Editora: Planeta
ISBN: 978-85-7665-375-2
Tradução: Claudia Abeling
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 248
Sinopse: Os três
contos de A Bandeira Inglesa são sobre os tempos da catástrofe, passada
e presente. Seja ela política, social ou humana, a catástrofe abafa o grito de
esperança, mas não acaba com ele. O estilo delicado e apaixonante de Imre
Kertész, prêmio Nobel de Literatura em 2002, transforma a narrativa num
mergulho corajoso em direção a nós próprios, seres humanos carregados de
crenças e de medos. Ao mesmo tempo em que lembra como a história pode triturar,
sugere as cores fugazes da vitória... logo superada pelos tanques e pelas
fronteiras, sempre fechadas. A Bandeira Inglesa é um livro obrigatório nestes
tempos de barbárie.
“Esse mundo suavizado pela leitura,
distanciado pela leitura, neutralizado na própria leitura, mesmo se também
falseado, era para mim o único possível de ser vivido, às vezes até um mundo
quase suportável. Finalmente aconteceu o momento previsto, no qual me perdi
para essa redação e assim também para... a sociedade, quase teria dito, caso
tivesse havido então uma sociedade, ou seja, se aquilo que havia tivesse sido
uma sociedade para aquilo que se assemelhava a uma sociedade, para essa horda
que às vezes gania como um cão maltratado, às vezes como uma hiena faminta,
sempre ávida por algo que pudesse ser triturado; eu já estava perdido há muito
para mim mesmo e quase me perdi também para a vida. Mas, mesmo nesse ponto mais
baixo – naquela época, eu ainda o considerava o ponto mais baixo, antes de
conhecer outros mais baixos e cada vez mais baixos, por fim a falta de chão –,
mesmo nesse ponto mais baixo, mantinha-se a narratividade, em outras
palavras, o foco da câmera, por exemplo o da lente da câmera de um romance
barato. Não sei de onde o tinha, de que se tratava, como se chamava. Já não
leio mais romances baratos, desde que certa vez me flagrei na leitura não me
interessando mais por saber quem seria o assassino, e que neste mundo – mundo
assassino – não é apenas enganoso, mas, na verdade, revoltante, e além do mais
desnecessário, quebrar a cabeça para saber quem é o assassino – são todos.”
“Esse romance de detetive me ensinou que, nas
raras pausas de sua existência torturada, o homem precisa de prazer: eu não
teria ousado dizer isso antes e, se tivesse, no mínimo como um pecado. Nessa
época, perigos mortais ameaçavam-me na redação; para ser exato, perigos
mortalmente tediosos, não por isso menos perigosos, a cada dia novos e, mesmo
assim, a cada dia os mesmos.”
“A morte, se nos preparamos continuamente
durante toda uma vida para ela, como a verdadeira tarefa, sim – na realidade –,
a única, quando a ensaiamos durante toda uma vida, quando aprendemos a
encará-la como – no fim das contas – solução tranquilizadora, mesmo se não
tranquilizadora: é algo sério. O tijolo, porém, que cai sobre nossa cabeça, não
é sério. O carrasco não é sério. Mas, veja só, apesar disso, os que não temem a
morte também temem o carrasco.”
“O homem sempre encontra com exatidão e sem
hesitar a mentira de que necessita, da mesma maneira que pode encontrar com
exatidão e sem hesitar a verdade de que necessita, caso tenha a sensação de que
precisa dela, ou seja, de renunciar à vida.”
“Do que então se nutriria nosso medo
constante, se todos não nos sentíssemos um tanto partícipes do mal universal?”
“Mas sim, disse a visita, é totalmente
compreensível, todos passamos pela mesma situação: por conta de tarefas
secundárias vamos adiando constantemente as prioritárias, muitas vezes durante
toda a vida, e depois ficamos perplexos quando nos questionamos a respeito de
nossas verdadeiras realizações.”
“O que está acontecendo lá na frente? Uma
mulher marcha com passos bambos pela multidão formada à sua frente; por um
minuto tudo para, toda a pressa é esquecida: Será que a multidão que se abre
está homenageando uma rainha? Olhares a seguem por todos os lados, salvação,
alívio, pelo menos um consolo inesperado, confiando numa forma de distração
ligeira na confusão arrasadora; olhares que todos querem para si e que, sem
dúvida, coincidem nessa esperança compartilhada, o objeto compartilhado
transformado na posse compartilhada dessa esperança compartilhada. Todos se
viram em sua direção: homens, velhos, moços, maridos de braços dados com suas
esposas e também as esposas; essa mulher magnética caminhava no meio do fogo
cruzado de desejos, sonhos, paixões, desejos ocultos e exigências secretas, e
parece que ela se sente bem no foco dos sentimentos, e, ao lado dos olhares
masculinos, os olhares das mulheres lançam ao redor dela faíscas iradas de
inveja, admiração ou irritada impotência. Seu passos a carregam com uma confiança
ignorada, como se ela não soubesse onde está andando; o sorriso imutável que
leva a frente é de todos e de ninguém, se não somente dela própria.
Ela era bonita tal como se aproximava, com a
luz explosiva das chamas do sol sanguíneo refletido na fileira de cima das
janelas de um edifício ao fundo, como se Babilônia ardesse.
Ela era bonita, sim, e apesar disso havia
algo de podre nessa mulher. Sua expressão trazia, de algum modo, o desespero do
esforço; sua segurança, algo sonâmbulo; sua beleza, algo diluído, um traço
oculto tendendo quase à feiura, que ameaçava se libertar a qualquer momento
para apoderar-se desse rosto com súbitas contrações.
Quem era essa mulher? Uma bruxa? Um espírito
funesto? Onde ele já havia visto seu rosto? Como um close numa
tela de cinema, como a imagem de uma santa ou na primeira página de revistas
pornográficas? Ela era realmente corrompedora ou, ao contrário, talvez
corrompida: quem poderia descobrir o segredo dessa mulher? Ela estava aqui e,
mesmo assim, não estava presente; parecia se oferecer e, mesmo assim, não era
acessível, assim como o doce congelado na sua mão, que se dilui em água
adocicada quando uma boca vivente o toca: tudo nela era falso, e somente sua
falsidade era verdadeira. Sim, era muito claro, a relação se tornou perceptível
para os espectadores: eles a corrompiam para poderem chamá-la de corrompida;
eles a corrompiam para que ela os corrompessem. Esses minutos, durante os quais
ela atravessava a multidão aduladora, enfeitiçada por paixão flageladora,
tornaram-se lenda, e esse triunfo enganador tornou-se um erro. Mitos foram
fiados sobre ela e ela se tornaria vítima desses mitos; ela acreditava ser
conquistadora, mas era apenas uma vítima crédula, acreditava ser destino, mas
era apenas presa, ela flertava com a liberdade e deitava-se com a tirania.”
“Não havia dúvida sobre o que pensava: seu
sorriso absorto era ao mesmo tempo uma resposta cúmplice ao sol, no seu rosto
estampava-se a despreocupação cruel dos banhistas e o compromisso vigoroso de
marés calmas – e o emissário descobriu agora, subitamente, uma amargura fugaz,
como se estivesse farto do peso das dúvidas que o oprimiam. Seu olhar
agradecido procurou o estranho que o tinha ajudado a ver, mas não o encontrou
nem no lugar de antes nem em meio à multidão. Lá atrás da balaustrada tudo
continuava a fluir, cegamente, sem parar; cada um fazia o seu e apenas o seu,
sofrendo e praticando esse horror cotidiano com a indiferença do costume e do
afã suicida do autoengano. Sim: seu saber era inútil; sua verdade, indivisível.”
“Nesse momento não me interessa estar pagando
a mais, o que já é de lei na minha vida. Quero me dar essa viagem de presente,
surpreender a mim mesmo como meu próprio amigo benfeitor e generoso. Gosto de
viajar, na realidade, é a única coisa de que gosto. Também sou sempre o mais
feliz ao partir e o mais infeliz ao chegar, como Bernhard diz sobre si. Gosto
de estar em trânsito, quer dizer, em lugar nenhum.”
“A dúvida e a comoção me assolavam como
sempre; eu me conformo com tudo, mas até hoje não consigo me entender com essa
ideia de ressurreição: “Então prefiro nem morrer” – como se supõe que Marat
tenha dito.”
“Então me enfio novamente no diário de Dalí.
Sua ligação com Nietzsche me irrita. Algo que já me chama atenção faz tempo: a
sensibilidade dos espanhóis em relação aos alemães. Ortega também foi aluno de
Nietzsche e Unamuno poderia conseguir o título de “o aluno mais monótono de
Nietzsche” com facilidade. “Nietzsche era um tamanho debilóide que acabou louco
por causa da sua incapacidade de viver, embora só exista uma coisa neste mundo:
permanecer normal.” Esta frase de Dalí me deixa profundamente indignado. Será
que essa pessoa não entende que foi exatamente a loucura de Nietzsche sua ação
mais honrosa e consequente? E que a diarreia de ouro nunca teria jorrado com
tamanha abundância infinita em sua carteira escancarada se Nietzsche tivesse
ficado da mesma maneira “normal”, isto é, sóbrio e previsível como ele, Dalí?
Afinal, alguém teve de ser crucificado pela moral para que os outros pudessem
então transformá-la em moedas tilintantes...”
Um comentário:
Depois dos seus comentários esse é um livro que sem dúvidas vai para a minha wishlist, eu simplesmente preciso lê-lo, de verdade, muito obrigada por me apresentá-lo!
Estou seguindo e adorando o conteúdo do blog!
Abraços.
Tenho um blog no qual falo sobre filmes, series e cultura no geral. Se puder dar uma conferida ficarei muito grata: http://cineleva.blogspot.com/ :)
Postar um comentário