quarta-feira, 27 de maio de 2015

Guerra e Paz (Volume III), de Leon Tolstói

Editora: L&PM

ISBN: 978-85-2541-673-5

Tradutor: Isabel da Nóbrega e João Gaspar Simões

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 408

Sinopse: Ver Parte I


“Em fins de 1811 principiaram os armamentos intensivos e a concentração das forças da Europa ocidental e, em 1812, estas forças, ou seja, milhões de homens, no número das quais se contava transportes e abastecimentos, puseram-se em marcha do ocidente para o oriente, em direção às fronteiras da Rússia, para onde se encaminhavam, igualmente, a partir de 1811, os exércitos russos. No dia 12 de Junho, os exércitos da Europa ocidental atravessaram a fronteira e a guerra principiou, isto é, produziu-se então um acontecimento em desacordo completo com a razão e a própria natureza do homem. Estes milhões de homens praticaram, em relação uns aos outros, tão grande número de abominações, de fraudes, de traições, de roubos, de falsificações de moeda, de pilhagens, de incêndios e de morticínios como não há exemplo nos arquivos dos tribunais do mundo inteiro, funcionando há séculos, e sem que, no entanto, durante todo este período, aqueles que cometeram tais crimes fossem considerados, realmente, criminosos.”

 

 

“O homem vive para si mesmo, goza de liberdade para alcançar os seus objetivos particulares; todo o seu ser lhe diz que pode realizar ou não imediatamente este ou aquele ato; mas assim que age, realizado que seja o seu ato em tal ou qual momento da continuidade temporal, ei-lo que passa a ser irrevogável e a pertencer daí para o futuro à história, perdendo o seu caráter de ato livre para ocupar um lugar que lhe é previamente designado.

A vida do homem tem duas faces. Há, em primeiro lugar, a vida individual, tanto mais livre quanto mais gerais os seus interesses, quanto mais abstratos; e depois a vida como um elemento social, a vida do cortiço humano, em que o homem tem inevitavelmente de se submeter às leis que lhe são prescritas.

O homem vive conscientemente a sua vida individual, servindo de instrumento inconsciente à realização dos fins históricos da humanidade inteira. O ato realizado torna-se irrevogável, e, graças à sua concordância com os milhões de outros atos realizados ao mesmo tempo, assume valor histórico. Quanto mais alto o homem está colocado na escala da humanidade, quanto mais importantes as personagens com quem entra em contato, tanto maior, igualmente, o seu poder sobre os outros homens e mais evidente o caráter de predestinação e de fatalidade de cada um dos seus atos.

“O coração dos reis está na mão de Deus.” “O rei é escravo da história.”

A história, quer dizer, a vida inconsciente, geral, elementar, da humanidade serve-se de todos os minutos da vida dos reis para alcançar os seus objetivos.

Embora então, em 1812, Bonaparte estivesse mais do que nunca convencido de que não dependia senão dele “fazer ou não verter o sangue dos povos”, como dizia Alexandre na última carta que lhe escreveu, a verdade era mais do que nunca encontrar-se sujeito a essas leis fatais que, enquanto lhe davam a ilusão de agir por si, segundo o seu próprio capricho, o compeliam a colaborar na obra comum, a história, realizando o que necessariamente tinha de realizar-se.

Os homens do Ocidente puseram-se a caminho do Oriente para se chacinarem uns aos outros. E, segundo a coincidência das causas, colaboraram neste acontecimento e encontraram-se em correlação com ele milhares de pequenas causas desse movimento e dessa guerra, entre as quais a violação do bloqueio continental, a ofensa ao duque de Oldemburgo, os deslocamentos de tropas na Prússia, realizados, segundo pensava Napoleão, com o único fim de se conseguir uma paz armada; o amor da guerra do imperador dos Franceses e o hábito em que estava de a fazer, de acordo com as disposições particulares do seu povo; o entusiasmo a que levavam os preparativos grandiosos; as despesas que estes preparativos determinaram; a necessidade de conseguir vantagens que compensassem tais despesas; as honrarias inebriantes que recebera em Dresden; as conversações diplomáticas que, de acordo com a opinião dos contemporâneos, haviam sido realizadas com o sincero desejo de alcançar a paz e que no fim de contas só serviram para irritar o amor-próprio de parte a parte; milhões de milhões de outras causas, enfim, que concorreram para a realização do acontecimento ou que coincidiram com ele.

Uma maçã cai quando está madura. Por quê? É o peso que a faz cair? Ou porque se lhe seca o pé, porque o sol a queima, porque se tornou pesada de mais, porque o vento a sacudiu ou, muito simplesmente, porque um garoto junto da árvore morria por comê-la?

Nenhuma destas causas é a válida. Não há mais que uma concordância de condições favoráveis na realização de qualquer dos acontecimentos elementares da vida orgânica. O botânico que descobre que a maçã cai como consequência da decomposição do tecido celular ou qualquer coisa semelhante não tem mais razão que o garoto dizendo que a maçã caiu porque ele a desejava comer e nesse intuito rezou a Deus. Igual razão ou sem-razão terá aquele que vier dizer que Napoleão entrou em Moscou por ser esse o seu desejo e que aí se perdeu por ser essa a decisão de Alexandre. Igualmente estará em erro e terá razão aquele que disser que uma montanha de milhões de puds que acabou por se desmoronar minada na base caiu graças ao último golpe de picareta do último dos sapadores. Nos fatos históricos, esses a quem se dá o nome de grandes homens não passam, no fundo, de etiquetas para designar o acontecimento. Aqueles têm tão pouca relação com tais fatos como as próprias etiquetas que lhes põem.

Nenhum dos seus atos que a eles se lhes afigurem produto do livre arbítrio podem considerar-se em verdade voluntários no sentido histórico da palavra, pois estão relacionados com a marcha geral da história, onde o seu lugar se encontra assinalado para toda a eternidade.”

 

 

“Pfuhl era criatura de uma só peça e de uma teimosia tal que seria capaz de afrontar o martírio em defesa das suas ideias; era como só os Alemães sabem ser, pois só eles são capazes de uma cega confiança nas noções abstratas, na ciência, isto é, no conhecimento pressuposto da verdade absoluta.

O Francês é um homem seguro de si, persuadido de que, pessoalmente, quer pelo espírito, quer pelo físico, exerce uma irresistível sedução tanto nos homens como nas mulheres. O Inglês também goza da mesma segurança, por estar persuadido de que é cidadão do Estado mais bem organizado do mundo, e daí saber sempre, na sua qualidade de inglês, que o que deve fazer e faz é indiscutivelmente perfeito. Pelo seu lado, o Italiano tem confiança em si próprio porque facilmente se emociona, esquecendo-se ainda mais depressa de si e dos outros. Ao Russo também não falta confiança, visto que tudo ignora e nada quer saber e estar convencido de que ninguém pode saber seja o que for. No que diz respeito ao Alemão, porém, esse é o pior de todos, mais obstinado que ninguém e mais desagradável para todo o mundo, convencido de que conhece a verdade, ou seja a ciência que ele próprio fabrica, para ele, a verdade absoluta.”

 

 

“Em vez de gênios, os melhores generais que eu conheci eram estúpidos ou pouco sérios. (...)

Um bom militar nem precisa de ser gênio nem de ter qualidades especiais. Pelo contrário, deve ser desprovido do que há de melhor e de mais elevado no homem: o amor, a poesia, a ternura, a dúvida filosófica, filha da experiência. Deve ser limitado, estar persuadido de que é de alta importância tudo quanto faz. De outro modo faltar-lhe-á a persistência; só assim será um valoroso capitão. Que Deus o defenda de amar alguém, de se afeiçoar seja a quem for, de ser compadecido, de pensar no que é justo e no que o não é. Compreende-se que desde tempos imemoriais se tenha inventado para galardão seu a teoria do gênio, pois, em verdade, representa o poder. O êxito ou o desaire de uma ação militar não podem ser-lhe atribuídos, mas ao soldado que nas fileiras grita: Estamos perdidos! ou então exclama Hurra!” Somente nas fileiras um homem pode servir convencido de que é útil!”

 

 

“Rostov escutava o relato não só sem uma palavra que encorajasse o narrador, mas inclusivamente com uma cara que dir-se-ia envergonhada pelo que ouvia, embora nada tivesse que objetar. Depois de Austerlitz e da campanha de 1807, sabia, por experiência própria, que quem conta um episódio militar nunca fala inteiramente verdade, como com ele próprio acontecera então. Além disso, já era bastante experimentado na guerra para saber que nada se passa no campo de batalha como as pessoas o imaginam ou como é costume virem a contá-lo mais tarde.”

 

 

“– Sei de fonte limpa que Kutuzov impôs como condição sine qua non que o grão-duque herdeiro não continue no exército. Sabem o que disse ao imperador? E o príncipe Vassili repetiu as palavras que este teria dito ao soberano: “Não posso castigá-lo se se portar mal nem recompensá-lo se se portar bem.”

 

 

“Quando se parte lenha, é certo e sabido que as lascas vão pelo ar.”

 

 

“Acredita no que te digo, meu caro: nada há que valha estes dois soldados: a paciência, e o tempo! Eles farão tudo.”

 

 

“A aproximação do inimigo não levara os Moscovitas a acreditar que a situação se, tivesse tornado mais séria; examinavam-na, pelo contrário, com mais leviandade, como costuma acontecer quando uma catástrofe se aproxima. Na hora do perigo duas vozes, igualmente fortes, se ouvem na alma do homem: uma aconselha sempre, prudentemente, que cada um de nós se dê conta exata do perigo que o ameaça e trate de procurar maneira de o evitar; a outra, ainda com maior prudência, diz-nos ser muito penoso e dolorosíssimo pensar no perigo, visto não estar nas possibilidades do homem prever e furtar-se à marcha dos acontecimentos, e o melhor é não nos preocuparmos com as coisas tristes antes do fato consumado e só pensarmos nas coisas agradáveis. O homem isolado obedece, regra geral, à primeira destas vozes; em sociedade, pelo contrário, submete-se à segunda. Era o que de fato estava a acontecer com os habitantes de Moscou. Nunca as pessoas ali se haviam divertido tanto como naquele ano.”

 

 

“Quem muito se justifica, alguma culpa tem.”

 

 

“Naquele momento o problema que preocupava Pedro desde a encosta de Mojaisk afigurou-se-lhe claro e fácil de resolver. Agora compreendia inteiramente o sentido e a importância da guerra que se travava e da batalha que ia dar-se. Tudo o que vira durante aquele dia, aquela expressão grave dos rostos que observara ao passar pelos homens, se iluminou para ele de um novo esplendor. Compreendeu esse calor oculto, latente, como se diz em física, o calor do patriotismo que emanava de toda essa gente e isso explicava-lhe porque todos, serena e por assim dizer despreocupadamente, se preparavam para morrer.

– Não fazer prisioneiros – prosseguiu o príncipe André – seria transformar a guerra e torná-la menos cruel. Em vez disso, não fizemos outra coisa senão brincar às guerras. E esse foi o erro: mostramo-nos magnânimos, etc. Esta magnanimidade, este sentimentalismo, fazem-me lembrar a senhora que desmaia quando vê matar uma vitela. É tão boazinha que não pode ver correr sangue, embora seja capaz de comer com apetite essa mesma vitela servida com um molho saboroso. Falam-nos nos direitos da guerra, de cavalheirismo, de parlamentários, de humanidade para com os desgraçados e de outras coisas no mesmo gênero. Tudo isso são tolices. Eu bem vi em 1805 todas essas lindas coisas, esse cavalheirismo, esse respeito pelos parlamentários... Enganaram-nos, e nós, pela nossa parte, fizemos o mesmo. Saqueiam casas que lhes não pertencem, espalham dinheiro falso, e, coisa pior ainda, matam-nos filhos, pais, e depois vêm-nos falar das leis da guerra e da generosidade para com o inimigo. Não fazer prisioneiros, mas matá-los a todos e morrermos também! Aquele que chegou, como eu, a esta convicção, depois de ter passado pelos mesmos sofrimentos...

O príncipe André ia dizer ser-lhe indiferente que Moscou viesse a ser ou não tomada, como o fora Smolensk, mas calou-se de chofre: um espasmo imprevisto lhe apertava a garganta. Deu alguns passos calado, mas nos seus olhos havia um brilho febril e os seus lábios tremiam quando retomou a palavra:

– ... Se não existisse esta falsa magnanimidade na guerra, não caminharíamos para a morte senão quando a morte fosse certa, como acontece hoje. Não haveria guerras com o pretexto de que Pavel Ivanitch ofendeu Mikail Ivanitch. Mas em compensação quando houvesse uma guerra como a de hoje então seria uma guerra a valer. E não haveria também grandes massas de tropas em ação, como agora. Todos esses westfalianos e todos esses hessianos que Napoleão traz consigo não o teriam seguido até à Rússia, e nós, pela nossa parte, não nos teríamos ido bater na Áustria e na Prússia, sem mesmo saber por que razão. A guerra não é um divertimento, mas a coisa mais repugnante deste mundo. É preciso compreendê-la e não nos servirmos dela como uma brincadeira. É preciso aceitar seriamente, com austeridade, esta terrível necessidade. E daqui não há que sair, é preciso acabar com a mentira: a guerra, sim, a guerra é a guerra e não um divertimento. De outro modo a guerra será um entretenimento próprio de ociosos e de espíritos superficiais. A classe militar é das mais dignas. Mas que é a guerra? Que é preciso para se ter êxito nas operações militares? Quais são os costumes da sociedade militar? A finalidade da guerra é o homicídio; as suas armas são a espionagem, a traição, a ruína dos habitantes, o saque e o roubo organizados para manutenção do exército, a fraude e a mentira mascaradas como astúcias de guerra. Quais os costumes da classe militar? A supressão da liberdade sob o pretexto da disciplina, a ociosidade, a grosseria, a crueldade, a devassidão, a embriaguez, E, apesar de tudo, é uma classe superior, respeitada por todos. Todos os reis, à exceção do imperador da China, envergam o uniforme militar e as mais altas recompensas reservam-se para aquele que mais gente matou. Reúnem-se os soldados, como vai acontecer amanhã, para se chacinarem uns aos outros. Matar-se-ão e ficarão mutilados dezenas de milhares de homens e depois haverá cerimônias religiosas de ação de graças por se terem morto tantos homens, sem que, no entanto, se deixe de exagerar o número dos que se mataram, proclamando-se a vitória, dizendo que quanto maior o número de mortos mais retumbante esta será. Como é possível que Deus os ouça e os escute lá de cima? – clamou o príncipe André na sua voz colérica. – Oh, querido amigo, durante os últimos tempos muito penoso me tem sido viver! Vejo que principiei a compreender coisas de mais. Não é bom conhecer o homem os frutos da árvore do bem e do mal... Mas não será por muito tempo – acrescentou.”

 

 

“Pois a verdade é que numa batalha ninguém pensa senão no que tem de mais precioso, ou seja, na própria vida, e o que pode acontecer é que umas vezes a salvação esteja na fuga para a retaguarda e outras na marcha avante.”

 

 

“A sua larga experiência da guerra, a sua prudência de velho, diziam-lhe não ser possível a um só homem dirigir centenas de milhares de outros homens que lutam com a morte. Kutuzov sabia que o que decide do destino das batalhas não eram nem as medidas tomadas pelo general-chefe, nem as posições ocupadas pelos soldados, nem o número dos canhões e dos mortos, mas essa força inapreensível que se chama “o moral das tropas” e que ele procurava descobrir e dirigir na medida do possível.”

 

 

“– Alteza, nos assuntos indecisos é sempre o mais tenaz que sai vitorioso.”

 

 

“Por que será que me custa tanto deixar esta vida? Há de fato nela qualquer coisa que eu não compreendia e que continuo sem compreender.”

 

 

“Destinado pela Providência para desempenhar o papel lamentável e servil de carrasco das nações, Napoleão queria convencer-se de que o seu objetivo era o bem dos povos e que podia orientar o destino de milhões de seres fazendo a sua felicidade.”

 

 

“– Boa ou má, a minha cabeça só comigo pode contar.”

 

 

““A guerra”, dizia-lhe uma voz, “é a sujeição mais penosa que pode conceber-se da liberdade humana às leis de Deus. A simplicidade é a obediência a Deus; tudo depende d’Ele. E ‘eles’ são simples. Eles não dizem o que fazem. A palavra é de prata, mas o silêncio é de ouro. O homem nada pode possuir enquanto temer a morte. Só quem não teme a morte é senhor de tudo. Se a dor não existisse, o homem não conheceria os seus limites, não se conheceria a si mesmo. Nada mais difícil”, pensava ele, continuando a sonhar, “que cada um saber reunir na sua própria alma o significado de todas as coisas. Reunir tudo? Não, não é essa a palavra. Não é possível unir todas as ideias, mas, sim, pô-las de acordo!”, repetia, com uma espécie de entusiasmo interior, como se sentisse que essas palavras, e só elas, exprimiam perfeitamente o que ele queria dizer, resolvendo a questão que o atormentava.”

 

 

“– Paris!... Um homem que nunca foi a Paris é um selvagem.”

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