quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Em torno de Marx – Leandro Konder

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-167-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 136

         “O passado pode nos ajudar, enriquecendo nosso quadro de referências. Mas pode também nos atrapalhar, induzindo-nos a preservar ideias já superadas.”


“A ação transformadora tem de ser rigorosa, precisa, oportuna. Para isso, a práxis necessita da teoria. E nem toda teoria é boa. Grandes construções teóricas já sofreram derrotas consideráveis em batalhas travadas contra ideias improvisadas e frágeis. Por quê? Porque os combates históricos são decididos no plano da atuação das forças materiais.
Os conceitos, as imagens, as opções podem promover o enraizamento de convicções nos indivíduos, a paixão pode arrebatá-los; mas, quando se põem em movimento, eles são inapelavelmente indivíduos de carne e osso, corpos ciosos de sua corporeidade.”


“O pensamento de Marx precisa aproveitar as contribuições desses teóricos batalhadores, sem dúvida, pois são elas que o mantêm vivo; mas, para ser coerente com sua concepção da história, para ressurgir com toda a sua força no campo de batalha, ele precisa encontrar nos movimentos sociais seu “exército”, seus “portadores materiais”, aos quais ele leva sua perspectiva revolucionária. E tratar de desenvolvê-la em sintonia com a experiência que aqueles homens estão vivendo. É o encontro da ação com a teoria – aquilo que Marx chamou de práxis.
A práxis é o conceito central da filosofia de Marx, o que está mais vivo nela. É a matriz de uma concepção original da história, uma concepção que, sendo materialista, reconhece o poder do sujeito de tomar iniciativas, fazer escolhas. Por isso, precisa de uma ética. Depende de valores que lhe permitam empenhar-se em projetos de transformação do mundo, na criação de um tipo melhor de sociedade, num futuro pelo qual valha a pena lutar. São os valores – “vale a pena” – que fazem um operário politizado levantar da cama de madrugada para participar de uma greve.”


“De um lado, podemos pinçar afirmações improcedentes no texto de Marx. De outro, do século XIX até o início do século XXI, nenhum dos grandes problemas apontados pelo filósofo foi resolvido pelo capitalismo. O capital, na medida em que passou a funcionar como o centro da vida social, continua extraindo “mais-valia” dos trabalhadores. O mercado joga todos contra todos, cultivando um espírito ultracompetitivo, ferindo a sensibilidade das pessoas, endurecendo seu coração.
O próprio avanço tecnológico vertiginoso, tal como é feito, em estreita associação com o lucro (gosto de lembrar que o termo vem do latim lucru, que deu origem tanto a “lucro” como a “logro”), privilegia nos investimentos as atividades mais lucrativas e gera uma taxa alta, permanente, de desemprego.
Posto sob o controle da sociedade, o mercado pode lhe prestar serviços relevantes como indicador de tendências que exigem atenção e requerem providências; transformado pela burguesia em centro da vida social, assume características inumanas, patológicas, com graves consequências e perversos efeitos colaterais.”


“O que “pedimos” a Marx? O que esperamos encontrar em seus escritos? De maneira geral, o que prevalece hoje, nas respostas a essas duas perguntas, tem a ver com nossa preocupação com a liberdade. O que entendemos por liberdade nas condições atuais, no Brasil e no mundo? A liberdade, tal como é vivida por indivíduos cada vez mais autônomos, é sempre prejudicada pelos movimentos que se insurgem contra a desigualdade social? Até quando os valores éticos, que só se realizam de modo significativo em ligação com autênticas comunidades humanas, conseguirão resistir ao bombardeio de cinismo e egocentrismo sofrido por nossas sociedades pulverizadas? Até quando a burguesia chorará sua incapacidade de impingir à sociedade os valores quantitativos – leia-se: o dinheiro – na função de valores qualitativos essenciais? E até quando os dominantes insistirão nas tentativas de convencer os dominados de que o valor de troca é mais importante que o valor de uso?
A concepção do homem em Marx é clara: o homem é o sujeito da práxis, que existe transformando o mundo e a si mesmo. É um ser que inventa a si mesmo, por isso às vezes nos surpreende e escapa. Na confusão criada hoje em dia pelo capitalismo, os indivíduos se libertam de grilhões envelhecidos, mas assumem outros vínculos, novos grilhões, que também os aprisionam. Bertolt Brecht, em sua Mãe coragem e seus filhos, põe em cena uma mulher do povo que descobre que pode fazer da guerra um bom negócio, porém a guerra vai lhe matando os filhos. Não foi por acaso que Brecht disse certa vez que Marx era o espectador ideal de suas peças.”


“Um gênio nem sempre é genial em tudo que faz.”


“A experiência histórica mostra que o moralismo, independentemente das intenções daqueles que o cultivam, é inócuo. Não é através dele que se conseguem fortalecer valores autenticamente humanos, desprezados pelos cínicos. O moralismo reduz a questão moral a um problema de linguagem. Mas os olhos dos outros não se iludem: os ouvidos dos zeladores dos costumes (do “ethos”) podem se distrair ouvindo o discurso do cínico, porém o olhar vigilante dos desconfiados investiga o tempo todo se o que os indivíduos dizem é confirmado pelo que fazem.
Às vezes, é muito difícil pegar o cínico em sua fala, seu discurso, sua argumentação. Como não acredita no que diz, o cínico pode dizer qualquer coisa. O conceito de práxis nos adverte para a necessidade de observarmos a articulação da fala com a ação, a articulação do “discurso” com a intervenção transformadora.”


“Benito Mussolini (1883-1945), um dos campeões dos cínicos, dizia que havia aprendido com Marx que “tudo é ideologia”, que a “busca da verdade” jamais superará o uso da ideologia como camuflagem necessária e que na política ela ajuda a disfarçar o interesse particular por baixo de uma fachada mistificadora apresentada como interesse geral.
Na perspectiva de Mussolini, não há espaço para reconhecer ou criar valores. Na perspectiva de Marx, não há como viver humanamente sem valores. O que se discute é “que valores eu adoto?”. “E como posso torná-los mais convincentes em meus argumentos?”


“A morte é a única certeza racional que nos é imediatamente acessível. É uma certeza perturbadora, porque nos traz a consciência de que a contradição entre o singular, que somos nós, e o universal, a que aspiramos, resulta inexoravelmente na eliminação do polo em que nós indivíduos nos encontramos.
A sensação da finitude é muito penosa. Daí a intensificação da busca do que perdura, do que vai além das limitações de nossa condição humana atual. A busca da transcendência pode ser feita em duas direções distintas: a do futuro e a do além. Pode ser mística ou utópica. Pode apontar na direção de um outro mundo ou na direção deste nosso mundo, mas inteiramente transformado e redimido.
A diferença não é grande. Nosso mundo, inteiramente transformado e redimido, já não é nosso mundo. O futuro, na exata medida que não é o presente, distingue-se deste e vai além dele. Com as condições atuais de vida, temos alguma familiaridade. O futuro, entretanto, é terra incógnita, região nunca antes desbravada.
O além da transcendência religiosa – o além dos místicos – sinaliza o que ainda não aconteceu e, no entanto, sempre acontecerá: a morte, a alma libertando-se do corpo (alguns acreditam na reencarnação). Sempre alguma coisa que está por vir. E a crença do religioso no outro mundo é também, inevitavelmente, crença em algo que revelará toda a força da sua verdade no futuro.
Mas há outras reações diante da inexorabilidade com que se apresenta a nós a questão da morte. A mais comum é: “não quero pensar nisso. Não vejo por que alguém teria razão de ser inconformado com a sua finitude. Nascemos, vivemos e morremos. Isso é tudo. E é natural”. É uma reação legítima. Paga-se, entretanto, na moeda da automistificação, um preço alto por ela.
Os epicuristas diziam que, enquanto a morte não chega para mim, ela é um problema dos outros, dos que estão morrendo. E, quando ela me alcançar, não será meu problema, justamente porque eu não existirei mais. Mas a frase atribuída a Epicuro só seria razoável se dispuséssemos de dois pressupostos:
1.      Se fôssemos capazes de permanecer imunes a qualquer envolvimento afetivo com a morte dos outros.
2.      Se fôssemos capazes de ignorar a presença da morte, antes de sua ocorrência, no processo da vida, nas mazelas do corpo, na experiência vivida na nossa fragilidade individual.
Na falta de tais pressupostos, o tema volta a se impor à nossa reflexão. E esta acaba se tornando uma das características mais marcantes da ideologia conservadora dominante na época atual: embora constantemente desafiados pela vida a pensar na morte, esquivamo-nos a encará-la, evitamos falar sobre ela.
O ambiente espiritual chamado pós-moderno, como parte de um movimento de aceitação do caráter fragmentário do real, facilita a desqualificação do tema.
A morte é a única certeza racional imediatamente acessível a todos e a cada um de nós. E é uma certeza racional negativa. O que sabemos sobre ela? Sabemos que dela ninguém escapa. Trata-se, obviamente, de um saber amargo. Porém, necessário. O reconhecimento dos limites do nosso saber sobre a morte nos impõe uma revisão permanente do nosso saber sobre a vida. Em linguagem hegeliana, poderíamos dizer que vida e morte são conceitos de determinação reflexiva.
Por sua abrangência, os dois conceitos não comportam uma abordagem filosófica que se disponha a ignorar a interdependência que – contraditoriamente – os une. E, por sua desafiadora unidade, não comportam um procedimento analítico que se limite a parti-los, e reparti-los, reduzindo-os a pedaços que não compõem um todo. A morte, porém, é um todo, que abrange a totalidade dos vivos.
Os seres humanos manifestam, com frequência, grande dificuldade para pensar a respeito da morte. A morte, é claro, apresenta-se inexoravelmente em todas as vidas. É impossível escamoteá-la. Os seres humanos, entretanto, recorrem de maneira consciente ou inconsciente a todos os meios para atenuar a presença dela, incorporando-a a rituais que procuram enfraquecer-lhe o impacto. Nesses rituais, quem morre é sempre o outro.
Não há dúvida de que o outro, no caso, é alguém com quem me identifico. Então, de certo modo, o outro sou eu. Bem observado o rito, acaba sendo enfatizada a maior ou menor distância entre a vida (a minha) e a morte (a alheia).
Por mais forte que possa ser, em determinados momentos, nossa capacidade de estranhar o outro, o diferente, aprendemos a conviver com ele. Nossa identidade passa pela assimilação da alteridade. Então, procuro no outro o caminho para solucionar meu problema: o de conferir sentido à vida (a minha) e à morte (a alheia).”


“Os hegelianos cometem um erro que não está na constatação da cisão interna da sociedade burguesa, mas no fato de, tendo enxergado um problema, conformarem-se com ele em vez de buscar uma solução. Eles querem ser livres, mas não assumem resolutamente esse querer. Seu dilema é o do bandido François Vidocq (1775-1857): “ou você é carcereiro ou é encarcerado”.
Em 1843-1844, sempre com o apoio de Engels, Marx começou a elaborar uma concepção do Homem e uma concepção da História. Sua visão da condição humana levava-o a acreditar que os homens, contraditoriamente, promoviam a dominação crescente da natureza, tomavam iniciativas oportunistas e mal orientadas e prejudicavam o sentimento de paridade entre indivíduos e comunidades. O sujeito dominava o objeto, mas o objeto vingava-se dele, destruindo as bases de sua autonomia.”


“Essa qualidade de teórico, detentor de saberes obscuros, põe-nos em contato com um par de categorias utilizado por Marx em seu trabalho: a base e a superestrutura. Alguns críticos sugerem que esse conceito em duplicata é mais uma imagem que uma ideia desenvolvida. Marx se preocupava com o que se passava no campo da cultura. A superestrutura deveria contribuir para manter as criações culturais em ligação forte com a base (a estrutura econômica). Contudo, a criação cultural não podia se deixar atrelar aos movimentos da economia política.
Um esquema mecanicista de interpretação recíproca da base e da superestrutura mostrava cotidianamente ao filósofo que o maior prejuízo acarretado ao movimento socialista pela ligação demasiado estreita entre os dois polos era o desperdício no uso de instrumentos dialéticos para esclarecer o que se passava historicamente.
Marx insistia em explicar sua concepção da história:
Na produção social de sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção, que correspondem a determinada fase de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva a superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual, em geral.
Esse é um trecho do prefácio de 1859 à Para a crítica da economia política, livro que antecipava alguns temas e ideias de O capital. E Marx ainda prosseguia:
Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, ao contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações se convertem em obstáculos a elas. Abre-se, assim, uma época de revolução social. Ao mudar a base econômica, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela.
Em conclusão, um conselho aos historiadores: “A anatomia da sociedade civil precisa ser procurada na economia política”.”


“Walter Benjamin dizia que a vitória põe o vitorioso numa situação que facilita o fortalecimento das tendências conservadoras já que, para consolidar sua conquista, é preciso cercála de muralhas e passar a viver dentro de um bunker. O derrotado, ao contrário, se quer sobreviver, precisa “banharse no sangue do dragão”, passando por todos os angustiantes incômodos de um ajuste de contas com suas próprias ilusões, isto é, com aquelas sinceras e enraizadas convicções, que, no entanto, o levaram à derrota.”


“Os ensaios que Marcuse publicou ao longo dos anos 1930 criticam asperamente as ambiguidades estruturais, insuperáveis, da ideologia “racionalista” liberal, porém levam sempre em conta os riscos de uma postura que, em nome da crítica ao liberalismo, levaria à destruição da liberdade. O liberalismo não peca por contrapor suas defesas das liberdades individuais ao totalitarismo: peca por se deixar infiltrar por critérios que resultam em formas de conivência com as tendências totalitárias.
A burguesia, segundo Marcuse, só pode proporcionar aos indivíduos atomizados uma igualdade abstrata, realizada como desigualdade concreta: a dos consumidores. A situação é delicada. Os consumidores são, afinal, portadores de uma nova exigência de felicidade e, no mercado, para onde seus desejos os conduzem, são condenados à frustração, já que poucos – pouquíssimos – dispõem de poder de compra suficiente para adquirir aquilo que supõem que deverá fazêlos felizes. Desta maneira, são criadas as condições para que se organize a consciência de que a verdadeira felicidade dos seres humanos só poderá ser alcançada por meio de uma transformação coletiva das condições materiais da existência.”


“O uso sistemático de meios repressivos disfarçados é típico da chamada “sociedade afluente”, na qual a sensação de liberdade é estimulada pelo fato de as pessoas poderem escolher entre muitas mercadorias e numerosos serviços, pelo fato de empregado e patrão poderem assistir aos mesmos programas de televisão, pelo fato de empregada e patroa poderem usar o mesmo batom etc.
Uma observação crítica da “sociedade afluente”, segundo Herbert Marcuse, revela os efeitos da manipulação dos comportamentos humanos. Os indivíduos falam cada vez mais sobre diversidade, diferenças individuais, originalidade, porém, de fato, estão se tornando cada vez mais parecidos uns com os outros, pois são permanentemente pressionados para se adaptarem a um “padrão de pensamento e de comportamento unidimensionais”9.
No passado (e até uma época recente), a cultura era capaz de contrapor críticas ideais e aspirações à ideologia dominante, por ela mesma acolhida. Era, portanto, uma cultura bidimensional. Na segunda metade do século XX, contudo, a sublimação característica das criações artísticas foi sendo substituída por uma “dessublimação”, que passava a “domesticar” os instintos dos indivíduos, enquadrandoos pragmaticamente na dinâmica do mercado.”


“O “marxismo” oficialmente adotado pelos partidos comunistas e pela União Soviética encastelavase em fórmulas ideológicas desgastadas, envelhecidas. No livro O marxismo soviético, Marcuse dizia que o marxismo, em vez de transformar a realidade socioeconômica existente na URSS, fora transformado por ela e se tornara uma ideologia de legitimação de uma vasta organização estatal e de uma complexa máquina políticopartidária. Por sua falta de vigor crítico, tornavase cúmplice do sistema capitalista contra o qual havia sido criado.”


“A grande divergência implícita entre Sartre e os comunistas era a de duas perspectivas contrastantes em relação à história. Os comunistas acusavam Sartre de ser individualista e ele respondia: “O ‘outro’ é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo”; “Em qualquer hipótese, cada um de nós é meio vítima, meio cúmplice, como todo mundo”. (...)
Na realidade, muito mais do que simpatizante do comunismo, Sartre era antipatizante do anticomunismo. Chegou mesmo a dizer que todo anticomunista é uma criatura desprezível. (...)
O fato de ser francês não o impediu de atuar com firmeza contra o colonialismo e a favor da independência da Argélia. Fazia comícios improvisados. O chefe de polícia, segundo consta, teria consultado o chefe de Estado, o general De Gaulle (1890-1970), sobre a necessidade de prender o filósofo agitador, e ele teria dito: “não vamos cair no ridículo de prender Voltaire”.”


“Cabe lembrarmos a velha indagação do escritor Tertuliano, na Antiguidade: “Quem controlará os controladores?”



“Alguns intelectuais conservadores, contudo, vêm há muito tempo viabilizando o funcionamento de sistemas baseados na desigualdade social, na preservação de privilégios, na exploração do trabalho e na repressão aos movimentos de massas.”

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