Este blog destina-se a dividir com os companheiros de estrada as impressões e alguns belos trechos deste fantástico universo que é a literatura.
domingo, 19 de outubro de 2014
O silêncio dos inocentes – Thomas Harris
quinta-feira, 16 de outubro de 2014
Devoradores de mortos: o manuscrito de Ibn Fadlan, relatando suas experiências com os nórdicos em 922 – Michael Crichton
Editora: Rocco
ISBN: 978-85-325-0716-7
Tradução: Gilson B. Soares
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 162
Sinopse: Michael Crichton apresenta em Devoradores de mortos o mais antigo relato da vida dos vikings – o
manuscrito do árabe Ibn Fadlan, de 922. Através deste documento, ele narra a vida
desse povo de uma forma inédita, jamais vista pelos ocidentais. Amantes dos mares,
oceanos e das perigosas navegações, os vikings são apresentados não mais como bárbaros
mas como povo desbravador, lutador e destemido. Fadlan relata uma batalha entre
uma tribo viking e os monstros da névoa, os devoradores de mortos. E, a exemplo
de Parque dos dinossauros e Mundo perdido, Michael Crichton
deixa para o leitor, depois de uma viagem fantástica, um desafio – ‘Quem eram, afinal,
os devoradores de mortos?’
“Não louve o dia até
que venha a noite; uma mulher até que ela seja queimada; uma espada até que seja
testada; uma donzela até que tenha casado; o gelo até que tenha sido transposto;
a cerveja até que tenha sido bebida.” (Provérbio viking)
“O mal vem de longa
data.” (Provérbio árabe)
“Os nórdicos são a
raça mais imunda que Deus já criou. Não se limpam após a evacuação, nem se lavam
após uma poluição noturna, não diferindo de asnos selvagens. (...)
Em cada uma de suas
casas vivem mais ou menos dez ou vinte pessoas. Cada homem tem um divã, onde se
senta com as lindas garotas que tem para vender. É comum ele se divertir com uma
delas enquanto um amigo fica olhando. Às vezes vários deles estarão assim empenhados
ao mesmo tempo, cada qual à plena vista dos outros.
Vez por outra, um mercador
irá a uma casa para comprar uma garota, e encontrará seu dono abraçado com ela,
e ele não desistirá até que tenha satisfeito plenamente sua vontade; ninguém acha
nada de extraordinário nisto.”
“Os nórdicos davam
grande importância ao papel de anfitrião. Saudavam cada visitante com efusão e hospitalidade,
muita comida e roupa, cabendo aos condes e nobres a honra da hospitalidade maior.
A comitiva de nossa caravana foi trazida perante Buliwyf e uma grande festa nos
foi oferecida. O próprio Buliwyf a presidiu, e pude ver que era um homem alto e
forte, com pele, cabelo e barba de um branco puro. Possuía a postura de um líder.
Em reconhecimento à
honra da festa, nossa comitiva deu uma demonstração de boas maneiras à mesa, embora
a comida fosse desprezível e o estilo da festa contivesse grande desperdício de
comida e bebida e muito riso e alegria. Era comum, em meio a este grosseiro banquete,
que um conde se divertisse com uma escrava sob as vistas de seus pares.
Vendo isto, virei-me
e disse:
− Peço perdão a Deus.
Os nórdicos riram muito
do meu embaraço. Um deles traduziu para mim que eles acreditavam que Deus é benevolente
com os prazeres desfrutados abertamente. Disse ele:
− Vocês, árabes, são
que nem velhas; estremecem à visão da vida.
− Sou hóspede entre
vocês – respondi –, e Alá me conduzirá à retidão.
Isto provocou mais
risos, mas não sei por que deveriam tomar meu comentário como piada.
O costume nórdico reverencia
a vida guerreira. Na verdade, estes homens enormes lutam continuamente; nunca estão
em paz, nem entre eles mesmos nem em meio a tribos diferentes de sua espécie. Entoam
canções sobre suas guerras e bravuras, e creem que a morte de um guerreiro é a mais
alta das honras.
A bebida forte dos
nórdicos em breve os deixa como animais e asnos desgarrados; em meio à canção houve
ejaculação e também combate mortal acerca de alguma disputa de bêbados entre dois
guerreiros. O bardo não parou de cantar durante todos esses eventos. Na verdade,
vi sangue espirrado bater em sua face; mesmo assim, ele limpou-o sem uma pausa sequer
em seu canto.
Isto me deixou grandemente
impressionado.”
“Muitas vezes chovia
à noite, e procurávamos abrigo debaixo de imensas árvores, embora acordássemos molhados
e nossas peles de dormir igualmente se encharcassem. Os nórdicos não se queixavam
disso, pois eram alegres o tempo todo; só eu resmungava, e vigorosamente. Eles nem
me davam atenção.
Finalmente, eu disse
a Herger:
− A chuva é fria.
Ele riu e replicou:
− Como pode a chuva
ser fria? Você é frio e é infeliz. A chuva não é fria nem infeliz.
Vi que ele acreditava
nessas tolices, e na verdade me tomava como tolo por pensar de outra maneira; mesmo
assim eu pensava.
Certa noite aconteceu
que, enquanto comíamos, murmurei “em nome de Deus” sobre minha comida. Buliwyf perguntou
a Herger o que eu tinha dito. Eu disse a Herger que acreditava que o alimento devia
ser consagrado e que, portanto, estava agindo de acordo com minhas crenças.
Buliwyf me disse, traduzido
por Herger:
− Este é o costume
dos árabes?
Respondi:
− Não, pois na verdade
cabe àquele que mata o alimento fazer a consagração. Só falei as palavras para que
não caiam no esquecimento.
Isto foi motivo de
riso para os nórdicos. Eles riram no maior entusiasmo. Depois Buliwyf me disse:
− Sabe desenhar sons?
Não entendi o que ele
queria dizer. Perguntei a Herger, e houve alguma conversação de ida e volta, até
que por fim compreendi que ele queria dizer “escrever”. Os nórdicos chamam a fala
dos árabes de ruído ou som. Respondi a Buliwyf que sabia escrever, e ler também.
(...)
Herger me perguntou:
− Que Deus você louva?
Respondi que louvava
o único Deus, cujo nome era Alá.
− Um Deus só não basta
– disse Herger.”
“Nem sempre dormíamos
nas florestas, e nem sempre cavalgávamos através delas. Na orla de algumas florestas,
Buliwyf e seus guerreiros se lançariam à frente, galopando por entre as densas árvores,
sem cautela ou qualquer pensamento de medo. E depois, em outras florestas onde poderiam
parar para uma pausa, e os guerreiros desmontar, acender um fogo e fazer alguma
distribuição de comida, ou pilhas de pão dormido ou cobertores, antes de seguir
em frente, em vez disso cavalgavam em torno da orla da floresta, nunca entrando
em suas profundezas.
Perguntei a Herger
qual o motivo disto. Ele disse que algumas florestas eram seguras e outras não,
mas não explicou melhor. Insisti:
− O que vocês acham
que não é seguro nas florestas?
Ele respondeu:
− Há coisas que nenhum
homem pode conquistar, e nenhuma espada pode matar, e nenhum fogo pode queimar,
e tais coisas estão nas florestas.
− E que coisas são
essas? – indaguei.
Ele achou graça e disse:
− Vocês, árabes, sempre
querem saber os motivos de tudo. Seus corações são um saco transbordando de motivos.
− E vocês não se importam
com os motivos?
− Isto não ajuda em
nada. Costumamos dizer que um homem deveria ser moderadamente sábio, mas não sábio
demais, a fim de não conhecer seu destino com antecedência. O homem cuja mente é
mais despreocupada não conhece seu destino antes do tempo.
Agora eu via que devia
ficar satisfeito com sua resposta. Pois era verdade que, uma ocasião ou outra, eu
faria algum tipo de interrogatório, e Herger responderia, e eu não entenderia sua
resposta e perguntaria mais, e ele responderia mais. Não obstante, quando eu o interrogava
de novo, ele respondia de uma maneira curta, como se o interrogatório não tivesse
substância. E depois eu nada mais conseguiria dele, a não ser um meneio de cabeça.”
“O país do Norte é
frio e úmido e o sol raramente visto, pois o céu é cinzento e com nuvens carregadas
o dia inteiro. As pessoas desta região são pálidas como linho, e seu cabelo muito
louro. Após tantos dias de viagem, não vi uma pessoa sequer de pele escura, e de
fato eu era motivo de espanto por parte dos habitantes daquela região por causa
da minha pele e cabelos escuros. Muitas vezes, um fazendeiro com sua esposa ou filha
se aproximavam para me tocar com um movimento de afago. Herger ria e dizia que estavam
tentando esfregar a cor, pensando que fosse pintada sobre minha carne. Eram pessoas
ignorantes, sem a menor noção da vastidão do mundo. Muitas vezes tinham medo de
mim, não chegando muito perto. Num lugar cujo nome não sei, uma criança gritou aterrorizada
ao me ver e correu para abraçar a mãe. Vendo a cena, os guerreiros de Buliwyf riram
com grande satisfação.”
“Eu estava receoso
de me lançar a este mar, pois a água era encapelada e muito fria; um homem que ali
afundasse teria todos os sentidos amortecidos instantaneamente, tão pavoroso era
o frio. E ainda assim os nórdicos estavam alegres, e brincaram e beberam por uma
noite nesta aldeia marítima de Lenneborg, e se divertiram com muitas das mulheres
e jovens escravas. Esse, disseram-me, é o costume dos nórdicos antes de uma viagem
marítima, pois nenhum homem sabe se irá sobreviver à jornada; assim, ele só parte
após uma exagerada festança.
Em cada lugar fomos
saudados com grande hospitalidade, o que é considerado uma virtude por esta gente.
O mais pobre lavrador colocaria tudo o que possuísse diante de nós, e sem recear
que pudéssemos matá-lo ou roubá-lo, mas apenas por bondade e cortesia. Os nórdicos,
aprendi, não aprovam ladrões ou assassinos de sua própria raça, e tratam duramente
tais homens. Aferram-se a estes pontos de vista apesar da verdade inegável, ou seja,
a de que estão sempre bebendo e brigando como animais irracionais e se matando mutuamente
em irados duelos. Embora eles não vejam isto como um assassinato, e qualquer homem
que cometa assassinato seja igualmente morto.”
“Se um escravo fica
doente, ou morre em algum acidente, isto não é considerado uma grande perda; e mulheres
escravas devem estar prontas a qualquer hora para servir a qualquer homem, em público
ou reservadamente, de dia ou de noite. Não há afeição pelos escravos, mas tampouco
eles sofrem maus-tratos, sendo sempre alimentados e vestidos por seus senhores.
Mais adiante aprendi
que qualquer homem pode se divertir com uma escrava, mas que a mulher do lavrador
de mais baixa condição é respeitada pelos chefes e condes nórdicos, tal como respeitam
as mulheres uns dos outros. Forçar as atenções de uma mulher nascida livre que não
seja escrava é um crime, e disseram-me que um homem seria enforcado por isto, embora
eu nunca tenha visto
A castidade entre as
mulheres é considerada uma grande virtude, mas raramente eu a vi ser praticada,
pois não se dá maior importância ao adultério, e se a mulher de qualquer homem,
seja de que classe for, é libidinosa, a consequência não é considerada digna de
nota. Esta gente é muito aberta em tais assuntos, e os homens do Norte dizem que
as mulheres são desonestas e inconfiáveis; parecem estar resignados com isto, e
falam no assunto com seu habitual comportamento jovial.
Indaguei de Herger
se ele era casado, e ele disse que tinha uma esposa. Perguntei com toda discrição
se ela era casta. Ele riu na minha cara e disse:
− Eu viajo pelos mares
e posso nunca retornar, ou posso me ausentar muitos anos. Minha mulher não esta
morta.
Extraí disso o sentido
de que ela lhe era infiel, e que ele não se importava.
Os nórdicos não consideram
nenhum filho um bastardo se a mãe for uma esposa. Os filhos de escravos são escravos
algumas vezes, e livres outras; como isto é decidido, não sei.
A pederastia não é
conhecida entre os nórdicos, embora eles digam que outros povos a praticam; alegam
não ter qualquer interesse pelo assunto, e uma vez que não ocorre entre sua gente,
não preveem qualquer punição para isto.”
“O navio estava ancorado
à hora da prece vespertina, e pedi o perdão de Alá por não fazer súplicas. Embora
eu não fosse capaz de fazer isto na presença dos nórdicos, que consideravam minhas
preces como uma praga rogada contra eles, e ameaçavam matar-me se eu orasse na presença
deles.”
“Rethel havia sido
ferido na batalha anteriormente, mas tinha um ferimento novo no estômago, e sangrava
muito mais; devia estar sofrendo muita dor, e ainda assim exibia apenas animação,
sorrindo e provocando as escravas ao beliscar suas nádegas e seios, e com frequência
elas o repreendiam por distraí-las enquanto tentavam cuidar dos seus ferimentos.
Buliwyf, o chefe, conferenciava
com todos os seus guerreiros em outra parte do grande vestíbulo. Juntei-me ao grupo,
mas não houve saudações. Herger, cuja vida eu salvara, nem me notou, pois os guerreiros
estavam mergulhados numa conversa solene. Eu aprendera um pouco da língua nórdica,
mas não o suficiente para acompanhar suas palavras rápidas e baixas, por isso fui
para outro lugar, onde bebi hidromel e senti as dores do meu corpo. Depois uma escrava
chegou para banhar meus ferimentos. Havia um corte na panturrilha e outro no peito.
Eu estivera insensível a estes ferimentos até o momento em que ela começou a fazer
os curativos.
Os nórdicos banham
os ferimentos com água do mar, pois acreditam que esta água possui maiores poderes
curativos do que a água da fonte. A lavagem com água do mar não é agradável para
o ferimento. Na verdade, gemi. Rethel riu e falou para uma escrava:
− Ele continua sendo
um árabe.
Fiquei envergonhado.”
“Não havia vento nem
sons, nem sequer o som de pássaros ou qualquer animal vivente, apenas silêncio.
− Aqui começa a terra
do wendol – disse Buliwyf, e os guerreiros deram tapinhas nos pescoços dos
cavalos para confortá-los, pois estavam assustadiços e indóceis. Tal como os cavaleiros,
Buliwyf mantinha os lábios comprimidos; as mãos de Ecthgow tremiam enquanto ele
segurava as rédeas do cavalo. Herger ficara quase pálido, e seus olhos dardejavam
por este ou aquele caminho; tal como os outros, à maneira.
“O medo tem uma boca
branca”, costumam dizer os nórdicos, e agora vi que era verdade, pois a palidez
rodeava seus lábios e bocas. Nenhum deles falava de seu medo.
Agora deixamos os cães
para trás, e cavalgamos em frente para mais neve, que estava fina e estalante sob
os pés, e para névoas mais densas. Nenhum homem falava, a não ser para os cavalos.
A cada passo se tornava mais difícil incitar os animais a prosseguir; os guerreiros
viram-se obrigados a apressá-los com palavras suaves e chutes nem tanto. Logo vimos
formas sombrias na névoa à nossa frente, das quais nos acercamos com cautela. Agora
vi com meus próprios olhos o seguinte: em ambos os lados da trilha, fixados no alto
de sólidos postes, estavam os crânios de animais enormes, suas mandíbulas abertas
numa postura de ataque. Continuamos, e vi que eram crânios de ursos gigantes, venerados
pelo wendol. Herger me disse que os crânios de urso protegem as fronteiras
da terra de wendol.
Agora avistamos outro
obstáculo, cinzento, distante e extenso. Era uma rocha gigante, da altura de uma
sela de cavalo, e estava esculpida na forma de uma mulher grávida, com barriga e
seios protuberantes, e sem cabeça, braços ou pernas. Esta rocha estava manchada
com o sangue de alguns sacrifícios; na verdade, estrias vermelhas gotejavam, e era
horrível olhar para aquilo.
Ninguém falou do que
foi visto. Cavalgamos em passo acelerado. Os guerreiros sacaram suas espadas e as
mantiveram preparadas. Esta é uma qualidade dos nórdicos: inicialmente demonstraram
medo, mas, tendo entrado na terra do wendol, perto da fonte do medo, suas
próprias apreensões desapareceram. Assim, eles parecem fazer todas as coisas às
avessas e de maneira espantosa, pois na verdade agora se mostravam calmos. Somente
os cavalos é que continuavam relutantes em prosseguir.
Senti agora o mesmo
odor de carcaça apodrecida que sentira antes no grande vestíbulo de Rothgar, e à
medida que atingia de novo minhas narinas, eu ficava acovardado. Herger cavalgava
ao meu lado e disse em voz suave:
− Como se sente?
Incapaz de ocultar
minhas emoções, respondi:
− Estou com medo.
− Isto é porque pensa
no que está por vir – replicou Herger – e imagina coisas medonhas que gelariam o
sangue de qualquer homem. Não pense com antecedência, e contente-se em saber que
nenhum homem vive para sempre.
Percebi a verdade de
suas palavras.
− Na minha sociedade
– falei – temos este ditado: “Agradeça a Alá, pois em Sua sabedoria Ele pôs a morte
no fim da vida, e não no começo.”
Herger sorriu a isto,
e deu uma pequena gargalhada.
− No medo, até mesmo
os árabes falam a verdade – disse ele e depois cavalgou à frente para contar minhas
palavras a Buliwyf, que também achou graça. Os guerreiros de Buliwyf ficaram contentes
por uma piada àquela altura.”
“Cavalgamos rapidamente
ao longo da borda dos penhascos, que eram altos e assustadores em toda a sua extensão,
e escarpados; numa camada de rocha cinzenta, eles mergulhavam no mar espumante e
turbulento abaixo. Em alguns lugares ao longo deste litoral havia praias rochosas,
mas com frequência a terra e o mar se encontravam diretamente, e as ondas estrondeavam
como um trovão sobre as rochas; e esta era a circunstância para a parte principal.
Vi Herger, que levava
sobre seu cavalo as cordas de pele de foca dos anões, e cavalguei até emparelhar
com ele. Perguntei-lhe qual era o nosso objetivo neste dia. Na verdade, não me importava
muito, de tão fortemente minha cabeça doía e meu estômago queimava (por conta da
bebedeira depois da batalha do dia anterior).
Herger me disse:
− Nesta manhã vamos
atacar a mãe do wendol nas cavernas do trovão. Faremos isto atacando pelo
mar, como já lhe disse ontem.
Enquanto cavalgava,
eu olhava do cavalo para o mar abaixo, que colidia contra os penhascos.
− Vamos atacar de barco?
– perguntei.
− Não – disse Herger,
e bateu com a mão nas cordas de pele de foca.
Então compreendi que
deveríamos descer os penhascos nas cordas, e assim, de alguma maneira, encontrar
uma entrada para as cavernas.
Eu sabia que estes
nórdicos são excessivamente valorosos para cometer um erro, mas ao olhar para o
precipício do penhasco abaixo de nós, meu coração se revirou dentro do peito, e
pensei que iria vomitar a qualquer momento. Na verdade, o penhasco era absolutamente
liso, sem o menor apoio para mãos e pés, e descaía por uns quatrocentos passos,
talvez. Na verdade, as ondas que arrebentavam tão abaixo de nós pareciam ondas em
miniatura, minúsculas como o mais delicado desenho de um artista. Embora eu soubesse
que eram tão enormes quanto todas as ondas do mundo, uma vez que alguém descesse
até aquele nível lá embaixo.
Para mim, descer por
estes penhascos era uma loucura que ia além da loucura de um cão raivoso. Mas os
nórdicos prosseguiam de maneira normal.
Eu estava muito assustado
com esta perspectiva, pois nunca apreciara me aventurar em lugares altos; evitava
até mesmo os prédios altos da Cidade da Paz. E revelei isto.
Herger me respondeu:
− Dê graças, pois você
é afortunado.
Perguntei qual era
a fonte de minha boa fortuna. Herger disse em resposta:
− Se você tem medo
de lugares altos, então hoje irá superá-lo; e, portanto terá superado um grande
desafio; e será considerado um herói por isso.
− Não quero ser um
herói – repliquei.
Ele riu e disse que
eu expressava tal opinião somente por ser um árabe. Depois acrescentou que eu tinha
uma cabeça de ressaca, o que no jargão nórdico significava a consequência da bebedeira.
Isto era verdade, como já contei.
Era também verdade
que eu estava muito aflito com a perspectiva de descer o penhasco. Na verdade, eu
me sentia assim: que em vez de me lançar a qualquer ação sobre a face da terra –
fosse deitar com uma mulher menstruada, beber de uma taça de ouro, comer os excrementos
de um porco, arrancar meus olhos, até me matar – a todos ou qualquer dessas coisas
eu deveria preferir à descida por aquele maldito penhasco. Eu também estava de péssimo
humor, e disse a Herger:
− Você, Buliwyf e todos
os guerreiros podem ser heróis do jeito que quiserem, mas não tenho de participar
desta aventura, e não irei acompanhá-los.
Herger riu ao fim deste
discurso. Depois chamou Buliwyf, e falou depressa; Buliwyf respondeu-lhe prontamente,
por cima do ombro. Depois, Herger me falou:
− Buliwyf diz que você
fará o mesmo que nós.
Na verdade, eu agora
afundava no desespero, e disse a Herger:
− Não posso fazer isto.
Se me obrigarem a fazê-lo, certamente morrerei.
− Morrerá por quê?
– indagou Herger.
− Perderei minha firmeza
nas cordas – repliquei.
Esta resposta fez Herger
rir vigorosamente outra vez, e ele repetiu minhas palavras para todos os nórdicos,
e todos riram do que eu tinha dito. Então Buliwyf pronunciou umas poucas palavras.
Herger me disse:
− Buliwyf diz que só
perderá sua firmeza se soltar as cordas de suas mãos, e só um tolo faria isso. Buliwyf
diz que você é um árabe, não um tolo.
Agora, eis aqui um
verdadeiro aspecto da natureza dos homens: que, desta maneira, Buliwyf dizia que
eu poderia me pendurar nas cordas; e que, por suas palavras, eu acreditava tanto
quanto ele, o que consolava um pouquinho meu coração. A isto Herger disse, com as
seguintes palavras:
− Cada pessoa suporta
um medo que é especial para ela. Um homem teme um espaço fechado e outro tem medo
de se afogar; cada um deles ri do outro, chamando-o de idiota. Assim, o medo é apenas
uma preferência, tal como a preferência por uma mulher ou outra, ou por carneiro
em vez de porco, ou repolho em vez de cebola. Medo é medo, costumamos dizer.
Eu não estava com ânimo
para filosofias; disse isto a ele, pois na verdade eu estava mais próximo da raiva
do que do medo. Herger agora riu na minha cara e falou:
− Dê graças a Alá por
ter colocado a morte no fim da vida e não no começo.
Repliquei brevemente
que não via vantagem em apressar o fim.
− Na verdade, nenhum
homem vê – disse Herger e acrescentou: − Olhe para Buliwyf. Veja como ele monta
ereto. Veja como cavalga à frente, embora saiba que morrerá em breve (como lhe foi
vaticinado).
− Não sei se ele morrerá
– respondi.
− Sim – disse Herger
–, mas Buliwyf sabe.”
(Depois de ter descido
sofridamente o penhasco através das cordas) “Eu lutava para manter o equilíbrio
sobre esta saliência escorregadia, e isto tanto ocupou minha atenção que não observei
os outros descendo o rochedo. Meu único desejo era este: impedir de ser varrido
para o mar. Na verdade, vi com meus próprios olhos que as ondas eram mais altas
que três homens de pé um sobre o outro, e que quando cada onda arrebentava eu ficava
por um momento desnorteado num redemoinho de água gelada e força rodopiante. Muitas
vezes fui derrubado por estas ondas; estava encharcado por todo o corpo e tremia
tão intensamente que meus dentes estrepitavam como um cavalo a galope. Não podia
pronunciar palavras porque os dentes chocalhavam.
Então Buliwyf falou:
− Desceremos até a
água e nadaremos até a caverna. Serei o primeiro. Carreguem suas adagas entre os
dentes, de modo que os braços fiquem livres para enfrentar a correnteza.
Estas palavras de nova
loucura me atingiram num momento em que não poderia suportar nada mais. A meus olhos,
o plano de Buliwyf era o máximo de insensatez. Eu via as ondas se quebrando, explodindo
sobre rochas pontudas; via as ondas refluírem com o arranco da força de um gigante,
apenas para recuperar seu poder de arremeter de novo à frente. Na verdade, observei
e acreditei que nenhum homem poderia nadar naquela água, mas que em vez disso teria
os ossos moídos num instante.
Mas não protestei,
pois estava além de qualquer compreensão. No meu modo de pensar, eu já estava tão
próximo da morte que não importava se chegasse mais perto ainda. Portanto prendi
a adaga no cinto, pois meus dentes chocalhavam demais para eu poder levá-la na boca.
Quanto aos nórdicos, eles não davam sinal de frio ou fadiga, mas saudavam cada nova
onda como um revigorante; também sorriam com a feliz expectativa da batalha iminente,
e por isto eu os odiei.
Buliwyf observou o
movimento das ondas, escolhendo o momento propício, e então pulou na arrebentação.
Hesitei e alguém – sempre acreditei que foi Herger – me empurrou.”
“Herger me disse:
− Você está iniciando
uma longa jornada. Faremos preces para sua proteção.
Perguntei a quem ele
faria preces, e Herger respondeu:
− A Odin, Frey, Thor
e Wyrd, e a vários outros deuses que podem influenciar na segurança de sua jornada.
Repliquei:
− Só creio em um único
Deus, que é Alá, o Todo-Misericordioso e Compassivo.
− Sei disso – retrucou
Herger. − Talvez um único deus seja o bastante lá nas suas terras, mas não aqui.”