Editora: Imago
ISBN: 978-85-3120-974-1
Tradução: Órizon Carneiro Muniz
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 278
“Na
fase animista, os homens atribuem a onipotência a si mesmos. Na fase
religiosa, transferem-na para os deuses, mas eles próprios não desistem dela
totalmente, porque se reservam o poder de influenciar os deuses através de uma
variedade de maneiras, de acordo com os seus desejos. A visão científica do
universo já não dá lugar à onipotência humana; os homens reconheceram a sua
pequenez e submeteram-se resignadamente à morte e às outras necessidades na
natureza. Não obstante, um pouco da crença primitiva na onipotência ainda
sobrevive na fé dos homens no poder da mente humana, que entra em luta com as
leis da realidade.
Se
acompanharmos retrospectivamente o desenvolvimento das tendências libidinais,
tal como as encontramos no indivíduo, desde suas formas adultas até os seus
começos na infância, surge uma importante distinção, que descrevi em Três
Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Manifestações dos instintos sexuais
podem ser observadas desde os começos, mas, de saída, elas ainda não são
dirigidas para qualquer objeto externo. Os componentes instintivos separados da
sexualidade atuam independentemente uns dos outros, a fim de obter prazer e
encontrar satisfação no próprio corpo do sujeito. Essa fase é conhecida como a
do auto-erotismo, sendo sucedida por outra, na qual um objeto é escolhido.
Estudos
ulteriores demonstraram que é conveniente e verdadeiramente indispensável
inserir uma terceira fase entre aquelas duas, ou, em outras palavras, dividir a
primeira fase, a do auto-erotismo, em duas. Nessa fase intermediária, cuja
importância a pesquisa tem evidenciado cada vez mais, os instintos sexuais até
então isolados já se reuniram num todo único e encontraram também um objeto.
Este objeto, porém, não é um objeto externo, estranho ao sujeito, mas se trata
de seu próprio ego, que se constituiu aproximadamente nessa mesma época. Tendo
em mente as fixações patológicas dessa nova fase, que se tornam observáveis
mais tarde, demos-lhe o nome de ‘narcisismo’. O sujeito comporta-se como se
estivesse amoroso de si próprio; seus instintos egoístas e seus desejos
libidinais ainda não são separáveis pela nossa análise.
Embora
ainda não estejamos em posição de descrever com exatidão suficiente as
características dessa fase narcisista, na qual os instintos sexuais até então
dissociados se reúnem numa unidade isolada e catexizam* o ego como objeto, já
temos motivos para suspeitar que essa organização narcisista nunca é totalmente
abandonada. Um ser humano permanece até certo ponto narcisista, mesmo depois de
ter encontrado objetos externos para a sua libido. As catexias de objetos que
efetua são, por assim dizer, emanações da libido que ainda permanece no ego e
pode ser novamente arrastada para ele. A condição de apaixonado, que é
psicologicamente tão notável e é o protótipo normal das psicoses, mostra essas
emanações em seu máximo, comparadas com o nível do amor a si mesmo.”
* Catexia: concentração de todas as energias mentais sobre uma
representação bem precisa, um conteúdo de memória, uma sequência de pensamentos
ou encadeamento de atos; catexe.
“Se
podemos considerar a existência da onipotência de pensamentos entre os povos
primitivos como uma prova em favor do narcisismo, somos incentivados a fazer
uma comparação entre as fases do desenvolvimento da visão humana do universo e
as fases do desenvolvimento libidinal do indivíduo. A fase animista corresponderia
à narcisista, tanto cronologicamente quanto em seu conteúdo; a fase religiosa
corresponderia à fase da escolha de objeto, cuja característica é a ligação da
criança com os pais; enquanto que a fase científica encontraria uma
contrapartida exata na fase em que o indivíduo alcança a maturidade, renuncia
ao princípio de prazer, ajusta-se à realidade e volta-se para o mundo externo
em busca do objeto de seus desejos.
Apenas
em um único campo de nossa civilização foi mantida a onipotência de pensamentos
e esse campo é o da arte. Somente na arte acontece ainda que um homem consumido
por desejos efetue algo que se assemelhe à realização desses desejos e o que
faça com um sentido lúdico produza efeitos emocionais – graças à ilusão
artística – como se fosse algo real. As pessoas falam com justiça da ‘magia da
arte’ e comparam os artistas aos mágicos. Mas a comparação talvez seja mais
significativa do que pretende ser. Não pode haver dúvida de que a arte não
começou como arte por amor à arte. Ela funcionou originalmente a serviço de
impulsos que estão hoje, em sua maior parte, extintos. E entre eles podemos
suspeitar da presença de muitos intuitos mágicos.”
“Os
espíritos e os demônios, como demonstrei no último ensaio, são apenas projeções
dos próprios impulsos emocionais do homem. Ele transforma as suas catexias
emocionais em pessoas, povoa o mundo com elas e enfrenta os seus processos
mentais internos novamente fora de si próprio.”
“Existe
em nós uma função intelectual que exige unidade, conexão e inteligibilidade de
qualquer material, seja da percepção ou do pensamento, que cai sob o seu
domínio e se, em consequência de circunstâncias especiais, não pode estabelecer
uma conexão verdadeira, não hesita em fabricar uma falsa. Os sistemas
construídos desta maneira chegam ao nosso conhecimento não apenas através dos
sonhos, mas também das fobias, do pensamento obsessivo e dos delírios. A
construção de sistemas é percebida de modo mais notável nas perturbações
delirantes (na paranoia), onde domina o quadro sintomático; mas sua ocorrência
em outras formas de neuropsicoses não deve ser subestimada. Em todos esses
casos pode-se demonstrar que uma nova arrumação do material psíquico foi feita
com um novo objetivo em vista, e muitas vezes essa redisposição tem de ser
radical, se é que se quer que o resultado pareça inteligível do ponto de vista
do sistema. Assim, um sistema é mais bem caracterizado pelo fato de pelo menos
duas razões poderem ser descobertas para cada um de seus produtos: uma razão
baseada nas premissas do sistema (uma razão, que pode ser, então, delirante) e
uma razão oculta, que devemos julgar como sendo a verdadeiramente operante e
real.”
“‘‘Um
totem’, escreve Frazer em seu primeiro ensaio sobre o assunto, ‘é uma classe de
objetos materiais que um selvagem encara com supersticioso respeito,
acreditando existir entre ele e todos os membros da classe uma relação íntima e
inteiramente especial (…) A vinculação entre um homem e seu totem é mutuamente
benéfica; o totem protege o homem e este mostra seu respeito por aquele de
diversas maneiras, não o matando, se for um animal; não o cortando, nem
colhendo, se for um vegetal. Distintamente de um fetiche, um totem nunca é um
indivíduo isolado, mas sempre uma classe de objetos, em geral uma espécie de animais
ou vegetais, mais raramente uma classe de objetos naturais inanimados, muito
menos ainda uma classe de objetos artificiais.”
“As
autoridades, como de costume, são mais eficientes em suas críticas das obras
dos outros do que em sua própria produção.”
“Não
é fácil perceber porque qualquer instinto humano profundo deva necessitar ser
reforçado pela lei. Não há lei que ordene aos homens comer e beber ou os proíba
de colocar as mãos no fogo. Os homens comem e bebem e mantém as mãos afastadas
do fogo instintivamente por temor a penalidades naturais, não legais, que
seriam acarretadas pela violência aplicada a esses instintos. A lei apenas
proíbe os homens de fazer aquilo a que seus instintos os inclinam; o que a
própria natureza proíbe e pune, seria supérfluo para a lei proibir e punir. Por
conseguinte, podemos sempre com segurança pressupor que os crimes proibidos
pela lei são crimes que muitos homens têm uma propensão natural a cometer. Se
não existisse tal propensão, não haveriam tais crimes e se esses crimes não
fossem cometidos, que necessidade haveria de proibi-los? Desse modo, em vez de
presumir da proibição legal do incesto que existe uma aversão natural a ele,
deveríamos antes pressupor haver um instinto natural em seu favor e que se a
lei o reprime, como reprime outros instintos naturais, assim o faz porque os
homens civilizados chegaram à conclusão de que a satisfação desses instintos
naturais é prejudicial aos interesses gerais da sociedade.” (James Frazer)
“Robertson
Smith mostrou-nos que a antiga refeição totêmica se repete sob a forma original
de sacrifício. O significado do ato é o mesmo: santificação por meio da
participação numa refeição comum. O sentimento de culpa, que só pode ser
aliviado pela solidariedade de todos os participantes, persiste também. O que é
novo é a divindade do clã, em cuja suposta presença o sacrifício é executado,
que participa da refeição como se fosse um membro do clã e com quem aqueles que
consomem se tornam identificados. Como veio o deus a colocar-se numa situação à
qual era originalmente estranho?
A
resposta poderia ser que, nesse meio tempo, surgiu – de alguma fonte
desconhecida – o conceito de Deus assumindo o controle de toda a vida
religiosa; e que, como tudo o mais que quisesse sobreviver, a refeição totêmica
foi obrigada a encontrar um ponto de contato com o novo sistema. A psicanálise
dos seres humanos de per si, contudo, ensina-nos com insistência muito especial
que o deus de cada um deles é formado à semelhança do pai, que a relação
pessoal com Deus depende da relação com o pai em carne e osso e oscila e se
modifica de acordo com essa relação e que, no fundo, Deus nada mais é que um
pai glorificado. Como no caso do totemismo, a psicanálise recomenda-nos ter fé
nos crentes que chamam Deus de seu pai, tal como o totem era chamado de
ancestral tribal. Se a psicanálise merece alguma atenção, então – sem prejuízo
de quaisquer outras fontes ou significados do conceito de Deus, sobre os quais
não pode lançar luz – o elemento paterno nesse conceito deve ser um elemento
muito importante. Mas, nesse caso, o pai é representado duas vezes na situação
do sacrifício primitivo: uma vez como Deus e outra como a vítima animal
totêmica. E, mesmo pressupondo o número restrito de explicações aberto à
psicanálise, tem-se de perguntar se isto é possível e que sentido pode ter.
Sabemos
existir uma multiplicidade de relações entre o deus e o animal sagrado (o totem
ou a vítima sacrificatória). (1) Cada deus geralmente possui um animal (e muito
frequentemente diversos animais) que lhe é consagrado. (2) No caso de certos
sacrifícios especialmente sagrados – os sacrifícios ‘místicos’ – a vítima era
exatamente o animal consagrado ao deus (Smith). (3) O deus era frequentemente
adorado sob a forma de um animal (ou, encarando o fato de outra maneira, os
animais eram adorados como deuses), muito tempo após a época do totemismo. (4)
Nos mitos, o deus muitas vezes se transforma em animal e, com frequência, no
animal que lhe é consagrado.
Dessa
maneira, parece plausível supor que o próprio deus era o animal totêmico, e que
deste se desenvolveu numa fase posterior do sentimento religioso. Mas somos
liberados da necessidade de novos exames pela consideração de que o totem nada
mais é que um representante do pai. Assim, embora o totem possa ser a primeira
forma de representante paterno, o deus será uma forma posterior, na qual o pai
reconquistou sua aparência humana. Uma nova criação como esta, derivada do que
constitui a raiz de toda forma de religião – a saudade do pai – poderia ocorrer
se, no decurso do tempo, alguma mudança fundamental se houvesse efetuado na
relação do homem com o pai e, talvez, também na sua relação com os animais.
Sinais
da ocorrência de modificações dessa espécie podem ser facilmente percebidos,
mesmo se deixarmos de lado o começo de um afastamento afetivo dos animais e a
desagregação do totemismo devida à domesticação. Houve, no estado de coisas, um
fator produzido pela eliminação do pai que estava destinado, com o decorrer do
tempo, a provocar um enorme aumento na saudade que dele sentiam. Cada um dos
irmãos que se tinham agrupado com o propósito de matar o pai estava inspirado
pelo desejo de tornar-se semelhante a ele e dera expressão ao mesmo
incorporando partes do representante paterno na refeição totêmica. Entretanto,
em consequência da pressão exercida sobre cada participante pelo clã fraterno
como um todo, esse desejo não pôde ser realizado. De futuro, ninguém poderia
nem tentaria atingir o poder supremo do pai, ainda que isso fosse o objetivo
pelo qual todos tinham-se empenhado. Assim, após um longo lapso de tempo, o
azedume contra o pai, que os havia impulsionado à ação, tornou-se menor e a
saudade dele aumentou, tornando-se possível surgir um ideal que corporificava o
poder ilimitado do pai primevo contra quem haviam lutado, assim como a
disposição de submeter-se a ele. Em consequência de mudanças culturais
decisivas, a igualdade democrática original que havia predominado entre os
membros do clã tornou-se insustentável e desenvolveu-se ao mesmo tempo uma
inclinação, baseada na veneração sentida por determinados seres humanos, a
reviver o antigo ideal através da criação de deuses. A noção de um homem que se
torna deus ou de um deus que morre nos impressiona hoje como chocantemente
presunçosa, mas, mesmo na antiguidade clássica, nada havia de revoltante nela.
A elevação do pai que fora outrora assassinado à condição de um deus de quem o
clã alegava descender constituía uma tentativa de expiação muito mais séria do
que fora o antigo pacto com o totem.
Não
posso sugerir em que ponto deste processo de evolução é possível encontrar
lugar para as grandes deusas-mães, que podem talvez em geral ter precedido os
deuses-pais. Parece certo, contudo, que a mudança na atitude para com o pai não
se restringiu à esfera da religião, mas se estendeu de maneira harmônica àquele
outro lado da vida humana que fora afetado pela eliminação do pai – à
organização social. Com a introdução das divindades paternas, uma sociedade sem
pai gradualmente transformou-se numa sociedade organizada em base patriarcal. A
família constituiu uma restauração da antiga horda primeva e devolveu aos pais
uma grande parte de seus antigos direitos. Mais uma vez apareceram pais, mas as
conquistas sociais do clã fraterno não foram abandonadas; e a distância
existente entre os novos pais de uma família e o irrefreado pai primevo da
horda era suficientemente grande para garantir a continuidade do anseio
religioso, a persistência de uma saudade não apaziguada do pai.
Vemos
então que, na cena do sacrifício perante o deus do clã, pai é, na realidade
duas vezes – como o deus e como a vítima animal totêmica. Entretanto, em nossas
tentativas de compreensão dessa situação, devemos ter cuidado com as
interpretações que procuram traduzi-la de maneira bidimensional, como se fosse uma
alegoria, e para que, assim procedendo, não nos esquecemos de sua
estratificação histórica. A dupla presença do pai corresponde aos dois
significados cronologicamente sucessivos da cena. A atitude ambivalente para
com o pai encontrou nela uma expressão plástica e assim também a vitória das
emoções afetuosas do filho sobre as hostis. A cena da sujeição do pai, de sua
maior derrota, tornou-se o estofo da representação de seu triunfo supremo. A
importância que em toda parte, sem exceção, é atribuída ao sacrifício reside no
fato de ele oferecer satisfações ao pai pelo ultraje que lhe foi infligido no
mesmo ato em que aquele feito é comemorado.
À
medida que o tempo foi passando, o animal perdeu seu caráter sagrado e o
sacrifício, sua vinculação com o festim totêmico; tornou-se uma simples
oferenda à divindade, um ato de renúncia em favor do deus. O próprio Deus foi
sendo exaltado tão acima da humanidade que as pessoas só podiam aproximar-se
dele através de um intermediário – o sacerdote. Ao mesmo tempo, os reis divinos
fizeram seu aparecimento na estrutura social e introduziram o sistema
patriarcal no Estado. Devemos reconhecer que a vingança tomada pelo pai deposto
e restaurado foi rude: o domínio da autoridade chegou ao seu clímax. Os filhos
subjugados utilizaram-se da nova situação para aliviar-se ainda mais de seu
sentimento de culpa. Não eram mais, de maneira alguma, responsáveis pelo
sacrifício, tal como agora se fazia. Era o próprio Deus que o exigia e
regulamentava. Esta é a fase em que encontramos mitos apresentando o próprio
deus matando o animal que lhe é consagrado e que, na realidade, é ele próprio.
Temos aqui a negação mais extrema do grande crime que constituiu o começo da
sociedade e do sentimento de culpa. Mas há, nesta última representação do sacrifício,
um significado que é inequívoco. Ele expressa a satisfação pelo primitivo
representante paterno ter sido abandonado em favor do conceito superior de
Deus. Neste ponto, a interpretação psicanalítica da cena coincide
aproximadamente com a tradução alegórica e superficial dela, que representa o
deus a vencer o lado animal de sua própria natureza.
Não
obstante, seria um equívoco supor que os impulsos hostis inerentes ao
complexo-pai foram completamente silenciados durante esse período de autoridade
paterna revivida. Pelo contrário, as primeiras fases da dominância dos dois
novos representantes paternos – deuses e reis – apresentam os mais vigorosos
sinais da ambivalência que continua sendo uma das características da religião.
Em
sua grande obra, The Golden Bough,
Frazer apresenta o ponto de vista de que os primeiros reis das tribos latinas
foram estrangeiros que desempenhavam o papel de um deus e eram solenemente
executados num determinado festival. O sacrifício anual (ou, como variante, o
auto-sacrifício) de um deus parece ter sido um elemento essencial das religiões
semíticas. Os cerimonias de sacrifício humano, realizados nas mais diferentes
partes do globo habitado, deixam pouca dúvida de que as vítimas encontram seu
fim como representantes da divindade e esses ritos sacrificatórios podem ser
remontados a épocas antigas, com uma efígie ou boneco inanimado tomando o lugar
do ser humano vivo. O sacrifício teantrópico do deus, no qual, infelizmente, me
é impossível aqui deter-me de modo tão completo quanto no sacrifício animal,
lança uma luz retrospectiva sabre o significado das formas mais antigas de
sacrifício. Ele reconhece, com uma franqueza que dificilmente pode ser
excedida, o fato de que o objeto do ato de sacrifício sempre foi o mesmo, a
saber, aquilo que é hoje adorado como Deus, ou seja, o pai. O problema da
relação entre o sacrifício animal e o sacrifício humano admite assim uma
solução simples. O sacrifício animal original já constituía um substituto de um
sacrifício humano – a morte cerimonial do pai; assim sendo, quando o
representante paterno mais uma vez reassumiu sua figura humana, o sacrifício
animal também podia ser retransformado num sacrifício humano.
A
lembrança do primeiro grande ato de sacrifício mostrava-se assim indestrutível,
não obstante todos os esforços para esquecê-lo; e, no próprio ponto em que os
homens procuravam colocar-se a maior distância dos motivos que os levaram a
ele, sua reprodução indeformada surgiu na forma do sacrifício do deus. Não é
necessário estender-se aqui sobre os desenvolvimentos do pensamento religioso
que, sob a forma de racionalizações, tornaram possível esta recorrência.
Robertson Smith, que nada sabia de nossa interpretação que atribui a origem do
sacrifício a esse grande acontecimento da pré-história humana, declara que as
cerimônias dos festivais em que os antigos semitas celebravam a morte de uma
divindade ‘eram correntemente interpretadas como a comemoração de uma tragédia
mítica’. ‘O luto’, declara, ‘não é uma expressão espontânea de pesar pela tragédia
divina, mas obrigatória e forçada pelo temor da ira sobrenatural. E um dos
principais objetivos dos enlutados é rejeitar a responsabilidade pela morte do
deus – ponto que já foi examinado em conexão com os sacrifícios teantrópicos,
tais como a “morte do boi em Atenas”.’ Parece mais provável que essas
‘interpretações correntes’ fossem corretas e que os sentimentos dos celebrantes
fossem integralmente explicados pela situação subjacente.
Vamos
presumir ser um fato, então, que no decurso do desenvolvimento posterior das
religiões, os dois fatores propulsores, o sentimento de culpa do filho e sua
rebeldia, nunca se tenham extinguido. Todas as tentativas feitas para
solucionar os problemas religiosos, todos os tipos de reconciliação efetuados
entre essas duas forças mentais opostas mais cedo ou mais tarde ruíam sob a
influência combinada, sem dúvida, dos fatos históricos, das mudanças culturais
e das modificações psíquicas internas.
Os
esforços do filho para colocar-se no lugar do deus-pai tornaram-se ainda mais
óbvios. A introdução da agricultura aumentou sua família patriarcal. Ele
aventurou-se a novas demonstrações de sua libido incestuosa, que encontraram
satisfação simbólica no cultivo da Terra-Mãe. Surgiram figuras divinas como
Átis, Adônis e Tamuz, espíritos da vegetação e, ao mesmo tempo, divindades
cheias de juventude, a desfrutar dos favores das deusas-mães e a cometer
incesto com a mãe, em desafio ao pai. Mas o sentimento de culpa, que não fora
aliviado por essas criações, encontrou expressão em mitos que conferiam apenas
vidas breves a esses favoritos juvenis das deusas-mães e decretavam sua punição
pela emasculação ou pela ira do pai manifestada sob a forma de um animal.
Adônis foi morto por um javali, o animal sagrado de Afrodite; Átis, amado de Cibele,
pereceu por castração. O luto por esses deuses e o júbilo por sua ressurreição
foram transferidos para o ritual de outra divindade-filho que estava destinada
a alcançar um sucesso permanente.
Quando
o cristianismo pela primeira vez penetrou no mundo antigo, defrontou-se com a
competição da religião de Mitras e, durante algum tempo, houve dúvida em
relação a qual das duas divindades alcançaria a vitória. Não obstante o halo de
luz que rodeia a sua forma, o jovem deus persa continua a ser obscuro para nós.
Podemos talvez deduzir das esculturas de Mitras matando um touro que ele
representava um filho sozinho no sacrifício do pai, redimindo assim os irmãos
do ônus de cumplicidade no ato. Havia um método alternativo de mitigar a culpa
e ele foi adotado pela primeira vez por Cristo. Sacrificou a própria vida e
assim redimiu do pecado original o conjunto de irmãos. A doutrina do pecado
original era de origem órfica. Constituía parte dos mistérios e deles
propagou-se para as escolas de filosofia da antiga Grécia (Reinach). A
humanidade, dizia-se, descendia dos Titãs, que haviam matado o jovem
Dioniso-Zagreus e o despedaçado. A carga desse crime pesava sobre eles. Um
fragmento de Anaximandro conta como a unidade do mundo foi rompida por um
pecado primevo e que tudo dele surgido devia sofrer o castigo. A malta
tumultuosa, a matança e o despedaçamento pelos Titãs fazem-nos recordar com
bastante clareza o sacrifício totêmico descrito por São Nilo – bem como, a
propósito, também muitos outros mitos antigos, inclusive, por exemplo, o da
morte do próprio Orfeu. Não obstante, existe uma diferença perturbadora no fato
de o assassinato ter sido cometido contra um deus jovem.
Não
pode haver dúvida de que no mito cristão o pecado original foi um pecado
cometido contra o Deus-Pai. Se, entretanto, Cristo redimiu a humanidade do peso
do pecado original pelo sacrifício da própria vida, somos levados a concluir
que o pecado foi um homicídio. A lei de talião, que se acha tão profundamente
enraizada nos sentimentos humanos, estabelece que um homicídio só pode ser
expiado pelo sacrifício de outra vida: o auto-sacrifício aponta para a culpa
sanguínea. E se este sacrifício de uma vida ocasionou uma expiação para com o
Deus-Pai, o crime a ser expiado só pode ter sido o homicídio do pai.
Na
doutrina cristã, assim, os homens estavam reconhecendo da maneira mais
indisfarçada o ato primevo culpado, uma vez que encontraram a mais plena
expiação para ele no sacrifício desse filho único. A expiação para o pai foi
ainda mais completa visto que o sacrifício se fez acompanhar de uma renúncia
total às mulheres, por causa de quem a rebelião contra aquele fora iniciada.
Mas, neste ponto, a inexorável lei psicológica da ambivalência apareceu. O
próprio ato pelo qual o filho oferecia a maior expiação possível ao pai
conduzia-o, ao mesmo tempo, à realização de seus desejos contra o pai.
Ele próprio tornava-se Deus, ao lado, ou, mais corretamente, em lugar do pai.
Uma religião filial deslocava a religião paterna. Como sinal dessa
substituição, a antiga refeição totêmica era revivida sob a forma da comunhão,
em que a associação de irmãos consumia a carne e o sangue do filho – não mais
do pai – obtinha santidade por esse e identificava-se com ele. Assim podemos
acompanhar, através das idades, a identidade da refeição totêmica com o
sacrifício animal, com o sacrifício humano teantrópico e com a eucaristia
cristã, podendo identificar em todos esses rituais o efeito do crime pelo qual
os homens se encontravam tão profundamente abatidos, mas do qual, não obstante,
devem sentir-se tão orgulhosos. A comunhão cristã, no entanto, constitui
essencialmente uma nova eliminação do pai, uma repetição do ato culposo.
Podemos perceber a inteira justiça da declaração de Frazer de que ‘a comunhão
cristã absorveu um sacramento que é sem dúvida muito mais antigo que o
cristianismo’.”
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