sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Zoologia Fantástica do Brasil – Afonso de Escragnolle Taunay e Odilon Nogueira de Matos

Editora: EDUSP
ISBN: 978-85-3140-519-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 112
Sinopse: A exuberante e diversificada fauna brasileira foi descrita com muita fantasia e imaginação pelos viajantes europeus que percorreram o Brasil rapidamente nos séculos XVI e XVII. A breve passagem pelo país, insuficiente para uma observação mais detalhada das espécies, fez com que os autores incorporassem em seus relatos invencionices e crendices populares. Este livro é um documentário precioso sobre o imaginário que trata de uma ‘zoologia fantástica’ brasileira, presente nos relatos dos viajantes.


“Mas naqueles séculos de ferro, que podia ser a voz da ciência senão o tímido murmúrio de um ou outro ensaísta tratando de desvendar os segredos dos reinos da natureza?”


“Na opinião de Ferdinand Denis é o Miroir du monde, de Brunetto Latini, a enciclopédia do século XIII, que insere o melhor quadro das ideias zoológicas do seu tempo.
Depois de dizer que o nosso globo tinha de largo 24.037 léguas lombardas, e o terço dessa dimensão em espessura, acrescenta que na atmosfera mil, cento e cento e onze ventos principais eram conhecidos, cujos choques produziam os raios.
Dá-nos, depois, grande quantidade de outros apontamentos cosmogônicos igualmente preciosos para passar a ocupar-se da geografia propriamente dita.
A seu ver, ocupava a Ásia metade do Globo, desde a foz do Nilo até a do “rio de Tranam” ao extremo oriente.
No ocidente asiático é que existia o país dos essênios, onde reinava a idade do ouro!
Ali sim se praticava a virtude, entre esses povos santos! Também tudo se explicava facilmente: não havia entre aquela admirável gente as duas grandes causas da discórdias humanas, a mulher e a pecúnia.
Do país dos misóginos e pecuniófobos essênios ia-se ao de Seluice onde se erguia tão gigantesco pico que no seu cume havia sempre sol.
Depois do enorme deserto de Seluice ocorria o país dos Serres, que se vestiam de uma lã feita da casca de certas árvores.
Na África, na terre d’Aufrique, redobravam os prodígios como, por exemplo, sucedia a certos rios cujas águas tal viscosidade apresentavam que apesar de correrem acima de suas margens não inundavam as terras ribeirinhas! Era na terre d’Aufrique que fluía o Lete, o rio infernal cujas fontes surdiam no próprio império de Satanás.
Os trogloditas, as amazonas, mais tarde transportadas à América, os garamantes habitavam aquele continente de fogo.
As enormes marés que lhe assolavam o litoral provinham dos esforços convulsivos da terra, ao respirar.
Porque muitos doutos afirmavam: tinha a Terra alma e precisava respirar “comem on fait par li narinas” (tal como é feito pelas narinas).
Também outras convulsões terráqueas faziam saltar das entranhas do globo miríades de seres malditos e pavorosos. No tratado da Propriedade dos que Têm Magnitude, Força e Poder em Suas Brutalidades, ocorrem circunstâncias muito interessantes. Por que motivo perseguia o dragão os elefantes e de maneira atroz? Pura questão terapêutica? Sentindo-se na iminência de crise urêmica, buscava o antídoto único para o seu caso, o sangue do paquiderme!
Simplesmente isso: “le sang de l’éléphant qui est croit estanche la grant chaleur du venin di dragon” (acredita-se que o sangue do elefante estanque o calor do veneno do dragão).
Nada mais pitoresco do que os amores da terrível serpe guivra. No tempo do cio reptava até as praias do mar onde sabia que existiam moreias. Lá se emboscava emitindo mavioso e aflautado canto. Atraída por essa música, era o anguiliforme engolido, tornando-se então possível a fecundação da cobra.
Pouco depois paria ela, sendo imediatamente devorada pelos filhotes!
Entre os répteis e peixes africanos coloca o nosso douto autor as sereias e os hipopótamos.
Sobre o unicórnio lê-se no exemplar Miroir du monde do fonds Colbert, 7066, da Biblioteca Nacional de Paris, muito pormenorizada notícia.
Três eram, aliás, as espécies de unicórnios, duas das quais chamadas eglisserion emonoceros.
Nada tinha o unicórnio de gigantesco, pelo contrário, eram-lhe as dimensões apenas as de um cavalo de pernas curtas. Esse bicho de corpo branco, cabeça purpúrea e olhos azuis, ostentava um chifre de três cores: branco na raiz, negro como ébano no centro e rubro na ponta. Animal cheio de sentimentalismo, valoroso e terno ao mesmo tempo, se se mostrava o terrível e implacável inimigo do elefante também vinha a ser o inseparável amigo do pombo, cujos arrulhos o deixavam extático. Do modo mais encantador lhe retribuía o amoroso volátil essa amizade vindo pousar, a cada passo, na arma terrível do fantástico quadrúpede.
Era o unicórnio caçado porque o seu chifre tinha propriedades terapêuticas de inestimável valor. Basta lembrar que o seu contato neutralizava imediatamente o mais perigoso veneno. Qualquer líquido tóxico passava a ser o mais inofensivo licor. Se o bicho mergulhava os chifres num rio, ficavam as águas deste saneadas.
Se acaso uma faca guarnecida da tão preciosa substância córnea tocasse uma vianda intoxicada, imediatamente transudava de seu cabo sutil transpiração avisadora do perigo.
Na Etiópia, rebanhos enormes de unicórnios se viam, afirmaria gravemente, já na Idade Moderna, um viajante português, o padre Lobo! E ele os vira!
O leão era o único animal capaz de caçar o unicórnio. Nos tratados de gênero de Brunetto Latini, como no tão conhecido De Belluis et Monstris, encontram-se uma infinidade de informes sobre a fauna teratológica de antanho.”


“Quanta curiosidade em matéria hidrográfica!
Certo rio da Samaria mudava quatro vezes, por ano, de cor, de verde passava a sanguíneo, depois a pardo e afinal a cristalino.
Ninguém bebesse tal água cuja letalidade vinha a ser terrível!
E o rio Sábado? Assim chamado porque deixava de fluir, completamente, um dia todas as semanas?
E o outro rio, da Pérsia, que todas as noites gelava durante o ano todo? E outro ainda no Epiro, cujas águas não conseguiam extinguir as brasas? E outro, este da Etiópia, que de noite dava água quente e de dia gelada?
E mais outro cuja linfa causava a cegueira dos ladrões? E mais outro ainda, dançarino enragé, cujas águas tranquilas, inteiramente plácidas, se encrespavam, e encapelavam, até quando em sua margem havia música animada?
E aquelas fontes do Oriente de águas inflamáveis a cujos fogos só podiam extinguir o vinagre, a urina e a areia?”

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