Editora:
Imago
ISBN:
978-85-3120-974-1
Tradução:
Órizon Carneiro Muniz
Opinião:
★★★★☆
Páginas:
278
“Mas o horror ao incesto demonstrado por
esses povos não se satisfaz com a criação das instituições que descrevi e que
parecem dirigir-se principalmente ao incesto grupal. Temos de acrescentar-lhes
um certo número de ‘costumes’ que regulam as relações dos indivíduos com os
seus parentes próximos, em nosso sentido do termo, costumes que são
literalmente forçados com severidade religiosa e cujo intuito mal pode ser
posto em dúvida. Esses costumes ou proibições costumeiras foram denominados de
‘evitações’. Estendem-se muito além das raças totêmicas da Austrália, porém
mais uma vez devo pedir aos meus leitores para se contentarem com um extrato
fragmentário, tirado do copioso material existente.
Na Melanésia, proibições restritivas desse
tipo regulam as relações do menino com a mãe e irmãs. Assim, por exemplo, na
Ilha dos Leprosos, uma das Novas Hébridas, quando um menino chega a uma certa
idade, deixa de morar em casa e se aloja na ‘casa comum’, onde passa a comer e
dormir regularmente. Pode ainda ir à casa do pai pedir comida, mas, se alguma
irmã estiver em casa, terá de ir embora antes de comer. Se nenhuma irmã lá
estiver, poderá sentar-se perto da porta e comer. Se, por acaso, um irmão e uma
irmã, se encontrarem ao ar livre, ela terá de fugir correndo ou esconder-se. Se
um menino souber que certas pegadas na estrada são de sua irmã, não as seguirá,
como ela também não seguirá as dele. Na realidade, nem sequer pronuncia o nome
dela e uma palavra comum, se fizer parte desse nome. Esta evitação começa com
as cerimônias da puberdade e se mantém durante toda a vida. A reserva entre o
filho e a mãe aumenta à medida que o menino cresce, sendo muito maior da parte
dela que da dele. Se a mãe lhe traz comida, não a entrega diretamente, coloca-a
no chão para que ele a apanhe. No diálogo não o trata por tu, usa as formas
mais cerimoniosas do plural.
Costumes semelhantes predominam na Nova
Caledônia. Se acontece um irmão e uma irmã encontrarem-se num caminho, a irmã
esconde-se dentro do mato e o irmão passa sem virar a cabeça.
Entre os nativos da Península Gazelle, na
Nova Bretanha, não é permitido que uma moça, depois de casada, converse com o
irmão; ela nunca pronuncia o nome dele; designa-o por outra palavra.
Em New Mecklenburg, os primos de certos graus
estão sujeitos a restrições semelhantes às estabelecidas para irmãos e irmãs.
Não podem aproximar-se um do outro, apertar-se as mãos, nem se presentear,
sendo-lhes permitido porém falar-se a distância de alguns passos. A penalidade
para o incesto com uma irmã é a morte por enforcamento.
Em Fiji, essas regras de evitação são
particularmente rigorosas; atingem não somente as irmãs de sangue, mas também
as irmãs tribais. É de espantar-nos como o mais misterioso de tudo que estes
mesmos selvagens realizem orgias sagradas, nas quais precisamente os de graus
de parentesco proibido procuram ter relações sexuais – isto é, misterioso a
menos que vejamos o contraste como uma explicação da proibição.
Entre os batas da Sumatra, as regras de
evitação aplicam-se a todos os parentes próximos. ‘Um bata, por exemplo,
acharia chocante que um irmão acompanhasse a irmã a uma festa noturna. Mesmo na
presença de terceiros, um irmão e uma irmã batas sentem-se pouco à vontade. Se
um entra em casa, o outro sai. Além disso, o pai nunca pode ficar sozinho com a
filha em casa, nem a mãe com o filho (…) O missionário holandês que narra esses
costumes acrescenta que sente muito dizer, mas pelo que conhece dos batas, acha
que a manutenção da maioria dessas regras é muito necessária.’ Para essas
pessoas um encontro a sós entre um homem e uma mulher conduz naturalmente a uma
intimidade imprópria entre eles. E, desde que acreditam que as relações sexuais
entre parentes próximos acarretarão castigos e calamidades de todos os tipos,
têm razão em evitar qualquer tentação de transgredir essas proibições.
Muito curioso é que entre os barongos de Delagoa
Bay, na África do Sul, as regras mais estritas afetam as relações de um homem
com sua cunhada, a esposa do irmão de sua mulher. Se encontra essa pessoa
temível em alguma parte, cuidadosamente a evita. Não come no mesmo prato que
ela, dirige-lhe a palavra com constrangimento, não se aventura a ir à sua
choupana e a cumprimenta com voz trêmula.
Uma regra de evitação que era de se esperar
fosse encontrada com mais frequência funciona entre os a-kambas (ou wakambas),
da África Oriental Inglesa. Uma moça tem de evitar o pai no período que vai da
puberdade ao casamento. Se se encontram na estrada, esconde-se enquanto ele
passa, e nunca pode sentar-se perto dele. Isso vigora até o noivado. Depois do
casamento já não mais terá de evitar o pai.
Sem sombra de dúvida, a evitação mais
difundida e rigorosa (e a mais interessante, do ponto de vista das raças
civilizadas) é a que impede as relações de um homem com a sogra. É bastante
generalizada na Austrália e estende-se também à Melanésia, Polinésia e às raças
negras da África, onde quer que traços de totemismo e do sistema
classificatório de parentesco sejam encontrados e provavelmente mais além
ainda. Em alguns desses lugares existem proibições semelhantes quanto a
relações inocentes entre uma mulher e o sogro, mas são muito menos comuns e
severas. Em alguns casos isolados, ambos os sogros acham-se sujeitos à
evitação.”
“A psicanálise nos ensinou que a primeira
escolha de objetos para amar feita por um menino é incestuosa e que esses são
objetos proibidos: a mãe e a irmã. Estudamos também a maneira pela qual, à
medida que cresce, ele se liberta dessa atração incestuosa. Um neurótico, por
outro lado, apresenta invariavelmente um certo grau de infantilismo psíquico;
ou falhou em libertar-se das condições psicossexuais que predominavam em sua
infância ou a elas retornou; duas possibilidades que podem ser resumidas como
inibição e regressão no desenvolvimento. Assim, as fixações incestuosas da
libido continuam (ou novamente começam) a desempenhar o papel principal em sua
vida mental inconsciente. Chegamos ao ponto de considerar a relação de uma
criança com os pais, dominada como é por desejos incestuosos, como o complexo
nuclear das neuroses. Esta revelação da importância do incesto na neurose é
naturalmente recebida com ceticismo geral pelos adultos e pelas pessoas
normais. Somos levados a acreditar que essa rejeição é, antes de tudo, um
produto da aversão que os seres humanos sentem pelos seus primitivos desejos
incestuosos, hoje dominados pela repressão. Por conseguinte, não é de pouca
importância que possamos mostrar que esses mesmos desejos incestuosos, que
estão destinados mais tarde a se tornarem inconscientes, sejam ainda encarados
pelos povos selvagens como perigos imediatos, contra os quais as mais severas
medidas de defesa devem ser aplicadas.”
“O tabu é uma proibição primeva forçadamente
imposta (por alguma autoridade) de fora, e dirigida contra os anseios mais
poderosos a que estão sujeitos os seres humanos. O desejo de violá-lo persiste
no inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu têm uma atitude ambivalente
quanto ao que o tabu proíbe. O poder mágico atribuído ao tabu baseia-se na
capacidade de provocar a tentação e atua como um contágio porque os exemplos
são contagiosos e porque o desejo proibido no inconsciente desloca-se de uma
coisa para outra. O fato de a violação de um tabu poder ser expiada por uma
renúncia mostra que esta renúncia se acha na base da obediência ao tabu.”
“O Tratamento dos Inimigos
Talvez tenhamos a inclinação de supor que os
povos selvagens e semi-selvagens sejam culpados de crueldade desinibida e
implacável para com os seus inimigos. Ficaremos muito surpreendidos de saber,
então, que mesmo no caso deles, a morte de um homem é regida por grande número
de observâncias que estão incluídas entre as práticas do tabu. Essas
observâncias podem ser distribuídas facilmente em quatro grupos. Elas exigem:
(1) o apaziguamento do inimigo assassinado, (2) restrições sobre o assassino,
(3) atos de expiação e purificação por parte dele e (4) certas observâncias
cerimoniais. Nossas informações incompletas sobre o assunto não nos permitem
determinar com certeza quão geral ou modificada essas práticas podem ser
encontradas entre os povos em questão, mas, para o objetivo do nosso estudo,
isto não importa. Pode-se admitir com segurança, em todo caso, que o que temos
diante de nós não são peculiaridades isoladas, mas costumes muito difundidos.
Os ritos de apaziguamento levados a
efeito na ilha de Tímor, quando uma expedição de guerra retorna em triunfo,
trazendo as cabeças do inimigo vencido, são particularmente notáveis, visto
que, além deles, o chefe da expedição é submetido a severas restrições. Por
ocasião da volta da expedição, são oferecidos sacrifícios para apaziguar as
almas dos homens cujas cabeças foram cortadas. ‘O povo pensa que algum
infortúnio sobreviria ao vencedor se essas oferendas fossem omitidas. Além
disso, parte da cerimônia consiste numa dança acompanhada por um cântico, no
qual a morte do homem assassinado é lamentada e suplicado o seu perdão. “Não
tenhais raiva”, dizem, “porque vossa cabeça está aqui conosco; se tivéssemos
tido menos sorte, nossas cabeças poderiam estar agora expostas em vossa aldeia.
Oferecemos o sacrifício para vos apaziguar. Vosso espírito pode agora descansar
e deixar-nos em paz. Por que fostes nosso inimigo? Não teria sido melhor que
tivéssemos permanecido amigos? Então vosso sangue não teria sido derramado e
vossa cabeça não teria sido decepada.’ O mesmo se aplica aos povos de Paloo,
nas Celebes. E do mesmo modo ‘os gallas [da África Oriental], de volta da
guerra, oferecem sacrifícios aos djims ou espíritos protetores de seus inimigos
mortos antes de entrarem em suas próprias casas’.
Outros povos encontraram meios de transformar
seus ex-inimigos, após a morte, em protetores, amigos e benfeitores. Esse
método consiste em tratar suas cabeças decepadas com afeição, como alguns dos
povos selvagens de Bornéu se gabam de fazer. Quando os dyaks marítimos de
Sarawak trazem para casa uma cabeça, de uma expedição bem sucedida de caçadores
de cabeça, durante meses após sua chegada ela é tratada com a maior
consideração, sendo-lhe dirigidos todos os nomes carinhosos de que dispõe sua
língua. As mais delicadas iguarias lhe são postas na boca, alimentos finos de
todas as espécies e até mesmo charutos. Implora-se repetidamente à cabeça que
odeie seus antigos amigos e ame seus novos anfitriões, visto que se tornou
agora um deles. Seria um grande erro supor que esses costumes, que tanto nos
chocam, são cumpridos com qualquer intenção de ridículo.
Em várias tribos selvagens da América do
Norte observadores ficaram impressionados com as lamentações por inimigos que
haviam sido mortos e escalpelados. Quando um choctaw matava um inimigo, ficava
de luto por um mês, durante o qual era submetido a severas restrições; e os
dacotas tinham práticas semelhantes. Quando os osages, informa uma testemunha,
já prantearam bastante seus próprios mortos, ‘lamentarão o inimigo como se
fosse um amigo’.
Antes de considerarmos as classes restantes
de práticas tabus em relação a inimigos, devemos tratar de uma objeção óbvia.
Argumentarão contra nós, juntamente com Frazer e outros, que os fundamentos
desses ritos de apaziguamento são bastante simples e nada têm a ver com essa
coisa chamada ‘ambivalência’. Esses povos são dominados por um temor
supersticioso dos fantasmas dos assassinados – temor que não era desconhecido
na antiguidade clássica e que foi levado à cena pelo grande dramaturgo inglês
nas alucinações de Macbeth e Ricardo III. Todos os ritos de apaziguamento
decorrem logicamente dessa superstição bem como as restrições e atos de
expiação. Esse ponto de vista também é apoiado pelo quarto grupo dessas
observâncias, que só podem ser explicadas como tentativas de afugentar os
fantasmas das vítimas que estão perseguindo seus assassinos. Além disso, os
selvagens admitem abertamente seu temor dos fantasmas dos inimigos mortos e
eles próprios atribuem a esse medo as práticas do tabu que ora são objeto de
nosso exame. (...)
A conclusão que devemos inferir de todas
essas observâncias é que os impulsos que expressam para com um inimigo não são
unicamente hostis. São também manifestações de remorso, de admiração pelo
inimigo e de consciência pesada por havê-lo matado. É difícil resistir à ideia
de que, muito antes de uma tábua de leis ter sido legada por qualquer deus,
esses selvagens estavam de posse de um mandamento vivo: ‘Não matarás’, cuja
violação não passaria sem punição.”
“Não é de admirar por isso que se tenha
sentido a necessidade de isolar pessoas perigosas como chefes e sacerdotes do
resto da comunidade, criando em torno deles uma barreira que os tornasse
inacessíveis. Pode começar a surgir em nós o pensamento de que essa barreira,
originalmente erguida para a observância do tabu, permanece até o dia de hoje
sob a forma do cerimonial da corte.
Mas talvez a parte principal desse tabu sobre
os governantes não provenha da necessidade de proteção contra eles. A
segunda razão para o tratamento especial das pessoas privilegiadas – a
necessidade de fornecer proteção para eles contra a ameaça de perigo –
teve um papel evidente na criação de tabus e, assim, na origem da etiqueta
cortesã.
A necessidade de proteger o rei contra toda
forma possível de perigo decorre de sua imensa importância para os seus
súditos, seja para o bem-estar, seja para a preocupação destes. É a sua pessoa
que, estritamente falando, regula todo o curso da existência. ‘As pessoas têm
de agradecer-lhe pela chuva e o sol que nutrem os frutos da terra, pelo vento
que traz os navios às suas costas e até mesmo pela terra firme debaixo de seus
pés.’ (James Frazer)
Esses governantes entre os povos selvagens
possuem um grau de poder e uma capacidade de conferir benefícios que são
atributo apenas dos deuses e com os quais, em etapas mais avançadas da civilização,
apenas o mais servil dos cortesãos poderia fingir creditá-los.
Deve espantar-nos como autocontraditório que
pessoas de um poder tão ilimitado assim precisem ser protegidas com tanto
cuidado da ameaça de perigo, mas não é essa a única contradição apresentada
pelo tratamento das personagens reais entre os povos selvagens, porque esses
povos também julgam necessário manter vigia sobre os seus reis, a fim de ver se
eles fazem um uso adequado de seus poderes. Não estão de modo algum convencidos
de suas boas intenções ou conscienciosidade. Dessa maneira, um elemento de
desconfiança pode ser encontrado entre as razões para a observância dos tabus
que cercam o rei. ‘A ideia’, escreve Frazer, ‘de que os reinos primitivos são
despotismos em que o povo existe apenas para o soberano, é inteiramente
inaplicável às monarquias que estamos considerando. Pelo contrário, o soberano
nelas existe apenas para os seus súditos, sua vida só é valiosa enquanto se
desempenha dos deveres de sua posição ordenando o curso da natureza em
benefício de seu povo. Assim que fracassa em consegui-lo, o cuidado, a devoção
e as homenagens religiosas que até então lhe haviam prodigalizado cessam e se
transformam em ódio e desprezo; ele é ignominiosamente posto de lado e pode
considerar-se feliz se escapar com vida. Adorado como um deus num dia, é morto
como um criminoso no seguinte. Mas nesse comportamento modificado do povo não
existe nada de caprichoso ou inconstante. Pelo contrário, sua conduta é
inteiramente íntegra. Se o seu rei é seu deus, ele é ou deveria ser também o
seu protetor; se não os protege, deve ceder lugar a outro que o faça. Enquanto
atender às suas expectativas, contudo, não existe limite para o cuidado que
terão com ele e o compelirão a ter consigo mesmo. Um rei desse tipo vive
confinado por uma etiqueta cerimoniosa, uma rede de proibições e observâncias,
das quais a intenção não é contribuir para sua dignidade e muito menos para seu
conforto, mas impedi-lo de condutas que, pela perturbação da harmonia da
natureza, possam envolvê-lo, seu povo e o universo numa única catástrofe comum.
Longe de aumentar seu conforto, estas observâncias, estorvando todos os seus
atos, aniquilam sua liberdade, e muitas vezes tornam-lhe a própria vida, que é
objetivo delas preservar, um fardo e uma preocupação para ele.’”
“Entre muitos povos selvagens a severidade
dessas restrições de tabus sobre os reis-sacerdotes levou a consequências que
foram historicamente importantes e são de particular interesse para o nosso
ponto de vista. A dignidade de sua posição deixava de ser algo de invejável e
aqueles a quem era oferecida com frequência faziam todo o possível para dela
escapar. Dessa maneira, no Camboja, onde há reinos do Fogo e da Água,
frequentemente é necessário forçar os sucessores a aceitar essas distinções. Em
Niue, ou Ilha Selvagem, uma ilha de coral ao Sul do Pacífico, a monarquia na
realidade chegou a fim porque ninguém pôde ser induzido a assumir o responsável
e perigoso ofício. ‘Em algumas partes da África Ocidental, quando o rei morre,
um conselho de família se reúne secretamente para determinar seu sucessor.
Aquele sobre quem a escolha recai é subitamente aprisionado, amarrado e atirado
na casa-dos-fetiches, onde é mantido encarcerado até consentir em aceitar a
coroa. Algumas vezes o herdeiro encontra meios de fugir à honra de que se pensa
investi-lo; soube-se de um chefe feroz que andava constantemente armado,
resolvido a resistir pela força a qualquer tentativa de fazê-lo sentar no
trono.’ Entre os nativos da Serra Leoa, a resistência à aceitação da honra da
realeza tornou-se tão grande que muitas tribos foram obrigadas a escolher
forasteiros como reis.
Frazer atribuía a essas circunstâncias o fato
de, no curso da história, ter acabado por surgir uma divisão da realeza
sacerdotal original num poder espiritual e num poder temporal. Oprimidos pelo
peso de seu ofício sagrado, os reis tornaram-se incapazes de exercer o domínio
nos assuntos concretos e estes foram deixados nas mãos de pessoas inferiores
mas práticas, que estavam prontas a renunciar às honras da realeza. Estas,
então, tornaram-se os governantes temporais, enquanto que a supremacia
espiritual, despida de qualquer significação prática, era deixada aos antigos
reis tabus. É do conhecimento geral até onde esta hipótese encontra confirmação
na história do antigo Japão.”
“Se submetermos os fatos registrados à
análise, como se fizessem parte dos sintomas apresentados por uma neurose,
nosso ponto de partida deve ser a excessiva apreensibilidade e solicitude que é
apresentada como razão para os cerimoniais do tabu. A ocorrência de uma
solicitude excessiva desta espécie é muito comum nas neuroses e especialmente
nas neuroses obsessivas, com as quais a nossa comparação é principalmente
traçada. Chegamos a compreender sua origem bastante claramente. Ela aparece
onde quer que, além de um sentimento predominante de afeição, exista também uma
corrente de hostilidade contrária, mas inconsciente – estado de coisas que
representa um exemplo típico de uma atitude emocional ambivalente. A hostilidade
é então feita calar no grito, por assim dizer, por uma intensificação excessiva
da afeição, que se expressa em solicitude e se torna compulsiva, porque de
outro modo seria inadequada para desempenhar a missão de manter sob repressão a
corrente de sentimento contrária e inconsciente. Todo psicanalista sabe por
experiência com que segurança esta explicação da superafeição solícita é
aplicável mesmo nas circunstâncias mais improváveis – em casos, por exemplo, de
ligações entre mãe e filho ou entre um casal devotado. Se agora aplicarmos ao
caso das pessoas privilegiadas, compreenderemos que juntamente com a veneração
e, na verdade, idolatrização sentidas por elas, existe no inconsciente uma
corrente oposta de hostilidade intensa; que, na realidade, como esperávamos,
defrontamo-nos com uma situação de ambivalência emocional. A desconfiança que
fornece um dos elementos inequívocos dos tabus reais seria então outra
expressão, mais direta, da mesma hostilidade inconsciente. Na verdade, diante
da variedade de resultados de um conflito desta espécie que são encontrados
entre os diferentes povos, não nos faltam exemplos em que a existência desta
hostilidade é ainda mais obviamente mostrada. ‘Os selvagens timmes da Serra
Leoa’, nos conta Frazer, ‘que elegem seu rei, reservam-se o direito de
espancá-lo na véspera da coroação e valem-se desse privilégio constitucional
com tão boa disposição que, às vezes, o infeliz monarca não sobrevive muito à
sua elevação ao trono. Daí, quando acontece de os principais chefes terem
rancor de um homem e desejarem livrar-se dele, elegerem-no rei.’ Mesmo em
exemplos manifestos como este, entretanto, a hostilidade não é admitida como
tal, mas disfarçada em cerimonial.
Outro aspecto da atitude dos povos primitivos
para com seus governantes relembra um procedimento que é comum nas neuroses em
geral, mas vem à luz naquilo que é conhecido como delírio persecutório. A
importância de uma pessoa determinada é imensamente exagerada e seu poder
absoluto é aumentado até o grau mais improvável, a fim de poder ser mais fácil
torná-la responsável por tudo de desagradável que o paciente possa
experimentar. Os selvagens estão se comportando exatamente da mesma maneira com
seus reis quando lhes atribuem poder sobre a chuva e o sol, o vento e o clima,
e depois os depõem ou matam porque a natureza desaponta suas esperanças de uma
caçada bem-sucedida ou de uma rica colheita. O modelo no qual os paranoicos
baseiam seus delírios de perseguição é a relação de uma criança com o pai. A
imagem que um filho faz do pai é habitualmente investida de poderes excessivos
desta espécie e descobre-se que a desconfiança do pai está intimamente ligada à
admiração por ele. Quando um paranoico transforma a figura de um de seus
associados num “perseguidor”, está elevando-o à categoria de pai; está
colocando-o numa posição em que possa culpá-lo por todos os seus infortúnios.
Assim esta segunda analogia entre selvagens e neuróticos nos dá um vislumbre de
que grande parte da atitude de um selvagem para com seu governante provém da
atitude infantil de uma criança para com o pai.
Porém o mais forte apoio para o nosso esforço
no sentido de equiparar as proibições dos tabus aos sintomas neuróticos vai ser
encontrado nas próprias cerimônias do tabu, cujo efeito sobre a posição da
realeza já foi discutido. Esses cerimoniais revelam inequivocamente seu
significado duplo e sua derivação de impulsos ambivalentes, logo que estivermos
prontos a admitir que os resultados que ocasionam estavam premeditados desde o
início. O tabu não somente escolhe o rei e o exalta acima do comum dos mortais,
mas também torna a sua existência um tormento e um fardo insuportável,
reduzindo-o a uma servidão muito pior que a de seus súditos. Aqui, então, temos
uma contrapartida exata do ato obsessivo na neurose, no qual o impulso
suprimido e o impulso que o suprime encontram satisfação simultânea e comum. O
ato obsessivo é ostensivamente uma proteção contra o ato proibido, mas,
na realidade, a nosso ver, trata-se de uma repetição dele. A expressão
‘ostensivamente’ aplica-se à parte consciente da mente e ‘na realidade’
à parte inconsciente. Exatamente da mesma maneira, o tabu cerimonial dos reis
constitui ostensivamente a mais alta honra e proteção para eles,
enquanto que, na realidade, trata-se de um castigo pela sua exaltação,
uma vingança sobre ele tirada pelos seus súditos.”
“Wilhelm Wundt observa que ‘entre as
atividades atribuídas pelos mitos de todo o mundo aos demônios, as prejudiciais
predominam, de maneira que, na crença popular, os gênios maus são evidentemente
mais antigos que os bons’. É muito possível que todo o conceito de demônios se
tenha derivado da importante relação dos vivos com os mortos. A ambivalência
inerente a essa relação expressou-se no curso subsequente do desenvolvimento
humano pelo fato de, da mesma raiz, surgirem duas estruturas psíquicas
completamente opostas: de um lado, o medo dos demônios e dos fantasmas; do
outro, a veneração dos ancestrais. O fato de os demônios serem sempre encarados
como os espíritos daqueles que tinham morrido recentemente mostra,
melhor que qualquer outra coisa, a influência do luto na origem da crença nos
demônios. O luto tem uma missão psíquica muito específica a efetuar; sua função
é desligar dos mortos as lembranças e as esperanças dos sobreviventes. Quando
isto é conseguido, o sofrimento diminui e, com ele, o remorso e as autocensuras
e, consequentemente, também o medo dos demônios. E os mesmos espíritos que
inicialmente foram temidos como demônios podem agora esperar encontrar um
tratamento mais amistoso; são reverenciados como ancestrais e lhes são
dirigidos apelos em busca de ajuda.
Se acompanharmos a mudança das relações entre
os sobreviventes e os mortos através das épocas, torna-se claro que houve uma
extraordinária diminuição da ambivalência. Agora é bastante fácil dominar a
hostilidade inconsciente contra os mortos (embora sua existência ainda possa
ser reconhecida), sem qualquer dispêndio específico de energia psíquica. Onde,
em tempos anteriores, o ódio satisfeito e a afeição sentida lutavam um contra a
outra, encontramos agora uma espécie de cicatriz que se formou sob o modelo da
piedade, a qual declara: de mortuis nil nisi bonum.*’ Somente nos
neuróticos o luto pela perda dos que lhes eram caros é ainda perturbado por
autocensuras obsessivas, cujo segredo é revelado pela psicanálise como sendo a
velha ambivalência emocional. Não precisamos discutir aqui como foi que esta
alteração ocorreu, que parte dela é devida a uma modificação constitucional e
qual a parte que se deve a uma melhoria real nas relações familiares. Mas este
exemplo sugere a probabilidade de que os impulsos psíquicos dos povos
primitivos fossem caracterizados por uma quantidade maior de ambivalência que a
que se pode encontrar no homem moderno civilizado. É de supor-se que como essa
ambivalência diminuiu, o tabu (sintoma da ambivalência e um acordo entre os
dois impulsos conflitantes) lentamente desapareceu. Dos neuróticos, que são
obrigados a reproduzir o conflito e o tabu dela resultante, pode-se dizer que
herdaram uma constituição arcaica como vestígio atavístico; a necessidade de
compensar isso, por força da civilização, é que os leva a um imenso dispêndio
de energia mental.”
*: Dos mortos só se diz o bem.
“Em todas as neuroses, o que determina a
formação dos sintomas é a realidade, não da experiência, mas do pensamento. Os
neuróticos vivem um mundo à parte, onde, como já disse antes, somente a ‘moeda
neurótica’ é moeda corrente, isto é, eles são afetados apenas pelo que é
pensado com intensidade e imaginado com emoção, ao passo que a concordância com
a realidade externa não tem importância. O que os histéricos repetem em suas
crises e fixam através dos sintomas são experiências que ocorreram daquela
forma apenas em sua imaginação – embora seja verdade que, em última instância,
essas experiências imaginadas remontem a acontecimentos reais ou sejam neles
baseadas. Atribuir a sensação neurótica de culpa a malfeitos reais demonstraria
um mal-entendido equivalente. Um neurótico obsessivo pode ser oprimido por uma
sensação de culpa que seria adequada para um grande assassino, embora, na
realidade, de sua infância em diante, tenha-se comportado para com os seus
concidadãos como o mais escrupuloso e respeitável membro da sociedade. Não
obstante, sua sensação de culpa tem uma justificativa: está fundada nos
intensos e frequentes desejos de morte contra os seus semelhantes que estão
inconscientemente em ação dentro dele. Tem uma justificativa se levarmos em
consideração os pensamentos inconscientes e não os atos intencionais. Assim, vê-se
que a onipotência de pensamentos, a supervalorização dos processos mentais em
comparação com a realidade, desempenha um papel irrestrito na vida emocional
dos pacientes neuróticos e em tudo que dela se deriva. Se um deles submeter-se
ao tratamento psicanalítico, que torna consciente o que nele era inconsciente,
será incapaz de acreditar que os pensamentos são livres e constantemente terá
medo de expressar desejos malignos, como se sua expressão conduzisse
inevitavelmente à sua realização. Essa conduta, bem como as superstições que
pratica na vida comum, revela a semelhança dele com os selvagens que acreditam
poderem alterar o mundo externo pelo simples pensamento.”
Um comentário:
- Não inserirei o trecho “O Tabu em Relação aos Mortos” por questões de tamanho, mas recomendo.
- Foi adotada a opinião muito bom porque ela é a da maior parte do livro, mas se eu fosse especificar os textos, eles teriam opiniões distintas . "O horror ao incesto", por exemplo, seria classificado como bom, já "O Moisés de Michelangelo" como ruim.
Postar um comentário