sábado, 2 de maio de 2015

Folhas Políticas (1976-1998) - José Saramago

Editora: Caminho
ISBN: 978-97-2211-303-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 224
Sinopse: “Não vai faltar quem me acuse de que alguns destes textos são desapiedados e injustos, que, tendo sido já politicamente inoportunos e impertinentes na própria época em que foram escritos, muito mais o vêm a ser agora, e que, argumento final, não é atitude das mais prudentes e sensatas da minha parte, considerando que todos temos os nossos “telhados de vidro”, reabrir as chagas que o tempo, melhor ou pior, teve a caridade de cicatrizar. Disso, como do resto, pensará cada um o que quiser, e por isso responderá. Em todo o caso, creio que estas Folhas Políticas, de cuja honradez cívica não reconheço a ninguém o direito de duvidar, levam dentro verdades suficientes para que sejam capazes de defender-se sozinhas, sem ajuda. Nem sequer a minha.”



“Tenhamos em vista que o objetivo é o Socialismo. A Esquerda não é um fim em si, um modo vitimizante ou triunfalizante de estar no mundo: é uma estrutura, um instrumento, uma organização. Que, como todas as coisas, serão julgados pelos resultados. E nós de caminho.”


“Curioso é que, perseverantes na imemorial tradição que sempre viu o poder das armas ao lado de quem detinha as armas do poder, repressão e ameaça sejam dirigidas apenas e sempre contra um sector da população: as classes trabalhadoras. Quanto a capitalistas, latifundiários, exploradores diversos, gente pelo contrário benquista e conviva de banquetes, benesses, comendas e geral concórdia, esses estão e sempre estiveram a salvo de coronhadas e mais agressões.”


“Isto de liberdade de expressão tem muito que se lhe diga. No antigamente fascista, quando não veneráveis mas graduados anciãos nos liam a prosa, e de lápis azul e carimbo esfacelavam as ideias, a nossa grande satisfação acontecia se, por distração do veterano de serviço ou sua menor inteligência, o recado passava, meio nas entrelinhas, meio no intervalo das letras, quantas vezes acordando depois fúrias na hierarquia. Então tínhamos a inocência de acreditar que, chegando o dia em que a mordaça caísse, a reencontrada força da verdade bastaria para tirar aos futuros senhores a tentação do abuso de poder, e, melhor ainda, os acautelaria no simples uso dele. Hoje já sabemos muito. Aprendemos, por exemplo, que a democracia burguesa é a mais hábil forma de esvaziar, na prática, a liberdade de imprensa: conserva-lhe a aparência e anula-lhe os efeitos. Veja-se como o regime absorve, digere e neutraliza impavidamente quantas acusações lhe façam, quantas denúncias de conciliação, quantas desistências, quantas servidões. Veja-se como, sendo possível dizer que o rei vai nu, dizê-lo não chega para que o rei se tape ou tenha a simples decência de pedir desculpa. Veja-se, enfim, como não faltando em Portugal os Watergates, o poder os vai ocultando aos nossos olhos, não por obra da censura que não há, mas do impudor que prolifera.
A política portuguesa é realmente original. Uma cadeira no poder é quanto basta para irresponsabilizar quem lá se senta, um serviço prestado é logo retribuído com padrinhos e proteções. A imprensa protesta (aquela que não perdeu a vergonha, aquela que, pelo contrário, a declara), e de que serve? O poder, se está de boa maré, encolhe os ombros; caso não, dispara a nota oficiosa, o inquérito, o impropério, e põe os seus serventuários da comunicação social em linha de trombones para abafar a pequena guitarra que se atreveu a perturbar o grande silêncio do jogo de dados que é hoje o exercício do poder em Portugal. Jogo em que são os portugueses a massa do negócio, o rebanho a esfolar.”


“E esta perplexidade mostra-me a força coerciva que o poder tem, mesmo quando não exerce, mesmo quando se limita a estar aí, na solenidade da função, na distância que nunca se anula, mesmo, ou sobretudo, quando condescende: a realeza não se extinguiu com as monarquias.”


“Imagino que andam contentes, que dormem bem, que não perderam o apetite, adivinho que cada um deles, na hora do espelho, sorri complacente para a imagem fardada ou paisana que lhe sorri, e que, na mesma e noutras horas, julga mais do que merecido o seu destino ou a parte dele que por agora o lisonjeia. Os homens políticos (e isto vai dito sem malícia ou presunção) costumam ser duma fatuidade sem limites: tomam por justiça imanente o que é acidente fortuito ou fruto de intriga de gabinete, creem sólido o que está em vésperas de cair, e, sobretudo, aprendem depressa o mau hábito de ter razão sempre, se é que não se limitam a herdá-lo como atributo corriqueiro do poder. São animais interessantes, de catálogo: dizem, escrevem, proclamam, variando pouquíssimo, cheios de medo de que os não tomem a sério, que é o sinal mais certo da mediocridade. Com perdão de quem do teatro fez amor e profissão, o político corrente é como um ator mascarado de ator, com todos os remendos à vista, salta-pocinhas de ministério e rábula cômica. Como não haveria de ser deprimente esta paisagem, esta comédia, este desgosto?”


“Significa isto que o ganhar ou o perder nacional haveriam de ser obra de pessoal político e ninguém mais? Não significa tal. Mas significa que muitas vezes os povos perdem nos corredores do poder aquilo que ganharam à luz do dia em revoluções e trabalho.”


“Este “país real” está, por seu pé, a transformar-se num “real país” que aprende, na experiência, como se fazem, para que servem e a quem servem os políticos da hora. E quando deixam de servir.”


“Chegou provavelmente a hora do grande protesto coletivo. Já aqui escrevi que este povo foi, todo ele, durante algum tempo, um povo de políticos. É urgente que o volte a ser. Primeiro, porque a política é mesmo pertença de todos; e porque se lhe há de agora juntar o fermento moral, contrário da apatia, da resignação, da renúncia. Os políticos que nos governam ou ambicionam governar, é bom que se saiba, não têm maior mérito do que qualquer comum cidadão honesto e patriota, e é imperioso que cada um de nós os interrogue: “Que fizeste do voto que te dei? A quem serves com ele?” Não para ingenuamente acreditarmos na resposta, mas para a confrontarmos com os fatos, que esses sim, são mestres.
Protesto nacional, digo. Exigência popular, antes que se faça tarde. Antes que a direita, pela mesma via do protesto e da exigência, orientados segundo os comprovados métodos de reação e do fascismo, se apresente como porta-voz de um povo em gravíssimo risco de ver ser-lhe negada a palavra por forças políticas que da esquerda se dizem. Ou será a cave o nosso definitivo destino?”


“No fundo, estas coisas são fáceis de entender. Quando em 1789 a França fez a sua revolução burguesa, para único benefício de uma burguesia que não podia desenvolver-se no quadro do sistema econômico e político de então, o povo acreditou que aquilo também lhe dizia respeito e derrubou a Bastilha. Passados cerca de duzentos anos (e não obstante 1830, 1848, 1871, 1936, 1968), quem governa a França é a oligarquia financeira que a revolução de 1789 preparou: ao povo francês mandou-se que fosse matar e morrer por toda a Europa para aumentar a liberdade dos poderosos, instalados sobre a igualdade derradeira dos mortos e sobre a fraternidade difícil dos explorados.”


“Distraísse-me eu hoje da íntima consciência da minha fragilidade cultural e não tardaria o analfabetismo a filar-me pela canela do cérebro, quiçá para me largar nunca mais, porque a ignorância é tão confortável como um casaco velho, e coitados de nós se lhe não resistirmos todos os dias: adormeceríamos na santa paz do bafio.”


“Com os nossos governantes não contemos: os olhos não lhes servem para ver, os ouvidos não lhes servem para ouvir, a boca para alguma coisa lhes servirá, mas, dez anos passados a ouvi-los eu, ainda não sei para que lhes serve.”


“A democratização verdadeira da cultura talvez não seja o que por ela geralmente entendemos, e que uma cultura democratizada não é uma cultura ao alcance de todos, mas uma cultura com a intervenção de todos.”


Almeida Garrett escreveu, um dia, esta breve e terrível frase, como uma condenação sem apelo: ‘A terra é pequena, e a gente que nela vive também não é grande’.”


“As coisas são o que são, serem-no é a sua irrefragável força, e a nós cabe-nos tentar compreendê-las, ajeitá-las, se possível, à oportunidade e ao interesse da ocasião, mas respeitando-as sempre, evitando, sobretudo cair na tentação do avestruz, o que, na circunstância, seria fingir que as coisas, afinal, são outra coisa.”


“Se é certo que aborreci o futebol, que me saturei de grandes penalidades, lançamentos laterais, dribles, pontapés de canto e mãos de Deus antigas e modernas, terei também de confessar que foi vendo o campeonato do mundo de futebol que descobri a razão profunda por que desde imemoriais tempos se vem dizendo que o homem é um animal gregário. Desde a infância que os melhores autores me ensinavam que o gregarismo foi e continuava a ser condição da própria sobrevivência da espécie humana, que o homem só, ao contrário do que ousara afirmar um outro autor animado de perverso espírito de contradição, não é o homem forte, e que, enfim, é participando plenamente numa vida em comunidade, partilhando tudo, e em primeiro lugar a si mesmo, que o pequeno bicho humano poderá passar além dos seus limites, resolver as suas carências espirituais e ascender à felicidade dos justos, desta maneira tornada prato comum e iguaria de todos. O homem, inventor da desconfiança, inventou também a boa-fé, e por isso contínua a acreditar em coisas como estas.
Chega, porém, o momento em que as escamas caem dos olhos e a deslumbrante luz da verdade assoma ao limiar do entendimento. Foi o que aconteceu comigo. Na perspectiva vasta dos estádios, as gregaríssimas multidões que rodeavam o campo, gritando, vaiando, aplaudindo, de cara pintada em muitos casos, agitando insígnias e pendões, trocando socos e insultos, vaiando os hinos nacionais dos adversários – mostraram-me, de uma vez para sempre, que o homem, tornado em ser gregário por necessidade de sobrevivência, continua a sê-lo por razão de uma outra necessidade não menos imperiosa, porém de sinal inverso: o poder, a violência, a destruição, a morte. Um homem sozinho é um homem pacífico, havendo dois será senhor um deles e servo o outro, se são três farão dois deles aliança contra o terceiro. E passar das unidades às dezenas, ou às centenas, ou aos milhares, ou aos milhões, não modifica a essência da questão, apenas complica as suas consequências. O futebol, caros senhores, e, já agora, o desporto em geral, com ou sem a presença de chefes de Estado e de primeiros-ministros, é um sucedâneo da guerra. Suspeito mesmo que todas as atividades humanas, mesmo as de mais inocente aparência, são modos de guerra, brutais ou subtis, óbvios ou disfarçados.”


“Os índios de Chiapas não são os únicos humilhados e ofendidos deste mundo: em todas as partes e épocas, com independência de raça, de cor, de costumes, de cultura, de crença religiosa, o ser humano que nos gabamos de ser soube sempre humilhar e ofender aqueles a quem, com triste ironia, continua a chamar seus semelhantes. Inventamos o que não existe na natureza, a crueldade, a tortura, o desprezo. Por um uso perverso da razão viemos dividindo a humanidade em categorias irredutíveis entre si, os ricos e os pobres, os senhores e os escravos, os poderosos e os débeis, os sábios e os ignorantes, e em cada uma dessas divisões fizemos divisões novas, de modo a podermos variar e multiplicar à vontade, incessantemente, os motivos para o desprezo, para a humilhação, para a ofensa.”

Um comentário:

Sugestão de Livros disse...

Realmente são trechos bem independentes entre si. Destaco a frase: Um homem sozinho é um homem pacífico, havendo dois será senhor um deles e servo o outro, se são três farão dois deles aliança contra o terceiro.