segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Sem Logo: A tirania das marcas em um planeta vendido (Parte I), de Naomi Klein

Editora: Record

ISBN: 978-85-0106-262-8

Tradução: Ryta Vinagre

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 544

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Sinopse: Em 1992, a Nike pagou 20 milhões de dólares a Michael Jordan para estampar o rosto do rei do basquete nas propagandas de seu mais novo tênis. A quantia fica ainda mais impressionante quando se descobre que é muito superior do que a que a empresa pagou a todo o conjunto de 30 mil trabalhadores indonésios que efetivamente fabricaram os calçados. Essa e outras histórias curiosas do mundo do marketing estão em Sem Logo – a tirania das marcas em um planeta vendido, livro da jornalista canadense Naomi Klein. O livro revela o processo de traição das promessas centrais da era da informação: opções, interatividade e liberdade crescente. Oferece, ainda, uma organizada compilação dos protestos mais significativos contra grandes corporações e sua influência mundial. Saudada pelo The New York Times como “(...) a bíblia de um movimento”, esta obra foi considerada pelo jornal britânico The Observer “O capital do crescente movimento anticorporativo”. A autora – que vem ao Brasil para participar do Fórum Mundial Social de Porto Alegre, entre os dias 31 de janeiro e 5 de fevereiro – passou a infância obcecada por marcas e anúncios e tinha verdadeira adoração pelos letreiros fluorescentes de grandes companhias de petróleo e pequenas etiquetas de roupas. Depois de adulta, a atração virou repulsa e Naomi passou a se dedicar a analisar e desarmar os absurdos cometidos pela publicidade.

Em Sem Logo – A tirania das marcas em um planeta vendido, Naomi Klein constrói formulações reveladoras sobre o reino das marcas: aponta os efeitos negativos do marketing na cultura, no trabalho e nas escolhas do consumidor, mostrando como multinacionais convertem o mundo em uma oportunidade de mercado. Logotipos e marcas são o que temos mais próximo de uma linguagem internacional: a maior parte dos seis bilhões de habitantes da Terra pode identificar o símbolo do Mc’Donalds ou da Coca-Cola. No universo globalizado, gerenciar imagens e associações por meio das quais o consumidor se relaciona com um produto se tornou a chave do sucesso. Naomi Klein nasceu em 1970, em Montreal, no Canadá, e hoje vive em Toronto. Iniciou sua carreira jornalística no Toronto Star, cobrindo a área de marketing. Colunista do The Globe and Mail, teve artigos publicados no The New York Times, The Village Voice, Ms., The Nation, This Magazine e Saturday Night.



“Seria ingenuidade acreditar que os consumidores ocidentais não se beneficiaram dessas divisões globais desde os primeiros dias do colonialismo. O Terceiro Mundo, como dizem, sempre existiu para o conforto do Primeiro. Um desenvolvimento relativamente recente, entretanto, é que o interesse investigativo parece se voltar para os pontos de origem, sem grife, de produtos com marcas. As viagens dos tênis Nike têm sido rastreadas até o trabalho semiescravo no Vietnã, as pequenas roupas da Barbie até a mão-de-obra infantil de Sumatra, os cafés da Starbucks aos cafeicultores castigados pelo sol da Guatemala, e o petróleo da Shell às aldeias poluídas e empobrecidas do delta do Níger.”

 

 

E por um tempo mais longo, a produção de bens permaneceu, pelo menos em princípio, no cerne de todas as economias industrializadas. Nos anos 80, afetados pela recessão da década, alguns dos mais poderosos fabricantes do mundo começaram a vacilar. Surgiu o consenso de que as corporações estavam inchadas, superdimensionadas; elas possuíam demais, empregavam gente demais e se curvavam sob o peso de coisas demais. O próprio processo de produção – administrado pelas fábricas, responsáveis por dezenas de milhares de empregados efetivos de tempo integral – começou a parecer menos um caminho para o sucesso do que uma pesada responsabilidade.

Mais ou menos na mesma época, um novo tipo de corporação começou a disputar mercado com os fabricantes americanos tradicionais; eram as Nikes e Microsofts, e mais recentemente, as Tommy Hilfigers e as Intels. Esses pioneiros declararam audaciosamente que produzir bens era apenas um aspecto incidental de suas operações e que, graças às recentes vitórias na liberalização do comércio e na reforma das leis trabalhistas, seus produtos podiam ser feitos para eles por terceiros, muitos no exterior. O que essas empresas produziam principalmente não eram coisas, diziam eles, mas imagens de suas marcas. Seu verdadeiro trabalho não estava na fabricação, mas no marketing. Essa fórmula, desnecessário dizer, mostrou-se imensamente lucrativa, e seu sucesso levou as empresas a uma corrida pela ausência de peso: quem possuísse menos, tivesse o menor número de empregados na folha de pagamentos e produzisse as mais poderosas imagens, em vez de produtos, ganharia a corrida.

Desse modo, a onda de fusões no mundo corporativo dos últimos anos é um fenômeno ilusório: elas apenas parecem gigantes, ao unir suas forças, tornando-se cada vez maiores. A verdadeira chave para compreender essas mudanças está em perceber que de várias formas cruciais — mas não em relação a seus lucros, é claro – essas empresas pós-fusão na verdade estão encolhendo. Sua grandeza aparente é simplesmente o caminho mais eficaz para alcançar sua verdadeira meta: livrar-se do mundo das coisas.

 

 

Como previu o publicitário no início da recessão, as empresas que tiveram sucesso com a queda foram as que optaram pelo marketing do valor todo o tempo: Nike, Apple, a Body Shop, Calvin Klein, Disney, Levi's e Starbucks. Essas marcas não apenas estavam indo muito bem, obrigada, como o ato de branding* estava se tornando uma preocupação cada vez maior em seus negócios. Para essas empresas, o produto ostensivo era um mero tapa-buraco para a produção real: a marca.

Branding: o processo de estabelecer e gerenciar imagens, percepções e associações pelas quais o consumidor se relaciona com um produto ou empresa.

 

 

“(Estas empresas) integraram o conceito da gestão de marca com o próprio tecido de suas empresas. Sua cultura corporativa era tão estreita e enclausurada que de fora parecia ser um cruzamento entre uma fraternidade universitária, um culto religioso e um sanatório. Tudo era publicidade para a marca: estranhos léxicos para descrever os funcionários (parceiros, associados, jogadores do time, membros da tripulação), canções da empresa, CEO superstar, atenção fanática à coerência do design, uma propensão a construção de monumentos e declarações de missão no estilo Nova Era.”

 

 

“Nasceu um novo consenso: os produtos que florescerão no futuro serão aqueles apresentados não como “produtos”, mas como conceitos: a marca como experiência, como estilo de vida.

Desde então, um seleto grupo de corporações vem tentando se libertar do mundo corpóreo dos produtos, passando fabricantes e produtos a existir em outro plano. Todo mundo pode fabricar um produto, raciocinam eles (e como mostrou o sucesso das marcas privadas durante a recessão, todo mundo fabricou). Essa tarefa ignóbil, portanto, pode e deve ser delegada a terceiros cuja única preocupação é atender às encomendas a tempo e dentro do orçamento (e o ideal é que fiquem no Terceiro Mundo, onde a mão-de-obra é quase de graça, as leis são frouxas e isenções fiscais são obtidas a rodo). As matrizes, enquanto isso, estão livres para se concentrar em seu verdadeiro negócio – criar uma mitologia corporativa poderosa o bastante para infundir significado a esses toscos objetos apenas assinalando-os com seu nome.”

 

 

Com essa mania de marca veio um novo tipo de homem de negócios, que orgulhosamente o informará de que a Marca X não é um produto, mas um meio de vida, uma atitude, um conjunto de valores, uma expressão, um conceito. E isso parece mesmo ótimo – melhor do que a Marca X é uma chave de fenda, uma cadeia de hambúrgueres, um par de jeans ou mesmo uma linha muito bem-sucedida de calçados de corrida. A Nike, anunciou Phil Knight no final dos anos 80, é uma “empresa de esportes”; sua missão não é vender calçados, mas “melhorar a vida das pessoas pela prática de esportes e a forma física” e manter “viva a magia dos esportes”.24 O presidente-e-xamã-dos-tênis Tom Clark explica que “a inspiração dos esportes nos permite renascer constantemente”.25

Relatos dessas epifanias de “visão de marca” começam a surgir em todos os cantos. “O problema da Polaroid”, diagnosticou o presidente de sua agência de publicidade, John Hegarty, “foi que ela continuou pensando em si mesma como uma câmera. Mas o processo de 'visão [de marca]' nos ensina uma coisa: a Polaroid não é uma câmera – é um lubrificante social.”26 A IBM não está vendendo computadores, mas “soluções” para os negócios. A Swatch não tem relação com relógios, mas com o conceito de tempo. Na Diesel Jeans, o proprietário Renzo Rosso disse à revista Paper: “Não vendemos um produto, vendemos um estilo de vida. Acho que criamos um movimento. (...) O conceito da Diesel é tudo. É o modo de vida, é a maneira de se vestir, é o jeito de fazer alguma coisa.” E como me explicou a fundadora da Body Shop, Anita Roddick, suas lojas não têm nada a ver com o que vendem, são veículos para uma grande ideia – uma filosofia política sobre as mulheres, o ambiente e os negócios éticos. “Apenas uso a empresa que criei e surpreendentemente teve sucesso – não devia ter sido assim, eu não pretendia que fosse assim – baseando-me em seus produtos para alardear essas questões”, diz Roddick.

O famoso e falecido designer gráfico Tibor Kalman resumiu a mudança do papel da marca desta forma: “O conceito original da marca era qualidade, mas agora a marca é um símbolo estilístico de bravura.”27

24. Donald Katz, Just Do It: the Nike Spirit in the Corporate World (Holbrook: Adams Media Corporation, 1994).

25. “In the Super Bowl of Sport Stuff, the Winning Score is $ 2 Billion”, The New York Times, 11 de fevereiro de 1996, seção 8, 9.

26. John Heilemann, “All Europeans Are Not Alike”, The New Yorker, 28 de abril e 5 de maio de 1997, 175.

27. “Variations: A Cover Story”, New York Times Magazine, 13 de dezembro de 1998, 124.

 

 

“Com essa mania de marca veio um novo tipo de homem de negócios, que orgulhosamente o informará que a marca X não é um produto, mas um meio de vida, uma atitude, um conjunto de valores, uma expressão, um conceito. E isso parece mesmo ótimo – melhor do que a Marca X é uma chave de fenda, uma cadeia de hambúrgueres, um par de jeans ou mesmo uma linha muito bem sucedida de calçados de corrida. A Nike, anunciou Phil Knight no final dos anos 80, é “uma empresa de esportes”; sua missão não é vender calçados, mas “melhorar a vida das pessoas pela prática de esportes e a forma física” e manter “viva a magia dos esportes”. O presidente-e-xamã-dos-tênis Tom Clark explica que “a inspiração dos esportes nos permite renascer constantemente”. Relatos dessas epifanias de “visão de marca” começam a surgir em todos os cantos. “O problema da Polaroid”, diagnosticou o presidente de sua agência de publicidade, John Hegarty, “foi que ela continuou pensando em si mesma como uma câmera. Mas o processo de ‘visão [de marca]’ nos ensina uma coisa: a Polaroid não é uma câmera – é um lubrificante social. A IBM não está vendendo computadores, mas “soluções” para os negócios. A Swatch não tem relação com relógios, mas com o conceito de tempo. Na Diesel Jeans, o proprietário Renzo Rosso disse à revista Paper: Não vendemos um produto, vendemos um estilo de vida. Acho que criamos um movimento. (...) O conceito da Diesel é tudo. É o modo de vida, é a maneira de se vestir, é o jeito de fazer alguma coisa.” E como me explicou a fundadora da Body Shop, Anita Roddick, suas lojas não têm nada a ver com o que vendem, são veículos para uma grande ideia – uma filosofia política sobre as mulheres, o ambiente e os negócios éticos. “Apenas uso a empresa que criei e surpreendentemente teve sucesso – não devia ter sido assim, eu não pretendia que fosse assim – baseando-me em seus produtos para alardear essas questões”, diz Roddick.

O famoso e falecido designer gráfico Tibor Kalman resumiu a mudança do papel da marca desta forma: “O conceito original da marca era qualidade, mas agora a marca é um símbolo estilístico de bravura.”

 

 

“E antes que o negócio do branding não seja desprezado como o playground de artigos de consumo da moda como tênis, jeans e bebidas Nova Era, pense bem. A Caterpillar, mais conhecida como fabricante de tratores e destruidora de sindicatos, incorporou o negócio da gestão de marcas, lançando a linha de acessórios Cat: botas, mochilas, bonés e qualquer outra coisa para uma je ne sais quoi pós-industrial. A Intel Corp., que faz componentes de computadores que ninguém vê e poucos compreendem, transformou seus processadores em uma marca de fetiche, com peças publicitárias na TV mostrando funcionários da produção em trajes especiais metálicos moderninhos dançando para “Sacudir sua rotina”. Os mascotes da Intel se mostraram tão populares que a empresa vendeu centenas de milhares de bonecos idênticos a seus bruxuleantes técnicos dançantes. Pouco surpreende, então, que quando indagado sobre a decisão da empresa de diversificar seus produtos, o vice-presidente sênior para vendas e marketing, Paul S. Otellini, respondeu que a Intel “é como a Coca-Cola. Uma marca, muitos produtos diferentes”.29

E se a Caterpillar e a Intel podem ser uma marca, certamente qualquer um pode.”

29. Business Week, 22 de dezembro de 1997.

 

 

“Ou, para citar Tom Peters, o homem da marca: “Marca! Marca! Marca!!! É essa a mensagem (...) para o final dos anos 90 e para o futuro.”

 

 

Os editores do zine Hermenaut articularam a receita:

Como o falecido etnólogo Michel de Certeau, preferimos concentrar nossa atenção no uso independente de produtos de cultura de massa, um uso que, como os estratagemas de camuflagem de peixes e insetos, pode não “derrubar o sistema”, mas nos mantém intactos e autônomos dentro desse sistema, que pode ser o melhor que podemos esperar. (...) Ir ao Disney World para tomar ácido e sacanear o Mickey não é revolucionário; ir ao Disney World com pleno conhecimento de o quão ridículo e pernicioso é tudo aquilo e ainda viver grandes momentos de inocência, em alguns casos quase inconsciência, mesmo que psicótica, é algo completamente diferente. Isso é o que Certeau descreve como “a arte de estar entre as coisas”, e é o único caminho de verdadeira liberdade na cultura atual. Vamos, então, ficar entre as coisas. Vamos nos divertir com Baywatch, Joe Camel, revista Wired e mesmo com livros sofisticados sobre a sociedade do espetáculo [touché], mas jamais sucumbamos ao fascínio glamouroso dessas coisas.27

27. Editorial, Hermenaut # 10: Popular Culture, 1995.

 

 

Apesar da adoção da imaginação poliétnica, a globalização orientada para o mercado não criou diversidade; aconteceu exatamente o oposto. Seus inimigos são os hábitos nacionais, as marcas locais e preferências regionais distintas. Os interesses cada vez menores controlam cada vez mais a paisagem.

Deslumbrados pela gama de opções de consumo, podemos a princípio deixar de perceber a imensa consolidação que ocorre nas diretorias de empresas de entretenimento, mídia e varejo. A publicidade nos inunda de sedativas imagens caleidoscópicas dos Estados Unidos da Diversidade e das tentações escancaradas “Aonde você quer ir hoje?” da Microsoft. Mas nas páginas das seções de negócios, o mundo é monocromático e as portas batem ruidosamente de todos os lados: quase todas as matérias – sejam os anúncios de uma nova compra, uma falência prematura, uma fusão colossal – apontam para uma perda de opções significativas. A verdadeira questão não é “Aonde você quer ir hoje?”, mas “Como posso guiar você melhor no labirinto sinergizado onde eu quero que você vá hoje?”

Este ataque às opções está acontecendo simultaneamente em várias frentes. Está acontecendo estruturalmente, com fusões, compras alavancadas e sinergias corporativas. Acontece localmente, com um punhado de supermarcas usando suas imensas reservas de dinheiro para tirar do mercado pequenas empresas independentes. E acontece na frente jurídica, com as empresas de entretenimento de bens de consumo usando processos de difamação e marca registrada para acossar quem quer que confira um significado indesejável a um produto pop-cultural. E assim vivemos em um mundo duplo: carnaval na superfície, consolidação embaixo, onde interessa.”

 

 

Em épocas menos entusiásticas que a nossa, outras palavras além de “sinergia” foram comumente utilizadas para descrever as tentativas de distorcer radicalmente as ofertas ao consumidor para beneficiar proprietários em conluio; nos EUA, os trustes ilegais eram combinações de empresas que secretamente concordavam em fixar preços enquanto fingiam ser competitivas. E o que mais é um monopólio afinal, senão sinergia levada ao extremo? Os mercados que reagem à tirania do porte sempre tiveram uma tendência ao monopólio. É por isso que grande parte do que tem acontecido na indústria do entretenimento na última década de mania de fusões teria sido impedido ainda em 1982, antes do ataque total do presidente Ronald Reagan às leis antitruste americanas.

 

 

O McDonald’s, enquanto isso, continua diligentemente a importunar pequenos lojistas e donos de restaurantes descendentes de escoceses por sua predisposição nacional não-competitiva de usar a partícula Mc em seus sobrenomes. A empresa processou a loja de salsichas McAllan na Dinamarca; a lanchonete decorada com motivos escoceses McMunchies em Buckinghamshire; perseguiu a loja McCoffe de Elizabeth McCaughney na Bay Área de San Francisco; e travou uma batalha de 26 anos contra um homem chamado Ronald McDonald, cujo McDonald’s Family Restaurant em uma minúscula cidade em Illinois funcionava desde 1956.

 

 

Quando a legislação de copyright e marca registrada não pode ser invocada para evitar um retrato indesejado da marca, muitas corporações dependem da lei de calúnia e difamação para manter suas práticas longe do debate público. O divulgado caso “McLibel” na Grã-Bretanha, em que a cadeia de lanchonetes processou dois ambientalistas por calúnia, foi uma dessas tentativas.  Independente da tática legal escolhida, a mensagem impossivelmente contraditória enviada pelos produtores desses bens irônicos é a mesma: queremos que nossas marcas sejam o ar que você respira – mas nem pense em expirar.”

 

 

Parece que não importa com quanto sucesso a esfera privada emula ou mesmo aprimora a aparência e a sensação de espaço público, as tendências restritivas de privatização encontram uma forma de armar sua tocaia. E o mesmo se aplica não somente ao espaço de propriedade corporativa, como a AOL ou a Virgin Megastore, mas até ao espaço de propriedade pública que é patrocinado ou de marca. Essa questão foi nitidamente vista em Toronto em 1997, quando militantes antitabagismo foram retirados à força do festival de jazz ao ar livre du Maurier, assim como manifestantes estudantis foram retirados do du Maurier Tennis Open que acontecia em seu campus. A ironia era que o festival aconteceu na verdadeira praça pública da cidade – a Nathan Phillips Square, bem em frente a prefeitura de Toronto. Os manifestantes aprenderam que, embora a praça possa ser um espaço tão público quanto possam pensar, ela se tornou, durante a semana do festival de jazz, propriedade da empresa de tabaco patrocinadora. Nenhum material crítico foi permitido em suas instalações.”

 

 

“Nosso plano estratégico na América do norte é focalizar intensamente o gerenciamento da marca, o marketing e o projeto de produto como um meio de atender às necessidades e desejos de roupas informais dos consumidores. Mudar uma parcela significativa de nossa fabricação de mercados americanos e canadenses para terceiros em todo o mundo dará à empresa maior flexibilidade para alocar recursos e capital a suas marcas. Esses são passos essenciais se quisermos continuar competitivos”.

– John Ermatinger, presidente da divisão Levi Strauss Américas, explicando a decisão da empresa de fechar 22 fábricas e demitir 13.000 trabalhadores norte-americanos entre novembro de 1997 e fevereiro de 1999.”

 

 

Muitas multinacionais de nome de marca, como vimos, querem transcender sua necessidade de se identificar com seus produtos terrenos. Elas imaginam, para isso, profundos significados para suas marcas – o modo como capturam o espírito da individualidade, do atletismo, da vida selvagem ou da comunidade. Nesse contexto em que a pose vale mais que o objeto, os departamentos de marketing encarregados do gerenciamento de identidades de marca começaram a ver seu trabalho como algo que acontece não em conjunção com a produção da fábrica, mas em competição direta com ela. “Produtos são feitos na fábrica”, diz Walter Landor, presidente da agência de criação de marcas Landor, “mas marcas são feitas na mente.”‘ Peter Schweitzer, presidente da gigante da publicidade J. Walter Thompson, reitera essa ideia: “A diferença entre produtos e marcas é fundamental. Um produto é algo feito na fábrica; uma marca é algo comprado por um consumidor.”2 As agências de publicidade espertas abandonaram a ideia de que elas estão empenhadas em um produto feito por outra pessoa e passaram a pensar em si mesmas como fábricas de marca, produzindo o que é de valor verdadeiro: o conceito, o estilo de vida, a atitude. Os construtores de marca são novos produtores primários em nossa chamada economia do conhecimento.

Essa ideia nova tem feito mais do que nos trazer campanhas publicitárias modernas, superlojas eclesiásticas e campi corporativos utópicos. Ela está mudando a face do emprego global. Depois de estabelecer a “alma” de suas corporações empresas de supermarcas estão se livrando de seus embaraçosos corpos, e nada parece mais embaraçoso, mais repugnantemente corpóreo, do que as fábricas que fazem seus produtos. O motivo para essa mudança é simples: construir uma supermarca é um projeto extraordinariamente dispendioso, que precisa de constante gerenciamento, vigilância e reabastecimento. Acima de tudo, as supermarcas precisam de muito espaço para imprimir seus logos. Para que uma empresa seja eficaz em custos, contudo, há uma quantidade finita de dinheiro que pode ser utilizada para cobrir todos esses gastos – material, fabricação, despesas gerais e gestão de marca – para que os preços de seus produtos no varejo não fiquem altos demais. Depois de patrocínios multimilionários terem sido assinados e cool hunters e especialistas em marketing receberem seus cheques, pode não haver tanto dinheiro sobrando. Assim, isso se torna, como sempre, uma questão de prioridades; mas essas prioridades estão mudando. Como explicou Hector Liang, ex-diretor do conselho da United Biscuits: “As máquinas se desgastam. Os carros enferrujam. As pessoas morrem. Mas o que permanece são as marcas.”3

De acordo com essa lógica, as corporações não devem gastar seus recursos finitos em fábricas que exigirão manutenção física, em máquinas que sofrerão corrosão ou funcionários que certamente envelhecerão e morrerão. Em vez disso, elas devem concentrar seus recursos nos elementos utilizados para construir suas marcas; isto é, patrocínios, embalagem, expansão e publicidade. Elas devem também gastar em sinergias: comprar canais de distribuição e varejo para levar sua marca às pessoas.

Esta mudança lenta mas decisiva nas prioridades corporativas deixou os produtores não- virtuais de ontem – os trabalhadores de fábrica e os artesãos – em uma situação precária. Os gastos excessivos em marketing, fusões e extensões de marca na década de 1990 foram acompanhados de uma resistência nunca vista ao investimento em instalações de produção e mão-de-obra. Empresas que tradicionalmente ficavam satisfeitas com uma margem de 100 por cento entre o custo de fabricação e o preço no varejo têm atravessado o globo em busca de fábricas que possam fazer seus produtos a preços tão baixos que a margem fique mais próxima de por cento.4 E como observa um relatório das Nações Unidas de 1997, mesmo em países onde os salários já eram baixos, os custos de mão-de-obra estão sendo responsáveis por uma fatia cada vez menor dos orçamentos corporativos. “Em quatro de cinco países em desenvolvimento, a participação dos salários no valor agregado de fabricação de hoje é consideravelmente menor do que foi na década de 1970 e no inicio dos anos 80.”5 O oportunismo dessas tendências reflete não só o status do branding como panaceia econômica percebida, mas também uma desvalorização correspondente do processo de produção de produtores em geral. O branding, em outras palavras, foi engolindo todo o “valor agregado”.

Quando o processo de fabricação real é tão desvalorizado, logicamente é mais provável que as pessoas que fazem o trabalho de produção sejam tratadas como lixo – coisas das quais você pode se livrar. A ideia tem uma certa simetria: uma vez que a produção em massa criou a necessidade do branding, seu papel foi crescendo em importância até que, mais de um século e meio depois da Revolução Industrial, ocorreu a essas empresas que talvez o branding pudesse substituir completamente a produção. Como disse o tenista André Agassi em um comercial da câmera fotográfica Canon em 1992, “Imagem é tudo”.

Agassi pode ter feito propaganda da Canon na época, mas ele é antes de tudo um membro da equipe Nike, a empresa que foi a pioneira na filosofia empresarial de gastos ilimitados em gestão de marca, acompanhados de uma espoliação quase completa dos trabalhadores terceirizados que produzem seus calçados em fábricas de áreas remotas. Como afirmou Phil Knight, “Não há mais valor em produzir coisas. O valor é agregado pela pesquisa cuidadosa, pela inovação e pelo marketing”.6 Para Phil Knight, a produção não é a base de seu império da marca, é, em vez disso, uma tarefa tediosa e marginal.

E por isso que muitas empresas estão agora afastando-se completamente da produção. Em vez de fabricarem elas mesmas os produtos, em suas próprias fábricas, as “exploram”, como as corporações nos setores de recursos naturais exploram urânio, cobre ou madeira. Elas fecham as fábricas que já existem, transferindo a produção para fábricas terceirizadas, principalmente no exterior. E quando os velhos empregos voam para fora do país, algo mais está voando com eles: a ideia obsoleta de que um fabricante é responsável por sua própria força de trabalho. O porta- voz da Disney, Ken Green, deu uma indicação da profundidade dessa mudança quando se mostrou publicamente frustrado com o fato de sua empresa estar sendo criticada pelas condições desesperadoras em uma fábrica haitiana que produz roupas Disney. “Não empregamos ninguém no Haiti”, disse ele, referindo-se ao fato de que a fábrica é de propriedade de outra empresa “Tem alguma ideia das condições de trabalho envolvidas na produção do papel de jornal que você usa?”, perguntou Green a Cathy Majtenyi, do Catholic Register.7

De El Paso a Pequim, de San Francisco a Jacarta, de Munique a Tijuana as marcas globais estão transferindo a responsabilidade pela produção a terceiros: elas apenas dizem a eles para fazer essa porcaria, e que façam barato, assim sobra muito dinheiro para o branding. E que façam barato mesmo.

2. “People Buy Products Not Brands”, de Peter Shweitzer (J. Walter Thompson White Paper Series, sem data).

3. “Big Brand Firms Know the Name Is Everything”, Irish Times, 27 de fevereiro de 1998.

4. Ortega, In Sam We Trust, 342.

5. “Trade and Development Report, 1997”, conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento Econômico.

6. Katz, Just Do It, 204.

7. Cathy Majtenyi, “Were Disney Dogs Treated Better Than Workers?”, Catholic Register, 23-30 de dezembro de 1996, 9.

  

 

Independente de onde as ZPEs estejam localizadas, as histórias dos trabalhadores têm uma certa uniformidade mesmerizante: o dia de trabalho é longo – 14 horas no Sri Lanka, 12 horas na Indonésia, 16 no sul da China, 12 nas Filipinas. A grande maioria dos trabalhadores é composta de mulheres, sempre jovens sempre trabalhando para contratados ou subcontratados da Coréia, de Taiwan ou de Hong Kong. Os contratados em geral atendem a pedidos de empresas sediadas nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, no Japão, na Alemanha ou no Canadá. O gerenciamento tem estilo militar, os supervisores cometem abusos, os salários ficam abaixo do nível de subsistência e o trabalho exige pouca habilidade e é tedioso. Como modelo econômico, as zonas de processamento de exportação de hoje têm muito mais em comum com as franquias de fast-food do que com o desenvolvimento sustentável, tão afastadas são elas dos países que as hospedam. Esses bolsões de indústria pura ocultam-se por trás de uma capa de transitoriedade: os contratos vêm e vão quase sem aviso; os trabalhadores são predominantemente migrantes, distantes de casa e com pouca conexão com a cidade ou província onde as zonas estão localizadas; o próprio trabalho é de caráter precário, com frequência sem renovação de contrato.

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