segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Sem Logo: A tirania das marcas em um planeta vendido (Parte II), de Naomi Klein

Editora: Record

ISBN: 978-85-0106-262-8

Tradução: Ryta Vinagre

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 544

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Sinopse: Ver Parte I


Mas, como assinalam rapidamente os críticos das ZPE, a economia global tornou-se muito mais competitiva depois que aqueles países fizeram a transição de indústrias de baixos salários para indústrias de maior qualificação. Hoje, com setenta países competindo pelo dólar gerado nas zonas de processamento de exportação, os incentivos para atrair investidores estão aumentando e os salários e padrões são mantidos como reféns pela ameaça de retirada das empresas. O resultado é que países inteiros são transformados em favelas industriais e guetos de mão-de-obra barata, e não há perspectiva de que isso irá terminar. Como trovejou o presidente de Cuba Fidel Castro aos líderes mundiais reunidos na comemoração do quinquagésimo aniversário da Organização Mundial do Comércio em maio de 1998, “O que vai acontecer com a nossa vida? (...) O que a produção industrial deixará para nós? Apenas o que é de baixa tecnologia, intensivo em mão-de-obra e altamente contaminante? Será que vocês querem transformar uma grande parte do Terceiro Mundo em uma imensa zona de livre comércio cheia de montadoras que jamais pagam impostos?”29

29. “Castro Dampens WTO Party”, The Globe and Mail, 20 de maio de 1998.

 

 

O único modo de compreender como as corporações multinacionais ricas e supostamente fiéis à lei podem voltar aos níveis de exploração do século XIX (e ainda assim continuarem atraentes) é através dos próprios mecanismos da terceirização: em cada camada de contratação, subcontratação e trabalho em casa, os fabricantes brigam entre si para forçar os preços para baixo, e em cada nível o contratador e subcontratador arrancam seu pequeno lucro. No final dessa cadeia de preços baixos e terceirizações está o trabalhador – frequentemente três ou quatro níveis abaixo da empresa que fez a encomenda original – com um cheque de pagamento podado a cada elo da cadeia. “Quando as multinacionais espremem os subcontratados, estes espremem os trabalhadores”, explica um relatório de 1997 sobre as fábricas chinesas de calçados da Nike e da Reebok.34

34. “Working Conditions in Sports Shoe Factories in China Making Shoes for Nike and Reebok”, do Ásia Monitor Resource Group e Hong Kong Christian Industrial Committee, setembro de 1997.

 

 

A maioria dos grandes empregadores no setor de serviços gerencia sua força de trabalho como se seus funcionários não dependessem de seus cheques de pagamento para nada que seja essencial, como um aluguel ou o sustento dos filhos. Em vez disso, os empregadores do varejo e de serviços tendem a ver seus empregados como crianças: estudantes que procuram empregos de verão, gastam dinheiro ou fazem paradas rápidas em sua viagem com destino a uma carreira mais satisfatória e mais bem remunerada. Em outras palavras, estes são grandes empregos para as pessoas que não precisam realmente deles. Assim, o shopping e a superloja deram à luz uma subcategoria crescente de empregos de brincadeira – o idiota do frozen-yogurt, o preparador de sucos Orange Julius, o recepcionista da Gap, o “associado de vendas” cheio de Prozac da Wal-Mart – que são notoriamente instáveis, mal pagos e em sua maioria esmagadora trabalham em meio expediente.

 

 

“O sindicalista de comércio internacional Dan Gallim definiu o Mc emprego como “um emprego de pouca qualificação, remuneração baixa, alto nível de estresse, exaustivo e instável.”

 

 

O uso de mão-de-obra temporária nos Estados Unidos aumentou 400 por cento desde 1982, e esse crescimento tem se mantido estável.29 O lucro anual das empresas americanas de temporários aumentou cerca de 20 por cento a cada ano desde 1992, com as empresas obtendo lucros de US$58,7 bilhões em 1998.30 A gigantesca agência internacional de trabalho temporário Manpower Temporary Services compete com a Wal-Mart como a maior empregadora privada dos Estados Unidos.31 De acordo com um estudo de 1997, 83 por cento das empresas americanas de crescimento rápido estão agora terceirizando empregos para os quais antes contratavam pessoas – comparados com 64 por cento apenas três anos antes.32 No Canadá, a Association of Canadian Search, Employment Et Staffing Services estima que mais de 75 por cento das empresas utilizam os serviços do setor de US$ 2 bilhões das agências de temporários canadenses.”

29. Departamento do Trabalho dos Estados Unidos.

30. “Staffing Services Annual Update”, National Association of Temporary and Staffing Services, 1999.

31. Na verdade, a Manpower, que emprega mais de 800.000 trabalhadores, é maior empregador que a Wal-Mart, que emprega 720.000, mas uma vez que os trabalhadores da Manpower não trabalham todos os dias, em um dado dia a Wal-Mart tem mais trabalhadores na folha de pagamento do que a Manpower.

32. USA Today, 5 de agosto de 1997, BI.

 

 

““Não se prendam a ativos fixos inúteis”, disse o diretor de operações da Microsoft, Bob Herbold, explicando sua filosofia de pessoal a um grupo de acionistas.”

 

 

Isto levanta a questão mais interessante de todas, acho eu, sobre o efeito de longo prazo do despojamento das multinacionais de marca do negócio de empregos. Da Starbucks à Microsoft, da Caterpillar ao Citibank, a correlação entre lucros e crescimento do emprego está em vias de ser rompida. Como disse Buzz Hargrove, presidente da Canadian Auto Workers, “Os Trabalhadores podem trabalhar mais, seus empregadores podem ter mais sucesso, mas – e o downsizing e terceirização são apenas um exemplo – a ligação entre sucesso econômico geral e a participação garantida nesse sucesso é mais fraca do que nunca”.73 Sabemos o que isso significa a curto prazo: lucros recorde, acionistas tontos e nenhuma vaga no curso de negócios. Mas o que isso significa a um prazo um pouco mais longo? E quanto aos trabalhadores que saem da folha de pagamento, cujos chefes são vozes ao telefone em agências de emprego, que perderam sua razão para se orgulhar da boa sorte de sua empresa? Será possível que o setor corporativo, ao evitar os empregos, esteja inadvertidamente colocando lenha na fogueira de seu próprio movimento de oposição?

73. De “Corporate Success, Social Failure, Corporate Credibility”, discurso proferido no Canadian Club de Toronto, 23 de fevereiro de 1998.

 

 

Quando os empregos desapareceram, compreendemos que isso era fruto do difícil período econômico que parecia estar afetando a todos (embora talvez não atingisse a todos igualmente), de presidentes de empresa que encaravam a falência a políticos desempregados – todos, homens e mulheres, velhos e jovens, em todas as esferas da vida e do trabalho, diretamente ligados a mim e a meus amigos de classe média e nossas buscas desanimadas por empregos. A mudança da Recessão para a economia global implacável aconteceu tão de repente que senti como se estivesse doente naquele dia e tivesse perdido tudo – como acontecia com a álgebra no curso secundário, eu estaria sempre tentando sair do atraso. Tudo que sei é que em um minuto estávamos todos juntos na Recessão. No minuto seguinte, uma nova estirpe de líderes de empresas surgia como uma fênix das cinzas – ternos recém-passados, entusiasmo bombeado – anunciando a chegada de uma nova era de ouro. Mas, como vimos nos últimos dois capítulos, quando os empregos voltaram (se voltaram), apareceram modificados. Para os trabalhadores de fábricas contratadas das zonas de processamento de exportação, e para legiões de temporários, empregados de meio expediente, contratados e trabalhadores do setor de serviços nos países industrializados, o empregador moderno no tinha começado a parecer uma aventura de uma noite que tinha a audácia de esperar monogamia depois de um encontro sem importância. E muitos deles compreenderam isso por algum tempo. Fugindo assustados de anos de demissões e projeções econômicas sombrias, a maioria de nós engoliu a retórica de que devíamos ser felizes pegando qualquer toco de pagamento que estivesse espalhado por nosso caminho. Existem cada vez mais evidências, contudo, de que a transitoriedade do local de trabalho está finalmente erodindo nossa fé coletiva, não somente nas corporações individuais, mas no próprio princípio econômico da suposta distribuição de riqueza.

 

 

As multinacionais que antes jactavam-se de seu papel como “máquinas de crescimento de emprego” – e usavam isso como alavanca para extrair todo tipo de apoio governamental – agora preferem se identificar como máquinas de “desenvolvimento econômico”. As corporações estão na verdade “desenvolvendo” a economia, mas elas estão fazendo isso, como vimos, através de demissões, fusões, consolidações e terceirização – em outras palavras, por meio de enfraquecimento e cortes de postos de trabalho. E à medida que a economia cresce, a porcentagem de pessoas diretamente empregadas pelas maiores corporações do mundo está na verdade decrescendo. As corporações transnacionais, que controlam mais de 33 por cento dos ativos produtivos do mundo, são responsáveis por somente 5 por cento do emprego direto no planeta.3 E embora os ativos totais das cem maiores empresas do mundo tenham aumentado 288 por cento entre 1990 e 1997, o número de pessoas que essas corporações empregaram cresceu menos de 9 por cento durante o mesmo período de enorme crescimento.4

3. World Development Movement, “Corporate Giants: Their grip on the world’s economy”. Os 5 por cento de emprego no mundo relacionam-se com empregos diretos e indiretos (73 milhões, ou dois terços, estão diretamente empregados). Esse número é fornecido pelo Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento Social das Nações Unidas (UNRISD), relatório n° 5, redigido por Eric Kolodner. O valor percentual dos ativos produtivos mundiais vêm do Relatório de Investimento Mundial de 1994 do UNCTAD.

4. “Global 500”, Fortune, 29 de julho de 1991 e 3 de agosto de 1998. As empresas são classificadas por receita.

 

 

O número mais impressionante é o mais recente: em 1998, apesar do fantástico desempenho da economia americana e apesar da mais baixa taxa de desemprego da história, as corporações americanas eliminaram 677.000 postos de trabalho permanentes – mais cortes de postos do que em qualquer outro ano dessa década. Um em cada nove desses cortes ocorreu como resultado de fusões: muitos outros se originaram no setor de produção. Como sugere o baixo índice de desemprego nos Estados Unidos, dois terços das empresas que eliminaram postos criaram novos cargos e os trabalhadores demitidos encontraram empregos alternativos com relativa rapidez.5 Mas o que esses drásticos cortes de vagas demonstram é que um relacionamento estável e confiável entre trabalhadores e seus em pregadores corporativos tinha pouco ou nada a ver com o índice de desemprego ou a saúde relativa da economia. As pessoas estão vivendo com menos estabilidade mesmo na melhor das épocas econômicas – de fato, esses bons tempos da economia podem estar fluindo, pelo menos em parte, dessa perda de estabilidade.”

5. Challenger, Gray Et Christmas e U.S. Bureau of Labor Statistics, 1999.

 

 

A criação de empregos como parte da missão corporativa, particularmente a criação de empregos estáveis de horário integral e remuneração decente, parece ser secundária em muitas grandes corporações, independente dos lucros da empresa. Em vez de ser um componente de uma operação saudável, a mão-de-obra é cada vez mais tratada pelo setor corporativo como um fardo inevitável, como pagar imposto de renda; ou um inconveniente caro, como a proibição de despejo de lixo tóxico em lagos. Os políticos podem dizer que os empregos são sua prioridade, mas o mercado de ações reage animadamente a cada vez que demissões em massa são anunciadas, e afunda sombrio se percebe que os trabalhadores podem receber aumento. Qualquer que seja a estranha rota que tenhamos tomado para chegar até aqui, uma mensagem inequívoca emana agora de nossos mercados livres: bons empregos são ruins para os negócios, ruins para “a economia” e devem ser evitados a todo custo. Embora essa equação tenha inegavelmente produzido lucros recorde a curto prazo, pode bem se provar um erro de cálculo estratégico por parte de nossos capitães da indústria. Descartando sua identificação como criadores de emprego, as empresas se abrem a um tipo de reação que pode vir de uma população que sabe que o suave fluxo da economia é de pouco benefício demonstrável para ela.”

 

 

Quando as corporações são percebidas como veículos que trabalham para a distribuição de riqueza – efetivamente distribuindo empregos e receita em impostos –, elas pelo menos proporcionam o alicerce para as frequentes barganhas faustianas pelas quais os cidadãos oferecem lealdade às prioridades corporativas em troca da garantia de um cheque de pagamento. No passado, a geração de empregos serviu como uma espécie de armadura corporativa, protegendo as empresas da ira que seria dirigida a elas como resultado das agressões ao ambiente e aos direitos humanos.

 

 

Essa reação em ebulição é mais do que um conjunto de queixas pessoais. Mesmo que você seja um dos sortudos que conseguiram um bom emprego e nunca foram demitidos, todos têm ouvido o alerta – se não por si mesmos, então por seus filhos ou pais, ou pelos amigos. Vivemos em uma cultura de insegurança no emprego, e as mensagens de autossuficiência estão chegando a cada um de nós. Na América do Norte, ponto final dos caminhões de 18 rodas que partem do México, trabalhadores chorando no portão da fábrica, janelas cobertas com tapumes em uma cidade industrial esvaziada e pessoas dormindo em soleiras e nas calçadas têm sido algumas das imagens econômicas mais poderosas de nossa época: metáforas, marcadas a ferro em nossa consciência coletiva, de uma economia que consistentemente, e sem arrependimento, favorece os lucros em detrimento das pessoas.”

 

 

Na América do Norte, grande parte dessa atividade pode ter sua origem identificada em 1995-96, o período que Andrew Ross, diretor de Estudos Americanos da Universidade de Nova York, chamou de “O ano das fábricas exploradoras”. Naquele ano, os norte-americanos não podiam ligar seus aparelhos de TV sem ouvir histórias lamentáveis de exploração de mão-de- obra por trás das grifes mais populares e mais divulgadas do mundo da marca. Em agosto de 1995, a fachada recém-polida da Gap foi novamente arrancada para revelar uma fábrica ilegal em El Salvador, onde o gerente enfrentava protestos do sindicato por demitir 150 pessoas e prometer que “o sangue ia correr” se a sindicalização continuasse.4 Em maio de 1996, militantes trabalhistas nos EUA descobriram que a linha roupas esportivas epônima da apresentadora de um programa de TV, Kathie Lee Gifford (vendida exclusivamente na Wal-Mart), estava sendo costurada por uma horrível combinação de mão-de-obra infantil em Honduras e trabalhadores em fábricas ilegais em Nova York. Mais ou menos na mesma época, o jeans Guess, que construiu sua imagem com ardentes fotos em preto e branco da supermodelo Claudia Schiffer, estava em guerra aberta com o Departamento do Trabalho dos Estados Unidos porque suas fábricas contratadas da Califórnia não pagavam o salário mínimo. Até Mickey Mouse teve sua dose de exploração de trabalhadores depois que uma contratada da Disney no Haiti foi apanhada fazendo pijamas Pocahontas sob condições de tal empobrecimento que as trabalhadoras tinham de alimentar seus bebês com água com açúcar.”

4. Kitty Krupat, “From War Zone to Free Trade Zone”, in No Sweat, 56.

 

 

“Pode levar cem anos para construir uma boa marca, e trinta dias para derrubá-la.”

David D’Alesssandro, presidente da John Hancock Mutual Life Insurance, em 6 de janeiro de 1999.”

 

 

Assim, quando começará o boicote total aos produtos da Nike? Não em breve, aparentemente. Uma rápida olhada por qualquer cidade do mundo mostra que seu logo ainda é onipresente; alguns atletas ainda o tatuam em seus umbigos, e muitos estudantes secundaristas ainda se vestem com as cobiçadas roupas. Mas, ao mesmo tempo, há pouca dúvida de que os milhões de dólares que a Nike economizou em custo de mão-de-obra ao longo dos anos estão começando a cobrar um tributo em seu resultado financeiro. “Não pensávamos que a situação da Nike ficaria tão ruim como parece estar”, disse um analista de ações da Nikko, Tim Finucane, ao Wall Street Journal em março de 1998.20 Wall Street realmente não tinha alternativa a não ser voltar-se contra a empresa que fora sua queridinha por muitos anos. Apesar do fato de que as moedas em queda da Ásia significam que os custos de mão-de-obra da Nike na Indonésia, por exemplo, eram um quarto que eram antes da crise, a empresa ainda estava sofrendo. Os lucros da Nike caíram, os pedidos caíram, os preços das ações estavam caindo e, depois de um crescimento médio anual de 34 por cento desde 1995, os ganhos trimestrais subitamente despencaram 70 por cento. No terceiro trimestre, que terminou em fevereiro de 1999, os lucros da Nike aumentaram mais uma vez 70 por cento – mas, pelas contas da empresa, a recuperação não resultava de repercussão das vendas, mas da decisão da Nike de cortar empregos e contratos. Na verdade, em 1999 a receita da Nike e os pedidos futuros estavam caindo pelo segundo ano consecutivo.21

A Nike colocou a culpa por seus problemas financeiros em tudo, exceto na campanha de direitos humanos.”

20. Shanthi Kalathil, “Being Tied to Nike Affects Share Price of Yue Yuen”, The Wall Street Journal, 25 de março de 1998.

21. “Third quarter brings 70 percent increase in net income for sneaker giant”, Associated Press, 19 de março de 1999.

 

 

Ao longo dos anos, a Nike tentou dezenas de táticas para silenciar as queixas de seus críticos, mas a mais irônica, de longe, foi a tentativa desesperada da empresa de se ocultar por trás de seu produto. “Não somos militantes políticos. Somos uma fabricante de calçados”, disse a porta-voz da Nike, Donna Gibbs, quando começou a surgir o escândalo da exploração de mão-de-obra.23 Uma fabricante de calçados? Isso partindo de uma empresa que tomou a decisão planejada em meados dos anos 80 de não se envolver com coisas corpóreas e enfadonhas como calçados – e certamente nada tão grosseiro como a fabricação. A Nike queria ser uma empresa de esportes, disse-nos Knight, queria estar envolvida com o conceito de esporte, depois a ideia de transcendência através dos esportes; em seguida quis se relacionar com a determinação pessoal, os direitos das mulheres, a igualdade racial. Queria que suas lojas fossem templos, sua publicidade uma religião, seus clientes uma nação, seus trabalhadores uma tribo. Depois de nos falar essa baboseira de marca, voltar atrás e dizer, “Não olhe para nós, nós só fazemos calçados”, parece risivelmente cínico.”

23. Zusman, “Editor’s Notebook”.

 

 

(Outro caso sisudo envolvendo multinacionais foi a Shell na Nigéria. Depois de extrair mais de US$ 30 bilhões de dólares das terras do povo ogoni, no Delta do Níger enquanto a população vive uma eterna escassez dos elementos mais básicos da vida, os nigerianos resolveram protestar).

Sob a liderança do escritor e indicado ao prêmio Nobel Ken Saro-Wiwa, o Movimento pela Sobrevivência do Povo Ogoni (MOSOP) lutou por reformas e exigiu compensações da Shell. Em resposta, e para manter os lucros do petróleo fluindo para os cofres do governo, o general Sani Abacha mandou militares nigerianos mirar nos ogonis. Eles mataram e torturaram milhares de pessoas. Os ogonis não só culparam Abacha pelos ataques, também acusaram a Shell de tratar as forças armadas nigerianas como polícia particular, pagando-as para sufocar protestos pacíficos na terra ogoni, além de dar apoio financeiro e legitimidade ao regime de Abacha.

Diante de tantos protestos na Nigéria, a Shell se retirou das terras ogoni em 1993 – um movimento que só pressionou ainda mais os militares para remover a ameaça ogoni. Um memorando do chefe das Forças de Segurança Interna de Rivers State do Exército nigeriano foi bastante explícito: “Operações da Shell ainda impossíveis, a menos que operações militares implacáveis sejam empreendidas para facilitar o início de atividades econômicas. (...) Recomendações: Operações devastadoras durante reuniões do MOSOP e outras tornando presença militar constante justificável. Alvos de ataque atravessando comunidades e quadros de liderança, especialmente porta-vozes de vários grupos.”32

Em 10 de maio de 1994 – cinco dias depois da redação do memorando – Ken Saro-Wiwa disse, “então é isso. Eles [os militares nigerianos] vão nos prender e nos executar. Tudo para a Shell”.33 Vinte dias depois, ele foi preso e julgado por homicídio. Antes de receber sua sentença, Saro-Wiwa disse ao tribunal, “Eu e meus companheiros não somos os únicos em julgamento. A Shell está aqui no tribunal. (...) A empresa escapou desse julgamento em particular, mas seu dia certamente chegará”. Então, em 10 de novembro de 1995 – apesar da pressão da comunidade internacional, incluindo os governos canadense e australiano, e em menor grau, os governos da Alemanha e da França – o governo militar nigeriano executou Saro- Wiwa junto com outros oito líderes ogonis que protestaram contra a Shell. Tornou-se um incidente internacional e, mais uma vez, as pessoas levaram seus protestos a postos da Shell, boicotando amplamente a empresa. Em San Francisco, membros do Greenpeace encenaram uma reconstituição do assassinato de Saro-Wiwa, com o nó corredio preso em uma placa elevada da Shell.”

32. Memorando escrito pelo prefeito Paul Okuntimo, datado de 5 de maio de 1994, reproduzido em Harper’s, junho de 1996.

33. Andrew Rowell e Stephen Kretzmann, “The Ogoni Struggle”, relatório do Project Underground, Berkeley, 1996.

 

 

A conduta das multinacionais individualmente é simplesmente um subproduto de um sistema econômico mais amplo que tem continuamente removido quase todas as barreiras e condições para comercializar, investir e terceirizar. Se empresas fazem negócios com ditadores brutais, vendem suas fábricas e pagam salários tão baixos que ninguém pode viver deles, é porque nada em nossas regras de comércio internacional as proíbe de fazer isso. Mas eliminar as desigualdades no cerne da globalização de livre mercado parece uma tarefa desanimadora para muitos de nós, mortais. Por outro lado, escolher a Nike ou a Shell e possivelmente mudar o comportamento de uma multinacional pode abrir uma importante porta na complicada e desafiadora arena política.”

 

 

É tentador considerar essa mudança drástica de direção por parte de tantas multinacionais como uma vitória maciça dos militantes que têm lutado contra as Nikes e Shells todos esses anos. Talvez as corporações realmente tenham visto a luz, e todos estejamos vivendo do mesmo lado agora... A professora de Harvard Débora L. Spar está entre os que saudaram a aurora dessa nova era. Ela afirma que a ascensão da militância baseada na marca foi tão bem-sucedida em constranger as corporações, que as multinacionais de marca, por interesse financeiro, não podem mais permitir que ocorram abusos. Ela chama essa teoria de “fenômeno do refletor”. Não há necessidade de regulamentação externa porque “as empresas cortarão os fornecedores que exploram mão-de-obra ou os tornarão limpos, porque agora é de seu interesse financeiro fazê-lo”, escreve ela. “O refletor não muda a moralidade dos gerentes americanos. Ele muda seu resultado financeiro.”22

Não há dúvida de que empresas como a Nike têm aprendido que as violações aos direitos do trabalhador podem custar caro para elas. Mas o refletor que é apontado para essas empresas é vago e aleatório: é capaz de iluminar alguns cantos da linha de produção global, mas a escuridão ainda cobre o resto. Os direitos humanos, longe de serem protegidos por esse processo, são respeitados de modo seletivo: as reformas parecem ser implementadas unicamente com base no ponto para onde o facho de luz do refletor foi dirigido. Não há absolutamente nenhuma prova de que uma atividade de reforma desse tipo esteja se transformando em um padrão universal de comportamento corporativo ético que venha a ser aplicado em todo o mundo; e não há no horizonte nenhum sistema de imposição universal dos códigos de conduta.

22. Débora L. Spar, “The Sportlight on the Botton Line”, Foreign Affairs, 13 de março de 1998.

 

 

No subtexto dos códigos de conduta há uma hostilidade pela ideia de que os cidadãos podem – através de sindicatos, leis e tratados internacionais – assumir o controle de suas próprias condições de trabalho e do impacto ecológico da industrialização. Nos anos 20 e 30, quando a crise da exploração de mão-de-obra do trabalho infantil e a saúde dos trabalhadores estava em primeiro lugar na agenda política do Ocidente, esses problemas eram atacados com sindicalização em massa, negociação direta entre trabalhadores e empregadores e governos promulgando novas e mais rigorosas leis. Esse tipo de resposta pode ser arranjado novamente, só que dessa vez em escala global, através da imposição do cumprimento de tratados da Organização Internacional do Trabalho que já existem, se a obediência a esses tratados for observada com o mesmo compromisso que a Organização Mundial do Comércio agora mostra em seu esforço de impor as regras do comércio global.”

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