apenas os tolos que
sempre obedecem, com absoluta certeza destruiremos o partido.110”
110. Daniels, Conscience of
the Revolution: Communist Opposition in Soviet Russia (Cambridge, 1960),
pp. 336-7. Quanto às observações de Bukharin e à respectiva resolução, ver VI
kongress Kominterna, I, pp. 58-60, 610-14, e II, p. 80.
“Falando a um congresso de ateus, em junho de 1930, Bukharin
protestou sutilmente contra o clima de crescente intolerância e contra a
exigência do stalinista de se obedecer ao partido sem formular qualquer
crítica. O Marxismo, como argumentou Bukharin, era pensamento crítico, não
dogma ou fórmula sem vida; e a divisa preferida de Marx, como reafirmou, era
“Duvidar de tudo”263.”
263. Pravda, 12 jun.,
1929, p. 3.
“Para entender os últimos oito anos de vida de Bukharin, é preciso
entender a natureza da “revolução pelo alto”, promovida por Stalin, e todo o
seu impacto. Considerada em termos globais, a revolução durou dez anos — de
1929, início da coletivização forçada, a 1939, quando o sangrento expurgo
stalinista começou a atenuar-se. Segundo todos os critérios de mudança social,
a revolução foi um processo importantíssimo, que alterou radicalmente não
apenas as bases econômicas e sociais da sociedade soviética, mas também a
natureza de seu sistema político. Nos anos 30, ao longo desse processo,
delineia-se a União Soviética atual, com seu grande poderio militar-industrial,
e se estabelece o stalinismo, novo fenômeno político.
Entre 1929 e 1936, período de implantação do primeiro e do segundo
plano quinquenais, a “grande mudança” stalinista foi basicamente uma revolução
econômica, misto de coação brutal, heroísmo notável, catastrófica loucura e
fatos memoráveis. Poucas metas do primeiro plano foram cumpridas no prazo
previsto. Mas suas conquistas efetivas, consolidadas e expandidas a uma taxa
anual de 13-14% durante o segundo plano, mais modesto e pragmático, lançaram os
fundamentos de uma sociedade industrial e urbana. Em 1937, a indústria pesada
produzia de três a seis vezes mais que em 1928, dependendo dos índices de
avaliação utilizados; a produção siderúrgica quadruplicara, a produção de
carvão e cimento aumentara mais de 300%, a produção de petróleo mais de 100%; a
produção elétrica crescera 700%, a produção de implementos mecânicos era 20
vezes maior. Velhas fábricas foram ampliadas e reaparelhadas, surgiram novas
cidades, novas indústrias e centrais elétricas, muitas delas em áreas até então
atrasadas. Duplicaram a mão-de-obra industrial e a população urbana. O número
de estudantes passou de 12 milhões para mais de 31 milhões em 1939, fora ter-se
erradicado o analfabetismo entre a população com menos de cinquenta anos.1
Igualmente espetaculares foram os custos deste salto para a
modernidade econômica. Para uma minoria dedicada — quase toda formada por
membros do partido, mas onde se incluíam também pessoas do povo — este foi um
período de entusiasmo genuíno, atividade febril e sacrifício voluntário.2
Para a maioria da população, inclusive os milhões de indivíduos deportados,
confinados em campos de trabalho ou pura e simplesmente eliminados, foi um
período de repressão e miséria. Durante muito tempo se fez sentir na vida
soviética o impacto devastador da concentração de recursos na indústria pesada,
da extinção da atividade manufatureira e do comércio privados, do virtual
colapso da agricultura nos anos de coletivização, dos desperdícios decorrentes
da má administração, fracassos crônicos, mau uso de equipamentos danificados e
não habilitação da mão-de-obra. Nas cidades, menos afetadas, declinou
acentuadamente o espaço habitacional, e em 1932 o consumo per capita de
carne, gordura e aves era apenas um terço do que fora em 1928. Os operários das
fábricas já não tinham direito de mudar de emprego sem permissão oficial, e
sofriam pesadas penalidades por faltarem ao trabalho; por outro lado, os
salários reais caíram cerca de 50% no início dos anos 30.3 Filas e
racionamento se tornaram rotina; bens de consumo e serviços praticamente
desapareceram.
Durante os quatro anos da coletivização, que foi na verdade uma guerra
civil, problemas ainda mais sérios afligiram as áreas rurais. Quase sempre as
grandes revoluções sacrificam uma determinada classe social; no caso, as
vítimas foram 25 milhões de famílias camponesas. A maioria delas não queria
abandonar suas terras, seus implementos e seus animais a fim de ingressar nas
fazendas coletivas. Mas foram forçadas a isto pelo partido-Estado, que, além da
coação fiscal e administrativa, recorreu por muito tempo ao confisco, a prisões
em massa e deportações, para não mencionar os ataques dos quadros partidários
rurais, das brigadas rurais e até de destacamentos do exército. Os camponeses
resistiam e contra-atacavam, geralmente em verdadeiros combates, vez por outra
mediante sublevações de massas, mas sobretudo à maneira camponesa tradicional,
ou seja, destruindo as safras e matando o gado.4
A natureza do conflito ficou clara em janeiro-fevereiro de 1930.
Segundo as ameaçadoras diretrizes de Stalin e procedendo ao expurgo dos
“direitistas”, as autoridades locais desencadearam um império de terror contra
os kulaks recalcitrantes e contra os camponeses pobres e médios. Em
março, estavam coletivizados mais de dez milhões de famílias, o que
representava 50% das propriedades familiares. No entanto, o holocausto obrigou
Stalin a interromper por algum tempo o processo, fato anunciado num singular
artigo que atribuía aos funcionários locais a culpa pelos “excessos”, por terem
“enlouquecido com o êxito”. Houve então um êxodo maciço das fazendas coletivas,
e o percentual de propriedades familiares coletivizadas caiu de 57,6% em março
para 23,6% em junho.5 Mas o recuo chegara tarde demais para evitar a
catástrofe. Segundo cifras anunciadas em 1934, já haviam morrido mais da metade
dos cavalos das áreas rurais, 70 milhões de reses, 26 milhões de porcos e dois
terços do rebanho ovino e caprino, de 146 milhões de cabeças. E isto ocorreu
principalmente em janeiro-fevereiro de 1930, período que a história oficial
chama pejorativamente de “a marcha da cavalaria”6. Dificilmente
catástrofe maior poderia se abater sobre uma sociedade agrária. Vinte e cinco
anos mais tarde, os rebanhos ainda não tinham voltado aos níveis de 1928.
O Estado retomou a ofensiva ainda em 1930, de modo mais
deliberado, porém em nível quase igual de coação. Em 1933, as áreas rurais
ainda sofriam repressões “em escala extraordinária”.7 Em 1931,
haviam sido recoletivizadas 50% das propriedades familiares, percentual que em
1934 já se elevara para 70%; o restante seria coletivizado em pouco tempo. O
fim da resistência camponesa, que encerrou uma guerra desigual, foi determinado
pela fome criada deliberadamente em 1932-33, uma das piores da história russa.
O Estado apoderou-se da pequena safra de 1932 e não distribuiu os cereais nas
áreas rurais. Relatos da época dão conta de aldeias abandonadas, casas queimadas,
deportados conduzidos para o norte em carroças de transporte de gado, hordas
errantes de mendigos, camponeses famintos, casos de canibalismo, cadáveres
insepultos de homens, mulheres e crianças; em suma, as áreas rurais foram
devastadas, inteiramente vencidas.8 Em consequência direta da
coletivização, morreram pelo menos dez milhões de camponeses — talvez bem mais —,
metade deles durante a fome de 1932-33.9
Quando tudo acabou, 25 milhões de empresas privadas haviam sido
substituídas por 250 mil fazendas coletivas, controladas pelo Estado e
obrigadas a entregar percentagens de suas reduzidíssimas safras a preços muito
baixos. A coletivização forçada, instrumento básico da revolução econômica
stalinista, foi também sua singular inovação. Jamais qualquer bolchevique
propusera algo remotamente semelhante ao que ocorreu em 1929-33. A
coletivização sempre fora encarada como uma forma de agricultura mecanizada e
muito produtiva, a ser atingida num estágio superior de industrialização;
jamais fora concebida como meio de requisição ou instrumento primitivo de uma
exasperada industrialização.10 (Só na tradição czarista seria
possível encontrar algum precedente semelhante, como chega a sugerir o próprio
Stalin, que sabidamente admirava Pedro, o Grande.) Qualquer outro programa
agrícola provavelmente teria sido mais produtivo e bem menos destrutivo.
Contudo, não se pode negar que Stalin conseguiu um feito: o controle do Estado
sobre o campesinato, parcela majoritária da população, anteriormente autônoma;
este controle possibilitou uma espécie de “exploração feudal-militar”. As
estatísticas de 1933 dizem tudo: a safra de grãos foi inferior à de 1928 em
cinco milhões de toneladas, mas as requisições estatais duplicaram.11
Em 1934, os piores extremismos da industrialização e da
coletivização já tinham passado, e seguiram-se dois anos de relativo
abrandamento e de progresso econômico. Além disso, no início dos anos 30 houve
mudanças políticas significativas, que recordam o aforismo de Kliuchevski
acerca da história czarista: “O Estado avolumou-se; o povo empobreceu”.12
Num contexto de violência social e militarização, proliferavam as burocracias
centralizadas cuja função era administrar a economia estatal em expansão,
policiar a população cada vez maior dos campos de trabalho, controlar as
atividades e os movimentos dos cidadãos (nessa época voltaram a ser adotados os
passaportes internos) e regulamentar a vida cultural e intelectual. Começara
também a metamorfose da ideologia e das políticas sociais do partido-Estado. Em
fins dos anos 30, uma vez concluída essa metamorfose, foram oficialmente
repudiados o experimentalismo revolucionário, a legislação progressista e o
igualitarismo na educação, no direito, na vida familiar, nas rendas e no
comportamento social em geral — ou seja, tudo quanto prevalecera no período
1917-29. Adotaram-se normas tradicionais, autoritárias, que prefiguravam o
resultado paradoxal da revolução stalinista: o advento de uma sociedade
rigidamente conservadora e muito estratificada. Surgiam ainda outros aspectos
do stalinismo maduro, como o culto a Stalin e a falsificação da história do
partido, o renascer oficial do nacionalismo russo, a reabilitação da história
czarista e a rejeição de algumas importantes perspectivas marxistas.13
Mas, apesar de tudo, ainda não houvera qualquer mudança política
comparável à revolução econômica de 1929-33. O centro do sistema continuava
sendo o Partido Bolchevique, seus principais órgãos e tradições; permaneciam
atuantes suas figuras de maior destaque (várias delas rebaixadas, mas ainda
exercendo cargos de responsabilidade), suas elites e seus quadros basicamente
pré-stalinistas. Sob este aspecto, o sangrento expurgo realizado por Stalin em
1936-39 representou o segundo estágio — aquele propriamente político — da revolução
pelo alto. A sociedade soviética foi tiranizada por três anos de terror, de
prisões e execuções em massa orientados por Stalin e seus assessores mais
próximos, que agiam através da polícia secreta, a NKVD. De sete a oito milhões
de pessoas, no mínimo, foram presas; cerca de três milhões foram executadas ou
morreram em consequências de maus-tratos. Em fins de 1939, havia nove milhões
de prisioneiros nos cárceres e nos remotos campos de concentração (em 1928,
este número era de trinta mil, e no período de 1933-35, de cinco milhões). Uma
em cada duas famílias perdeu algum de seus membros. Foram dizimadas todas as
elites dominantes — políticas, econômicas, militares, intelectuais e culturais.14
O próprio partido foi o mais atingido. Em 1934, contava com 2 milhões
e 800 mil membros efetivos ou aspirantes; destes, pelos menos um milhão —
stalinistas e anti-stalinistas — foram presos, e depois foram executados. A
liderança mais antiga foi destruída, da base à cúpula: desapareceram comitês
locais, regionais e republicanos; dos 1.966 delegados presentes ao XVII
Congresso do Partido, em 1934, 1.108 foram presos, e em sua maioria fuzilados;
foram executados ou levados ao suicídio 110 dos 139 membros efetivos ou
suplentes do Comitê Central em 1934. Depois de Trotsky ter sido assassinado no
México, em 1940, Stalin passou a ser o único membro ainda vivo do grupo
dirigente leniniano. O terror apresentava uma explicação oficial: visava aos
“inimigos do povo” que participavam de uma vasta conspiração de sabotagem,
traição e assassinatos contra o Estado soviético. Todas as acusações criminais
eram falsas, embora apresentadas com abundância de detalhes nos três
julgamentos exemplares de velhos bolcheviques, realizados em 1936, 1937 e 1938 —
dos quais o mais importante foi o último, o de Bukharin.
O sangrento expurgo stalinista foi uma revolução — embora menos
aparente — “tão absoluta quanto qualquer outra transformação anteriormente
ocorrida na Rússia”. O Partido Bolchevique estava destruído e criara-se um novo
partido, com membros e ethos diferentes. Só 3% dos delegados presentes
ao congresso de 1934 — o último antes do expurgo — compareceram ao congresso de
1939, 70% dos membros haviam ingressado no partido após 1929, ou seja, já no
período stalinista; apenas 3% dos membros estavam no partido desde antes de
1917. Em fins dos anos 30, o sistema político soviético já não representava,
sob aspecto algum, uma ditadura ou governo de partido. Mantinha-se a fachada de
continuidade institucional e a ficção oficial, mas Stalin se tornara
autocrático e fizera do partido um dos vários instrumentos de sua ditadura
pessoal. Após 1939, foram raras as reuniões dos órgãos deliberativos
partidários, do Congresso, do Comitê Central e até mesmo do Politburo. Na
verdade, até a morte do ditador, em 1953, o partido teve menos poder que a
polícia, e mereceu menos consideração oficial que o Estado.19”
1. Sovetskaia istoricbeskaia
entsiklopediia. Vol. VI (Moscou, 1965), pp. 25-34; Nove, Economic History, caps. VIII-IX.
2. Eugene Lyons, Assigmnent
in Utopia, New York, 1937, p. 196; JUKOV, Iuri. Liudi 30-kh godov (Moscou, 1966).
3. Moshkov, Zernovaia problema
v gody sploshnoi kollektivizatsii sei’skogo khoziaistva SSSR (1929-1932 gg.).
Moscow, 1966, p. 136; Nove. Economic
History, pp. 209, 249-51, 260.
4. A história da coletivização encontra-se em M. Lewin, Russian Peasants and Soviet Power: A Study of Collectivization (Evanston, Illinois,
1968), pp. 482-519; Nove, Economic
History, cap. VII; e Fainsod, Smolensk,
cap. XII.
5. Lewin, Russian Peasants,
cap. XVII; BOGDENKO, M. L. Kolkhoznoe stroitel’stvo vesnoi i letom 1930 g.
Istoricheskie zapiski, nº 76 (1965), p. 31.
6. Nove, Economic History,
p. 186; Nemakov, Kommunisticheskaia
partiia, pp. 257-9; Ocberki istorii
kommunisticheskoi partii Ukrainy, p. 401.
7. Segundo circular oficial citada por Fainsod, em Merle Fainsod, Smolensk Under Soviet Rule (Cambridge,
1958), pp. 185-6.
8. Ver, por exemplo, CHAMBERLIN, William Henry. Russia’s Iron Age (New York, 1935), pp.
82-8, 367-9; Arthur Koestler, The Yogi
and the Comissar (New York, 1965), p. 128; William Reswick, I Dreamt Revolution (Chicago, 1951), cap.
XXV; e Roy A. Medvedev, Let History Judge:
The Origins and Consequences of Stalinism (New York, 1971), pp. 94-6.
9. As estimativas variam de pouco menos de 10 milhões até bem
acima. Mais tarde, Stalin falou a Churchill numa cifra de 10 milhões. Ver The Hinge of Fate, New York, 1950, p.
498.
10. Como salientou Preobrajenski XVII s’’ezd, p. 238.
11. Nove, Economic History,
pp. 180, 186. Uma comparação de todos os produtos agrícolas e as requisições
estatais entre 1926-1929 e 1930-39 revela um padrão semelhante. Ver Medvedev, Let History Judge, pp. 90-2.
12. Citado in TUCKER, Robert C (revised ed.; New York, 1971), Soviet Political Mind, p. 124.
13. Sobre o assunto, ver TIMASHEFF, Nicholas S. The Great Retreat (New York, 1946); e
também DANIELS, Robert V. Soviet Thought in the Nineteen-Thirties: an
Interpretative Sketch. In GINSBURG, Michael e SHAW, Joseph Thomas. Indiana Slavic Studies. Bloomington,
Ind., 1956, Vol. I, pp. 97-135.
14. O melhor relato do terror encontra-se em CONQUEST, Robert. The
Great Terror: Stalin’s Purge of the
Thirties (New York, 1968). As estatísticas são aproximadas, como não
poderiam deixar de ser, mas não se dispõe de outras mais fidedignas.
15. Ibid., caps. VIII,
XIII; CONQUEST, Robert. The Great Terror Revised. Survey, nº 78 (1971), pp. 92-3; ver também MEDVEDEV, Let History Judge, cap. VI.
16. Como reconheceu o governo soviético após a morte de Stalin.
Quanto às acusações feitas a Bukharin, ver Lenin, Soch., XXVII, pp. 379-82; Vsesoiuznoe sovesbcbanie o merakh uluchsbeniia
podgotovki nauclmo-pedagogicbeskikh kadrov po istoricheskim naukam: 18-21
dekabria 1962 g. (Moscow, 1964), p. 298.
17. Conquest, Great Terror,
p. 251.
18. Ibid., p. 471; Istoriia kommunisticheskoi partii sovetskogo
soiuza, Vol. I, Livro 1 (Moscou, 1970), p. 7.
19. Para uma análise, ver TUCKER, Soviet Political Mind, cap. I. Alguns historiadores soviéticos
reconhecem tacitamente que o partido não governou entre 1939 e 1953. Ver ANDREEV,
P. P. (org.). Materialy k lektsiiam po
kursu istorii KPSS: temy 11-13. Moscou, 1964, pp. 43-4.
“Numa óbvia alusão a si mesmo, Bukharin citou as palavras de
Engels acerca do dilema enfrentado por Goethe: “ter de existir num contexto que
não podia deixar de desprezar, e estar acorrentado a este contexto, uma vez que
era o único onde poderia atuar...”67.”
67. BUKHARIN, N. Etiudy,
Moscou and Leningrad, 1932, p. 151.
“Já durante a guerra civil Bukharin chamara a atenção para um
aspecto básico e muito importante da personalidade de Stalin: “Stalin só
consegue viver se tiver o que os outros têm. É algo que não consegue perdoar”;
“sente um ciúme insuperável de quem quer que saiba mais que ele, ou seja melhor
que ele”. Os demais oponentes do secretário-geral cometeram, quase todos, o
erro de considerá-lo “um mero político provinciano”, ou “a mediocridade mais
notável do partido”. Bukharin parece ter concluído que um demônio interior
alimentava a ambição pessoal de Stalin.136 (...)
Tal como em 1928, Bukharin percebia que estava em processo uma
compulsão insaciável, tanto psicológica quanto política. Conforme a
explicativa, Stalin “está desesperado porque não consegue convencer a todos,
nem mesmo a si próprio, de que é superior a todo mundo. (...) Seu desespero
leva-o a vingar-se nas pessoas, em todas as pessoas, sobretudo naquelas que são
de alguma forma superiores a ele ou melhores que ele...”137.”
136. Citado por Trotski em My
Life (New York, 1960), pp. 433, 450. Para as outras opiniões, ver ibid., p. 512, e Trotski, Stalin, New York, 1941, p. 393. Em
círculos privados, Stalin já demonstrava considerar-se “a pessoa que chefia o
Estado”. Citado por Medvedev em Let
History Judge, p. 325.
137 DAN, L. Bukharin o Staline. Novyi jornal, 75 (1964), p. 181. Há testemunhos de que, ao ser
ovacionado no congresso de escritores em 1934, Bukharin disse que estava sendo
“assinada minha sentença de morte”. Joseph, Berger, Nothing but the truth (New York, 1971), p. 107.
“Sabendo que sua prisão era iminente, ao voltar para casa após a
sessão do Comitê Central, Bukharin escreveu à futura geração de líderes do
partido uma última carta, que pediu à esposa que decorasse.
“Percebo meu desamparo”, começava, “ante uma máquina infernal que
(...) passou a deter um poder gigantesco, fabrica difamações organizadas, age
com ousadia e confiança (...).” A polícia de Stalin, continuava Bukharin, era
“uma
organização degenerada de burocratas sem ideias, corruptos, bem pagos, que
utilizam a antiga autoridade da Tcheka para satisfazer a desconfiança mórbida de
Stalin.(...) Qualquer membro do Comitê Central, qualquer membro do
partido pode ser aniquilado, transformado em traidor, em terrorista, em
desviacionista, em espião, por esses ‘órgãos que operam prodígios’”.
Declarando-se inocente de qualquer crime, Bukharin escreve que
acusá-lo de ser inimigo da revolução e agente capitalista era o mesmo que
descobrir que o último czar “dedicara sua vida inteira à luta contra o
capitalismo e a monarquia, à luta em favor (...) da revolução proletária”.
Dirige-se aos futuros líderes do partido,
“que terão
a missão histórica de dissipar a monstruosa nuvem de crimes que se torna cada
vez mais imensa nestes tempos assustadores, incendiando-se como uma chama e
sufocando o partido. (...) Agora, nestes dias que serão provavelmente os
últimos de minha vida, tenho confiança de que mais cedo ou mais tarde o filtro
da história inevitavelmente retirará a vileza que pesa sobre minha cabeça. (...)
Peço que uma geração jovem e honesta de líderes do partido leia minha carta
ante um pleno do partido, a fim de me absolver. (...) Saibam, camaradas,
que nesse estandarte que vocês conduzirão na marcha vitoriosa para o comunismo,
há também uma gota do meu sangue”.165
Quando o Comitê Central volta a reunir-se, Bukharin lê uma
declaração irada e emocionada onde defendia a si mesmo e a Rykov. Segundo um
relato que circulou em Moscou, basicamente confirmado por outras fontes,
reconhece estar em marcha “uma conspiração monstruosa” — liderada por Stalin e
Yejov, que pretendiam estabelecer uma ditadura pessoal baseada no poder da
polícia “sobre o partido e o país. (...) Por isto precisamos ser eliminados”.
Depois, voltando-se para Stalin, faz a seguinte acusação:
“Recorrendo
ao terrorismo político e a atos de tortura em escala até agora inaudita, você
forçou velhos membros do Partido a apresentarem ‘depoimentos’. (...) Você tem à
disposição uma multidão de informantes pagos. (...) Pode usar o sangue de
Bukharin e Rykov para levar avante o coup d’état que vem preparando há
muito tempo...”.
Ressaltando mais uma vez que não estava em jogo seu próprio
destino, mas o destino do país, Bukharin implora ao Comitê Central “que retorne
às tradições de Lênin e chame à ordem os conspiradores policiais que se
escondem sob a autoridade do Partido. Hoje, quem governa o país é a NKVD, e não
o Partido. Quem está preparando um coup d’état é a NKVD, não os
partidários de Bukharin”.166
Quando Bukharin pediu que fossem investigadas as práticas da
polícia, Stalin interrompeu-o dizendo: “Muito bem, vou mandá-lo até lá e você
mesmo poderá ver”.167
Depois de a opção ter ficado bem clara, um membro suplente do
Politburo, Postyshev, falou em nome dos que se opunham ao expurgo:
“Pessoalmente, não creio que (...) um membro honesto do partido, que percorreu
o longo caminho da luta incansável contra os inimigos, pelo partido e pelo
socialismo, esteja agora em campo inimigo. Não acredito nisto...”. Diz-se que
neste momento uma intervenção ameaçadora de Stalin abalou a determinação de
Postyshev. Ele e outros oradores que pensavam da mesma forma começaram a recuar
e a calar suas dúvidas, embora evidentemente não todas. Vendo que levava
vantagem, Stalin recorre a uma tática bem conhecida. Fingindo neutralidade,
deixa os ataques a Bukharin e Rykov a cargo de seus prepostos do terror, e
designa uma comissão — onde predominavam estes mesmos prepostos — para decidir
os destinos de ambos.168
No dia 27 de fevereiro, a comissão apresenta seu veredito:
“Prisão, julgamento, execução”. Recebe o endosso da maioria do Comitê Central,
de cujos membros 70% morreriam nos meses seguintes. Bukharin e Rykov foram
presos nos próprios lugares que ocupavam e transferidos para Lubianka, a maior
prisão política do país. Treze meses depois, voltariam a ser vistos, já como
réus do último e mais importante dos julgamentos do expurgo de Moscou.”
165. Reeditado in MEDVEDEV, Let
History Judge, pp. 182-4. As circunstâncias da redação do documento
encontram-se em uma carta da esposa de Bukharin, Larina, escrita em 1961 ou
1962. O Dr. Peter Reddaway me deu uma cópia da carta, pertencente ao acervo da
fundação Alexander Herzen.
166. URALOV, Alexander (Abdurakhman Avtorkhanov), The Reign of Stalin. London, 1953, pp.
45-6. O relato de Uralov tem sido posto em questão porque ele dá uma data
errada para a plenária, no outono de 1936. Mas sua versão das declarações de Bukharin,
em aspectos importantes, é comprovada por outras fontes. Ver MEDVEDEV, Let History Judge, p. 174; Writings of Leon Trotsky (1937-38), New
York, 1970, pp. 1 28-9; e Conquest, Great
Terror, p. 195. A exposição de Uralov revela também grande semelhança, em
espírito e termos, com a última carta de Bukharin, já citada. Além disso, a
atitude desafiadora de Bukharin na plenária foi oficialmente relatada na época.
Ver Khrushchev no Pravda, 17 mar.,
1937, p. 2.
167. Citado por MEDVEDEV, Let
History Judge, p. 174.
168. Conquest, GREAT TERROR, pp. 193-5; e ibid.
“É impossível considerar o stalinismo como o marxismo-leninismo
ou o comunismo de três décadas. O stalinismo são as perversões que Stalin
introduziu na teoria e na prática do movimento comunista. Trata-se de um fenômeno
absolutamente estranho ao marxismo-leninismo, trata-se de pseudocomunismo e de
pseudosocialismo...
O processo de purificação do movimento comunista, de eliminação de
todos os resquícios da imundície stalinista, ainda não terminou. É preciso
levá-lo até o fim.” (Roy A. Medvedev)