Editora: Palas Athena
ISBN: 978-85-7242-008-2
Organização: Betty Sue Flowers
Tradução: Carlos Felipe Moisés
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 242
Sinopse: O poder
do mito é o fruto de uma série de conversas mantidas entre Joseph Campbell e
o jornalista Bill Moyers, numa combinação de sabedoria e humor. O casamento, os
nascimentos virginais, a trajetória do herói, o sacrifício ritual e até os personagens
heroicos do filme ‘Guerra nas estrelas’ são abordados nesta obra.
(Quando não especificado, as falas são de Joseph
Campbell.)
“Os fados guiam àquele que assim o deseje; aquele
que não o deseja, eles arrastam.” (Sabedoria romana)
“E aí está”, disse Campbell, “a suprema mensagem
da religião: ‘Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos
mais pequeninos, a mim o fizestes’[Mateus 25,40].”
Homem espiritual, ele encontrou na literatura
da fé os princípios comuns ao espírito humano. Mas esses princípios têm de ser libertados
dos liames tribais, caso contrário as religiões do mundo continuarão a ser como
no Oriente Médio e na Irlanda do Norte, hoje uma fonte de desdém e agressão. As
imagens de Deus são muitas, ele dizia, chamando-as “máscaras da eternidade”, que
ao mesmo tempo escondem e revelam “a Face da Glória”. Ele desejou saber o que significa
o fato de Deus assumir tão diferentes máscaras em diferentes culturas, apesar de
histórias semelhantes serem encontradas em tradições divergentes – histórias da
criação, nascimentos virginais, encarnações, morte e ressurreição, segundos retornos,
dias do julgamento. Ele apreciava a perspicácia das escrituras hindus: “A verdade
é uma; os sábios a chamam por diferentes nomes”. Todos os nossos nomes e imagens
de Deus são máscaras, ele dizia, referindo-se à suprema realidade que, por definição,
transcende a linguagem e a arte. Um mito é uma máscara de Deus, também – uma metáfora
daquilo que repousa por trás do mundo visível. Não obstante as divergências, ele
dizia, as religiões todas estão de acordo em solicitar de nós o mais profundo empenho
no próprio ato de viver, em si mesmo. O pecado imperdoável, no livro de Campbell,
é o pecado da inadvertência, de não estar alerta, de não estar inteiramente desperto.”
“Para Campbell, ironicamente, o fim da jornada
do herói não é o engrandecimento do herói. “Não se trata”, ele o afirmou em uma
das suas conferências, “de identificar quem quer que seja com qualquer das figuras
ou poderes experimentados. O iogue hindu, lutando por se libertar, identifica-se
com a Luz e jamais retorna. Mas ninguém que abraçasse o propósito de servir aos
outros se permitiria tal evasão. O objetivo último da busca não será nem evasão
nem êxtase, para si mesmo, mas a conquista da sabedoria e do poder para servir aos
outros.” Uma das muitas distinções entre a celebridade e o herói, ele dizia, é que
um vive apenas para si, enquanto o outro age para redimir a sociedade.”
“Dizem que o que todos procuramos é um sentido
para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma
experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente
físico, tenham ressonância no interior do nosso ser e da nossa realidade mais íntimos,
de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos.”
“Algumas pessoas têm dificuldade em amar a Deus;
nele não há imperfeição alguma. Você pode sentir reverência, mas isso não é amor.
É o Cristo na cruz que desperta nosso amor.”
“MOYERS: Através da leitura de seus livros – The Masks of God e The Hero with a Thousand Faces – vim a compreender que aquilo que os
seres humanos têm em comum se revela nos mitos. Mitos são histórias de nossa busca
da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos. Todos nós precisamos
contar nossa história, compreender nossa história. Todos nós precisamos compreender
a morte e enfrentar a morte, e todos nós precisamos de ajuda em nossa passagem do
nascimento à vida e depois à morte. Precisamos que a vida tenha significação, precisamos
tocar o eterno, compreender o misterioso, descobrir o que somos.
CAMPBELL: Dizem que o que todos procuramos é um
sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando
é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano
puramente físico, tenham ressonância no interior de nosso ser e de nossa realidade
mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos. (...)
Os mitos antigos foram concebidos para harmonizar
a mente e o corpo. A mente pode divagar por caminhos estranhos, querendo coisas
que o corpo não quer. Os mitos e ritos eram meios de colocar a mente em acordo com
o corpo, e o rumo da vida em acordo com o rumo apontado pela natureza.”
“MOYERS: Se o casamento é essa reunião do próprio
com o próprio, com a base masculina ou feminina de nós mesmos, por que é assim tão
precário na nossa sociedade moderna?
CAMPBELL: Porque não é encarado como casamento.
Eu diria que se o casamento não é de magna prioridade em suas vidas, vocês não estão
casados. O casamento significa os dois que são um, os dois que se tornam uma só
carne. Se o casamento dura o suficiente, e se você se amolda constantemente a ele,
em vez de ceder a caprichos pessoais, você chega a se dar conta de que isso é verdade
– os dois realmente são um. (...)
Casamento é uma relação. Quando vocês se sacrificam
no casamento, o sacrifício não é feito em nome de um ou de outro, mas em nome da
unidade na relação. A imagem chinesa do Tao, com a treva e a luz interagindo, mostra
a relação entre yang e yin, masculino e feminino, e é isso que vem a ser o casamento.
É nisso que vocês se tornam quando se casam. Você deixa de ser aquele um, solitário;
sua identidade passa a estar na relação. O casamento não é um simples caso de amor,
é uma provação, e a provação é o sacrifício do ego em benefício da relação por meio
da qual dois se tornam um. (...)
MOYERS: Os puritanos chamam o casamento de “a
pequena igreja dentro da Igreja”. Todo dia você ama, todo dia você perdoa. É um
contínuo sacramento – amor e perdão.
CAMPBELL: Bem, a palavra certa, penso eu, é “provação”,
no sentido próprio, de submissão do indivíduo a algo superior a ele. A verdadeira
vida de um casamento, ou de um autêntico caso de amor, está na relação, que é onde
você está, também. Você entende o que eu quero dizer?
MOYERS: Não, não está claro para mim.
CAMPBELL: Veja, é como o símbolo yin/yang. Aqui
estou eu, aqui está ela, aqui estamos. Pois bem, quando eu preciso fazer algum sacrifício,
não estou me sacrificando por ela, mas pela relação. O ressentimento em relação
ao outro é sempre negativo. A vida está na relação, é nela que a sua está, agora.
Isso é que é o casamento; ao passo que, num caso de amor, você tem duas vidas vivendo
uma relação mais ou menos bem-sucedida, por algum tempo, enquanto isso parecer agradável.”
“CAMPBELL: Eu fui educado no catolicismo romano.
Ora, uma das grandes vantagens de ser educado no catolicismo romano é que você é
ensinado a encarar o mito com seriedade, a deixar que ele atue em sua vida; você
é ensinado a viver em função desses motivos míticos. Fui educado em termos das relações
sazonais ligadas ao ciclo de Cristo vindo ao mundo, ensinando no mundo, morrendo,
ressuscitando e retornando ao Paraíso. As cerimônias ao longo do ano fixam sua consciência
na substância eterna de todas essas mudanças no tempo. Pecado é simplesmente a perda
de contato com essa harmonia.
E depois me apaixonei pelos índios americanos,
porque Buffalo Bill costumava vir ao Madison Square Garden todos os anos, com seu
maravilhoso Wild West Show. E eu quis saber mais sobre os índios. Meu pai e minha
mãe eram muito generosos e me deram todos os livros escritos para crianças, até
aquela época, sobre índios. Então comecei a ler sobre os mitos do índio americano,
e não demorou muito para que encontrasse, nessas histórias, os mesmos motivos que
as freiras me ensinavam na escola.
MOYERS: Criação...
CAMPBELL: ...criação, morte e ressurreição, ascensão
aos céus, nascimentos virginais – eu não sabia de que se tratava, mas reconheci
o vocabulário. Um após outro. (...)
Mais tarde, me interessei por hinduísmo, e ali
estavam as mesmas histórias, outra vez. E no meu trabalho de licenciatura eu estava
lidando com a matéria do ciclo arturiano, das novelas de cavalaria medievais, e
ali estavam as mesmas histórias, outra vez. Portanto, não venha você me dizer que
não são as mesmas histórias. Tenho convivido com elas toda a minha vida.
MOYERS: Elas provêm de todas as culturas, mas
com temas atemporais.
CAMPBELL: Os temas são atemporais, e a inflexão
cabe à cultura.”
“MOYERS: Há uma história encantadora sobre o presidente
Eisenhower e os primeiros computadores...
CAMPBELL: ...Eisenhower entrou numa sala repleta
de computadores e propôs às máquinas a seguinte questão: “Existe um Deus?” Todas
começam a funcionar, luzes se acendem, carretéis giram e após algum tempo uma voz
diz: “Agora existe”.”
“A única maneira de conservar uma velha tradição
é renová-la em função das circunstâncias da época.”
“Uma vez um mestre zen parou diante de seus discípulos,
prestes a proferir um sermão. No instante em que ele ia abrir a boca, um pássaro
cantou. E ele disse: “O sermão já foi proferido”.”
“CAMPBELL: A irmandade, hoje, em quase todos os
mitos que conheço, está confinada a uma comunidade restrita. Em comunidades restritas
a agressividade é projetada para fora.
Por exemplo, os Dez Mandamentos dizem: “Não matarás”.
Aí o capítulo seguinte diz: “Vai a Canaã e mata a todos os que encontrar”. É um
campo cercado. Os mitos de participação e amor dizem respeito apenas aos do grupo,
os de fora são totalmente outros. Esse é o sentido da palavra “gentio” – a pessoa
que não é da mesma espécie.
MOYERS: E, a menos que você adote minha indumentária,
não seremos parentes.
CAMPBELL: Sim. Agora, o que é um mito? A definição
de dicionário seria: História sobre deuses. Isso obriga a fazer a pergunta seguinte:
Que é um deus? Um deus é a personificação de um poder motivador ou de um sistema
de valores que funciona para a vida humana e para o universo – os poderes do seu
próprio corpo e da natureza. Os mitos são metáforas da potencialidade espiritual
do ser humano, e os mesmos poderes que animam nossa vida animam a vida do mundo.
Mas há também mitos e deuses que têm a ver com sociedades específicas ou com as
deidades tutelares da sociedade. Em outras palavras, há duas espécies totalmente
diferentes de mitologia. Há a mitologia que relaciona você com sua própria natureza
e com o mundo natural, de que você é parte. E há a mitologia estritamente sociológica,
que liga você a uma sociedade em particular. Você não é apenas um homem natural,
é membro de um grupo particular. Na história da mitologia europeia é possível ver
a interação desses dois sistemas. No geral, o sistema socialmente orientado é o
de um povo nômade, que se move erraticamente, para que você aprenda que o seu centro
se localiza nesse grupo. A mitologia orientada para a natureza seria a de um povo
que se dedica ao cultivo da terra.
Ora, a tradição bíblica é uma mitologia socialmente
orientada. A natureza aí é condenada. No século XIX, os investigadores pensaram
na mitologia e no ritual como tentativas de controlar a natureza. Mas isso é magia,
não mitologia ou religião. As religiões da natureza não são tentativas de controlar
a natureza, mas de ajudar você a colocar-se em acordo com ela. Mas quando a natureza
é encarada como um mal, você não se põe em acordo com ela, mas a controla, ou tenta
controlar, daí a tensão, a ansiedade, a devastação de florestas, a aniquilação de
povos nativos. A ênfase nisso nos separa da natureza.”
“Sem dúvida, o que destrói a razão é a paixão.”
“CAMPBELL: A história que temos no Ocidente, na
medida em que se baseia na Bíblia, baseia se numa visão do universo que pertence
ao primeiro milênio antes de Cristo. Não está de acordo nem com nossa concepção
do universo, nem com nossa concepção da dignidade humana. Pertence inteiramente
a algum outro lugar.
Hoje, temos que reaprender o antigo acordo com
a sabedoria da natureza e retomar a consciência de nossa fraternidade com os animais,
a água e o mar. Dizer que a divindade modela o mundo e todas as coisas é condenado
como panteísmo. Mas panteísmo é uma palavra enganadora. Sugere que um deus pessoal
supostamente habita o mundo, mas a ideia em absoluto não é essa. A ideia é transteológica,
de um mistério indefinível, inconcebível, admitido como um poder, isto é, como a
fonte, o fim e o fundamento de toda a vida e todo o ser.
MOYERS: Você não acha que os americanos modernos
rejeitaram a antiga ideia da natureza como divindade porque isso os impediria de
dominar a natureza? Como é possível derrubar árvores, rasgar a terra e desviar o
curso dos rios para propriedades privadas sem matar Deus?
CAMPBELL: Sim, mas isso não é simplesmente uma
característica dos americanos modernos, é a condenação bíblica da natureza, que
eles herdaram de sua religião e trouxeram com eles, especialmente da Inglaterra.
Deus está separado da natureza, e a natureza é condenada por Deus. Está tudo lá,
no Gênesis: estamos destinados a ser os senhores do mundo.
Mas se você pensar em nós como vindos da terra,
não como tendo sido lançados aqui, de alguma parte, verá que nós somos a terra,
somos a consciência da terra. Estes são os olhos da terra, e esta é a voz da terra.”
“CAMPBELL: O Chefe Seattle deu um dos últimos
testemunhos orais da ordem moral paleolítica. Por volta de 1852, o governo dos Estados
Unidos fez um inquérito sobre a aquisição de terras tribais para os imigrantes que
chegavam ao país, e o Chefe Seattle escreveu em resposta uma carta maravilhosa.
Essa carta expressa, na verdade, toda a moral da nossa conversa.
O Presidente, em Washington, informa que deseja
comprar nossa terra. Mas como é possível comprar ou vender o céu, ou a terra? A
ideia nos é estranha. Se não possuímos o frescor do ar e a vivacidade da água, como
vocês poderão comprá-los?
Cada parte desta terra é sagrada para meu povo.
Cada arbusto brilhante do pinheiro, cada porção de praia, cada bruma na floresta
escura, cada campina, cada inseto que zune. Todos são sagrados na memória e na experiência
do meu povo.
Conhecemos a seiva que circula nas árvores, como
conhecemos o sangue que circula em nossas veias. Somos parte da terra, e ela é parte
de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs. O urso, o gamo e a grande águia são
nossos irmãos. O topo das montanhas, o húmus das campinas, o calor do corpo do pônei,
e o homem, pertencem todos à mesma família.
A água brilhante que se move nos rios e riachos
não é apenas água, mas o sangue de nossos ancestrais. Se lhes vendermos nossa terra,
vocês deverão lembrar se de que ela é sagrada. Cada reflexo espectral nas claras
águas dos lagos fala de eventos e memórias na vida do meu povo. O murmúrio da água
é a voz do pai do meu pai.
Os rios são nossos irmãos. Eles saciam nossa sede,
conduzem nossas canoas e alimentam nossos filhos. Assim, é preciso dedicar aos rios
a mesma bondade que se dedicaria a um irmão.
Se lhes vendermos nossa terra, lembrem-se de que
o ar é precioso para nós, o ar partilha seu espírito com toda a vida que ampara.
O vento, que deu ao nosso avô seu primeiro alento, também recebe seu último suspiro.
O vento também dá às nossas crianças o espírito da vida. Assim, se lhes vendermos
nossa terra, vocês deverão mantê-la à parte e sagrada, como um lugar onde o homem
possa ir apreciar o vento, adocicado pelas flores da campina.
Ensinarão vocês às suas crianças o que ensinamos
às nossas? Que a terra é nossa mãe? O que acontece à terra acontece a todos os filhos
da terra.
O que sabemos é isto: a terra não pertence ao
homem, o homem pertence à terra. Todas as coisas estão ligadas, assim como o sangue
nos une a todos. O homem não teceu a rede da vida, é apenas um dos fios dela. O
que quer que ele faça à rede, fará a si mesmo.
Uma coisa sabemos: nosso deus é também o seu deus.
A terra é preciosa para ele e magoá-la é acumular contrariedades sobre o seu criador.
O destino de vocês é um mistério para nós. O que
acontecerá quando os búfalos forem todos sacrificados? Os cavalos selvagens, todos
domados? O que acontecerá quando os cantos secretos da floresta forem ocupados pelo
odor de muitos homens e a vista dos montes floridos for bloqueada pelos fios que
falam? Onde estarão as matas? Sumiram! Onde estará a águia? Desapareceu! E o que
será dizer adeus ao pônei arisco e à caça? Será o fim da vida e o início da sobrevivência.
Quando o último pele vermelha desaparecer, junto
com sua vastidão selvagem, e a sua memória for apenas a sombra de uma nuvem se movendo
sobre a planície... estas praias e estas florestas ainda estarão aí? Alguma coisa
do espírito do meu povo ainda restará?
Amamos esta terra como o recém-nascido ama as
batidas do coração da mãe. Assim, se lhes vendermos nossa terra, amem-na como a
temos amado. Cuidem dela como temos cuidado. Gravem em suas mentes a memória da
terra tal como estiver quando a receberem. Preservem a terra para todas as crianças
e amem-na, como Deus nos ama a todos.
Assim como somos parte da terra, vocês também
são parte da terra. Esta terra é preciosa para nós, também é preciosa para vocês.
Uma coisa sabemos: existe apenas um Deus. Nenhum homem, vermelho ou branco, pode
viver à parte. Afinal, somos irmãos.”
“CAMPBELL: Você tem o mesmo corpo, com os mesmos
órgãos e energias que o homem de Cro-Magnon tinha, trinta mil anos atrás. Viver
uma vida humana na cidade de Nova Iorque ou nas cavernas é passar pelos mesmos estágios
da infância à maturidade sexual, pela transformação da dependência da infância em
responsabilidade, própria do homem ou da mulher, o casamento, depois a decadência
física, a perda gradual das capacidades e a morte. Você tem o mesmo corpo, as mesmas
experiências corporais, e com isso reage às mesmas imagens. Por exemplo, uma imagem
constante é a do conflito entre a águia e a serpente. A serpente ligada à terra,
a águia em voo espiritual – esse conflito não é algo que todos experimentamos? E
então, quando as duas se fundem, temos um esplêndido dragão, a serpente com asas.
Em qualquer parte da terra, as pessoas reconhecem essas imagens. Quer eu esteja
lendo sobre mitos polinésios, iroqueses ou egípcios, as imagens são as mesmas e
falam dos mesmos problemas.
MOYERS: Apenas assumem roupagens diferentes quando
aparecem em épocas diferentes?
CAMPBELL: Sim. É como se a mesma peça fosse levada
de um lugar a outro, e em cada lugar os atores locais vestissem costumes locais
e encenassem a mesma velha peça.”
“O sonho é uma experiência pessoal daquele profundo,
escuro fundamento que dá suporte às nossas vidas conscientes, e o mito é o sonho
da sociedade. O mito é o sonho público, e o sonho é o mito privado. Se o seu mito
privado, seu sonho, coincide com o da sociedade, você está em bom acordo com seu
grupo. Se não, a aventura o aguarda na densa floresta à sua frente.”
“Deus” é uma palavra ambígua, em nossa língua,
pois parece referir alguma coisa conhecida. Mas o transcendente é desconhecido e
incognoscível. Deus, em suma, transcende qualquer coisa, mesmo o nome “Deus”. Deus
está além de nomes e formas. Mestre Eckhart disse que a suprema e mais alta renúncia
é abandonar Deus por Deus, abandonar a noção de Deus por uma experiência daquilo
que transcende a todas as noções.
O mistério da vida está além de toda concepção
humana. Tudo o que conhecemos é limitado pela terminologia dos conceitos de ser
e não ser, plural e singular, verdadeiro e falso. Sempre pensamos em termos de opostos.
Mas Deus, o supremo, está além dos pares de opostos, já contém em si tudo.”
“CAMPBELL: Toda religião é verdadeira, de um modo
ou de outro. Verdadeira quando compreendida metaforicamente. Mas se ela se aferrar
às suas próprias metáforas, interpretando-as como fatos, então haverá problemas.”
MOYERS: O que é metáfora?
CAMPBELL: Metáfora é uma imagem que sugere alguma
outra coisa. Por exemplo, se eu digo a alguém: “Você é uma víbora”, não estou sugerindo
que a pessoa seja literalmente uma víbora. “Víbora” é uma metáfora. Nas tradições
religiosas, a metáfora remete a algo transcendente, que não é literalmente coisa
alguma. Aceitar a metáfora como autorreferente equivale a ir ao restaurante, pedir
o cardápio e, deparando ali com a palavra “bife”, começar a comer o cardápio.
Por exemplo, Jesus ascendeu ao Paraíso. A denotação
seria de que alguém subiu ao céu, é isso literalmente o que está sendo dito. Mas
se fosse de fato esse o sentido da mensagem, então teríamos de jogá-la fora, porque
não teria havido nenhum lugar como esse onde Jesus literalmente pudesse ir. Sabemos
que Jesus não podia ter ascendido ao Paraíso pois não existe nenhum paraíso físico
em qualquer parte do universo. Mesmo que ascendesse à velocidade da luz, Jesus ainda
estaria na galáxia. A astronomia e a física simplesmente eliminaram isso como possibilidade
física, literal. Mas se você ler “Jesus ascendeu ao Paraíso” em termos de sua conotação
metafórica, entenderá que ele foi para dentro – não para o espaço exterior, mas
para o espaço interior, para o lugar de que provêm todas as coisas, para a consciência
que é a fonte de todas as coisas, para o reino do paraíso interior. As imagens estão
aí fora, mas seu reflexo é interior. O fato é que nós poderíamos ascender com ele,
caminhando para dentro. É a imagem do retorno à fonte, alfa e ômega, deixando para
trás a fixação no corpo e caminhando na direção da fonte dinâmica do corpo.
MOYERS: Você não está minando uma das grandes
doutrinas tradicionais da fé cristã clássica – a de que o sepultamento e a ressurreição
de Jesus prefiguram o nosso próprio sepultamento e ressurreição?
CAMPBELL: Isso seria um erro de leitura do símbolo.
Seria ler as palavras em termos de prosa e não em termos de poesia, ler a metáfora
em termos de denotação e não de conotação.”
“A metáfora é a máscara de Deus, através da qual
a eternidade pode ser vivenciada.”
Um comentário:
- Aos leitores deste livro, convém a apreciação da obra “Ortodoxia” (http://listadelivros-doney.blogspot.com.br/2017/03/ortodoxia-parte-i-g-k-chesterton.html e http://listadelivros-doney.blogspot.com.br/2017/03/ortodoxia-parte-ii-g-k-chesterton.html), de G. K. Chesterton, por defender um ponto de vista inverso ao de Joseph Campbell.
São duas boas defesas de distintas opiniões.
*
- Alguns trechos do livro “O Poder do Mito” são embrenhados, de maneira muito patente, de uma furiosa ideologia neoliberal – chegando ao extremo ridículo de dizer que o vilão de Star Wars, Darth Wader, na verdade representa o Estado (!).
A ideologia neoliberal, de fato, comumente é mais patética do que vulgar.
De qualquer forma, trechos assim explicitam o nível, o poder que a ideologia de tal sistema pode – e pretende – chegar. Da biologia (e o tal gene egoísta), a religião (teologia da prosperidade), e até mesmo o misticismo/mitologia, parece que não há nada que o neoliberalismo não consiga corromper.
Postar um comentário