Editora: L&PM
ISBN: 978-85-2541-673-5
Tradutor: Isabel da Nóbrega e João Gaspar Simões
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 408
Sinopse: Ver Parte I
“Em fins de 1811 principiaram os armamentos
intensivos e a concentração das forças da Europa ocidental e, em 1812, estas
forças, ou seja, milhões de homens, no número das quais se contava transportes
e abastecimentos, puseram-se em marcha do ocidente para o oriente, em direção
às fronteiras da Rússia, para onde se encaminhavam, igualmente, a partir de
1811, os exércitos russos. No dia 12 de Junho, os exércitos da Europa ocidental
atravessaram a fronteira e a guerra principiou, isto é, produziu-se então um acontecimento
em desacordo completo com a razão e a própria natureza do homem. Estes milhões
de homens praticaram, em relação uns aos outros, tão grande número de
abominações, de fraudes, de traições, de roubos, de falsificações de moeda, de
pilhagens, de incêndios e de morticínios como não há exemplo nos arquivos dos
tribunais do mundo inteiro, funcionando há séculos, e sem que, no entanto,
durante todo este período, aqueles que cometeram tais crimes fossem
considerados, realmente, criminosos.”
“O homem vive para si mesmo, goza de
liberdade para alcançar os seus objetivos particulares; todo o seu ser lhe diz
que pode realizar ou não imediatamente este ou aquele ato; mas assim que age,
realizado que seja o seu ato em tal ou qual momento da continuidade temporal,
ei-lo que passa a ser irrevogável e a pertencer daí para o futuro à história,
perdendo o seu caráter de ato livre para ocupar um lugar que lhe é previamente
designado.
A vida do homem tem duas faces. Há, em
primeiro lugar, a vida individual, tanto mais livre quanto mais gerais os seus
interesses, quanto mais abstratos; e depois a vida como um elemento social, a
vida do cortiço humano, em que o homem tem inevitavelmente de se submeter às
leis que lhe são prescritas.
O homem vive conscientemente a sua vida
individual, servindo de instrumento inconsciente à realização dos fins
históricos da humanidade inteira. O ato realizado torna-se irrevogável, e,
graças à sua concordância com os milhões de outros atos realizados ao mesmo
tempo, assume valor histórico. Quanto mais alto o homem está colocado na escala
da humanidade, quanto mais importantes as personagens com quem entra em
contato, tanto maior, igualmente, o seu poder sobre os outros homens e mais
evidente o caráter de predestinação e de fatalidade de cada um dos seus atos.
“O coração dos reis está na mão de Deus.” “O
rei é escravo da história.”
A história, quer dizer, a vida inconsciente,
geral, elementar, da humanidade serve-se de todos os minutos da vida dos reis
para alcançar os seus objetivos.
Embora então, em 1812, Bonaparte estivesse
mais do que nunca convencido de que não dependia senão dele “fazer ou não
verter o sangue dos povos”, como dizia Alexandre na última carta que lhe
escreveu, a verdade era mais do que nunca encontrar-se sujeito a essas leis
fatais que, enquanto lhe davam a ilusão de agir por si, segundo o seu próprio
capricho, o compeliam a colaborar na obra comum, a história, realizando o que
necessariamente tinha de realizar-se.
Os homens do Ocidente puseram-se a caminho do
Oriente para se chacinarem uns aos outros. E, segundo a coincidência das
causas, colaboraram neste acontecimento e encontraram-se em correlação com ele
milhares de pequenas causas desse movimento e dessa guerra, entre as quais a
violação do bloqueio continental, a ofensa ao duque de Oldemburgo, os
deslocamentos de tropas na Prússia, realizados, segundo pensava Napoleão, com o
único fim de se conseguir uma paz armada; o amor da guerra do imperador dos
Franceses e o hábito em que estava de a fazer, de acordo com as disposições
particulares do seu povo; o entusiasmo a que levavam os preparativos
grandiosos; as despesas que estes preparativos determinaram; a necessidade de
conseguir vantagens que compensassem tais despesas; as honrarias inebriantes
que recebera em Dresden; as conversações diplomáticas que, de acordo com a
opinião dos contemporâneos, haviam sido realizadas com o sincero desejo de
alcançar a paz e que no fim de contas só serviram para irritar o amor-próprio
de parte a parte; milhões de milhões de outras causas, enfim, que concorreram
para a realização do acontecimento ou que coincidiram com ele.
Uma maçã cai quando está madura. Por quê? É o
peso que a faz cair? Ou porque se lhe seca o pé, porque o sol a queima, porque
se tornou pesada de mais, porque o vento a sacudiu ou, muito simplesmente,
porque um garoto junto da árvore morria por comê-la?
Nenhuma destas causas é a válida. Não há mais
que uma concordância de condições favoráveis na realização de qualquer dos
acontecimentos elementares da vida orgânica. O botânico que descobre que a maçã
cai como consequência da decomposição do tecido celular ou qualquer coisa
semelhante não tem mais razão que o garoto dizendo que a maçã caiu porque ele a
desejava comer e nesse intuito rezou a Deus. Igual razão ou sem-razão terá
aquele que vier dizer que Napoleão entrou em Moscou por ser esse o seu desejo e
que aí se perdeu por ser essa a decisão de Alexandre. Igualmente estará em erro
e terá razão aquele que disser que uma montanha de milhões de puds que acabou por se desmoronar minada
na base caiu graças ao último golpe de picareta do último dos sapadores. Nos
fatos históricos, esses a quem se dá o nome de grandes homens não passam, no
fundo, de etiquetas para designar o acontecimento. Aqueles têm tão pouca
relação com tais fatos como as próprias etiquetas que lhes põem.
Nenhum dos seus atos que a eles se lhes
afigurem produto do livre arbítrio podem considerar-se em verdade voluntários
no sentido histórico da palavra, pois estão relacionados com a marcha geral da
história, onde o seu lugar se encontra assinalado para toda a eternidade.”
“Pfuhl era criatura de uma só peça e de uma
teimosia tal que seria capaz de afrontar o martírio em defesa das suas ideias;
era como só os Alemães sabem ser, pois só eles são capazes de uma cega
confiança nas noções abstratas, na ciência, isto é, no conhecimento pressuposto
da verdade absoluta.
O Francês é um homem seguro de si, persuadido
de que, pessoalmente, quer pelo espírito, quer pelo físico, exerce uma
irresistível sedução tanto nos homens como nas mulheres. O Inglês também goza
da mesma segurança, por estar persuadido de que é cidadão do Estado mais bem
organizado do mundo, e daí saber sempre, na sua qualidade de inglês, que o que
deve fazer e faz é indiscutivelmente perfeito. Pelo seu lado, o Italiano tem
confiança em si próprio porque facilmente se emociona, esquecendo-se ainda mais
depressa de si e dos outros. Ao Russo também não falta confiança, visto que
tudo ignora e nada quer saber e estar convencido de que ninguém pode saber seja
o que for. No que diz respeito ao Alemão, porém, esse é o pior de todos, mais
obstinado que ninguém e mais desagradável para todo o mundo, convencido de que
conhece a verdade, ou seja a ciência que ele próprio fabrica, para ele, a
verdade absoluta.”
“Em vez de gênios, os melhores generais que
eu conheci eram estúpidos ou pouco sérios. (...)
Um bom militar nem precisa de ser gênio nem
de ter qualidades especiais. Pelo contrário, deve ser desprovido do que há de
melhor e de mais elevado no homem: o amor, a poesia, a ternura, a dúvida
filosófica, filha da experiência. Deve ser limitado, estar persuadido de que é
de alta importância tudo quanto faz. De outro modo faltar-lhe-á a persistência;
só assim será um valoroso capitão. Que Deus o defenda de amar alguém, de se
afeiçoar seja a quem for, de ser compadecido, de pensar no que é justo e no que
o não é. Compreende-se que desde tempos imemoriais se tenha inventado para
galardão seu a teoria do gênio, pois, em verdade, representa o poder. O êxito
ou o desaire de uma ação militar não podem ser-lhe atribuídos, mas ao soldado
que nas fileiras grita: ‟Estamos perdidos!‟ ou então exclama ‟Hurra!” Somente nas fileiras um homem pode servir convencido de que é
útil!”
“Rostov escutava o relato não só sem uma
palavra que encorajasse o narrador, mas inclusivamente com uma cara que
dir-se-ia envergonhada pelo que ouvia, embora nada tivesse que objetar. Depois
de Austerlitz e da campanha de 1807, sabia, por experiência própria, que quem
conta um episódio militar nunca fala inteiramente verdade, como com ele próprio
acontecera então. Além disso, já era bastante experimentado na guerra para
saber que nada se passa no campo de batalha como as pessoas o imaginam ou como
é costume virem a contá-lo mais tarde.”
“– Sei de fonte limpa que Kutuzov impôs como
condição sine qua non que o
grão-duque herdeiro não continue no exército. Sabem o que disse ao imperador? E
o príncipe Vassili repetiu as palavras que este teria dito ao soberano: “Não
posso castigá-lo se se portar mal nem recompensá-lo se se portar bem.”
“Quando se parte lenha, é certo e sabido que
as lascas vão pelo ar.”
“Acredita no que te digo, meu caro: nada há
que valha estes dois soldados: a paciência, e o tempo! Eles farão tudo.”
“A aproximação do inimigo não levara os
Moscovitas a acreditar que a situação se, tivesse tornado mais séria;
examinavam-na, pelo contrário, com mais leviandade, como costuma acontecer
quando uma catástrofe se aproxima. Na hora do perigo duas vozes, igualmente
fortes, se ouvem na alma do homem: uma aconselha sempre, prudentemente, que
cada um de nós se dê conta exata do perigo que o ameaça e trate de procurar
maneira de o evitar; a outra, ainda com maior prudência, diz-nos ser muito
penoso e dolorosíssimo pensar no perigo, visto não estar nas possibilidades do
homem prever e furtar-se à marcha dos acontecimentos, e o melhor é não nos
preocuparmos com as coisas tristes antes do fato consumado e só pensarmos nas
coisas agradáveis. O homem isolado obedece, regra geral, à primeira destas
vozes; em sociedade, pelo contrário, submete-se à segunda. Era o que de fato
estava a acontecer com os habitantes de Moscou. Nunca as pessoas ali se haviam
divertido tanto como naquele ano.”
“Quem muito se justifica, alguma culpa tem.”
“Naquele momento o problema que preocupava
Pedro desde a encosta de Mojaisk afigurou-se-lhe claro e fácil de resolver.
Agora compreendia inteiramente o sentido e a importância da guerra que se
travava e da batalha que ia dar-se. Tudo o que vira durante aquele dia, aquela
expressão grave dos rostos que observara ao passar pelos homens, se iluminou
para ele de um novo esplendor. Compreendeu esse calor oculto, latente, como se
diz em física, o calor do patriotismo que emanava de toda essa gente e isso
explicava-lhe porque todos, serena e por assim dizer despreocupadamente, se
preparavam para morrer.
– Não fazer prisioneiros – prosseguiu o
príncipe André – seria transformar a guerra e torná-la menos cruel. Em vez
disso, não fizemos outra coisa senão brincar às guerras. E esse foi o erro:
mostramo-nos magnânimos, etc. Esta magnanimidade, este sentimentalismo,
fazem-me lembrar a senhora que desmaia quando vê matar uma vitela. É tão
boazinha que não pode ver correr sangue, embora seja capaz de comer com apetite
essa mesma vitela servida com um molho saboroso. Falam-nos nos direitos da
guerra, de cavalheirismo, de parlamentários, de humanidade para com os
desgraçados e de outras coisas no mesmo gênero. Tudo isso são tolices. Eu bem
vi em 1805 todas essas lindas coisas, esse cavalheirismo, esse respeito pelos
parlamentários... Enganaram-nos, e nós, pela nossa parte, fizemos o mesmo.
Saqueiam casas que lhes não pertencem, espalham dinheiro falso, e, coisa pior
ainda, matam-nos filhos, pais, e depois vêm-nos falar das leis da guerra e da
generosidade para com o inimigo. Não fazer prisioneiros, mas matá-los a todos e
morrermos também! Aquele que chegou, como eu, a esta convicção, depois de ter
passado pelos mesmos sofrimentos...
O príncipe André ia dizer ser-lhe indiferente
que Moscou viesse a ser ou não tomada, como o fora Smolensk, mas calou-se de
chofre: um espasmo imprevisto lhe apertava a garganta. Deu alguns passos
calado, mas nos seus olhos havia um brilho febril e os seus lábios tremiam
quando retomou a palavra:
– ... Se não existisse esta falsa
magnanimidade na guerra, não caminharíamos para a morte senão quando a morte
fosse certa, como acontece hoje. Não haveria guerras com o pretexto de que
Pavel Ivanitch ofendeu Mikail Ivanitch. Mas em compensação quando houvesse uma
guerra como a de hoje então seria uma guerra a valer. E não haveria também
grandes massas de tropas em ação, como agora. Todos esses westfalianos e todos
esses hessianos que Napoleão traz consigo não o teriam seguido até à Rússia, e
nós, pela nossa parte, não nos teríamos ido bater na Áustria e na Prússia, sem
mesmo saber por que razão. A guerra não é um divertimento, mas a coisa mais
repugnante deste mundo. É preciso compreendê-la e não nos servirmos dela como
uma brincadeira. É preciso aceitar seriamente, com austeridade, esta terrível
necessidade. E daqui não há que sair, é preciso acabar com a mentira: a guerra,
sim, a guerra é a guerra e não um divertimento. De outro modo a guerra será um
entretenimento próprio de ociosos e de espíritos superficiais. A classe militar
é das mais dignas. Mas que é a guerra? Que é preciso para se ter êxito nas
operações militares? Quais são os costumes da sociedade militar? A finalidade
da guerra é o homicídio; as suas armas são a espionagem, a traição, a ruína dos
habitantes, o saque e o roubo organizados para manutenção do exército, a fraude
e a mentira mascaradas como astúcias de guerra. Quais os costumes da classe
militar? A supressão da liberdade sob o pretexto da disciplina, a ociosidade, a
grosseria, a crueldade, a devassidão, a embriaguez, E, apesar de tudo, é uma
classe superior, respeitada por todos. Todos os reis, à exceção do imperador da
China, envergam o uniforme militar e as mais altas recompensas reservam-se para
aquele que mais gente matou. Reúnem-se os soldados, como vai acontecer amanhã,
para se chacinarem uns aos outros. Matar-se-ão e ficarão mutilados dezenas de
milhares de homens e depois haverá cerimônias religiosas de ação de graças por
se terem morto tantos homens, sem que, no entanto, se deixe de exagerar o
número dos que se mataram, proclamando-se a vitória, dizendo que quanto maior o
número de mortos mais retumbante esta será. Como é possível que Deus os ouça e
os escute lá de cima? – clamou o príncipe André na sua voz colérica. – Oh,
querido amigo, durante os últimos tempos muito penoso me tem sido viver! Vejo
que principiei a compreender coisas de mais. Não é bom conhecer o homem os
frutos da árvore do bem e do mal... Mas não será por muito tempo –
acrescentou.”
“Pois a verdade é que numa batalha ninguém
pensa senão no que tem de mais precioso, ou seja, na própria vida, e o que pode
acontecer é que umas vezes a salvação esteja na fuga para a retaguarda e outras
na marcha avante.”
“A sua larga experiência da guerra, a sua
prudência de velho, diziam-lhe não ser possível a um só homem dirigir centenas
de milhares de outros homens que lutam com a morte. Kutuzov sabia que o que
decide do destino das batalhas não eram nem as medidas tomadas pelo
general-chefe, nem as posições ocupadas pelos soldados, nem o número dos
canhões e dos mortos, mas essa força inapreensível que se chama “o moral das
tropas” e que ele procurava descobrir e dirigir na medida do possível.”
“– Alteza, nos assuntos indecisos é sempre o
mais tenaz que sai vitorioso.”
“Por que será que me custa tanto deixar esta
vida? Há de fato nela qualquer coisa que eu não compreendia e que continuo sem
compreender.”
“Destinado pela Providência para desempenhar
o papel lamentável e servil de carrasco das nações, Napoleão queria
convencer-se de que o seu objetivo era o bem dos povos e que podia orientar o
destino de milhões de seres fazendo a sua felicidade.”
“– Boa ou má, a minha cabeça só comigo pode
contar.”
““A guerra”, dizia-lhe uma voz, “é a sujeição
mais penosa que pode conceber-se da liberdade humana às leis de Deus. A
simplicidade é a obediência a Deus; tudo depende d’Ele. E ‘eles’ são simples.
Eles não dizem o que fazem. A palavra é de prata, mas o silêncio é de ouro. O
homem nada pode possuir enquanto temer a morte. Só quem não teme a morte é
senhor de tudo. Se a dor não existisse, o homem não conheceria os seus limites,
não se conheceria a si mesmo. Nada mais difícil”, pensava ele, continuando a
sonhar, “que cada um saber reunir na sua própria alma o significado de todas as
coisas. Reunir tudo? Não, não é essa a palavra. Não é possível unir todas as
ideias, mas, sim, pô-las de acordo!”,
repetia, com uma espécie de entusiasmo interior, como se sentisse que essas
palavras, e só elas, exprimiam perfeitamente o que ele queria dizer, resolvendo
a questão que o atormentava.”
“– Paris!... Um homem que nunca foi a Paris é
um selvagem.”
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