Editora: Abril cultural
Tradução: Miguel Lemos
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 203
Sinopse: Exposição
sumária da religião universal, apresentada sob a forma de diálogos entre uma
mulher e um sacerdote da Humanidade.
Catecismo positivista
“Remontando até esta origem normal, sente-se
profundamente que, desde a suficiente extensão do domínio romano, as populações
de elite procuram em vão a religião universal. A experiência demonstrou
cabalmente que este voto final não pode ser satisfeito por nenhuma crença
sobrenatural. Dois monoteísmos incompatíveis aspiraram igualmente a essa
universalidade necessária, sem a qual a humanidade não poderia seguir o seu
destino natural. Mas os esforços opostos de um e outro apenas conseguiram
neutralizar-se mutuamente, de modo que semelhante atributo ficou reservado às
doutrinas demonstráveis e discutíveis. Há mais de cinco séculos que o islamismo
desistiu de dominar o Ocidente, e o catolicismo abandonou ao seu eterno
antagonista o túmulo de seu pretenso fundador1.
Estas vãs aspirações espirituais nem sequer
puderam abarcar todo o território do antigo domínio temporal, que ficou
repartido quase igualmente entre os dois monoteísmos inconciliáveis.
O Oriente e o Ocidente devem, pois, procurar,
fora de toda teologia ou metafísica, as bases sistemáticas de sua comunhão
intelectual e moral. Esta fusão tão esperada, e que deverá estender-se em
seguida gradualmente à totalidade de nossa espécie, não pode evidentemente
provir senão do positivismo, isto é, de uma doutrina caracterizada sempre pela
combinação da realidade com a utilidade. Suas teorias, por muito tempo
limitadas aos fenômenos mais simples, produziram aí as únicas convicções
realmente universais que têm existido até hoje. Mas este privilégio natural dos
métodos e das doutrinas positivas não podia ficar sempre circunscrito ao
domínio matemático e físico. Desenvolvido primeiramente quanto à ordem
material, ele abraçou em seguida a ordem vital, de onde acaba enfim de
estender-se até a ordem humana, coletiva ou individual. Esta plenitude decisiva
do espírito positivo desvanece agora todos os pretextos para a conservação
factícia do espírito teológico, que se tornou, no Ocidente moderno, tão
perturbador quanto o espírito metafísico, que dele se origina histórica e
dogmaticamente. Por outro lado, havia muito, aliás, que a degradação moral e
política do sacerdócio correspondente destruíra toda a esperança de atalhar,
como na Idade Média, os vícios da doutrina pela sabedoria instintiva de seus
melhores intérpretes.
De hoje em diante, abandonada espontaneamente
à sua corrupção natural, a crença monoteica, cristã ou muçulmana, merece cada
vez mais a reprovação que seu advento inspirou, pelo espaço de três séculos,
aos mais nobres práticos e teóricos do mundo romano. Não podendo, então, julgar
o sistema senão pela doutrina, eles não hesitavam em repelir, como inimiga do
gênero humano, uma religião provisória que fazia consistir a perfeição num
isolamento celeste. O instinto moderno reprova ainda mais uma moral que
proclama as inclinações benévolas como alheias à nossa natureza, que desconhece
a dignidade do trabalho, a ponto de fazê-lo derivar de uma maldição divina, e
que erige a mulher como fonte de todo mal. Tácito e Trajano não podiam prever
que, durante alguns séculos, a sabedoria sacerdotal, auxiliada por uma situação
favorável, haveria de conter suficientemente os vícios naturais de tais
doutrinas para delas tirar, provisoriamente, admiráveis resultados sociais.
Desde que o sacerdócio ocidental se tornou irremediavelmente retrógrado, sua
crença, entregue a si mesma, tende a desenvolver sem peias o caráter imoral
inerente à sua natureza antissocial. Ela só mereceu os resguardos dos
conservadores prudentes enquanto foi impossível substituir-lhe uma concepção
melhor do mundo e do homem, a qual só podia resultar de uma lenta ascensão do
espírito positivo. Mas esta laboriosa iniciação estando agora terminada, o
positivismo elimina irrevogavelmente o catolicismo, como qualquer outro
teologismo, em virtude mesmo da admirável máxima social acima citada.”
1: Para Augusto Comte, São Paulo é o
verdadeiro fundador do catolicismo.
“Por mais inconciliáveis, porém, que pareçam,
à primeira vista, essas numerosas crenças, o positivismo as combina
essencialmente, referindo cada uma ao seu destino temporário e local. Não
existe, no fundo, senão uma única religião, ao mesmo tempo universal e
definitiva, para a qual tenderam cada vez mais as sínteses parciais e
provisórias, tanto quanto o comportavam as respectivas situações. A esses
diversos esforços empíricos sucede agora o desenvolvimento sistemático da
unidade humana, cuja constituição direta e completa tornou-se, enfim, possível
graças ao conjunto de nossas preparações espontâneas. É assim que o positivismo
dissipa naturalmente o antagonismo mútuo das diferentes religiões anteriores,
formando seu domínio próprio do fundo comum a que todas se reportaram de modo
instintivo. A sua doutrina não poderia tornar-se universal se, apesar de seus
princípios antiteológicos, o seu espírito relativo não lhe ministrasse
necessariamente afinidades essenciais com cada crença capaz de dirigir
passageiramente uma porção qualquer da humanidade.”
“A unidade altruísta não exige, como a
unidade egoísta, o inteiro sacrifício dos pendores contrários ao seu princípio,
mas apenas a criteriosa subordinação deles ao afeto preponderante. Condensando
toda a sã moral na lei Viver para outrem,
o positivismo consagra a justa satisfação permanente dos diversos instintos
pessoais, enquanto indispensável à nossa existência material, sobre a qual
assentam sempre nossos atributos superiores. Por conseguinte, ele condena,
posto que inspiradas amiúde por motivos respeitáveis, as práticas demasiado
austeras, que, diminuindo nossas forças, nos tornam menos aptos para o serviço
de outrem. O destino social, em cujo nome ele recomenda os cuidados pessoais,
deve ao mesmo tempo nobilitá-los e regularizá-los, evitando tanto uma
preocupação exagerada como uma viciosa negligência.”
“Nossa fé nunca teve senão um mesmo objeto
essencial: conceber a ordem universal que domina a existência humana, para
determinar nossa relação geral para com ela. Quer se assinalassem suas causas
fictícias, quer se estudassem suas leis reais, o que sempre se quis foi
apreciar essa ordem independente de nós, a fim de a sofrer melhor e de a
modificar mais. Toda doutrina religiosa repousa necessariamente sobre uma
explicação qualquer do mundo e do homem, duplo objeto contínuo de nossos
pensamentos teóricos e práticos.”
“O espírito positivo apresentou até aqui os
dois inconvenientes morais peculiares à ciência, inchar e secar, desenvolvendo
o orgulho e desviando do amor. Esta dupla tendência se conservará sempre nele o
bastante para exigir habitualmente precauções sistemáticas de que vos hei de
falar mais tarde. Contudo, vosso principal reproche resulta, a este respeito,
de uma apreciação insuficiente do positivismo, que vós considerais apenas no
estado incompleto em que ele ainda se mostra na maioria de seus adeptos. Estes
limitam-se à concepção filosófica dimanada da preparação científica, sem ir até
a conclusão religiosa, resumo único do conjunto dessa filosofia. Mas,
completando o estudo real da ordem universal, vê-se o dogma positivo
concentrar-se finalmente em torno de uma concepção sintética, tão favorável ao
coração como ao espírito.
Os entes quiméricos que a religião empregou
provisoriamente inspiraram diretamente vivos afetos humanos, que foram mesmo
mais poderosos sob as ficções menos elaboradas. Essa preciosa aptidão devia por
muito tempo parecer estranha ao positivismo, por efeito de seu imenso preâmbulo
científico. Enquanto a iniciação filosófica abraçou apenas a ordem material, e
mesmo a ordem vital, ela não pôde desvendar senão leis indispensáveis à nossa atividade,
sem nos ministrar nenhum objeto direto de afeição permanente e comum. Mas já
não é mais assim desde que essa preparação gradual se acha finalmente
completada pelo estudo próprio da ordem humana, individual e coletiva.
Esta apreciação final condensa o conjunto das
concepções positivas na noção única de um ente imenso e eterno, a humanidade,
cujos destinos sociológicos se desenvolvem sempre sob o predomínio necessário
das fatalidades biológicas e cosmológicas. Em torno deste verdadeiro Grande
Ser, motor imediato de cada existência individual ou coletiva, nossos afetos se
concentram tão espontaneamente quanto nossos pensamentos e ações. A ideia só
desse Ser supremo inspira diretamente a fórmula sagrada do positivismo: O Amor por princípio, a Ordem por base, e o
Progresso por fim. Sempre fundada
sobre um livre concurso de vontades independentes, a sua existência composta,
que toda discórdia tende a dissolver, consagra logo a preponderância contínua
do coração sobre o espírito, como a única base de nossa verdadeira unidade. É
assim que a ordem universal se resume daqui por diante no ente que a estuda e
aperfeiçoa sem cessar. A luta crescente da humanidade contra o conjunto das
fatalidades que a dominam apresenta ao coração, como ao espírito, um espetáculo
mais digno que a onipotência, necessariamente caprichosa, de seu precursor
teológico. Mais acessível, tanto aos nossos sentimentos como às nossas
concepções, em virtude de uma identidade de natureza que não obsta a sua
superioridade sobre todos os seus servidores, semelhante Ser supremo excita
profundamente uma atividade destinada a conservá-lo e melhorá-lo.”
“O verdadeiro espírito filosófico consiste,
de fato, como o simples bom senso, em conhecer o que é, para prever o que há de
ser, a fim de o aperfeiçoar tanto quanto possível. Um dos melhores preceitos
positivistas declara, até, viciosa, ou, pelo menos, prematura, toda
sistematização que não for precedida e preparada por um suficiente surto
espontâneo. Esta regra resulta logo do verso dogmático, com que o positivismo
caracteriza o conjunto de nossa existência:
Agir por afeição e pensar para agir.
O primeiro hemistíquio corresponde à
espontaneidade, e o segundo, à sistematização consecutiva. Quaisquer que sejam
os inconvenientes que a atividade irrefletida suscite, só ela pode
ordinariamente fornecer os primeiros materiais de uma meditação eficaz que
permitirá agir melhor.”
“Das duas condições fundamentais da religião,
amor e fé, a primeira deve certamente prevalecer. Com efeito, ainda que a fé
seja muito própria para consolidar o amor, a ação inversa é mais poderosa como
mais direta. O sentimento não só preside às inspirações espontâneas que a
princípio exige toda elaboração sistemática, mas, ainda, consagra e auxilia a
esta quando lhe reconhece a importância. Não há mulher dotada de experiência
que ignore a insuficiência demasiado frequente dos melhores afetos quando não
são assistidos de convicções inabaláveis.”
“Os vivos são sempre, e cada vez mais,
governados necessariamente pelos mortos: tal é a lei fundamental da ordem
humana. (...)
A verdadeira teoria da vida subjetiva leva
finalmente nosso culto a deixar a ordem exterior tal qual é, a fim de melhor
concentrar na ordem humana nossos principais esforços de aperfeiçoamento
íntimo. A nobre existência que nos perpetua em outrem torna-se, então, o digno
prolongamento daquela que nos fez merecer esta imortalidade; o progresso moral
do indivíduo e da espécie constitui sempre o principal destino das duas vidas.
Nossos mortos estão emancipados das necessidades materiais e vitais, e destas
eles só nos deixam a lembrança para que possamos melhor figurá-los tais como os
conhecemos. Mas eles não cessam de amar, e mesmo de pensar, em nós e por nós. A
doce troca de sentimentos e ideias que entretínhamos com eles, durante sua
objetividade, torna-se ao mesmo tempo mais íntima e mais contínua quando eles
se acham desprendidos da existência corporal. Posto que a vida de cada um deles
fique desde então profundamente misturada com a nossa, sua originalidade moral
e mental não sofre por isso a mínima alteração, quando seu caráter tiver sido
verdadeiramente distinto. Pode-se até dizer que as diferenças principais se
tornam mais pronunciadas à medida que este comércio íntimo se vai desenvolvendo
melhor.
Esta concepção positiva da vida futura é
certamente mais nobre que a dos teologistas quaisquer, e ao mesmo tempo a única
verdadeira.”
“A lei estática de nosso entendimento
torna-se, para o positivismo, uma simples aplicação do princípio fundamental
que por toda parte subordina o homem ao mundo. Consiste ela, com efeito, na
subordinação contínua de nossas construções subjetivas aos nossos materiais
objetivos. O gênio de Aristóteles esboçou a noção geral de tal lei neste
admirável apanhado: Nada há no
entendimento que não proviesse primeiro da sensação. Tendo, porém, os
modernos abusado amiúde de semelhante axioma para representar nossa
inteligência como puramente passiva, o grande Leibniz foi obrigado a juntar-lhe
uma restrição essencial, destinada a formular a espontaneidade de nossas
disposições mentais. Esta explicação, que se limitava realmente a desenvolver
melhor a máxima de Aristóteles, foi completada por Kant, com a sua imortal
distinção entre as duas realidades, objetiva e subjetiva, de cada concepção
humana. Contudo, este princípio só foi verdadeiramente sistematizado quando o
positivismo o referiu, como convinha, à lei geral que, em todos os fenômenos
vitais, coloca todo organismo sob a dependência contínua do meio
correspondente. Para as nossas mais elevadas funções espirituais, como em
relação aos nossos atos mais materiais, o mundo exterior serve-nos ao mesmo
tempo de alimento, de estimulante e de regulador. Ao passo que a subordinação
do subjetivo ao objetivo cessava, assim, de ser isolada, recebia também, da filosofia
positiva, seu complemento indispensável, sem o qual o estudo estático da
inteligência não poderia ser ligado suficientemente ao estudo dinâmico. Ele
consiste em reconhecer que, no estado normal, as imagens subjetivas são sempre
menos vivas e menos nítidas que as impressões objetivas de onde elas dimanam.
Se assim não fosse, o exterior nunca poderia regular o interior.
Em virtude deste duplo princípio estático, as
nossas concepções quaisquer resultam necessariamente de um comércio contínuo
entre o mundo, que lhes fornece a matéria, e o homem, que lhes determina a
forma. Elas são profundamente relativas, ao mesmo tempo, ao sujeito e ao
objeto, cujas variações respectivas necessariamente as modificam. Nosso
principal mérito teórico consiste em aperfeiçoar assaz essa subordinação
natural do homem ao mundo, para que o nosso cérebro se torne o fiel espelho da
ordem exterior, cujos resultados futuros podem desde logo ser previstos
mediante as nossas operações interiores. Esta representação, porém, não comporta
nem exige uma exatidão absoluta. Seu grau de aproximação é regulado pelas
nossas exigências práticas, que mede a precisão que convém às nossas previsões
teóricas. Este limite necessário deixa ordinariamente à nossa inteligência uma
certa liberdade especulativa, de que ela deve servir-se para satisfazer melhor
às suas próprias inclinações, quer científicas, quer mesmo estéticas, tornando
nossas concepções mais regulares, e mesmo mais belas, sem serem menos
verdadeiras. Tal é, mentalmente, o positivismo, que, prosseguindo sempre o
estudo das leis, caminha sem cessar entre duas sendas igualmente perigosas, o
misticismo, que quer penetrar até as causas, e o empirismo, que se cinge aos
fatos.”
“Segundo o enunciado que conheceis, essa
marcha consiste na passagem necessária de toda concepção teórica por três
estados sucessivos: o primeiro, teológico, ou fictício; o segundo, metafísico,
ou abstrato; o terceiro, positivo, ou real. O primeiro é sempre provisório, o
segundo puramente transitório, e o terceiro o único definitivo. Este último
difere, sobretudo, dos outros dois pela sua substituição característica do
relativo ao absoluto, quando o estudo das leis toma, enfim, o lugar da pesquisa
das causas. Entre os dois primeiros não existe, no fundo, outra diferença
teórica a não ser a redução das divindades primitivas a simples entidades. Mas
semelhante transformação, tirando das ficções sobrenaturais toda forte
consistência, sobretudo social, e mesmo mental, a metafísica permanece sempre
um puro dissolvente da teologia, sem nunca poder organizar seu próprio domínio.
Por isso essa doutrina de revolta e de modificação não comporta, em nossa
evolução original, individual ou coletiva, nenhuma outra eficácia senão o
permitir a transição gradual do teologismo para o positivismo. Ela adapta-se
tanto melhor a este ofício passageiro quanto as suas concepções equívocas podem
alternativamente tornar-se ou representações abstratas dos agentes
sobrenaturais ou qualificações gerais dos fenômenos correspondentes, conforme
se está mais perto do estado fictício ou do estado real.”
“O positivismo consolida irrevogavelmente o
preceito fundamental da teocracia inicial: Conhece-te
para melhorar-te. O princípio intelectual aí concorre com o motivo social.
Com efeito, a mais útil de todas as ciências é também a mais completa, ou,
antes, a única completa; visto como os seus fenômenos compreendem
subjetivamente todos os outros, conquanto estejam por isso mesmo objetivamente
subordinados a estes. O princípio fundamental da hierarquia teórica faz,
portanto, prevalecer diretamente o ponto de vista moral, como o mais complicado
e o mais especial.
Aí cessa, porém, necessariamente a
conformidade filosófica entre o positivismo e o teologismo. Este, preocupado
sempre com causas, entregava imediatamente os estudos morais aos princípios
sobrenaturais com que explicava tudo. Suscitando assim observações puramente
interiores, consagrava a personalidade de uma existência que, ligando
diretamente cada homem a um poder infinito, o isolava profundamente da
humanidade. Pelo contrário, o positivismo não procurando jamais senão a lei
para melhor dirigir a atividade, sempre essencialmente social, faz repousar a
ciência moral sobre a observação dos outros, muito mais do que sobre a
observação de si próprio, a fim de estabelecer noções ao mesmo tempo reais e
úteis. Sente-se, então a impossibilidade de abordar convenientemente semelhante
estudo sem ter apreciado primeiro a sociedade. A todos os respeitos, cada um de
nós depende sem cessar da Humanidade, sobretudo quanto às nossas funções mais
nobres, sempre subordinadas aos tempos e aos lugares em que vivemos.
Eis aí o modo por que a moral, concebida como
a nossa principal ciência, institui, em primeiro lugar, a Sociologia, cujos
fenômenos são ao mesmo tempo mais simples e mais gerais, de acordo com o
espírito de toda a hierarquia positiva.”
“Se a liberdade humana consistisse em não
seguir lei alguma, ela seria ainda mais imoral do que absurda, por tornar-se
impossível um regime qualquer, individual ou coletivo. Nossa inteligência
manifesta sua maior liberdade quando se torna, segundo seu destino normal, um
espelho fiel da ordem exterior, apesar dos impulsos físicos ou morais que
possam tender a perturbá-la. Nenhum espírito pode recusar seu assentimento às
demonstrações que compreendeu. Mas, além disto, cada qual é incapaz de rejeitar
as opiniões assaz acreditadas em torno de si, mesmo quando ignora os
verdadeiros fundamentos em que assentam, a menos que não esteja preocupado de
uma crença contrária. (...)
O mesmo acontece na ordem moral, que seria
contraditória se cada alma pudesse, a seu bel-prazer, odiar quando cumpre amar,
ou reciprocamente. A vontade comporta uma liberdade semelhante à da
inteligência, quando nossos bons pendores adquirem bastante ascendência para
tornar o impulso afetivo harmônico como verdadeiro destino dele, superando os
motores contrários. Assim, a verdadeira liberdade é por toda parte inerente e
subordinada à ordem, quer humana, quer exterior.”
“Não existe sociedade sem governo.”
“O conjunto destas regras práticas oferece a
cada um o duplo destino de dirigir sua própria conduta e de julgar a alheia.
Esta segunda aplicação acha-se mais garantida do que a primeira contra as
paixões perturbadoras, que raras vezes nos impedem de apreciar os erros dos
outros, por maior que seja a cegueira que elas nos inspirem em relação aos nossos.
Ninguém está menos disposto do que o egoísta a tolerar o egoísmo, que por toda
parte lhe suscita concorrentes intratáveis.”
“Esta transformação radical, sempre vedada ao
teologismo, sobretudo monoteico, mas constantemente pressentida e reclamada cada
vez mais pelo instinto público, não resulta agora de nenhum exagero
sentimental. Ela assenta unicamente sobre uma exata apreciação da realidade,
que, na ordem humana, mais sintética que qualquer outra, diz respeito ao
conjunto primeiro do que às partes.
Posto que cada função humana se exerça
necessariamente por um órgão individual, sua verdadeira natureza é sempre
social; pois que a participação pessoal subordina-se aí constantemente ao
concurso indecomponível dos contemporâneos e dos precedentes. Tudo em nós
pertence, portanto, à Humanidade, porque tudo nos vem dela: vida, fortuna,
talento, instrução, ternura, energia, etc. Um poeta, que nunca foi suspeito de
tendência subversiva, fez proclamar por Tito esta sentença decisiva, digna na
verdade de semelhante órgão:
Sò che tutto è di tutti; e che nè pure
Di nascer meritò chi d’esser nato
Crede solo per se.1
1: Metastásio, Clemência
de Tito (drama), ato 2º, cena 10ª: “Sei que tudo é de todos; e que nem
sequer foi digno de nascer quem acredita que nasceu só para si”.
Pressentimentos análogos poderiam ser
encontrados nas mais antigas composições. Assim, o positivismo, reduzindo toda
a moral humana a viver para outrem, limita-se realmente a sistematizar o
instituto universal, depois de ter erguido o espírito teórico até o ponto de
vista social, inacessível às sínteses teológicas ou metafísicas.
O conjunto da educação positiva, tanto
intelectual como afetiva, nos tornará profundamente familiar nossa inteira
dependência para com a Humanidade, de maneira a fazer-nos dignamente sentir
nosso necessário destino ao seu serviço contínuo. Na idade preparatória,
incapaz de uma atividade útil, cada um de nós confessa sua própria impotência
ante suas principais necessidades, cuja satisfação habitual reconhecemos que
nos vem de alhures. Primeiro acreditamos que só devemos este auxílio à nossa
família, que nos sustenta, cuida, instrui, etc. Não tardamos, porém, em
distinguir uma providência mais elevada, da qual nossa mãe não é, em relação a
cada um de nós, senão o ministro especial e o melhor representante. A
instituição da linguagem bastaria por si só para revelar-nos essa providência.
Porquanto, semelhante construção excede todo poder individual e resulta
unicamente do concurso acumulado de todas as gerações humanas, apesar da
diversidade dos idiomas. Por outro lado, o homem menos favorecido sente-se
continuamente devedor à Humanidade de uma multidão de outros tesouros
materiais, intelectuais, sociais e mesmo morais.
Quando este sentimento é assaz nítido e vivo
na idade preparatória, ele pode resistir depois aos sofismas apaixonados que
suscita a vida real, teórica ou prática. Nossos esforços habituais tendem então
a fazer-nos desconhecer a verdadeira providência, exagerando nosso valor
pessoal. Mas a reflexão pode sempre dissipar esta ilusão ingrata naqueles que
foram convenientemente educados. Porquanto a estes basta notar que o próprio
bom êxito de seus trabalhos quaisquer depende sobretudo da imensa cooperação
que seu obcecado orgulho esquece. O homem mais hábil e de melhor atividade não
pode nunca retribuir senão uma porção mínima do que recebe. Ele continua, como
na sua infância, a ser alimentado, protegido, desenvolvido, etc., pela
Humanidade. Somente os ministros desta mudaram de modo a não serem mais
distintamente apreciáveis. Em vez de tudo receber dela por intermédio dos pais,
ela transmite-lhe, então, seus benefícios por uma multidão de agentes indiretos,
cuja maior parte ele nunca virá a conhecer. Viver para outrem torna-se, pois,
para cada um de nós, o dever contínuo que resulta rigorosamente deste fato
irrecusável: viver por outrem. Tal é, sem nenhuma exaltação simpática, o
resultado necessário de uma exata apreciação da realidade, filosoficamente
apanhada em seu conjunto.”
“O principal caráter do positivismo consiste,
em resumo, numa mesma fórmula, a lei do dever e a da felicidade, até então
proclamadas inconciliáveis por todas as doutrinas, embora o instinto público
aspirasse sempre a combiná-las. A concordância necessária de ambas resulta
diretamente da existência natural das inclinações benévolas, cientificamente
demonstrada no século passado pelo conjunto dos animais, em que as partes respectivas
do coração e do espírito são mais bem apreciáveis.
Além de que nossa harmonia moral repousa
exclusivamente sobre o altruísmo, só este pode proporcionar-nos também a maior
intensidade de vida. Esses entes degradados, que hoje não aspiram senão a viver, teriam tentações de renunciar ao
seu brutal egoísmo se uma só vez tivessem provado suficientemente o que vós tão
bem chamais os prazeres da dedicação. Eles compreendem, então, que viver para
outrem fornece o único meio de desenvolver livremente toda a existência humana,
estendendo-a simultaneamente ao mais vasto presente, ao mais antigo passado, e
mesmo ao mais remoto futuro. Os instintos simpáticos são os únicos que
comportam um surto inalterável, porque cada indivíduo é aí secundado por todos
os outros, que comprimem, pelo contrário, suas tendências pessoais.
Eis aí como a felicidade coincidirá
necessariamente com o dever. Sem dúvida, a bela definição da virtude, por um
moralista do século XVIII, como um
esforço sobre si mesmo em favor dos outros1, não deixará nunca
de ser aplicável. Nossa imperfeita natureza há de sempre precisar, de fato, de
um verdadeiro esforço para subordinar
à sociabilidade essa personalidade que nossas condições de existência excitam
continuamente. Mas quando esse triunfo é assim obtido, ele tende
espontaneamente, além da força do hábito, a consolidar-se e desenvolver-se, em
virtude do encanto incomparável inerente às emoções e aos atos simpáticos.
Sentimos, então, que a verdadeira felicidade
resulta sobretudo de uma digna submissão, única base durável de uma nobre e
vasta atividade. Longe de deplorar o conjunto das fatalidades que nos dominam,
esforçamo-nos por corroborar a ordem correspondente, impondo-nos regras
artificiais, que melhor combatam nosso egoísmo, fonte principal do infortúnio
humano.”
1:
Duclos, Considération sur les Moeurs de
ce Siècle, capítulo IV (1751).
“Semelhante apreciação da natureza humana
faz-me compreender enfim a possibilidade de tornar essencialmente altruístas
mesmo as regras relativas à existência pessoal, sempre motivadas até aqui por
uma prudência egoísta. A sabedoria antiga resumiu a moral neste preceito: Tratar os outros como se desejaria ser por
eles tratado. Por mais preciosa que então fosse esta prescrição geral,
limitava-se ela a regular um cálculo puramente pessoal. Este caráter
encontra-se também no fundo da grande fórmula católica: Amar seu próximo como a si mesmo. Não só o egoísmo é assim
sancionado em vez de ser comprimido, mas, ainda, é diretamente excitado pelo
motivo em que se funda essa regra, pelo
amor de Deus, sem nenhuma simpatia humana, além de que semelhante amor se reduzia ordinariamente ao temor.
Todavia, comparando este princípio ao anterior, reconhece-se nele um grande
progresso. Porquanto o primeiro limitava-se aos atos, ao passo que o segundo
penetra até os sentimentos que dirigem aqueles. No entanto, este aperfeiçoamento
moral fica muito incompleto, enquanto o amor teológico conserva-lhe sua mácula
egoísta.
Só o positivismo é ao mesmo tempo digno e
verdadeiro, quando nos convida a viver
para outrem. Esta fórmula definitiva da moral humana não consagra
diretamente senão os pendores benévolos, fonte comum da felicidade e do dever.
Porém ela sanciona implicitamente os instintos pessoais como condições
necessárias de nossa existência, contanto que se subordinem aos primeiros. Sob
esta única reserva, a satisfação contínua deles nos é até prescrita, a fim de
bem adaptarmo-nos ao serviço real da Humanidade, à qual pertencemos
inteiramente.
Compreendo assim a profunda reprovação que
vos vi lançar sempre contra o suicídio, que até então só me parecera condenado
pelo catolicismo. Com efeito, devemos ainda menos dispor arbitrariamente de
nossa vida do que de nossa fortuna ou de nossos talentos quaisquer; pois que
ela é mais preciosa à Humanidade, de quem a recebemos.”
“Esta grande noção, cujo alcance é ainda tão
pouco compreendido, conduz logo a regenerar o casamento humano, concebendo-o
doravante como destinado sobretudo ao aperfeiçoamento mútuo dos dois sexos,
abstraído de toda sensualidade. Ela demonstra diretamente a dupla preeminência
afetiva da mulher, pela menor intensidade dos pendores pessoais, sobretudo dos
mais grosseiros, e pela energia superior das inclinações simpáticas. Daí
resulta a teoria positiva do casamento, em que vosso sexo melhora o meu,
disciplinando o impulso carnal sem o qual a inferioridade moral do homem não
lhe permitiria quase nunca uma suficiente ternura. Porém esta relação
fundamental é felizmente secundada por todos os outros contrastes cerebrais dos
dois sexos. A superioridade masculina é incontestável em tudo o que diz
respeito ao caráter propriamente dito, fonte principal do comando. Quanto à
inteligência, ela oferece, no homem, mais força e extensão; na mulher, mais
justeza e penetração. Tudo, pois, concorre para provar a eficácia mútua dessa
união íntima, que constitui a mais perfeita das amizades, embelezada por uma
incomparável posse recíproca. Fora de semelhante laço, as rivalidades atuais ou
possíveis impedem sempre a plenitude de confiança que só pode existir de um
sexo em relação ao outro.
Os apetites sexuais não têm aí outro destino
senão produzir ou entreter, sobretudo no homem, os impulsos adequados a
desenvolver a ternura. Mas para isso cumpre que as satisfações desses apetites
permaneçam muito moderadas. De outra sorte, sua natureza profundamente egoísta
tende, pelo contrário, a estimular a personalidade, quase tanto como os
excessos nutritivos, e amiúde mesmo com mais gravidade, porque a mulher é aí
odiosamente sacrificada às brutalidades do homem. Quando meu sexo consegue ser
bastante puro, como ordinariamente é o vosso, a ponto de a ternura poder surgir
assaz nele sem essa excitação grosseira, a principal eficácia do casamento
desenvolve-se muito melhor.”
“Entre dois entes tão complexos e tão
diversos como o homem e a mulher, a vida inteira não é demais para se
conhecerem bem e se amarem dignamente.” (Política
Positiva)
“O escravo, como ainda o lembra a etimologia
latina1, foi a princípio um prisioneiro de guerra, poupado para o
trabalho, em vez de ser destruído ou devorado. Em virtude da natureza
conciliante do politeísmo, ele podia conservar seu próprio culto,
subordinando-o à religião do vencedor, tornado seu chefe espiritual e temporal.
Esta condição social, de que ninguém estava inteiramente isento, visto as
vicissitudes da guerra, era então bastante natural para ser amiúde aceita
independentemente de sua fonte militar, que contudo prevaleceu sempre.
A instituição da escravidão formou duplamente
a base da civilização antiga, primeiro por ser indispensável ao desenvolvimento
das conquistas, segundo, a fim de habituar o homem ao trabalho, que se tornou
assim o único meio de melhoramento pessoal, depois de ter sido o penhor da
vida. Sob todos estes aspectos não se pode, de modo nenhum, compará-la à
efêmera monstruosidade suscitada pela colonização moderna.”
1: Segundo a etimologia até aqui mais aceita,
servos deriva-se de servare, conservar, salvar, preservar.
“O catolicismo, que outrora possuiu minha fé,
conservará sempre minha veneração. Contudo, nunca pude deixar de lhe preferir
no meu íntimo a cavalaria, cujo nobre
resumo ainda ouço repercutir no século XVI: Faze o que deves, suceda o que
suceder.”
“Sob a universal preponderância do ponto de
vista humano, uma síntese subjetiva pode assim construir, enfim, uma filosofia
verdadeiramente inabalável, que levou a fundar a religião final, logo que o
surto moral completou a renovação mental. Desde então admirou-se a Idade Média,
sem deixar de apreciar melhor a Antiguidade. A cultura do sentimento foi
radicalmente conciliada com a da inteligência e da atividade.
Todos os nobres corações e todos os grandes
espíritos, sempre convergentes daqui por diante, concebem assim terminada a
longa e difícil iniciação por que a Humanidade teve de passar, sob o império
constantemente decrescente do teologismo e da guerra. O movimento moderno cessa
de ser radicalmente antinômico. Sua progressão positiva mostra-se, enfim, capaz
de satisfazer a todas as exigências, intelectuais e sociais provenientes de sua
progressão negativa, não só quanto ao futuro, mas também quanto ao presente, do
qual eu não tinha de ocupar-me aqui. Por toda parte o relativo sucede
irrevogavelmente ao absoluto, e o altruísmo tende a dominar o egoísmo, ao passo
que uma marcha sistemática substitui uma evolução espontânea. Em uma palavra, a
Humanidade substitui-se definitivamente a Deus, sem esquecer jamais seus
serviços provisórios.
Eis aí a última explicação sobre o advento
decisivo da religião universal, a que aspiram, há tantos séculos, o Ocidente e
o Oriente. Apesar de tal advento ainda se achar muito entravado, sobretudo no
seu centro, pelos prejuízos e pelas paixões que, sob diversas formas, repelem
toda verdadeira disciplina, a sua eficácia será sentida em breve pelas mulheres
e pelos proletários, principalmente no sul. Mas sua melhor recomendação há de
resultar da aptidão exclusiva do sacerdócio positivo para agremiar por toda
parte as almas honestas e sensatas, pela digna aceitação do conjunto da
sucessão humana.”
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