sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Bukharin: uma biografia política (1888-1938) (Parte III), de Stephen Cohen

Editora: Paz & Terra

ISBN: 978-85-2190-551-6

Tradução: Maria Inês Rolim

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 572

Sinopse: Ver Parte I



“O foco das desavenças de política internacional foram as avaliações conflitantes acerca do vigor do capitalismo ocidental e da provável iminência de situações revolucionárias. Daí nasceram controvérsias sobre a natureza do “terceiro período”, cujo advento fora oficialmente anunciado e definido de várias maneiras em 1927. Segundo os stalinistas, eram eminentes profundas crises internas e levantes revolucionários nas sociedades capitalistas avançadas, desde a Alemanha até os Estados Unidos. Por isso, impunham-se três exigências táticas. Primeiro, os partidos comunistas dos outros países tinham de se preparar para tempos tempestuosos, e para tanto traçar rumos absolutamente independentes, recusar toda colaboração de socialdemocratas e — sobretudo — criar seus próprios sindicatos rivais — em suma, cindir o movimento operário europeu. Segundo, os partidos comunistas deveriam anular neste processo a influência reformista sobre a classe operária, atacando os partidos socialdemocratas. Na opinião dos stalinistas, estes últimos estavam abandonando o pretenso reformismo em prol do “social-fascismo” e tornavam-se o inimigo principal do movimento operário. E por fim, todos os partidos comunistas deviam preparar-se para a luta revolucionária, expulsando de suas fileiras qualquer dissidente, em especial os “desviacionistas de direita” que as novas circunstâncias haviam transformado no maior perigo interno.99 (...)

Como principal inimigo, foram apontados os partidos socialistas — ou melhor, os reformistas em geral —, considerados inapelavelmente “fascistas”. O expurgo dos moderados do Comintern assumiu proporções mais amplas, e os partidos comunistas foram instruídos a romper todos os laços com os movimentos socialdemocratas, denunciar-lhes o caráter de “social-fascismo”, e criar sindicatos que se opusessem a eles — em suma, cindir o movimento operário europeu.257 Deste modo começou a malfadada trajetória do Comintern para o extremismo. Ela terminaria em desastre cinco anos depois, tendo contribuído para a destruição do antes poderoso movimento operário alemão, tanto do Partido Comunista quanto do Partido Socialista, e assim propiciando a ascensão de Hitler ao poder. (...)

Tudo isto representava um violento repúdio à política de Bukharin para o Comintern. Como vimos, a concepção bukharinista dos sistemas capitalistas avançados — atualizada e reafirmada em 1926-27 e novamente no VI congresso do Comintern — vinha de sua teoria do “capitalismo de Estado”, anterior à guerra. Segundo Bukharin, no “terceiro período” do capitalismo não haveria colapsos internos, e sim uma estabilização maior, em nível tecnológico e organizacional mais elevado. Seriam inevitáveis levantes revolucionários; mas no Ocidente tais levantes nasceriam de “contradições externas” trazidas pela guerra imperialista, e não de crises internas isoladas. Logo, para Bukharin e seus seguidores, a assertiva de que o capitalismo ocidental estaria à beira do colapso revolucionário era “radicalmente errada, taticamente nociva e cruelmente equivocada do ponto de vista teórico”; aceitar tal assertiva seria “perder contato com as relações reais”100. O constante desenvolvimento dos sistemas de capitalismo de Estado pedia a união da classe operária, e não aventuras sectárias quixotescas, que só poderiam levar ao “isolamento” dos partidos comunistas e à “tragédia” da classe operária.101

99. O problema é examinado em Letter of an Old Bolshevik: The Key to the Moscow Trials (New York, 1937), pp. 48-50, da qual Bukharin foi autor ou então a principal fonte.

257 Quanto aos trabalhos do pleno, ver Inprecor, IX (1929), nº 35, 40-1, 44-9, 51, 53, 55, 57, 59. A nova linha foi enunciada por Molotov, Kuusinen e Manuilski. Stalin não falou durante o pleno, mas já mostrara os novos rumos em dois discursos proferidos em maio. STALIN, I. O pravykh fraktsionerakh v amerikanskoi Kompartii (Moscou, 1930).

100. Ibid., p. 55. No Décimo-Sétimo Congresso do Partido, chama Stalin de “glorioso marechal das forças proletárias”, denominação pouco comum no contexto bolchevique, como demonstrou o próprio Bukharin dois meses depois, ao elogiar o presidente soviético, Kalinin, por “não ser o marechal Hindenburg”. XVII s’’ezd, p. 129; Kalinich’. Izvestiia, 30 Mar. 1934, p. 2. Em ocasiões importantes, não fez qualquer menção a Stalin, omissão também pouco comum. Ver, por exemplo, seu artigo de 1º de maio, Pochemu my pobedim? Izvestiia, 1º maio 1934, p. 3. Em outras ocasiões, referiu-se a Lenin em termos que na época só eram empregados em relação a Stalin. Ver o artigo “Our Leader, Our Teacher, our Father, Izvestiia, 21 jan. 1936, p. 2. Só mais tarde, quando já corria sério risco, aderiu com menos restrições ao culto a Stalin. Ver o artigo Piramida velikikh del, Izvestiia, 15 de maio, 1936, p. 3.

101. Vtoroi vsesoiuznyi s’’ezd kolkhoznikov-udarnikov 11-17 fevralia 1935 goda - stenograficheskii otchet (Moscou, 1935), pp. 145-53; Bukharin, 'Nujna li nam marksistskaia istoricheskaia nauka?, Izvestiia, 27 jan., 1936, pp. 3-4.

 

 

“Bukharin também cita uma carta inédita escrita por Lênin a ele e a Zinoviev no início dos anos 20: “Se descartarmos todas as pessoas inteligentes, ainda que não muito obedientes, e mantivermos apenas os tolos que sempre obedecem, com absoluta certeza destruiremos o partido.110

110. Daniels, Conscience of the Revolution: Communist Opposition in Soviet Russia (Cambridge, 1960), pp. 336-7. Quanto às observações de Bukharin e à respectiva resolução, ver VI kongress Kominterna, I, pp. 58-60, 610-14, e II, p. 80.

 

 

“Falando a um congresso de ateus, em junho de 1930, Bukharin protestou sutilmente contra o clima de crescente intolerância e contra a exigência do stalinista de se obedecer ao partido sem formular qualquer crítica. O Marxismo, como argumentou Bukharin, era pensamento crítico, não dogma ou fórmula sem vida; e a divisa preferida de Marx, como reafirmou, era “Duvidar de tudo”263.”

263. Pravda, 12 jun., 1929, p. 3.

 

 

“Para entender os últimos oito anos de vida de Bukharin, é preciso entender a natureza da “revolução pelo alto”, promovida por Stalin, e todo o seu impacto. Considerada em termos globais, a revolução durou dez anos — de 1929, início da coletivização forçada, a 1939, quando o sangrento expurgo stalinista começou a atenuar-se. Segundo todos os critérios de mudança social, a revolução foi um processo importantíssimo, que alterou radicalmente não apenas as bases econômicas e sociais da sociedade soviética, mas também a natureza de seu sistema político. Nos anos 30, ao longo desse processo, delineia-se a União Soviética atual, com seu grande poderio militar-industrial, e se estabelece o stalinismo, novo fenômeno político.

Entre 1929 e 1936, período de implantação do primeiro e do segundo plano quinquenais, a “grande mudança” stalinista foi basicamente uma revolução econômica, misto de coação brutal, heroísmo notável, catastrófica loucura e fatos memoráveis. Poucas metas do primeiro plano foram cumpridas no prazo previsto. Mas suas conquistas efetivas, consolidadas e expandidas a uma taxa anual de 13-14% durante o segundo plano, mais modesto e pragmático, lançaram os fundamentos de uma sociedade industrial e urbana. Em 1937, a indústria pesada produzia de três a seis vezes mais que em 1928, dependendo dos índices de avaliação utilizados; a produção siderúrgica quadruplicara, a produção de carvão e cimento aumentara mais de 300%, a produção de petróleo mais de 100%; a produção elétrica crescera 700%, a produção de implementos mecânicos era 20 vezes maior. Velhas fábricas foram ampliadas e reaparelhadas, surgiram novas cidades, novas indústrias e centrais elétricas, muitas delas em áreas até então atrasadas. Duplicaram a mão-de-obra industrial e a população urbana. O número de estudantes passou de 12 milhões para mais de 31 milhões em 1939, fora ter-se erradicado o analfabetismo entre a população com menos de cinquenta anos.1

Igualmente espetaculares foram os custos deste salto para a modernidade econômica. Para uma minoria dedicada — quase toda formada por membros do partido, mas onde se incluíam também pessoas do povo — este foi um período de entusiasmo genuíno, atividade febril e sacrifício voluntário.2 Para a maioria da população, inclusive os milhões de indivíduos deportados, confinados em campos de trabalho ou pura e simplesmente eliminados, foi um período de repressão e miséria. Durante muito tempo se fez sentir na vida soviética o impacto devastador da concentração de recursos na indústria pesada, da extinção da atividade manufatureira e do comércio privados, do virtual colapso da agricultura nos anos de coletivização, dos desperdícios decorrentes da má administração, fracassos crônicos, mau uso de equipamentos danificados e não habilitação da mão-de-obra. Nas cidades, menos afetadas, declinou acentuadamente o espaço habitacional, e em 1932 o consumo per capita de carne, gordura e aves era apenas um terço do que fora em 1928. Os operários das fábricas já não tinham direito de mudar de emprego sem permissão oficial, e sofriam pesadas penalidades por faltarem ao trabalho; por outro lado, os salários reais caíram cerca de 50% no início dos anos 30.3 Filas e racionamento se tornaram rotina; bens de consumo e serviços praticamente desapareceram.

Durante os quatro anos da coletivização, que foi na verdade uma guerra civil, problemas ainda mais sérios afligiram as áreas rurais. Quase sempre as grandes revoluções sacrificam uma determinada classe social; no caso, as vítimas foram 25 milhões de famílias camponesas. A maioria delas não queria abandonar suas terras, seus implementos e seus animais a fim de ingressar nas fazendas coletivas. Mas foram forçadas a isto pelo partido-Estado, que, além da coação fiscal e administrativa, recorreu por muito tempo ao confisco, a prisões em massa e deportações, para não mencionar os ataques dos quadros partidários rurais, das brigadas rurais e até de destacamentos do exército. Os camponeses resistiam e contra-atacavam, geralmente em verdadeiros combates, vez por outra mediante sublevações de massas, mas sobretudo à maneira camponesa tradicional, ou seja, destruindo as safras e matando o gado.4

A natureza do conflito ficou clara em janeiro-fevereiro de 1930. Segundo as ameaçadoras diretrizes de Stalin e procedendo ao expurgo dos “direitistas”, as autoridades locais desencadearam um império de terror contra os kulaks recalcitrantes e contra os camponeses pobres e médios. Em março, estavam coletivizados mais de dez milhões de famílias, o que representava 50% das propriedades familiares. No entanto, o holocausto obrigou Stalin a interromper por algum tempo o processo, fato anunciado num singular artigo que atribuía aos funcionários locais a culpa pelos “excessos”, por terem “enlouquecido com o êxito”. Houve então um êxodo maciço das fazendas coletivas, e o percentual de propriedades familiares coletivizadas caiu de 57,6% em março para 23,6% em junho.5 Mas o recuo chegara tarde demais para evitar a catástrofe. Segundo cifras anunciadas em 1934, já haviam morrido mais da metade dos cavalos das áreas rurais, 70 milhões de reses, 26 milhões de porcos e dois terços do rebanho ovino e caprino, de 146 milhões de cabeças. E isto ocorreu principalmente em janeiro-fevereiro de 1930, período que a história oficial chama pejorativamente de “a marcha da cavalaria”6. Dificilmente catástrofe maior poderia se abater sobre uma sociedade agrária. Vinte e cinco anos mais tarde, os rebanhos ainda não tinham voltado aos níveis de 1928.

O Estado retomou a ofensiva ainda em 1930, de modo mais deliberado, porém em nível quase igual de coação. Em 1933, as áreas rurais ainda sofriam repressões “em escala extraordinária”.7 Em 1931, haviam sido recoletivizadas 50% das propriedades familiares, percentual que em 1934 já se elevara para 70%; o restante seria coletivizado em pouco tempo. O fim da resistência camponesa, que encerrou uma guerra desigual, foi determinado pela fome criada deliberadamente em 1932-33, uma das piores da história russa. O Estado apoderou-se da pequena safra de 1932 e não distribuiu os cereais nas áreas rurais. Relatos da época dão conta de aldeias abandonadas, casas queimadas, deportados conduzidos para o norte em carroças de transporte de gado, hordas errantes de mendigos, camponeses famintos, casos de canibalismo, cadáveres insepultos de homens, mulheres e crianças; em suma, as áreas rurais foram devastadas, inteiramente vencidas.8 Em consequência direta da coletivização, morreram pelo menos dez milhões de camponeses — talvez bem mais —, metade deles durante a fome de 1932-33.9

Quando tudo acabou, 25 milhões de empresas privadas haviam sido substituídas por 250 mil fazendas coletivas, controladas pelo Estado e obrigadas a entregar percentagens de suas reduzidíssimas safras a preços muito baixos. A coletivização forçada, instrumento básico da revolução econômica stalinista, foi também sua singular inovação. Jamais qualquer bolchevique propusera algo remotamente semelhante ao que ocorreu em 1929-33. A coletivização sempre fora encarada como uma forma de agricultura mecanizada e muito produtiva, a ser atingida num estágio superior de industrialização; jamais fora concebida como meio de requisição ou instrumento primitivo de uma exasperada industrialização.10 (Só na tradição czarista seria possível encontrar algum precedente semelhante, como chega a sugerir o próprio Stalin, que sabidamente admirava Pedro, o Grande.) Qualquer outro programa agrícola provavelmente teria sido mais produtivo e bem menos destrutivo. Contudo, não se pode negar que Stalin conseguiu um feito: o controle do Estado sobre o campesinato, parcela majoritária da população, anteriormente autônoma; este controle possibilitou uma espécie de “exploração feudal-militar”. As estatísticas de 1933 dizem tudo: a safra de grãos foi inferior à de 1928 em cinco milhões de toneladas, mas as requisições estatais duplicaram.11

Em 1934, os piores extremismos da industrialização e da coletivização já tinham passado, e seguiram-se dois anos de relativo abrandamento e de progresso econômico. Além disso, no início dos anos 30 houve mudanças políticas significativas, que recordam o aforismo de Kliuchevski acerca da história czarista: “O Estado avolumou-se; o povo empobreceu”.12 Num contexto de violência social e militarização, proliferavam as burocracias centralizadas cuja função era administrar a economia estatal em expansão, policiar a população cada vez maior dos campos de trabalho, controlar as atividades e os movimentos dos cidadãos (nessa época voltaram a ser adotados os passaportes internos) e regulamentar a vida cultural e intelectual. Começara também a metamorfose da ideologia e das políticas sociais do partido-Estado. Em fins dos anos 30, uma vez concluída essa metamorfose, foram oficialmente repudiados o experimentalismo revolucionário, a legislação progressista e o igualitarismo na educação, no direito, na vida familiar, nas rendas e no comportamento social em geral — ou seja, tudo quanto prevalecera no período 1917-29. Adotaram-se normas tradicionais, autoritárias, que prefiguravam o resultado paradoxal da revolução stalinista: o advento de uma sociedade rigidamente conservadora e muito estratificada. Surgiam ainda outros aspectos do stalinismo maduro, como o culto a Stalin e a falsificação da história do partido, o renascer oficial do nacionalismo russo, a reabilitação da história czarista e a rejeição de algumas importantes perspectivas marxistas.13

Mas, apesar de tudo, ainda não houvera qualquer mudança política comparável à revolução econômica de 1929-33. O centro do sistema continuava sendo o Partido Bolchevique, seus principais órgãos e tradições; permaneciam atuantes suas figuras de maior destaque (várias delas rebaixadas, mas ainda exercendo cargos de responsabilidade), suas elites e seus quadros basicamente pré-stalinistas. Sob este aspecto, o sangrento expurgo realizado por Stalin em 1936-39 representou o segundo estágio — aquele propriamente político — da revolução pelo alto. A sociedade soviética foi tiranizada por três anos de terror, de prisões e execuções em massa orientados por Stalin e seus assessores mais próximos, que agiam através da polícia secreta, a NKVD. De sete a oito milhões de pessoas, no mínimo, foram presas; cerca de três milhões foram executadas ou morreram em consequências de maus-tratos. Em fins de 1939, havia nove milhões de prisioneiros nos cárceres e nos remotos campos de concentração (em 1928, este número era de trinta mil, e no período de 1933-35, de cinco milhões). Uma em cada duas famílias perdeu algum de seus membros. Foram dizimadas todas as elites dominantes — políticas, econômicas, militares, intelectuais e culturais.14

O próprio partido foi o mais atingido. Em 1934, contava com 2 milhões e 800 mil membros efetivos ou aspirantes; destes, pelos menos um milhão — stalinistas e anti-stalinistas — foram presos, e depois foram executados. A liderança mais antiga foi destruída, da base à cúpula: desapareceram comitês locais, regionais e republicanos; dos 1.966 delegados presentes ao XVII Congresso do Partido, em 1934, 1.108 foram presos, e em sua maioria fuzilados; foram executados ou levados ao suicídio 110 dos 139 membros efetivos ou suplentes do Comitê Central em 1934. Depois de Trotsky ter sido assassinado no México, em 1940, Stalin passou a ser o único membro ainda vivo do grupo dirigente leniniano. O terror apresentava uma explicação oficial: visava aos “inimigos do povo” que participavam de uma vasta conspiração de sabotagem, traição e assassinatos contra o Estado soviético. Todas as acusações criminais eram falsas, embora apresentadas com abundância de detalhes nos três julgamentos exemplares de velhos bolcheviques, realizados em 1936, 1937 e 1938 — dos quais o mais importante foi o último, o de Bukharin.

O sangrento expurgo stalinista foi uma revolução — embora menos aparente — “tão absoluta quanto qualquer outra transformação anteriormente ocorrida na Rússia”. O Partido Bolchevique estava destruído e criara-se um novo partido, com membros e ethos diferentes. Só 3% dos delegados presentes ao congresso de 1934 — o último antes do expurgo — compareceram ao congresso de 1939, 70% dos membros haviam ingressado no partido após 1929, ou seja, já no período stalinista; apenas 3% dos membros estavam no partido desde antes de 1917. Em fins dos anos 30, o sistema político soviético já não representava, sob aspecto algum, uma ditadura ou governo de partido. Mantinha-se a fachada de continuidade institucional e a ficção oficial, mas Stalin se tornara autocrático e fizera do partido um dos vários instrumentos de sua ditadura pessoal. Após 1939, foram raras as reuniões dos órgãos deliberativos partidários, do Congresso, do Comitê Central e até mesmo do Politburo. Na verdade, até a morte do ditador, em 1953, o partido teve menos poder que a polícia, e mereceu menos consideração oficial que o Estado.19

1. Sovetskaia istoricbeskaia entsiklopediia. Vol. VI (Moscou, 1965), pp. 25-34; Nove, Economic History, caps. VIII-IX.

2. Eugene Lyons, Assigmnent in Utopia, New York, 1937, p. 196; JUKOV, Iuri. Liudi 30-kh godov (Moscou, 1966).

3. Moshkov, Zernovaia problema v gody sploshnoi kollektivizatsii sei’skogo khoziaistva SSSR (1929-1932 gg.). Moscow, 1966, p. 136; Nove. Economic History, pp. 209, 249-51, 260.

4. A história da coletivização encontra-se em M. Lewin, Russian Peasants and Soviet Power: A Study of Collectivization (Evanston, Illinois, 1968), pp. 482-519; Nove, Economic History, cap. VII; e Fainsod, Smolensk, cap. XII.

5. Lewin, Russian Peasants, cap. XVII; BOGDENKO, M. L. Kolkhoznoe stroitel’stvo vesnoi i letom 1930 g. Istoricheskie zapiski, nº 76 (1965), p. 31.

6. Nove, Economic History, p. 186; Nemakov, Kommunisticheskaia partiia, pp. 257-9; Ocberki istorii kommunisticheskoi partii Ukrainy, p. 401.

7. Segundo circular oficial citada por Fainsod, em Merle Fainsod, Smolensk Under Soviet Rule (Cambridge, 1958), pp. 185-6.

8. Ver, por exemplo, CHAMBERLIN, William Henry. Russia’s Iron Age (New York, 1935), pp. 82-8, 367-9; Arthur Koestler, The Yogi and the Comissar (New York, 1965), p. 128; William Reswick, I Dreamt Revolution (Chicago, 1951), cap. XXV; e Roy A. Medvedev, Let History Judge: The Origins and Consequences of Stalinism (New York, 1971), pp. 94-6.

9. As estimativas variam de pouco menos de 10 milhões até bem acima. Mais tarde, Stalin falou a Churchill numa cifra de 10 milhões. Ver The Hinge of Fate, New York, 1950, p. 498.

10. Como salientou Preobrajenski XVII s’’ezd, p. 238.

11. Nove, Economic History, pp. 180, 186. Uma comparação de todos os produtos agrícolas e as requisições estatais entre 1926-1929 e 1930-39 revela um padrão semelhante. Ver Medvedev, Let History Judge, pp. 90-2.

12. Citado in TUCKER, Robert C (revised ed.; New York, 1971), Soviet Political Mind, p. 124.

13. Sobre o assunto, ver TIMASHEFF, Nicholas S. The Great Retreat (New York, 1946); e também DANIELS, Robert V. Soviet Thought in the Nineteen-Thirties: an Interpretative Sketch. In GINSBURG, Michael e SHAW, Joseph Thomas. Indiana Slavic Studies. Bloomington, Ind., 1956, Vol. I, pp. 97-135.

14. O melhor relato do terror encontra-se em CONQUEST, Robert. The Great Terror: Stalin’s Purge of the Thirties (New York, 1968). As estatísticas são aproximadas, como não poderiam deixar de ser, mas não se dispõe de outras mais fidedignas.

15. Ibid., caps. VIII, XIII; CONQUEST, Robert. The Great Terror Revised. Survey, nº 78 (1971), pp. 92-3; ver também MEDVEDEV, Let History Judge, cap. VI.

16. Como reconheceu o governo soviético após a morte de Stalin. Quanto às acusações feitas a Bukharin, ver Lenin, Soch., XXVII, pp. 379-82; Vsesoiuznoe sovesbcbanie o merakh uluchsbeniia podgotovki nauclmo-pedagogicbeskikh kadrov po istoricheskim naukam: 18-21 dekabria 1962 g. (Moscow, 1964), p. 298.

17. Conquest, Great Terror, p. 251.

18. Ibid., p. 471; Istoriia kommunisticheskoi partii sovetskogo soiuza, Vol. I, Livro 1 (Moscou, 1970), p. 7.

19. Para uma análise, ver TUCKER, Soviet Political Mind, cap. I. Alguns historiadores soviéticos reconhecem tacitamente que o partido não governou entre 1939 e 1953. Ver ANDREEV, P. P. (org.). Materialy k lektsiiam po kursu istorii KPSS: temy 11-13. Moscou, 1964, pp. 43-4.

 

 

“Numa óbvia alusão a si mesmo, Bukharin citou as palavras de Engels acerca do dilema enfrentado por Goethe: “ter de existir num contexto que não podia deixar de desprezar, e estar acorrentado a este contexto, uma vez que era o único onde poderia atuar...”67.”

67. BUKHARIN, N. Etiudy, Moscou and Leningrad, 1932, p. 151.

 

 

“Já durante a guerra civil Bukharin chamara a atenção para um aspecto básico e muito importante da personalidade de Stalin: “Stalin só consegue viver se tiver o que os outros têm. É algo que não consegue perdoar”; “sente um ciúme insuperável de quem quer que saiba mais que ele, ou seja melhor que ele”. Os demais oponentes do secretário-geral cometeram, quase todos, o erro de considerá-lo “um mero político provinciano”, ou “a mediocridade mais notável do partido”. Bukharin parece ter concluído que um demônio interior alimentava a ambição pessoal de Stalin.136 (...)

Tal como em 1928, Bukharin percebia que estava em processo uma compulsão insaciável, tanto psicológica quanto política. Conforme a explicativa, Stalin “está desesperado porque não consegue convencer a todos, nem mesmo a si próprio, de que é superior a todo mundo. (...) Seu desespero leva-o a vingar-se nas pessoas, em todas as pessoas, sobretudo naquelas que são de alguma forma superiores a ele ou melhores que ele...”137.”

136. Citado por Trotski em My Life (New York, 1960), pp. 433, 450. Para as outras opiniões, ver ibid., p. 512, e Trotski, Stalin, New York, 1941, p. 393. Em círculos privados, Stalin já demonstrava considerar-se “a pessoa que chefia o Estado”. Citado por Medvedev em Let History Judge, p. 325.

137 DAN, L. Bukharin o Staline. Novyi jornal, 75 (1964), p. 181. Há testemunhos de que, ao ser ovacionado no congresso de escritores em 1934, Bukharin disse que estava sendo “assinada minha sentença de morte”. Joseph, Berger, Nothing but the truth (New York, 1971), p. 107.

 

 

“Sabendo que sua prisão era iminente, ao voltar para casa após a sessão do Comitê Central, Bukharin escreveu à futura geração de líderes do partido uma última carta, que pediu à esposa que decorasse.

“Percebo meu desamparo”, começava, “ante uma máquina infernal que (...) passou a deter um poder gigantesco, fabrica difamações organizadas, age com ousadia e confiança (...).” A polícia de Stalin, continuava Bukharin, era

“uma organização degenerada de burocratas sem ideias, corruptos, bem pagos, que utilizam a antiga autoridade da Tcheka para satisfazer a desconfiança mórbida de Stalin.(...) Qualquer membro do Comitê Central, qualquer membro do partido pode ser aniquilado, transformado em traidor, em terrorista, em desviacionista, em espião, por esses ‘órgãos que operam prodígios’”.

Declarando-se inocente de qualquer crime, Bukharin escreve que acusá-lo de ser inimigo da revolução e agente capitalista era o mesmo que descobrir que o último czar “dedicara sua vida inteira à luta contra o capitalismo e a monarquia, à luta em favor (...) da revolução proletária”. Dirige-se aos futuros líderes do partido,

que terão a missão histórica de dissipar a monstruosa nuvem de crimes que se torna cada vez mais imensa nestes tempos assustadores, incendiando-se como uma chama e sufocando o partido. (...) Agora, nestes dias que serão provavelmente os últimos de minha vida, tenho confiança de que mais cedo ou mais tarde o filtro da história inevitavelmente retirará a vileza que pesa sobre minha cabeça. (...) Peço que uma geração jovem e honesta de líderes do partido leia minha carta ante um pleno do partido, a fim de me absolver. (...) Saibam, camaradas, que nesse estandarte que vocês conduzirão na marcha vitoriosa para o comunismo, há também uma gota do meu sangue”.165

Quando o Comitê Central volta a reunir-se, Bukharin lê uma declaração irada e emocionada onde defendia a si mesmo e a Rykov. Segundo um relato que circulou em Moscou, basicamente confirmado por outras fontes, reconhece estar em marcha “uma conspiração monstruosa” — liderada por Stalin e Yejov, que pretendiam estabelecer uma ditadura pessoal baseada no poder da polícia “sobre o partido e o país. (...) Por isto precisamos ser eliminados”. Depois, voltando-se para Stalin, faz a seguinte acusação:

Recorrendo ao terrorismo político e a atos de tortura em escala até agora inaudita, você forçou velhos membros do Partido a apresentarem ‘depoimentos’. (...) Você tem à disposição uma multidão de informantes pagos. (...) Pode usar o sangue de Bukharin e Rykov para levar avante o coup d’état que vem preparando há muito tempo...”.

Ressaltando mais uma vez que não estava em jogo seu próprio destino, mas o destino do país, Bukharin implora ao Comitê Central “que retorne às tradições de Lênin e chame à ordem os conspiradores policiais que se escondem sob a autoridade do Partido. Hoje, quem governa o país é a NKVD, e não o Partido. Quem está preparando um coup d’état é a NKVD, não os partidários de Bukharin”.166

 

Quando Bukharin pediu que fossem investigadas as práticas da polícia, Stalin interrompeu-o dizendo: “Muito bem, vou mandá-lo até lá e você mesmo poderá ver”.167

Depois de a opção ter ficado bem clara, um membro suplente do Politburo, Postyshev, falou em nome dos que se opunham ao expurgo: “Pessoalmente, não creio que (...) um membro honesto do partido, que percorreu o longo caminho da luta incansável contra os inimigos, pelo partido e pelo socialismo, esteja agora em campo inimigo. Não acredito nisto...”. Diz-se que neste momento uma intervenção ameaçadora de Stalin abalou a determinação de Postyshev. Ele e outros oradores que pensavam da mesma forma começaram a recuar e a calar suas dúvidas, embora evidentemente não todas. Vendo que levava vantagem, Stalin recorre a uma tática bem conhecida. Fingindo neutralidade, deixa os ataques a Bukharin e Rykov a cargo de seus prepostos do terror, e designa uma comissão — onde predominavam estes mesmos prepostos — para decidir os destinos de ambos.168

No dia 27 de fevereiro, a comissão apresenta seu veredito: “Prisão, julgamento, execução”. Recebe o endosso da maioria do Comitê Central, de cujos membros 70% morreriam nos meses seguintes. Bukharin e Rykov foram presos nos próprios lugares que ocupavam e transferidos para Lubianka, a maior prisão política do país. Treze meses depois, voltariam a ser vistos, já como réus do último e mais importante dos julgamentos do expurgo de Moscou.”

165. Reeditado in MEDVEDEV, Let History Judge, pp. 182-4. As circunstâncias da redação do documento encontram-se em uma carta da esposa de Bukharin, Larina, escrita em 1961 ou 1962. O Dr. Peter Reddaway me deu uma cópia da carta, pertencente ao acervo da fundação Alexander Herzen.

166. URALOV, Alexander (Abdurakhman Avtorkhanov), The Reign of Stalin. London, 1953, pp. 45-6. O relato de Uralov tem sido posto em questão porque ele dá uma data errada para a plenária, no outono de 1936. Mas sua versão das declarações de Bukharin, em aspectos importantes, é comprovada por outras fontes. Ver MEDVEDEV, Let History Judge, p. 174; Writings of Leon Trotsky (1937-38), New York, 1970, pp. 1 28-9; e Conquest, Great Terror, p. 195. A exposição de Uralov revela também grande semelhança, em espírito e termos, com a última carta de Bukharin, já citada. Além disso, a atitude desafiadora de Bukharin na plenária foi oficialmente relatada na época. Ver Khrushchev no Pravda, 17 mar., 1937, p. 2.

167. Citado por MEDVEDEV, Let History Judge, p. 174.

168. Conquest, GREAT TERROR, pp. 193-5; e ibid.

 

 

É impossível considerar o stalinismo como o marxismo-leninismo ou o comunismo de três décadas. O stalinismo são as perversões que Stalin introduziu na teoria e na prática do movimento comunista. Trata-se de um fenômeno absolutamente estranho ao marxismo-leninismo, trata-se de pseudocomunismo e de pseudosocialismo...

O processo de purificação do movimento comunista, de eliminação de todos os resquícios da imundície stalinista, ainda não terminou. É preciso levá-lo até o fim.” (Roy A. Medvedev)

domingo, 15 de dezembro de 2024

A peste, de Albert Camus

Editora: Record

ISBN: 98-85-01-1124-1

Opinião: ★★★★☆

Tradução: Valerie Rumjanek

Páginas: 288

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Sinopse: Romance que destaca a mudança na vida da cidade de Orã, na Argélia, depois que ela é atingida por uma terrível peste, transmitida por ratos, que dizima a população. É inegável a dimensão política deste livro, um dos mais lidos do pós-guerra, uma vez que a cidade assolada pela epidemia lembra a ocupação nazista na França durante a Segunda Guerra Mundial. A peste é uma obra de resistência em todos os sentidos da palavra.

Narrado do ponto de vista de um médico envolvido nos esforços para conter a doença, o texto de Albert Camus ressalta a solidariedade, a solidão, a morte e outros temas fundamentais para a compreensão dos dilemas do homem moderno.



Nada mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem da manhã à noite e optarem, em seguida, por desperdiçar no jogo, nos cafés e em tagarelices o tempo que lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista algo mais. Isso, em geral, não muda a vida delas. Simplesmente houve a suspeita, o que já é alguma coisa. Orã, ao contrário, é uma cidade aparentemente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar de ato de amor, ou se entregam ao hábito de uma longa vida a dois. Tampouco isso é original. Em Orã, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.”

 

 

“Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido, assim como os nossos concidadãos; é necessário compreender assim as duas hesitações. Por isso é preciso compreender, também, que ele estivesse dividido entre a inquietação e a confiança. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria estúpido.” Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos.”

 

 

O médico continuava a olhar pela janela. De um lado da vidraça, o céu fresco da primavera; do outro, a palavra que ressoava ainda na sala: peste. A palavra não continha apenas o que a ciência queria efetivamente lhe atribuir, e sim uma longa série de imagens extraordinárias que não combinavam com essa cidade amarela e cinzenta, moderadamente animada a essa hora, ruidosa, ou melhor, zumbindo feliz, em suma, se é possível ser ao mesmo tempo feliz e taciturno. E uma tranquilidade tão pacífica e tão indiferente negava quase sem esforço as velhas imagens do flagelo: Atenas empestada e abandonada pelos pássaros; as cidades chinesas cheias de moribundos silenciosos; os condenados de Marselha empilhando em covas os corpos que se liquefaziam; a construção, na Provença, de uma muralha para deter o vento furioso da peste; Jafa e os seus mendigos horrendos; os catres úmidos e podres colados à terra batida do hospital de Constantinopla; os doentes suspensos por ganchos; o carnaval dos médicos mascarados durante a Peste Negra; os acasalamentos dos vivos nos cemitérios de Milão; as carretas de mortos na aterrada Londres; as noites e os dias em toda parte e sempre cheios dos gritos intermináveis dos homens. Não, tudo isso não era ainda bastante forte para matar a paz desse dia. Do outro lado da vidraça, a campainha de um bonde invisível tilintava de repente e refutava num segundo a crueldade e a dor. Só o mar, ao fundo do tabuleiro baço das casas, comprovava o que há de inquietação e de eterna falta de tranquilidade neste mundo. E o Dr. Rieux, que olhava para o golfo, pensava nas fogueiras citadas por Lucrécio e que os atenienses atacados pela doença acendiam à beira-mar. Levavam os mortos para lá durante a noite, mas o lugar era pequeno e os vivos batiam-se a golpes de archote para colocar os que lhes tinham sido queridos, sustentando lutas sangrentas para não abandonar os cadáveres. Podiam-se imaginar as fogueiras rubras diante da água tranquila e escura, os combates de archotes na noite crepitante de fagulhas e densos vapores envenenados subindo para o céu atento. Podia-se recear...”

 

 

Cottard balbuciara que ser artista devia resolver muitas coisas.”

 

 

Na maioria dos casos, era evidente que a separação não devia ter fim senão com a epidemia. E, para todos nós, o sentimento que fazia a nossa vida e que, no entanto, julgávamos conhecer bem (os naturais de Orã, como já foi dito, têm paixões simples) assumia um novo aspecto. Maridos e amantes que tinham a maior confiança nas companheiras revelavam-se ciumentos. Homens que se julgavam volúveis no amor redescobriam-se constantes. Filhos que tinham vivido junto da mãe mal olhando para ela depositavam toda a preocupação e angústia numa ruga de seu rosto que lhes povoava a lembrança. Essa separação brutal, sem meio-termo, sem futuro previsível, deixava-nos perturbados, incapazes de reagir contra a lembrança dessa presença, ainda tão próxima e já tão distante, que ocupava agora os nossos dias. Na verdade, sofríamos duas vezes: o nosso sofrimento, em primeiro lugar, e em seguida aquele que atribuíamos aos ausentes — filho, esposa ou amante.

Em outras circunstâncias, aliás, nossos concidadãos teriam encontrado uma solução numa vida mais exterior ou mais ativa. Mas, ao mesmo tempo, a peste deixava-os ociosos, reduzidos a vagar sem destino pela cidade triste e entregues, dia após dia, aos jogos enganosos da recordação, pois nos seus passeios sem rumo eram levados a passar sempre pelos mesmos caminhos, e a maior parte das vezes, numa cidade tão pequena, os caminhos eram precisamente os mesmos que, em outra época, haviam percorrido com o ausente.

Assim, a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio. E o narrador está convencido de que pode escrever aqui, em nome de todos, o que ele próprio sentiu então, já que o sentiu ao mesmo tempo que muitos dos nossos concidadãos. Sim, era realmente o sentimento do exílio esse vazio que trazíamos constantemente em nós, essa emoção precisa, o desejo irracional de voltar atrás ou, pelo contrário, de acelerar a marcha do tempo, essas flechas ardentes da memória. Se algumas vezes dávamos asas à imaginação e nos comprazíamos em esperar pelo toque de campainha que anuncia o regresso, ou pelos passos familiares na escada; se, nesses momentos, consentíamos em esquecer que os trens estavam imobilizados; se nos organizávamos para ficar em casa à hora em que normalmente um viajante podia ser trazido pelo expresso da tarde até o nosso bairro, esses jogos, obviamente, podiam durar. Chegava sempre um momento em que nos dávamos conta claramente de que os trens não chegavam. Sabíamos, então, que a nossa separação estava destinada a durar e que devíamos tentar entender-nos com o tempo. A partir de então, reintegrávamo-nos, afinal, à nossa condição de prisioneiros, estávamos reduzidos ao nosso passado e, ainda que alguém fosse tentado a viver no futuro, logo renunciava, ao experimentar as feridas que a imaginação finalmente inflige aos que nela confiam.”

 

 

Nesse momento, o desmoronar da coragem, da vontade e da paciência era tão brusco que lhes parecia que não poderiam jamais sair desse precipício. Então, restringiam-se a não pensar mais na libertação, a não se voltar para o futuro e a manter sempre, por assim dizer, os olhos baixos. Mas, naturalmente, essa prudência, essa maneira de enganar a dor, de fechar a guarda para recusar o combate, eram mal recompensadas. Ao mesmo tempo que evitavam esse desmoronamento que não queriam por preço algum, privavam-se, na verdade, dos momentos bastante frequentes em que podiam esquecer a peste nas imagens de seu futuro reencontro. E assim, encalhados a meia distância entre esses abismos e esses cumes, mais flutuavam que viviam, abandonados a dias sem rumo e recordações estéreis, sombras errantes, incapazes de se fortalecerem a não ser aceitando enraizar-se na terra de sua própria dor.

Experimentavam assim o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e de todos os exilados, ou seja, viver com uma memória que não serve para nada. Esse próprio passado, sobre o qual refletiam sem cessar, tinha apenas o gosto do arrependimento. Na verdade, gostariam de poder acrescentar-lhe tudo quanto lamentavam não ter feito, quando ainda podiam fazê-lo, junto a esse ou àquela que esperavam — assim como a todas as circunstâncias, mesmo relativamente felizes, da sua vida de prisioneiros misturavam o ausente, e o resultado não podia satisfazê-los. Impacientes com o presente, inimigos do passado e privados do futuro, parecíamo-nos assim efetivamente com aqueles que a justiça ou o ódio humano fazem viver atrás das grades. Para terminar, o único meio de escapar a essas férias insuportáveis era, através da imaginação, recolocar em movimento os trens e encher as horas com os repetidos sons de uma campainha que, no entanto, se obstinava no silêncio.”

 

 

“Enquanto somos amados, somos compreendidos sem palavras. Mas uma pessoa não ama sempre.”

 

 

“Segundo ele próprio dizia, a obstinação acaba por triunfar sobre tudo.”

 

 

“Ah, se fosse um terremoto! Uma boa sacudidela, e não se fala mais nisso... Contam-se os mortos, os vivos, e pronto. Mas esta porcaria de doença! Até os que não a apanham parecem trazê-la no coração.”

 

 

“É no momento da desgraça que a gente se habitua à verdade, quer dizer, ao silêncio.”

 

 

“O narrador fica mais tentado a acreditar que, ao dar demasiada importância às belas ações, se presta finalmente uma homenagem indireta e poderosa ao mal. Isto porque deixaria então supor que essas belas ações só valem tanto por serem raras e que a maldade e a indiferença são forças motrizes bem mais frequentes nas ações dos homens. Essa é uma ideia que o narrador não compartilha. O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Os homens são mais bons que maus, e na verdade a questão não é essa. Mas ignoram mais ou menos, e é a isso que se chama virtude ou vício, sendo o vício mais desesperado o da ignorância, que julga saber tudo e se autoriza, então, a matar. A alma do assassino é cega, e não há verdadeira bondade nem belo amor sem toda a clarividência possível.”

 

 

“— Aos 30 anos, começa-se a envelhecer e é preciso aproveitar tudo.”

 

 

“— Sabe, doutor, pensei muito na sua organização. Se não estou nela, é porque tenho as minhas razões. Quanto ao resto, creio que saberia ainda sacrificar a minha vida: fiz a guerra na Espanha.

— De que lado? — perguntou Tarrou.

— Do lado dos vencidos. Mas, desde então, pensei um pouco.

— Em quê? — insistiu Tarrou.

— Na coragem. Agora sei que o homem é capaz de grandes ações. Mas, se não for capaz de um grande sentimento, não me interessa.

— Tem-se a impressão de que o homem é capaz de tudo — disse Tarrou.

— Não. É incapaz de sofrer ou de ser feliz por muito tempo. Portanto, não é capaz de nada que preste.”

 

 

“De qualquer forma era esse tipo de evidência ou de apreensão que mantinha, nos nossos concidadãos, o sentimento do exílio e da separação. A este respeito, o narrador sabe perfeitamente quanto é lamentável não poder relatar algo de verdadeiramente espetacular, como, por exemplo, algum herói altruísta ou alguma ação brilhante, semelhantes aos que se encontram nas velhas histórias. É que nada é menos espetacular que um flagelo e, pela sua própria duração, as grandes desgraças são monótonas. Na lembrança dos sobreviventes, os dias terríveis da peste não surgem como chamas grandes e cruéis, e sim como um interminável tropel que tudo esmaga à sua passagem.”

 

 

“Teriam os nossos concidadãos, pelo menos os que mais haviam sofrido com essa separação, se habituado à situação? Não seria inteiramente justo afirmar tal coisa. Seria mais exato dizer que, tanto moral quanto fisicamente, sofriam de descarnação. No começo da peste, lembravam-se nitidamente do ente que haviam perdido e sentiam saudade. Mas, se se lembravam nitidamente do rosto amado, de seu riso, de determinado dia que agora reconheciam ter sido feliz, tinham dificuldade de imaginar o que o outro podia estar fazendo no próprio momento em que o evocavam e em lugares de ora em diante tão longínquos. Em suma, nesse momento, tinham memória, mas uma imaginação insuficiente. Na segunda fase da peste, perderam também a memória. Não que tivessem esquecido esse rosto, mas, o que vem a dar no mesmo, ele perdera a carne, já não o sentiam no interior de si próprios. E, enquanto tendiam a queixar-se, nas primeiras semanas, de só lhes restarem sombras dos objetos de seu amor, compreenderam, com a continuação, que essas sombras podiam tornar-se ainda mais descarnadas ao perderem até as cores ínfimas que a recordação conservava. Ao fim desse longo tempo de separação, já não imaginavam essa intimidade que fora sua, nem como havia podido viver perto deles um ser em que podiam a todo momento pousar a mão.

Deste ponto de vista, tinham entrado na própria ordem da peste, tanto mais eficaz quanto mais medíocre era. Ninguém mais, entre nós, tinha grandes sentimentos. Mas todos experimentavam sentimentos monótonos. (...)

Os nossos concidadãos tinham se adaptado, como se costuma dizer, porque não havia outro modo de proceder. Tinham ainda, naturalmente, a atitude da desgraça e do sofrimento, mas já não os sentiam. De resto, o Dr. Rieux, por exemplo, achava que essa era justamente a desgraça e que o hábito do desespero é pior que o próprio desespero. Antes, os separados não eram realmente infelizes, pois havia no seu sofrimento uma luz que acabava de se extinguir. Agora, eram vistos pelas esquinas, nos cafés ou em casa dos amigos, plácidos e distraídos, e com um ar tão entediado que, graças a eles, toda a cidade parecia uma sala de espera. Os que tinham uma profissão executavam-na ao ritmo da própria peste, meticulosamente e sem brilho. Todos eram modestos. Pela primeira vez, os separados não tinham aversão a falar dos ausentes, a usar a linguagem de todos, a examinar a sua separação sob o mesmo enfoque que as estatísticas da epidemia. Enquanto, até então, tinham subtraído ferozmente o seu sofrimento à desgraça coletiva, aceitavam agora a confusão. Sem memória e sem esperança, instalavam-se no presente. Na verdade, tudo se tornava presente para eles. A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes.”

 

 

“Era por tais fraquezas que Rieux podia julgar o seu cansaço. A sensibilidade lhe fugia. Amarrada a maior parte do tempo, endurecida e seca, irrompia de vez em quando e abandonava-o a emoções que já não conseguia dominar. Sua única defesa era refugiar-se nesse endurecimento e apertar o nó que nele se formara. Sabia efetivamente que essa era a melhor maneira de continuar. Quanto ao resto, não tinha muitas ilusões e o seu cansaço tirava-lhe as que ainda conservava. Porque sabia que, durante um período cujo término não conseguia vislumbrar, o seu papel já não era o de curar. O seu papel era diagnosticar. Descobrir, ver, descrever, registrar, depois condenar, essa era a sua tarefa. Esposas agarravam-lhe as mãos e gritavam: “Doutor, dê-lhe a vida!” Mas ele não estava ali para dar vida, estava ali para ordenar o isolamento. De que servia o ódio que lia, então, nas fisionomias? “O senhor não tem coração”, tinham-lhe dito um dia. Sim, ele tinha um coração. Servia-lhe para suportar as vinte horas por dia em que via morrer homens que haviam sido feitos para viver. Servia-lhe para recomeçar todos os dias. De agora em diante, o coração mal dava para isso. Como esse coração seria suficiente para dar vida?

Não, não eram socorros que ele distribuía durante todo o dia, e sim informações. Aquilo, é claro, não se podia chamar uma profissão de homem. Mas afinal a quem, então, aquela multidão aterrorizada e dizimada tinha deixado tempo para exercer uma profissão de homem? Ainda bem que havia a fadiga. Se Rieux estivesse mais vigoroso, aquele cheiro de morte espalhado por toda parte poderia tê-lo tornado sentimental. Mas quando só se dorme quatro horas, não se é sentimental. Veem-se as coisas como elas são, isto é, veem-se segundo a justiça, a horrenda e irrisória justiça. E os outros, os condenados, também eles o sentiam bem. Antes da peste, recebiam-no como um salvador. Ele ia consertar tudo com três pílulas e uma seringa, e apertavam-lhe o braço ao conduzi-lo pelos corredores. Era lisonjeiro, mas perigoso. Agora, pelo contrário, apresentava-se acompanhado de soldados, era necessário dar coronhadas para que a família se decidisse a abrir a porta. Teriam desejado arrastá-lo e arrastar toda a humanidade com eles para a morte. (...)

Eram pelo menos essas as ideias que o Dr. Rieux, durante essas intermináveis semanas, ventilava com as que se relacionavam à sua situação de separado. E eram também aquelas cujo reflexo ele lia no semblante dos amigos. Mas o efeito mais perigoso do esgotamento que vencia, pouco a pouco, todos os que continuavam a luta contra o flagelo não estava nessa indiferença aos acontecimentos exteriores e às emoções dos outros, e sim na negligência a que haviam chegado. Porque tinham então tendência a evitar todos os gestos que não fossem absolutamente indispensáveis e que lhes pareciam sempre acima das suas forças. Foi assim que esses homens chegaram a desprezar cada vez mais as regras de higiene que tinham codificado, a esquecer algumas das desinfecções que deviam praticar em si próprios, a correr por vezes, sem se prevenirem contra o contágio, para junto de doentes atacados de peste pulmonar, porque, alertados no último momento de que deviam dirigir-se a casas infectadas, tinha-lhes parecido de antemão exaustivo voltarem a qualquer local para fazerem as instilações necessárias. Nisso residia o verdadeiro perigo, pois era a própria luta contra a peste que os tornava então mais vulneráveis à peste. Apostavam, em suma, no acaso e o acaso não pertence a ninguém.”

 

 

 

“— Na minha idade, é preciso ser sincero. Mentir é cansativo demais.”

 

 

“— Nada no mundo vale que nos afastemos daquilo que amamos. E, contudo, também eu me afasto, sem que possa saber por quê.

Deixou-se cair de novo sobre a almofada.

— É um fato, é só. Registremo-lo e aceitemos as suas consequências.”

 

 

“Um autor profano, no século passado, pretendera revelar o segredo da Igreja ao afirmar que não havia Purgatório. Subentendia, assim, que não havia meias medidas, que só havia o Paraíso e o Inferno, e que só se podia ser salvo ou condenado, segundo o que se tinha escolhido. Era, na opinião de Paneloux, uma heresia que só podia nascer no seio de uma alma libertina. Pois existia um Purgatório. Mas havia épocas, sem dúvida, em que não se podia contar muito com esse Purgatório, havia épocas em que não se podia falar de pecado venial. Todo pecado era mortal e toda indiferença, criminosa. Tudo ou nada.”

 

 

“Ele tinha consciência de quanto é estéril uma vida sem ilusões.”

 

 

“Mas essa exuberância banal não dizia tudo, e os que enchiam as ruas ao fim da tarde, ao lado de Rambert, disfarçavam muitas vezes, sob uma atitude plácida, felicidades mais delicadas. Muitos casais e muitas famílias pareciam apenas transeuntes pacíficos. Na realidade, a maior parte efetuava peregrinações aos lugares onde tinham sofrido. Tratava-se de mostrar aos recém-chegados os sinais evidentes ou ocultos da peste, os vestígios da sua história. Em alguns casos, contentavam-se com o papel de guias, daquele que viu muitas coisas, do contemporâneo da peste, e falavam do perigo sem evocar o medo. Esses prazeres eram inofensivos. Em outros casos, porém, tratava-se de itinerários mais frementes, em que um amante, abandonado à doce angústia da recordação, podia dizer à sua companheira: “Neste lugar, nessa época, eu desejei você, e você não estava aqui.” Esses turistas da paixão eram então facilmente reconhecíveis: formavam ilhotas de sussurros e de confidências no meio do tumulto em que caminhavam. Mais que as orquestras nas praças, eram eles que anunciavam a verdadeira libertação. Porque esses casais encantados, estreitamente enlaçados e avarentos de palavras, afirmavam, no meio do tumulto, com todo o triunfo e toda a injustiça da felicidade, que acabara a peste e o terror chegara ao fim. Negavam tranquilamente, contra toda a evidência, que tivéssemos jamais conhecido esse mundo insensato em que o assassinato de um homem era tão quotidiano quanto o das moscas, essa selvageria bem definida, esse delírio calculado, essa prisão que trazia consigo uma pavorosa liberdade em relação a tudo o que não era o presente, esse cheiro de morte que entorpecia todos aqueles a quem não matava — negavam, enfim, que tivéssemos sido esse povo atordoado de que todos os dias uma parte, empilhada na boca de um forno, se evaporava em fumaça gordurosa, enquanto a outra, carregada com as correntes da impotência e do medo, esperava a sua vez.”