Editora: Civilização Brasileira
ISBN: 978-85-2001-393-9
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 144
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Sinopse: Após
passar vinte anos no mercado financeiro, Eduardo Moreira percebeu que estava
“olhando para o lado errado”; e, mais grave, “era um dos responsáveis pelo
maior problema que o mundo vive há séculos”: a desigualdade.
O livro apresenta os circuitos que conectam essa
formidável fábrica de desigualdades na qual vivemos. Com linguagem acessível,
são explicados os conceitos de redistribuição de renda, impostos sobre renda e
patrimônio, o papel do crescimento na geração de riquezas, a questão da
propriedade privada, o papel dos bancos privados e a “crueldade” do mecanismo
de endividamento do poder público, que gera dinheiros para um “grupo seleto” de
membros da comunidade, mas não gera riqueza para as nações.
O livro analisa o real significado de “riqueza”, seu
processo de criação e distribuição e suas consequências na vida das pessoas. A
riqueza sem dinheiro não é capaz de manter uma comunidade viva e forte; e o
dinheiro sem riqueza não tem valor algum, afirma o autor.
Com base em Karl Polanyi (A grande transformação),
o autor aponta que existem mecanismos que atuam para amortecer os efeitos de
concentração de riqueza. Numa sociedade democrática, na qual o sistema político
representa os interesses do conjunto da sociedade, o Estado pode atuar para
redistribuir renda pela implantação de políticas sociais e pela adoção de
sistema tributário que incida proporcionalmente mais sobre a renda, os lucros,
o patrimônio e a herança dos mais ricos (como fazem os países no norte da
Europa).
Esse livro é imprescindível no Brasil. Somos a nação mais
desigual do mundo; temos logo passado escravocrata; e ainda não enfrentamos,
sequer, as desigualdades do Século 19.”
“Tenho comparado, em minhas aulas
e palestras, a economia dos países e regiões do mundo a pequenos parques de
areia onde brincam crianças. Explico que a riqueza de um país é como a areia do
parque. Digo também que, para se construírem montes de areia, inevitavelmente
existirão buracos em algum lugar. Mostro, então, que nos países mais
desenvolvidos do mundo, onde a qualidade de vida é tida como melhor, os montes
não são tão altos e os buracos não são tão fundos, um reflexo de mecanismos que
servem para “derrubar” areia dos montes mais altos de volta para o playground e
permitir que os buracos nunca fiquem muito grandes, e todos sigam brincando.
É
assim que as coisas funcionam, por exemplo, nos países nórdicos, onde o 1% mais
rico da população não acumula mais do que 10% da renda do país e são poucos,
estatisticamente, os indivíduos ultrarricos, como aqueles que figuram nas
listas das pessoas com maior patrimônio do mundo.
Fica
claro também, pela análise das estatísticas disponíveis relativas ao sucesso
dos países em oferecer qualidade de vida a seus habitantes, que “derrubar
montes” é um dos mecanismos mais eficazes para se fazer com que os playgrounds
que existem funcionem da melhor e mais justa maneira possível.
No
entanto, a maioria dos países capitalistas alega que o melhor mecanismo é outro:
o de se jogar mais areia no parque, para que essa areia nova possa tapar os
buracos sem que os montes tenham que, necessariamente, ser destruídos. Isto
acontece, naturalmente, por um poder político concentrado nas mãos dos
detentores (ou representantes deles) dos “montes de areia” nesses países.
Estimativas,
porém, mostram que, se dependêssemos somente da areia que é jogada no parque
para tapar os buracos, o mundo precisaria crescer 175 vezes sua economia
(+17.500%), com a atual taxa de distribuição de renda, para fazer com que todo
habitante do planeta conseguisse viver com uma renda superior a 5 dólares por
dia (Oxfam Brasil, 2018). Um crescimento impensável, dada a escassez de
recursos naturais no planeta e a inexistência de mão de obra para suportar tal
crescimento.”
“Historicamente, todas as vezes que a
desigualdade de riqueza atingiu certo ponto – colocando em risco a
sobrevivência de uma parcela da população –, aconteceu algum evento que acabou
levando forçosamente a uma redistribuição da riqueza.”
“É curioso notar que nas listas que trazem os
dez países com melhor sistema de educação, saúde, segurança, menor corrupção,
melhor índice de desenvolvimento humano e vários outros indicadores sociais,
quase sempre os países nórdicos estão presentes. E quando analisamos as listas
que trazem os indivíduos mais ricos do mundo, dificilmente acharemos um
indivíduo desses países.”
“À medida que o investimento do poder público, visando à criação e
distribuição de riqueza para todos, é bem-sucedido, a propriedade privada e os
meios de produção passam a ser mais bem distribuídos entre os integrantes do
grupo. Isso acaba tirando poder decisório dos ricos e enfraquece essa máquina
concentradora de riqueza.
Desse
modo, os donos das terras e dos meios de produção criaram mecanismos
aparentemente inofensivos que funcionariam como um vírus infiltrado na máquina
pública, e que fariam com que, ao longo do tempo, duas coisas viessem a
acontecer: o poder público se transformaria em um instrumento concentrador de
renda, e a riqueza nas mãos do poder público (ou seja, aquelas de propriedade
de todo o grupo) seria lentamente passada para o poder privado sem que ninguém
percebesse. São mecanismos tão eficazes que, mesmo hoje, pouquíssimas pessoas
os percebem, por isso seguem cumprindo seu papel de concentrar riqueza nas mãos
dos mais ricos e saquear as riquezas que estão em posse do poder público.
O
principal desses mecanismos é o endividamento do Estado: uma máquina brilhante
de dilapidar o bem comum e alocar ainda mais riqueza nas mãos dos que já a
concentram.
Mas
como surgiu e como funciona essa máquina tão engenhosa e eficiente a serviço
dos ricos da comunidade? Tudo começa em nome do tal do “progresso”. Os membros
dominantes da comunidade, os donos das terras e dos meios de produção,
convencem todos no grupo de que as novas descobertas e possibilidades tecnológicas
exigem que o grupo, como um todo, abra mão de uma parte de seu estoque de
riqueza para investir na criação de novas riquezas.
Foi
assim no descobrimento dos novos continentes, na Revolução Industrial e em
vários outros momentos da história. Só que, nesses momentos – alegam os donos
dos meios –, como o risco é grande e o benefício do investimento será para
todos, a iniciativa de investir deve partir do poder público. Em outras
palavras, deve-se usar o estoque de riqueza do grupo, e não o estoque dos
indivíduos mais ricos.
O
poder público, porém, não possui as riquezas necessárias para fazer o
investimento exigido para que o tal “progresso” aconteça e beneficie “todos”. A
única solução, portanto, seria que o poder privado, ou seja, os donos das terras
e dos meios de produção, contribuíssem também, investindo parte de suas
riquezas junto com o poder público.
E é
exatamente aí que uma ideia brilhante surge: o vírus do qual falamos há pouco.
Os donos dos meios de produção, em vez de investirem parte de suas
riquezas junto com o poder público – o que implicaria o risco de perdê-las –,
oferecem emprestar suas riquezas ao poder público! Voilà! A
mágica está feita! Agora é só aguardar os efeitos que virão no decorrer do
tempo.
Há
ainda um detalhe de crueldade nesse mecanismo de endividamento do poder
público. Os recursos obtidos com os donos dos meios de produção, em vez de
serem utilizados para o tal progresso que deveria beneficiar a todos, são
utilizados para iniciativas que beneficiam majoritariamente os mais ricos.
Como, por exemplo, levar energia elétrica ou pavimentação para as regiões onde moram
os ricos ou onde estão suas fábricas, em vez da realizar melhorias na
periferia, onde moram os mais pobres. É como se em vez de gastar o seu próprio dinheiro
para fazer uma obra de que necessitam, os mais ricos tenham encontrado uma
maneira de fazer com que o Estado faça por eles e depois ainda lhes pague por
esta obra (através dos juros da dívida). Em outras palavras, mais do que
conseguir fazer a obra de que necessitam de graça, eles ganham dinheiro para
tê-la feita.
O
endividamento do poder público significa também que uma parte da riqueza gerada
pela comunidade e coletada em nome de todos deverá ser distribuída somente para
um “grupo seleto” de membros da comunidade, através do pagamento da dívida. Uma
parcela que somente cresce com o tempo em função dos juros.
Depois
de contraída a dívida com os donos das terras e dos meios de produção, só
existem duas maneiras de o poder público conseguir pagar o que deve. A primeira
é aumentando os impostos – como vimos, a porcentagem com que cada membro da
sociedade tem de contribuir sobre as riquezas que gera ou que tem em estoque. A
segunda é pagar com riquezas que foram acumuladas no passado em nome do grupo,
como fruto do trabalho do grupo e para servir ao grupo. Mas que, agora, devem
descumprir seu propósito inicial para atender a um compromisso assumido
“ingenuamente” em benefício de todos.
Agora
endividado e, por causa do pagamento dos juros, com uma quantidade de riqueza
muito menor do que antes (insuficiente até mesmo para quitar suas dívidas), o
poder público está com sua capacidade de investimento combalida. No entanto, o
grupo precisa que os investimentos sigam sendo feitos; afinal, a riqueza
existente está sendo consumida e isso pode arruinar o grupo como um todo,
principalmente arruinar a vida daqueles que não detêm terras nem meios de
produção. Todos, inclusive o governo, passam a ficar dependentes, portanto, dos
donos das terras e dos meios de produção, os únicos que podem contribuir com o
investimento necessário para gerar a riqueza que atenderá as necessidades do
grupo.
Percebam
que genial: é um processo que leva naturalmente quem criou o problema para o
grupo a surgir como o único que pode solucioná-lo. E faz com que ele passe a
ser visto como “o salvador” em potencial do grupo, passando a ser estimado e
venerado por todos os membros da comunidade.
Há
dois resultados imediatos desse processo para os donos das terras e dos meios
de produção. O primeiro é o aumento do poder de barganha que passam a ter com
os indivíduos que ocupam posições de decidir e de criar as regras de
distribuição de riqueza na comunidade, os titulares do poder público. O segundo
é a possibilidade de se colocarem como a melhor opção para representar os
interesses do grupo nos processos eleitorais, dado que são os únicos que detêm
os meios para salvar a sociedade. Essa é a combinação perfeita para, dentro de
uma estrutura democrática criada inicialmente para representar todos, eleger um
grupo que só representará os mais ricos e que poderá definir as regras de
distribuição de riquezas, privilegiando os que já a possuem, sem ser contestado
pelo grupo. Uma falsa democracia. Mas que não pode de forma alguma ser
questionada, já que cumpre todos os requisitos legais que, em tese, definem o
que é uma democracia.
Após
os representantes dos donos das terras e dos meios de produção tomarem o poder
público, e havendo a possibilidade de legislar em causa própria, quais são os
próximos passos?
O primeiro,
como já citamos, é aumentar os impostos, ou seja, aumentar a contribuição de
riqueza de todos os membros da comunidade. Mas não de forma homogênea, como
poderíamos esperar. Afinal, o problema maior da comunidade é a falta de
investimentos necessários para gerar a riqueza de que todos precisam. Inclusive
o poder público, que precisa quitar as dívidas, que não param de crescer.
Logo,
os impostos sobre a propriedade das terras e dos meios de produção (devidos
pelos donos dos maiores estoques de riqueza) são minorados com o intuito de
facilitar o processo de investimento para a geração de novas riquezas. Por
outro lado, todos os outros impostos, que afetam o resto da população, sobem
bastante.
O Brasil é um exemplo fantástico desse processo, exatamente como acabamos de descrevê-lo. O imposto sobre a terra é quase inexistente, e os impostos que incidem sobre a renda e o patrimônio estão entre os menores do mundo. O Brasil é também um dos países que mais oferece subsídios fiscais para os investimentos dos grandes grupos de indústrias e empresas. Enquanto isso, os impostos sobre bens e serviços, que atingem todos – porém, com um impacto maior sobre os mais pobres –, são os responsáveis pela maior parte da arrecadação no país.
A
máquina de impostos é ainda mais eficiente do que parece para atender ao
interesse de acumulação de riquezas dos membros dominantes da comunidade. Isso
porque a riqueza correspondente aos poucos impostos pagos pelos indivíduos
ricos entra nessa máquina concentradora de renda, operada (e paga) pelo poder
público, somente para voltar do outro lado como “recebimento de juros” das
riquezas emprestadas inicialmente por estes mesmos indivíduos.
É
como se o dinheiro emprestado no começo fosse o preço para comprar essa máquina
concentradora e saqueadora das riquezas da comunidade. Essa máquina é
propriedade dos donos dos meios de produção, mas é operada, de maneira ingênua
e ignorante, pelo poder público – esse, que deveria representar os que são
prejudicados pela máquina.
O
segundo passo é pressionar o Estado a abrir mão de suas propriedades e
transferi-las para os donos das terras e dos meios de produção para, assim,
poder quitar suas dívidas, recuperar sua capacidade de investir e voltar a
cumprir sua função de redistribuir as riquezas, recolhidas através dos
impostos, em benefício de todos e não somente dos mais ricos. O Estado paga
suas dívidas, transferindo aos mais ricos o estoque de riqueza que a sociedade
possui: terras, empresas e imóveis. A riqueza guardada em nome do grupo e
acumulada com a contribuição de todos que, por conta do vírus infiltrado no
sistema pelos donos dos meios de produção, passa agora para as mãos da
iniciativa privada. Assim, os mais ricos continuam a deter o controle
majoritário do principal instrumento gerador de desigualdade em uma comunidade:
as terras e os meios de produção (empresas e imóveis).
Estamos
todos também acostumados com este segundo processo. É o famoso processo de
“privatização dos ativos do Estado”. Significa vender, em nome do poder
público, as riquezas construídas com os recursos de todos, sob a justificativa
de devolver ao Estado o poder de investimento necessário para gerar riquezas e
atender os indivíduos que passam dificuldade na comunidade. Mas isso, na
verdade, significa pegar as riquezas que foram dadas, por todos ao Estado, com
o objetivo de serem redistribuídas para os que mais necessitavam e entregá-las
somente para os que já são ricos, em pagamento de uma dívida inicialmente
motivada por estes mesmos indivíduos.
O
processo inteiro acaba fazendo ruir as riquezas do grupo em posse do poder
público e por entregá-las aos indivíduos que já concentram as riquezas na comunidade.
O processo decisório dessa comunidade passa a ficar inteiramente sob domínio
dos que detêm os meios de produção. Assim, a capacidade de agir segundo os
interesses do grupo é diminuída drasticamente na sociedade.
Vários
países já passaram por processos parecidos a esse ao longo das últimas décadas,
de modo que, hoje, já temos dados para confirmar essa sequência de eventos, bem
como os resultados que ela gera, como a lógica descrita há pouco foi capaz de
prever.
Os
Estados Unidos são um bom exemplo. Antes da década de 1980, uma fatia relevante
do estoque de riqueza do país estava nas mãos do poder público, pouco mais de
15%. Os impostos sobre o estoque de riqueza (patrimônio) e a geração de riqueza
(renda) eram também altos, iniciando a
década de 1980, acima de 50% nas alíquotas mais altas para os indivíduos mais
ricos. Essas taxas, nas décadas anteriores, eram ainda maiores. A taxa que
incidia sobre o patrimônio chegou a quase 80%, nos EUA, ou seja, de tudo que um
americano acumulasse de riquezas e não utilizasse ao longo da vida, 80% seriam
redistribuídos após sua morte para todos na comunidade, visando a tornar o
grupo mais forte. A taxa sobre a geração de riqueza, para os mais ricos, chegou
a ultrapassar os 90% nos anos posteriores à Segunda Guerra. Era como dizer a
eles que havia um limite de riqueza que poderiam ter e que, devido aos efeitos
causados pela guerra, a comunidade havia se fragilizado e era necessário que
todos tivessem acesso à riqueza para o bem do grupo.
Foram
anos em que os EUA se tornaram a nação mais forte, influente e economicamente
poderosa do mundo. A desigualdade no país decrescia ano a ano, fazendo com que
o 1% mais rico da população, que acumulava no início do século quase 50% da
riqueza existente no país, diminuísse sua fatia de riqueza para pouco mais de
20% em 1980. Os governos eram cada vez mais representativos da sociedade, pois,
ao longo do século, as mulheres (na década de 1920) e os negros (Voting Rights,
em 1965) passaram também a votar. A dívida pública norte-americana, que havia
alcançado mais de 100% do Produto Interno Bruto (a riqueza gerada por ano num
país) após a Segunda Guerra, foi reduzida para menos de um terço do PIB e
mantinha-se estável havia uma década. Os EUA eram como um aluno cumprindo o
dever de casa e tirando a nota máxima em todas as provas.
A
situação era tão perfeita que, apesar de choques econômicos como os do petróleo
da década de 1970 (o do embargo de 1973 e o da revolução iraniana de 1979) e de
algumas recessões, o país era conhecido mundialmente como a “terra das
oportunidades”, onde todos podiam se tornar tudo o que sempre sonharam. Naquela
década, os EUA provaram que pequenas recessões não necessariamente representam
uma ameaça a uma comunidade, se os mecanismos de distribuição de riqueza fossem
eficientes e o país tivesse riqueza acumulada para ser distribuída. Exatamente
como acontecia nas comunidades rudimentares, quando dificuldades
meteorológicas, migrações em massa de animais e tantos outros problemas
surgiam: se houvesse riqueza acumulada, ela era redistribuída e todos
atravessavam sem problemas as dificuldades.
Até
que o então presidente Ronald Reagan convenceu o povo norte-americano de que
era hora de acelerar o progresso. Afinal, existia uma recessão a ser combatida
e uma “guerra ideológica” em curso e somente o progresso poderia vencê-las.
Para isso, era necessário tomar duas providências. Primeiro, diminuir os
impostos para que os donos das terras e dos meios de produção vissem uma
oportunidade maior para investir suas riquezas no sistema e ajudá-lo a gerar
riquezas e crescer. Segundo, o poder público devia aumentar seus investimentos,
e para isso pegar dinheiro com os donos das terras e dos meios de produção – a
chance de colocar o vírus dentro do sistema!
E
exatamente assim foi feito. E os efeitos foram exatamente iguais aos que
acabamos de prever em nosso simples exemplo. Trata-se de um estudo de caso
bastante didático, como poucas vezes poderemos observar na história.
Em somente onze anos, de 1981 para 1992, a dívida pública norte-americana passou de 31% para 62% do PIB. Algo jamais visto na história do país em período curto e de relativa paz. Os impostos mais altos que incidiam sobre a geração de riqueza caíram de mais de 50% para quase a metade desse percentual ainda na década de 1980. Caíram também bruscamente os impostos sobre o estoque de riqueza. E aí, todo o resto foi apenas consequência.
Em
pouco tempo o endividamento do Estado fez com que o discurso das privatizações
ganhasse força e iniciou o processo de entrega de riqueza do poder público aos
donos das terras e dos meios de produção para solucionar o problema. O processo
decisório sobre o futuro da comunidade ia, na prática, saindo cada vez mais das
mãos do poder público para chegar nas mãos do pequeno grupo dos mais ricos. Se
no começo da década de 1980 os 90% mais pobres da população acumulavam quase
40% da riqueza do país e o 1% mais rico acumulava pouco mais de 20%, algumas
décadas depois a situação se inverteu, com o 1% mais rico quase dobrando sua
fatia nas riquezas do país, para quase 40% do “bolo”, enquanto os 90% mais
pobres passaram a dividir cerca de 25% da riqueza nacional.
O
percentual da riqueza do país nas mãos do poder público, ou seja, aquele que
seria a reserva de segurança para suprir as necessidades dos mais necessitados
do grupo em tempos de dificuldade (que, como vimos, superava os 15% antes da
década de 1980), foi sendo transferido para os donos dos meios de produção até
que chegou a zero e se tornou negativo: as dívidas do poder público passaram a
ser maiores do que todas as suas riquezas. Em outras palavras, em vez de ter um
estoque de riquezas para redistribuir entre os membros da comunidade, todo
membro da comunidade passou a nascer devendo dinheiro para os donos dos meios
de produção.
Desde a década de 1980, quando os EUA mudaram de rumo com a justificativa de diminuir o endividamento e acelerar o crescimento do país para o benefício de todos, nada do que fora prometido aconteceu. O endividamento só cresceu, ano após ano, até que o total da dívida pública superasse toda a geração de riqueza do país nas primeiras décadas do século XXI. E absolutamente nada mudou no ritmo de crescimento norte-americano. A única real consequência da mudança de rumo foi que os benefícios que antes eram distribuídos entre todos da comunidade passaram a ir somente para os mais ricos.
Aí,
sem o mecanismo de proteção para os indivíduos fragilizados da comunidade,
normalmente garantido pela riqueza redistribuída pelo poder público, o
enfraquecimento do grupo aconteceu de forma assustadora. E, curiosamente, sem
que ninguém parecesse perceber. Isso porque o mundo parou de pensar em termos
de “força do grupo” e passou a pensar em termos de “dinheiro total acumulado”,
e nesse aspecto o país seguia forte. Ninguém percebia que a riqueza gerada não
chegava mais a todos na comunidade. Era como ver um indivíduo aparentemente
saudável, mas que, quando analisado por raios X ou por endoscopia, revelava um
câncer interno que destruía rapidamente todos os seus órgãos vitais.
Atualmente, nas primeiras décadas do século XXI, a situação da comunidade norte-americana é preocupante. Os EUA continuam sendo o país com maior geração de riqueza no mundo. No entanto, não está entre os trinta lugares mais seguros para se morar, entre os trinta com melhor oferta de sistema de saúde para seus habitantes, entre os dez com melhor educação, entre os dez com melhor índice de desenvolvimento humano. É, entre todos os países que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE – grupo representativo dos países mais desenvolvidos do mundo), o que tem a maior taxa de pobreza; mesmo que quase todos os indivíduos que compõem a lista dos cem mais ricos do mundo sejam norte-americanos.”
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