sábado, 23 de abril de 2022

Quem ajudou a Hitler (Parte I), de I. Maiski

Editora: Civilização Brasileira

Tradução: Cristiano M. Oiticica

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 212

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Sinopse: Livro escrito pelo diplomata soviético Ivan Maiski, embaixador em Londres de 1932 a 1943 e participante da famosa Conferência de Ialta, que reuniu os Quatro Grandes, explica as razões que levaram a URSS a firmar o célebre e até hoje controvertido tratado de não agressão germano-soviético.

São personagens destas empolgantes e reveladoras memórias, Chamberlain, Lord Halifax, Maxim Litvínov, Winston Churchill, Lloyd George, Anthony Eden, entre outros homens que tiveram em suas mãos a terrível responsabilidade do destino humano numa hora de medo, ameaça e perigo.

Depoimento sereno, objetivo, vivo e dramático, a um só tempo, esta obra lança novas luzes sobre o discutido comportamento da União Soviética em grave momento de sua História e da História de todos os povos.


 

“É útil recordar o que ocorreu às vésperas da segunda conflagração universal. Importa, sobretudo, mostrar a fenomenal cegueira histórica dos governos das potências ocidentais daqueles tempos, que não viram nem quiseram ver o abismo a que arrastavam a humanidade. O quadro vivo dessa cegueira — oriunda do seu ódio ao comunismo, ao Estado soviético — e de suas funestas consequências pode ajudar os elementos mais sensatos do setor capitalista dos nossos dias a assimilar os ensinamentos do passado recente e, com isso, facilitar a vitória das forças da paz sobre as forças da guerra.”

 

 

“Que tarefas me atribuiu o Governo soviético? Com que propósitos, planos e estado de espírito parti para o meu novo posto de trabalho?

Posso afirmar com plena convicção que o Governo soviético me enviou como mensageiro de paz e amizade entre a URSS e a Grã-Bretanha e que aceitei com alegria e prazer o cumprimento dessa missão. Sem superestimar, de modo algum, minhas próprias forças, resolvi de antemão fazer todo o possível para melhorar as relações entre Moscou e Londres. As causas a que obedeciam as aspirações do Governo soviético tinham um caráter mais geral e mais particular.

As causas de caráter mais geral consistiam na própria natureza do Estado soviético como um Estado pacífico, no qual não há classes ou grupos que possam tirar proveito da guerra. Os operários, os camponeses e os intelectuais — elementos sociais de que é formada a sociedade soviética — só podem sair perdendo com a guerra. Isto não significa, está claro, que sejam partidários da paz a todo custo! Não, de maneira alguma! Os bolcheviques não são tolstoianos. Como diz uma conhecida canção soviética, nosso “trem blindado” está sempre pronto no desvio e apetrechado com material bélico o mais moderno. Porém, pela própria natureza, não queremos a guerra, odiamo-la e procuramos evitá-la na medida que o permitem as possibilidades humanas. Estamos empenhados na edificação do socialismo e do comunismo, a qual consagramos a nossa inteligência e o nosso coração, e nada desejamos que possa afastar-nos desse labor, tão arraigado, e menos ainda que possa desprezá-la seriamente. Assim tem sido e é a todo momento a linha geral do Estado soviético.

E se a URSS se viu, não obstante, obrigada a combater — e não pouco — em seus 46 anos de existência, deve-se isso ao fato de que a guerra nos foi imposta pelas forças inimigas do exterior, que pretendiam varrer da face da terra o primeiro país socialista do mundo. Assim ocorreu nos anos da guerra civil e da intervenção estrangeira. Assim ocorreu também nos dias da Grande Guerra Pátria de 1941-1945.”

 

 

“Passemos agora a Alemanha. Em fins de 1932 era evidente a plena decomposição da República de Weimar. Os nazistas avançavam com rapidez e conquistavam uma após outra posição. A cisão nas fileiras proletárias era profunda e os sociais-democratas se negavam obstinadamente a unidade de ação com os comunistas contra o fascismo. Em tais condições, tornava-se muito provável a ascensão de Hitler ao Poder. Se isso acontecesse, que efeito produziria em toda a situação internacional? Como se refletiria, em particular, nas relações germano-soviéticas? Está claro que não se poderia esperar nada de bom.”

 

 

“Repito, uma vez mais, com plena convicção: o Governo e o povo soviéticos desejavam sincera e profundamente que se estabelecessem as melhores relações entre a União Soviética e a Grã-Bretanha.

Porém, como se sabe, a amizade é um ato bilateral. Não bastava que a parte soviética desejasse ter as melhores relações com a Grã-Bretanha: faltava, além disso, que a parte inglesa tivesse também esse desejo. Teve-o?

Deixemos que os fatos respondam a essa pergunta.”

 

 

“O segundo fator que testemunhava o início do degelo nas relações anglo-soviéticas e a história do ingresso da URSS na Liga das Nações. Sabe-se que em 1919, ao fundar-se essa organização internacional, a Rússia Soviética não foi convidada a formar parte dela. Então, como durante os quinze anos posteriores, a Sociedade das Nações era um foco de hostilidades, intrigas e maquinações de toda sorte contra o Estado soviético. Por volta de 1934, a situação mundial havia mudado muitíssimo com relação a 1919, o que se refletiu na sorte da Sociedade das Nações. O Senado norte-americano recusou em 1920 a ratificação do Tratado de Versalhes, motivo por que os Estados Unidos não ingressaram na Liga. O Japão e a Alemanha, que seguiram a trilha da agressão ativa, desligaram-se da Sociedade das Nações em 1933. Ficaram como “donos” dela a Inglaterra e a França, impotentes sob todos os aspectos de governarem sua nave num momento em que a tempestade internacional se aproximava com nitidez crescente. Isso obrigou os líderes do bloco anglo-francês a pensarem na conveniência de atrair a URSS para a Sociedade das Nações. Por sua parte, o Governo soviético chegou, em fins de 1933, a conclusão de que, nas condições criadas, era oportuno o ingresso da URSS na referida organização. Isto punha a seu serviço a tribuna internacional mais importante daqueles tempos para defender a paz e combater o perigo de uma Segunda Guerra Mundial e, por sua vez, proporcionava a possibilidade (embora o Governo soviético jamais tivesse superestimado a importância da Sociedade das Nações) de levantar certos obstáculos no caminho do desencadeamento de uma nova conflagração universal.

Como resultado de tudo isso, a URSS passou a ser membro da Sociedade das Nações em setembro de 1934, com um posto permanente em seu Conselho.”

 

 

“O degelo fez mudar tudo isso. Os políticos dirigentes do campo conservador começaram a procurar relações conosco. Como é natural, tratei de aproveitar ao máximo a conjuntura e, com efeito, consegui estabelecer contatos estáveis com toda uma série de destacadíssimos representantes do conservadorismo britânico. Esses contatos eram tão estáveis que se mantiveram até mais tarde, quando o curto degelo nas relações anglo-soviéticas cedeu seu posto primeiro, ao esfriamento e, logo em seguida, ao gelo. Os mais importantes e interessantes desses novos conhecidos foram, sem dúvida, W. Churchill e lorde Beaverbrook.

Em fins de julho de 1934, um mês após o almoço com Simon antes citado, os Vansittart convidaram a mim e a minha esposa para um jantar em casa deles, tendo também comparecido Churchill e sua senhora.

A situação em que então se encontrava Churchill era das mais originais. Descendente do duque de Malborough e um dos mais ilustres aristocratas da Inglaterra, Churchill havia feito brilhante carreira política e ocupado numerosíssimos cargos ministeriais, inclusive o de Ministro de Finanças (1924-1929), um dos mais elevados na hierarquia governamental britânica. Porém sua carreira foi interrompida bruscamente. Quando me entrevistei com Churchill na casa dos Vansittart, fazia já cinco anos que não ocupava nenhuma pasta no Governo e era formalmente um simples deputado no Parlamento. Adiantando-me aos acontecimentos, direi que Churchill continuou naquele “nível inferior” até o início da Segunda Grande Guerra. O Partido Conservador, que era o partido governante, estava evidentemente interessado em não permitir-lhe que assumisse as rédeas do Poder. Por quê?

Eis aqui a minha suposição. A década de 1929-1939 foi um período de desenvolvimento relativamente tranquilo na vida política inglesa. Durante ele atuaram na competição da gestão do Estado políticos de segunda e inclusive de terceira grandeza, como, por exemplo, Neville Chamberlain, Samuel Hoare, Halifax, Simon e outros. Não há por que exagerar os dotes políticos de Churchill, como se faz com frequência nas publicações do Ocidente. Churchill equivocou-se repetidas vezes na apreciação dos homens e dos acontecimentos, como veremos mais adiante, e durante a guerra seguiu uma linha equívoca de longo alcance, equívoca inclusive do ponto de vista dos interesses ingleses. Mas, apesar de tudo, Churchill era muitíssimo mais inteligente que todos os personagens que acabo de enumerar e, além disso, se distinguia por seu forte caráter autoritário. Eis porque os ministros de então o temiam: temiam que, valendo-se das suas qualidades e do seu prestígio nos meios conservadores e no país, os esmagasse, envolvendo-os e transformando-os em seus peões. Melhor será, pensavam, que esse astuto bulldog político permaneça a margem do caminho no qual desliza com relativa suavidade a carruagem do Poder!... E somente a terrível crise da Segunda Grande Guerra levou novamente Churchill ao Governo, de início, como Ministro da Marinha e, depois, como Primeiro Ministro. Foi então que entraram em jogo fatores que escapavam ao poder dos Chamberlain e dos Simon.

Porém, apesar de privado de uma pasta ministerial, Churchill era, naqueles anos, uma das mais destacadas figuras políticas da Inglaterra e gozava, sem dúvida, de grande influência entre vastos setores parlamentares. Essa influência aumentou ainda mais em meados da década de 1930-40, quando se pôs a frente da oposição no seio do Partido Conservador, a qual via a chave da segurança do Império Britânico no ressurgimento da Entente da Primeira Grande Guerra.

Ignoro a quem cabe a iniciativa da entrevista de Churchill comigo (ao próprio Churchill ou a Vansittart); contudo, é um grande acontecimento o fato de que naquela temperada tarde de julho de 1934, nos sentássemos os seis a mesma mesa e abordássemos diversos temas da atualidade. Depois do café, obedecendo ao costume inglês, as senhoras passaram para a sala de visitas e, na sala de jantar, ficamos unicamente os homens. Entabulou-se então uma conversa mais séria, durante a qual Churchill me explicou francamente a sua posição.

— O Império Britânico — falou — é para mim o começo e o fim de tudo. O que é bom para o Império Britânico, é bom também para mim; o que é mau para o Império Britânico, é mau também para mim... Em 1919 considerava que o seu país representava o maior perigo para o Império Britânico; por isso fui então inimigo do seu país. Hoje considero que o maior perigo para o Império Britânico é a Alemanha; por isso sou agora inimigo da Alemanha... Ao mesmo tempo, creio que Hitler se prepara para a expansão não somente contra nós, como também no Leste, contra os senhores. Por que não nos unirmos na luta contra o inimigo comum?... Sou inimigo do comunismo e continuarei a sê-lo, porém estou disposto a colaborar com os Sovietes a bem da integridade do Império Britânico.

Compreendi que Churchill falava sinceramente e que os argumentos que expunha para motivar sua mudança de orientação eram lógicos e levavam a se acreditar neles.

Respondi a Churchill com a mesma franqueza:

— Os soviéticos são por princípio inimigos do capitalismo, porém desejam muito a paz e na luta por ela estão dispostos a colaborar com qualquer Estado, qualquer que seja seu sistema, se esse Estado tende efetivamente a evitar a guerra.

E ao dizer isto recordei toda uma série de fatos concretos e acontecimentos históricos.

Churchill ficou inteiramente satisfeito com as minhas palavras e, a partir daquela tarde, se estabeleceram entre nós relações que duraram até ao último dia das minhas atividades na Inglaterra. Essas relações eram pouco comuns e, em certo ponto, até paradoxais. Churchill e eu pertencíamos a dois campos opostos e tínhamos isso sempre presente. Eu também tinha presente que Churchill havia sido o principal líder da intervenção de 1918-1920 contra a Rússia Soviética. Ideologicamente separava-nos um abismo. Porém, no terreno da política exterior, é forçoso, às vezes, marchar com os inimigos de ontem contra o inimigo de hoje se assim o exigem os interesses do país. Precisamente por isso, na década de 1930-40 mantive constantes relações com Churchill, com pleno beneplácito de Moscou, a fim de preparar a luta conjunta com a Inglaterra contra a ameaça hitlerista. Sentia constantemente, como é natural, que Churchill pensava em seu foro íntimo em como melhor aproveitar o “fator soviético” para conservar as posições mundiais da Grã-Bretanha. Devia, por isso, estar sempre em guarda. Não obstante, as relações com Churchill tinham um grande valor e desempenharam seu papel nos acontecimentos ulteriores, sobretudo durante o período da Segunda Grande Guerra.”

 

 

“E referindo-se depois aos partidários da “segurança ocidental”, prosseguiu Churchill:

— Esses homens raciocinam assim: de todas as formas, a Alemanha precisa lutar em algum lugar e estender suas conquistas em alguma direção: o melhor será, portanto, que se forme um império à custa dos Estados situados no Leste e Sudeste da Europa! Que se distraia com os Balcãs ou a Ucrânia, mas que deixe em paz a Inglaterra e a França. Naturalmente, esses raciocínios constituem pura idiotice; mas, infelizmente, gozam ainda de bastante popularidade em certos meios do Partido Conservador, não obstante, estou firmemente convicto de que, no final das contas, não triunfarão os partidários da “segurança ocidental”, mas os que, como eu ou Vansittart*, opinam que a paz e indivisível e que a Inglaterra, a França e a URSS devem constituir o arcabouço de uma aliança defensiva que infunda à Alemanha o devido temor. Não se pode fazer nenhuma concessão a Hitler. Toda concessão de nossa parte será interpretada como um sintoma de fraqueza e não fará mais que dar azo a Hitler para que aumente suas exigências.

As considerações de Churchill muito me alegraram e as apoiei integralmente. Queria crer que um homem como ele podia ser um bom juiz da sagacidade e capacidade de ação da classe dominante britânica... Porém, como infelizmente o demonstraram os acontecimentos posteriores, Churchill foi demasiadamente otimista em suas predições. Os chamberlainianos provaram ser muito mais fortes e obtusos do que ele pensava. Em particular, mal Eden** regressara de Moscou começaram a fazer imensos esforços, nada estéreis, para restabelecer sua influência.

O primeiro passo nesse sentido foi a Conferência de Stresa, realizada em meados de abril de 1935 para examinar a infração, pela Alemanha, dos artigos militares do Tratado de Versalhes. A ela compareceram: pela Inglaterra, MacDonald e Simon; pela França, Flandin (Primeiro-Ministro) e Lavai (Ministro dos Negócios Estrangeiros); pela Itália, Mussolini e Suvich (Subsecretário das Relações Exteriores). Era completamente natural que Mussolini sabotasse toda manifestação brusca contra Hitler, porém tampouco os ingleses nem os franceses mostraram o menor desejo de indispor-se com o ditador nazista. Em poucas palavras, a Conferência de Stresa, que se limitou a uma condenação acadêmica dos atos de Hilter, fugiu a adoção de medidas eficazes contra seu passo agressivo. Com isso, não fez outra coisa senão estimular o Führer a continuar correndo na mesma direção. E o que é mais, a Conferência de Stresa (em particular Simon e MacDonald) deu a entender a Mussolini que a Inglaterra não impediria a conquista da Etiópia pela Itália, para o que esta última se preparava. (...)

O terceiro passo nessa mesma direção foi o convênio naval anglo-alemão, firmado em junho de 1935. Sabe-se que o Tratado de Versalhes estabeleceu restrições muito rigorosas para o armamento naval da Alemanha. Em fevereiro de 1935 Hitler rompeu, por decisão unilateral, todos os artigos militares desse tratado e estabeleceu a corrida armamentista alemã em terra e mar. A Conferência de Stresa condenou (embora não severamente) os citados atos do Führer. Mas apenas dois meses depois, a Inglaterra reconheceu oficialmente o direito de a Alemanha dispor de um armamento naval que ultrapassava de muito os limites assinalados em Versalhes! Esse ato de “apaziguamento” do agressor se tornava tão provocador que inclusive a França expressou seu protesto à Inglaterra na véspera da assinatura do acordo. Porém o Governo de Baldwin desprezou o descontentamento do seu aliado e no dia seguinte, 18 de junho, assinou o aludido acordo, que previa uma proporção geral de 100 a 35 na tonelagem da Marinha de ambos os países, reconhecendo, não obstante, à Alemanha o direito de ter uma frota submarina igual a de todo o Império Britânico. Os comentários oficiosos não davam margem a dúvida de que semelhante acordo tinha como motivo principal o desejo da Inglaterra de assegurar à Alemanha o domínio no Báltico em face da URSS. Com isso ficou não somente aberto, como inclusive legalizado, o caminho da corrida armamentista hitlerista.”

* Robert Gilbert Vansittart. (1881-1957): primeiro Barão de Vansittart; foi um alto diplomata britânico no período antes e durante a Segunda Guerra Mundial.

** Robert Anthony Eden foi embaixador durante a Segunda Guerra Mundial e Primeiro-Ministro entre 7 de abril de 1955 a 9 de janeiro de 1957

 

 

“Quando Hitler anunciou em 7 de março de 1936 a ruptura do Pacto de Locarno e voltou a ocupar a região do Reno, a URSS propôs que se adotassem medidas enérgicas contra esse novo ato de agressão; porém a Inglaterra e a França, apoiadas pelos Estados Unidos, se limitaram a fazer protestos verbais que, como é natural, não causaram a Hitler nenhum efeito. E, não obstante, como se soube mais tarde, os generais hitleristas levavam no bolso do colete, ao entrar na região do Reno, a ordem de retirarem-se imediatamente se os franceses opusessem a menor reação.

E quando Franco, com o ativo apoio de Hitler e Mussolini, sublevou-se em 18 de julho de 1936 contra o Governo legítimo da República Espanhola, a Inglaterra e a França — apoiadas novamente pelos Estados Unidos — tiveram a iniciativa da farsa denominada “não-intervenção”, que foi de fato uma ajuda indireta a Franco e aos seus protetores estrangeiros.12

12: Em minhas recordações sobre o Comitê de não-intervenção nos assuntos da Espanha, publicadas em 1962 pela Editorial Militar sob o título de Cuadernos Espanoles, trato pormenorizadamente dessa questão.

 

 

“Em 28 de maio de 1937 Baldwin demitiu-se, sucedendo-o na chefia do Governo inglês Neville Chamberlain. Ao saber dessa notícia, pensei involuntariamente: “Churchill equivocou-se no seu prognóstico: não é senão Chamberlain quem empunha o leme. Agora nos espera a confabulação de Chamberlain com Hitler. E depois?...

Neville Chamberlain era, sem dúvida, a figura mais sinistra que se destacava no horizonte político da Inglaterra. Sinistra pelo caráter orgânico, profundamente reacionário, de suas concepções. E sinistra também pela influência de que gozava no Partido Conservador. O fato de Neville Chamberlain ser um homem de ideias limitadas e faculdades mínimas e de que seu horizonte político não ia além, segundo a expressão de Lloyd George, da de “um fabricante provinciano de camas de ferro” não fazia mais que agravar o perigo que representava sua ascensão ao Poder. O pai de Neville, o famoso Joseph, considerava seu filho (à dessemelhança do outro, Austen) incapaz para a política e preparou-o desde a juventude para a atividade comercial. Porém Neville não conquistou tampouco laureis invejáveis no setor do comércio. Em vista disso, fê-lo seguir a “linha municipal”, na qual, após uma série de degraus intermediários, chegou ao posto de prefeito de Birmingham. Em 1917, como conservador de origem aristocrática, Neville Chamberlain foi nomeado ministro de Recrutamento do Exército no Governo de coalizão de Lloyd George, porém fracassou vergonhosamente e o Primeiro-Ministro expulsou-o do gabinete.

E esse mesmo Chamberlain foi quem chefiou o Governo britânico em maio de 1937, em uma situação mundial extremamente complicada e difícil! Sem querer, pensava eu de vez em quando: “A que extremo de profunda decomposição chegou a classe dominante inglesa!” (...)

E a única coisa que podia fazer um Primeiro-Ministro dotado de tais qualidades era agravar as relações anglo-soviéticas. Precisamente por sua hostilidade ao Governo soviético, semelhante Primeiro-Ministro só poderia acentuar a política de “apaziguamento” dos agressores. Nada de bom podíamos esperar dele!

Por sombrios que fossem meus sentimentos, resolvi, apesar de tudo, entrevistar-me com o novo Primeiro Ministro e sondar seu estado de espírito. Chamberlain recebeu-me em 29 de julho em seu gabinete no Parlamento, mantendo-se mais sereno e comedido do que durante a nossa primeira entrevista cinco anos atrás. Perguntei-lhe qual era, em linhas gerais, a política que se propunha aplicar o Governo inglês no terreno das relações internacionais. E Chamberlain explicou-me longa e circunstanciadamente que o problema fundamental, no momento, era, na sua opinião, a Alemanha. Em primeiro lugar, ter-se-ia que solucionar esse problema, depois do que, tudo o mais não apresentaria dificuldades especiais. Mas como resolver o problema alemão? Ao Primeiro Ministro se lhe afigurava inteiramente possível fazê-lo se se aplicasse um método acertado.

— Se pudéssemos — disse ele — sentar-nos com os alemães à mesma mesa e reexaminar, de lápis na mão, todas as suas queixas e pretensões, muito ficariam esclarecidas as relações.

Isto é, o que da questão residia unicamente em sentar-se a mesma mesa de lápis na mão! Que simplório! Lembrei-me involuntariamente das palavras de Lloyd George: “fabricante provinciano de camas de ferro”. Como se conclui, Chamberlain imaginava a Hitler e a si mesmo como dois comerciantes que discutem, gritam, regateiam e, no final, fecham o trato. Tão rudimentares eram assim as noções políticas do Primeiro Ministro!

Do que me falou Chamberlain em 29 julho se deduzia, de forma iniludível, que aspirava a conseguir um pacto dos quatro (Alemanha, França, Inglaterra e Itália), vendo nisso a maneira de “apaziguar”, por todos os meios, Hitler e Mussolini.”

 

 

“O objetivo de Chamberlain consistia em “apaziguar” os ditadores fascistas como meio de estabelecer a “segurança ocidental”. É claro que isso não passava de uma idiotice, como dissera Churchill; porém o ódio de classe ao Estado socialista era tão grande em Chamberlain (e não somente nele) que lhe ofuscava por completo o espírito. Em suas memórias de guerra, Churchill assinala ironicamente ao falar de Chamberlain e de sua atitude perante Hitler: “Mister Chamberlain animava-se da esperança de apaziguá-lo e reformá-lo para levá-lo depois a plena mansidão”.13 Churchill atém-se nesse trecho a maneiras literárias polidas. Porém nas conversações particulares expressava-se com muito mais rudeza. Recordo-me de que um dia me disse:

— Neville é um imbecil... Pensa que se pode cavalgar um tigre.”

13 W. Churchill, Second World War, 5ª edição, vol. I, L., 1955, pág. 322.

 

 

“Iniciou-se então a rápida ascensão de sir Horace Wilson como conselheiro autêntico, e cada dia mais poderoso, do Primeiro-Ministro para os assuntos de política exterior. Conhecia-o bem das negociações comerciais com a Inglaterra. Horace Wilson, na ocasião “conselheiro industrial principal do Governo britânico”, foi o representante mais destacado da parte inglesa durante a elaboração do convênio comercial provisório de 1934. Era um homem astuto e hábil, cínico até a medula, e para o qual o mundo era composto de imbecis e miseráveis. Wilson conhecia a perfeição todos os assuntos do comércio e da indústria, porém seus horizontes em matéria de política exterior se encontravam ao nível do pequeno-burguês médio. E Chamberlain atribuía precisamente a esse homem, como perito da sua maior confiança, a solução dos problemas internacionais fundamentais! Parecia uma loucura... Mas, não foi toda a política exterior de Chamberlain por acaso uma loucura, uma loucura completa, cultivada com o fermento do ódio de classe, da estupidez e da ignorância?”

 

 

“Desse modo, Chamberlain muniu-se de um sistema modesto e dócil, após o que empreendeu a aplicação consequente de sua “própria” política exterior.

Começou pela Alemanha. Já em fins de novembro de 1937, Halifax recebeu de Chamberlain a incumbência de fazer uma peregrinação até Berlim e entabular negociações com Hitler sobre um acordo geral das relações anglo-germânicas. Naquele momento, desconhecíamos ainda todos os detalhes dessas negociações, porém seu sentido geral era claro para nós. Outrossim, nos meios políticos da Inglaterra filtrou-se algo do que ocorria em Berlim e chegou ao nosso conhecimento. Em consequência, aumentou em grande escala a desconfiança da parte soviética para com o Governo de Chamberlain. Os documentos do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha encontrados pelo Exército Soviético em Berlim provam hoje que tínhamos motivos mais que sobejos para desconfiar.

Com efeito, as notas de conversação mantida por Hitler e Halifax em 17 de novembro de 1937, publicadas pelo Ministério de Negócios Estrangeiros da URSS em 1948, mostram, com toda clareza, que Halifax propôs a Hitler, em nome do Governo Britânico, uma espécie de aliança à base de um ‘‘pacto dos quatro” e de deixar-lhe as mãos livres na Europa Central e Oriental. Halifax declarou, em particular, que “não se deve excluir nenhuma possibilidade de mudar a situação existente” na Europa. E mais adiante frisou que “entre essas questões figuram Dantzing, a Áustria e a Tchecoslováquia”. Como é natural, ao apontar a Hitler a direção da agressão que encontraria menos resistência por parte do Governo de Chamberlain, Halifax considerou necessário fazer a seguinte ressalva:

— “A Grã-Bretanha está interessada unicamente em que as referidas mudanças se façam por meio de uma evolução pacífica e em que se possa evitar os métodos suscetíveis de produzir novas emoções que nem o Führer nem os outros países desejariam”.14

Hitler, contudo, compreendia bem o valor dessa ressalva, e pela qual pode considerar sua conversação com Halifax como o beneplácito de Londres para a conquista violenta de espaço vital nas zonas indicadas. E quando Eden se demitiu e Halifax foi nomeado Ministro das Relações Exteriores, Hitler pensou, e não sem razão, que havia chegado o momento de levar a prática o programa de agressão traçado durante sua entrevista de novembro de 1937. Não perdeu tempo, e em 12 de março de 1938, doze dias depois de Halifax ser nomeado Ministro das Relações Exteriores, deu o primeiro grande “salto”: apoderou-se da Áustria com um golpe relâmpago. Como se zombasse dos “apaziguadores” de Londres, o Führer fez coincidir a anexação precisamente com o dia em que Chamberlain recebia na Inglaterra, com toda solenidade, o Ministro das Relações Exteriores da Alemanha, von Ribbentrop. E o que aconteceu? A Inglaterra e a França reagiram perante tão clamante ato de agressão unicamente com protestos verbais, que nem eles próprios, e muito menos Hitler, levavam a sério.

Por maior e legítima que fosse, depois de todo o ocorrido, a desconfiança do Governo soviético para com o Governo de Chamberlain, os dirigentes da URSS tentaram, naquele momento crítico, apelar para o bom senso dos dirigentes da Grã-Bretanha. Em 17 de março de 1938, cinco dias após a anexação da Áustria, o Comissário do Povo de Negócios Estrangeiros, Litvinov, fez, em Moscou, algumas declarações aos jornalistas, em nome do Governo soviético, nas quais, entre outras coisas, afirmou:

— “Se os casos de agressão se haviam registrado antes em continentes mais ou menos afastados da Europa ou no extremo da Europa... desta vez a violência se produziu no centro da Europa, provocando um iniludível perigo tanto para os onze países que agora fazem limites com o agressor, como para todos os Estados Europeus, e não somente europeus...

Surge, em primeiro lugar, uma ameaça para a Tchecoslováquia...

A atual situação internacional faz surgir ante todos os Estados pacíficos e, em particular, perante as grandes potências, o problema de sua responsabilidade pelo destino dos povos da Europa e não somente da Europa. O Governo soviético está consciente da parcela de responsabilidade que lhe cabe, como também dos compromissos que lhe dizem respeito na Carta da Sociedade das Nações, no pacto Briand-Kellog e nos tratados de assistência mútua que firmou com a França e a Tchecoslováquia, e pode declarar em seu nome que está disposto, como antes, a participar nas ações coletivas acordadas conjuntamente com ele e que tenham por fim deter o desenvolvimento da agressão e eliminar o crescente perigo de uma nova guerra mundial. O Governo soviético está disposto a examinar imediatamente, junto com outras potências, na Sociedade das Nações ou a margem dela, as medidas práticas ditadas pelas circunstâncias”15

Simultaneamente, recebi de Moscou a indicação de entregar ao Governo britânico o texto das declarações de Litvinov, acompanhando-as uma nota na qual se dizia que as citadas declarações expressavam oficialmente o ponto de vista do Governo soviético. Assim o fiz. O mesmo fizeram também, cumprindo as instruções recebidas de Moscou, os embaixadores soviéticos em Paris e Washington. Assim, portanto, a URSS declarou publicamente que estava disposta a adotar medidas enérgicas contra a agressão e exortou a Inglaterra, a França e os Estados Unidos a procederem da mesma maneira. A União Soviética cumpriu com o seu dever. E os outros?”

14 Documentos y materiales de vísperas de la Segunda Guerra Mundial, tomo I. págs. 24 e 34, ed. em espanhol, Moscou, 1948.

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