domingo, 19 de outubro de 2014

O silêncio dos inocentes – Thomas Harris

Editora: BestBolso
ISBN: 978-85-7799-062-7
Tradução: Antonio Gonçalves Penna
Opinião★★★☆☆
Páginas: 392

“– Nada aconteceu comigo, policial Starling – disse Hannibal Lecter. – Eu aconteci. Você não pode reduzir-me a um jogo de influências. Vocês trocaram o bem e o mal pelo behaviorismo, policial Starling. Puseram todo mundo vestindo fraldas morais – nada mais é culpa de ninguém. Olhe para mim, policial Starling. Você pode afirmar que eu sou... mal? Por que ele arranca a pele daquelas mulheres? Eu sou o mal, policial Starling?
– Penso que o senhor foi destrutivo. Para mim é a mesma coisa.
– O mal é, portanto, destrutivo? Então as tempestades são o mal, se tudo é tão simples. E temos o fogo, e temos o granizo. As companhias de seguro listam-nos todos como “Atos da Providência”.
– A deliberação...
– Eu coleciono desabamentos de igrejas, por distração. Você viu o último, na Sicília? Maravilhoso! A fachada caiu sobre sessenta e cinco avós numa missa especial. Isso foi um mal? Se foi, quem o cometeu? Se Ele esta lá em cima, Ele adora isso, policial Starling. Febre tifoide e cisnes, ambos têm a mesma origem.”


“– E depois foi o próprio Raspail quem morreu... Por quê? – perguntou Clarice Starling.
– Francamente, fiquei enjoado, farto dos seus lamentos. Afinal, foi a melhor coisa para ele. A terapia não levava a parte alguma. Creio que a maioria dos psiquiatras tem um paciente ou dois que gostaria de encaminhar para mim. Nunca discuti isso antes e agora estou ficando cansado de fazê-lo.
– E foi ele o seu jantar servido aos dirigentes da orquestra.
– Nunca lhe aconteceu receber hóspedes para comer e você não ter tempo de fazer compras? Aí tem que dar um jeito com o que há no congelador, Clarice.
Posso chamá-la de Clarice?”


“– A gratidão tem uma meia-vida curta.”


“– Eu me admiro por meus pais, que não me mataram antes que eu tivesse idade bastante para enganá-los.”


“A solução do problema é uma caçada; é um prazer selvagem e nascemos para caçar.”


“– O doutor Pilcher telefonou três vezes. Fez-me prometer que lhe diria que ele telefonou – disse Ardelia Mapp.
– Ele não é doutor – respondeu Starling.
– Você pensa que poderá fazer algo por ele?
– Talvez. Ainda não sei.
– Ele parece ser muito divertido. Concluí mais ou menos que ser engraçado é a melhor coisa que existe nos homens. Quero dizer, exceto o dinheiro e a nossa básica autoridade...
– Claro, e boas maneiras também, você não pode excluir isso.
– Certo. Dê-me um filho-da-puta com bons modos e fico com ele.”
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quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Devoradores de mortos: o manuscrito de Ibn Fadlan, relatando suas experiências com os nórdicos em 922 – Michael Crichton

Editora: Rocco

ISBN: 978-85-325-0716-7

Tradução: Gilson B. Soares

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 162

Sinopse: Michael Crichton apresenta em Devoradores de mortos o mais antigo relato da vida dos vikings – o manuscrito do árabe Ibn Fadlan, de 922. Através deste documento, ele narra a vida desse povo de uma forma inédita, jamais vista pelos ocidentais. Amantes dos mares, oceanos e das perigosas navegações, os vikings são apresentados não mais como bárbaros mas como povo desbravador, lutador e destemido. Fadlan relata uma batalha entre uma tribo viking e os monstros da névoa, os devoradores de mortos. E, a exemplo de Parque dos dinossauros e Mundo perdido, Michael Crichton deixa para o leitor, depois de uma viagem fantástica, um desafio – ‘Quem eram, afinal, os devoradores de mortos?’



“Não louve o dia até que venha a noite; uma mulher até que ela seja queimada; uma espada até que seja testada; uma donzela até que tenha casado; o gelo até que tenha sido transposto; a cerveja até que tenha sido bebida.” (Provérbio viking)

 

 

“O mal vem de longa data.” (Provérbio árabe)

 

 

“Os nórdicos são a raça mais imunda que Deus já criou. Não se limpam após a evacuação, nem se lavam após uma poluição noturna, não diferindo de asnos selvagens. (...)

Em cada uma de suas casas vivem mais ou menos dez ou vinte pessoas. Cada homem tem um divã, onde se senta com as lindas garotas que tem para vender. É comum ele se divertir com uma delas enquanto um amigo fica olhando. Às vezes vários deles estarão assim empenhados ao mesmo tempo, cada qual à plena vista dos outros.

Vez por outra, um mercador irá a uma casa para comprar uma garota, e encontrará seu dono abraçado com ela, e ele não desistirá até que tenha satisfeito plenamente sua vontade; ninguém acha nada de extraordinário nisto.”

 

 

“Os nórdicos davam grande importância ao papel de anfitrião. Saudavam cada visitante com efusão e hospitalidade, muita comida e roupa, cabendo aos condes e nobres a honra da hospitalidade maior. A comitiva de nossa caravana foi trazida perante Buliwyf e uma grande festa nos foi oferecida. O próprio Buliwyf a presidiu, e pude ver que era um homem alto e forte, com pele, cabelo e barba de um branco puro. Possuía a postura de um líder.

Em reconhecimento à honra da festa, nossa comitiva deu uma demonstração de boas maneiras à mesa, embora a comida fosse desprezível e o estilo da festa contivesse grande desperdício de comida e bebida e muito riso e alegria. Era comum, em meio a este grosseiro banquete, que um conde se divertisse com uma escrava sob as vistas de seus pares.

Vendo isto, virei-me e disse:

− Peço perdão a Deus.

Os nórdicos riram muito do meu embaraço. Um deles traduziu para mim que eles acreditavam que Deus é benevolente com os prazeres desfrutados abertamente. Disse ele:

− Vocês, árabes, são que nem velhas; estremecem à visão da vida.

− Sou hóspede entre vocês – respondi –, e Alá me conduzirá à retidão.

Isto provocou mais risos, mas não sei por que deveriam tomar meu comentário como piada.

O costume nórdico reverencia a vida guerreira. Na verdade, estes homens enormes lutam continuamente; nunca estão em paz, nem entre eles mesmos nem em meio a tribos diferentes de sua espécie. Entoam canções sobre suas guerras e bravuras, e creem que a morte de um guerreiro é a mais alta das honras.

A bebida forte dos nórdicos em breve os deixa como animais e asnos desgarrados; em meio à canção houve ejaculação e também combate mortal acerca de alguma disputa de bêbados entre dois guerreiros. O bardo não parou de cantar durante todos esses eventos. Na verdade, vi sangue espirrado bater em sua face; mesmo assim, ele limpou-o sem uma pausa sequer em seu canto.

Isto me deixou grandemente impressionado.”

 

 

“Muitas vezes chovia à noite, e procurávamos abrigo debaixo de imensas árvores, embora acordássemos molhados e nossas peles de dormir igualmente se encharcassem. Os nórdicos não se queixavam disso, pois eram alegres o tempo todo; só eu resmungava, e vigorosamente. Eles nem me davam atenção.

Finalmente, eu disse a Herger:

− A chuva é fria.

Ele riu e replicou:

− Como pode a chuva ser fria? Você é frio e é infeliz. A chuva não é fria nem infeliz.

Vi que ele acreditava nessas tolices, e na verdade me tomava como tolo por pensar de outra maneira; mesmo assim eu pensava.

Certa noite aconteceu que, enquanto comíamos, murmurei “em nome de Deus” sobre minha comida. Buliwyf perguntou a Herger o que eu tinha dito. Eu disse a Herger que acreditava que o alimento devia ser consagrado e que, portanto, estava agindo de acordo com minhas crenças.

Buliwyf me disse, traduzido por Herger:

− Este é o costume dos árabes?

Respondi:

− Não, pois na verdade cabe àquele que mata o alimento fazer a consagração. Só falei as palavras para que não caiam no esquecimento.

Isto foi motivo de riso para os nórdicos. Eles riram no maior entusiasmo. Depois Buliwyf me disse:

− Sabe desenhar sons?

Não entendi o que ele queria dizer. Perguntei a Herger, e houve alguma conversação de ida e volta, até que por fim compreendi que ele queria dizer “escrever”. Os nórdicos chamam a fala dos árabes de ruído ou som. Respondi a Buliwyf que sabia escrever, e ler também. (...)

Herger me perguntou:

− Que Deus você louva?

Respondi que louvava o único Deus, cujo nome era Alá.

− Um Deus só não basta – disse Herger.”

 

 

“Nem sempre dormíamos nas florestas, e nem sempre cavalgávamos através delas. Na orla de algumas florestas, Buliwyf e seus guerreiros se lançariam à frente, galopando por entre as densas árvores, sem cautela ou qualquer pensamento de medo. E depois, em outras florestas onde poderiam parar para uma pausa, e os guerreiros desmontar, acender um fogo e fazer alguma distribuição de comida, ou pilhas de pão dormido ou cobertores, antes de seguir em frente, em vez disso cavalgavam em torno da orla da floresta, nunca entrando em suas profundezas.

Perguntei a Herger qual o motivo disto. Ele disse que algumas florestas eram seguras e outras não, mas não explicou melhor. Insisti:

− O que vocês acham que não é seguro nas florestas?

Ele respondeu:

− Há coisas que nenhum homem pode conquistar, e nenhuma espada pode matar, e nenhum fogo pode queimar, e tais coisas estão nas florestas.

− E que coisas são essas? – indaguei.

Ele achou graça e disse:

− Vocês, árabes, sempre querem saber os motivos de tudo. Seus corações são um saco transbordando de motivos.

− E vocês não se importam com os motivos?

− Isto não ajuda em nada. Costumamos dizer que um homem deveria ser moderadamente sábio, mas não sábio demais, a fim de não conhecer seu destino com antecedência. O homem cuja mente é mais despreocupada não conhece seu destino antes do tempo.

Agora eu via que devia ficar satisfeito com sua resposta. Pois era verdade que, uma ocasião ou outra, eu faria algum tipo de interrogatório, e Herger responderia, e eu não entenderia sua resposta e perguntaria mais, e ele responderia mais. Não obstante, quando eu o interrogava de novo, ele respondia de uma maneira curta, como se o interrogatório não tivesse substância. E depois eu nada mais conseguiria dele, a não ser um meneio de cabeça.”

 

 

“O país do Norte é frio e úmido e o sol raramente visto, pois o céu é cinzento e com nuvens carregadas o dia inteiro. As pessoas desta região são pálidas como linho, e seu cabelo muito louro. Após tantos dias de viagem, não vi uma pessoa sequer de pele escura, e de fato eu era motivo de espanto por parte dos habitantes daquela região por causa da minha pele e cabelos escuros. Muitas vezes, um fazendeiro com sua esposa ou filha se aproximavam para me tocar com um movimento de afago. Herger ria e dizia que estavam tentando esfregar a cor, pensando que fosse pintada sobre minha carne. Eram pessoas ignorantes, sem a menor noção da vastidão do mundo. Muitas vezes tinham medo de mim, não chegando muito perto. Num lugar cujo nome não sei, uma criança gritou aterrorizada ao me ver e correu para abraçar a mãe. Vendo a cena, os guerreiros de Buliwyf riram com grande satisfação.”

 

 

“Eu estava receoso de me lançar a este mar, pois a água era encapelada e muito fria; um homem que ali afundasse teria todos os sentidos amortecidos instantaneamente, tão pavoroso era o frio. E ainda assim os nórdicos estavam alegres, e brincaram e beberam por uma noite nesta aldeia marítima de Lenneborg, e se divertiram com muitas das mulheres e jovens escravas. Esse, disseram-me, é o costume dos nórdicos antes de uma viagem marítima, pois nenhum homem sabe se irá sobreviver à jornada; assim, ele só parte após uma exagerada festança.

Em cada lugar fomos saudados com grande hospitalidade, o que é considerado uma virtude por esta gente. O mais pobre lavrador colocaria tudo o que possuísse diante de nós, e sem recear que pudéssemos matá-lo ou roubá-lo, mas apenas por bondade e cortesia. Os nórdicos, aprendi, não aprovam ladrões ou assassinos de sua própria raça, e tratam duramente tais homens. Aferram-se a estes pontos de vista apesar da verdade inegável, ou seja, a de que estão sempre bebendo e brigando como animais irracionais e se matando mutuamente em irados duelos. Embora eles não vejam isto como um assassinato, e qualquer homem que cometa assassinato seja igualmente morto.”

 

 

“Se um escravo fica doente, ou morre em algum acidente, isto não é considerado uma grande perda; e mulheres escravas devem estar prontas a qualquer hora para servir a qualquer homem, em público ou reservadamente, de dia ou de noite. Não há afeição pelos escravos, mas tampouco eles sofrem maus-tratos, sendo sempre alimentados e vestidos por seus senhores.

Mais adiante aprendi que qualquer homem pode se divertir com uma escrava, mas que a mulher do lavrador de mais baixa condição é respeitada pelos chefes e condes nórdicos, tal como respeitam as mulheres uns dos outros. Forçar as atenções de uma mulher nascida livre que não seja escrava é um crime, e disseram-me que um homem seria enforcado por isto, embora eu nunca tenha visto

A castidade entre as mulheres é considerada uma grande virtude, mas raramente eu a vi ser praticada, pois não se dá maior importância ao adultério, e se a mulher de qualquer homem, seja de que classe for, é libidinosa, a consequência não é considerada digna de nota. Esta gente é muito aberta em tais assuntos, e os homens do Norte dizem que as mulheres são desonestas e inconfiáveis; parecem estar resignados com isto, e falam no assunto com seu habitual comportamento jovial.

Indaguei de Herger se ele era casado, e ele disse que tinha uma esposa. Perguntei com toda discrição se ela era casta. Ele riu na minha cara e disse:

− Eu viajo pelos mares e posso nunca retornar, ou posso me ausentar muitos anos. Minha mulher não esta morta.

Extraí disso o sentido de que ela lhe era infiel, e que ele não se importava.

Os nórdicos não consideram nenhum filho um bastardo se a mãe for uma esposa. Os filhos de escravos são escravos algumas vezes, e livres outras; como isto é decidido, não sei.

A pederastia não é conhecida entre os nórdicos, embora eles digam que outros povos a praticam; alegam não ter qualquer interesse pelo assunto, e uma vez que não ocorre entre sua gente, não preveem qualquer punição para isto.”

 

 

“O navio estava ancorado à hora da prece vespertina, e pedi o perdão de Alá por não fazer súplicas. Embora eu não fosse capaz de fazer isto na presença dos nórdicos, que consideravam minhas preces como uma praga rogada contra eles, e ameaçavam matar-me se eu orasse na presença deles.”

 

 

“Rethel havia sido ferido na batalha anteriormente, mas tinha um ferimento novo no estômago, e sangrava muito mais; devia estar sofrendo muita dor, e ainda assim exibia apenas animação, sorrindo e provocando as escravas ao beliscar suas nádegas e seios, e com frequência elas o repreendiam por distraí-las enquanto tentavam cuidar dos seus ferimentos.

Buliwyf, o chefe, conferenciava com todos os seus guerreiros em outra parte do grande vestíbulo. Juntei-me ao grupo, mas não houve saudações. Herger, cuja vida eu salvara, nem me notou, pois os guerreiros estavam mergulhados numa conversa solene. Eu aprendera um pouco da língua nórdica, mas não o suficiente para acompanhar suas palavras rápidas e baixas, por isso fui para outro lugar, onde bebi hidromel e senti as dores do meu corpo. Depois uma escrava chegou para banhar meus ferimentos. Havia um corte na panturrilha e outro no peito. Eu estivera insensível a estes ferimentos até o momento em que ela começou a fazer os curativos.

Os nórdicos banham os ferimentos com água do mar, pois acreditam que esta água possui maiores poderes curativos do que a água da fonte. A lavagem com água do mar não é agradável para o ferimento. Na verdade, gemi. Rethel riu e falou para uma escrava:

− Ele continua sendo um árabe.

Fiquei envergonhado.”

 

 

“Não havia vento nem sons, nem sequer o som de pássaros ou qualquer animal vivente, apenas silêncio.

− Aqui começa a terra do wendol – disse Buliwyf, e os guerreiros deram tapinhas nos pescoços dos cavalos para confortá-los, pois estavam assustadiços e indóceis. Tal como os cavaleiros, Buliwyf mantinha os lábios comprimidos; as mãos de Ecthgow tremiam enquanto ele segurava as rédeas do cavalo. Herger ficara quase pálido, e seus olhos dardejavam por este ou aquele caminho; tal como os outros, à maneira.

“O medo tem uma boca branca”, costumam dizer os nórdicos, e agora vi que era verdade, pois a palidez rodeava seus lábios e bocas. Nenhum deles falava de seu medo.

Agora deixamos os cães para trás, e cavalgamos em frente para mais neve, que estava fina e estalante sob os pés, e para névoas mais densas. Nenhum homem falava, a não ser para os cavalos. A cada passo se tornava mais difícil incitar os animais a prosseguir; os guerreiros viram-se obrigados a apressá-los com palavras suaves e chutes nem tanto. Logo vimos formas sombrias na névoa à nossa frente, das quais nos acercamos com cautela. Agora vi com meus próprios olhos o seguinte: em ambos os lados da trilha, fixados no alto de sólidos postes, estavam os crânios de animais enormes, suas mandíbulas abertas numa postura de ataque. Continuamos, e vi que eram crânios de ursos gigantes, venerados pelo wendol. Herger me disse que os crânios de urso protegem as fronteiras da terra de wendol.

Agora avistamos outro obstáculo, cinzento, distante e extenso. Era uma rocha gigante, da altura de uma sela de cavalo, e estava esculpida na forma de uma mulher grávida, com barriga e seios protuberantes, e sem cabeça, braços ou pernas. Esta rocha estava manchada com o sangue de alguns sacrifícios; na verdade, estrias vermelhas gotejavam, e era horrível olhar para aquilo.

Ninguém falou do que foi visto. Cavalgamos em passo acelerado. Os guerreiros sacaram suas espadas e as mantiveram preparadas. Esta é uma qualidade dos nórdicos: inicialmente demonstraram medo, mas, tendo entrado na terra do wendol, perto da fonte do medo, suas próprias apreensões desapareceram. Assim, eles parecem fazer todas as coisas às avessas e de maneira espantosa, pois na verdade agora se mostravam calmos. Somente os cavalos é que continuavam relutantes em prosseguir.

Senti agora o mesmo odor de carcaça apodrecida que sentira antes no grande vestíbulo de Rothgar, e à medida que atingia de novo minhas narinas, eu ficava acovardado. Herger cavalgava ao meu lado e disse em voz suave:

− Como se sente?

Incapaz de ocultar minhas emoções, respondi:

− Estou com medo.

− Isto é porque pensa no que está por vir – replicou Herger – e imagina coisas medonhas que gelariam o sangue de qualquer homem. Não pense com antecedência, e contente-se em saber que nenhum homem vive para sempre.

Percebi a verdade de suas palavras.

− Na minha sociedade – falei – temos este ditado: “Agradeça a Alá, pois em Sua sabedoria Ele pôs a morte no fim da vida, e não no começo.”

Herger sorriu a isto, e deu uma pequena gargalhada.

− No medo, até mesmo os árabes falam a verdade – disse ele e depois cavalgou à frente para contar minhas palavras a Buliwyf, que também achou graça. Os guerreiros de Buliwyf ficaram contentes por uma piada àquela altura.”

 

 

“Cavalgamos rapidamente ao longo da borda dos penhascos, que eram altos e assustadores em toda a sua extensão, e escarpados; numa camada de rocha cinzenta, eles mergulhavam no mar espumante e turbulento abaixo. Em alguns lugares ao longo deste litoral havia praias rochosas, mas com frequência a terra e o mar se encontravam diretamente, e as ondas estrondeavam como um trovão sobre as rochas; e esta era a circunstância para a parte principal.

Vi Herger, que levava sobre seu cavalo as cordas de pele de foca dos anões, e cavalguei até emparelhar com ele. Perguntei-lhe qual era o nosso objetivo neste dia. Na verdade, não me importava muito, de tão fortemente minha cabeça doía e meu estômago queimava (por conta da bebedeira depois da batalha do dia anterior).

Herger me disse:

− Nesta manhã vamos atacar a mãe do wendol nas cavernas do trovão. Faremos isto atacando pelo mar, como já lhe disse ontem.

Enquanto cavalgava, eu olhava do cavalo para o mar abaixo, que colidia contra os penhascos.

− Vamos atacar de barco? – perguntei.

− Não – disse Herger, e bateu com a mão nas cordas de pele de foca.

Então compreendi que deveríamos descer os penhascos nas cordas, e assim, de alguma maneira, encontrar uma entrada para as cavernas.

Eu sabia que estes nórdicos são excessivamente valorosos para cometer um erro, mas ao olhar para o precipício do penhasco abaixo de nós, meu coração se revirou dentro do peito, e pensei que iria vomitar a qualquer momento. Na verdade, o penhasco era absolutamente liso, sem o menor apoio para mãos e pés, e descaía por uns quatrocentos passos, talvez. Na verdade, as ondas que arrebentavam tão abaixo de nós pareciam ondas em miniatura, minúsculas como o mais delicado desenho de um artista. Embora eu soubesse que eram tão enormes quanto todas as ondas do mundo, uma vez que alguém descesse até aquele nível lá embaixo.

Para mim, descer por estes penhascos era uma loucura que ia além da loucura de um cão raivoso. Mas os nórdicos prosseguiam de maneira normal.

Eu estava muito assustado com esta perspectiva, pois nunca apreciara me aventurar em lugares altos; evitava até mesmo os prédios altos da Cidade da Paz. E revelei isto.

Herger me respondeu:

− Dê graças, pois você é afortunado.

Perguntei qual era a fonte de minha boa fortuna. Herger disse em resposta:

− Se você tem medo de lugares altos, então hoje irá superá-lo; e, portanto terá superado um grande desafio; e será considerado um herói por isso.

− Não quero ser um herói – repliquei.

Ele riu e disse que eu expressava tal opinião somente por ser um árabe. Depois acrescentou que eu tinha uma cabeça de ressaca, o que no jargão nórdico significava a consequência da bebedeira. Isto era verdade, como já contei.

Era também verdade que eu estava muito aflito com a perspectiva de descer o penhasco. Na verdade, eu me sentia assim: que em vez de me lançar a qualquer ação sobre a face da terra – fosse deitar com uma mulher menstruada, beber de uma taça de ouro, comer os excrementos de um porco, arrancar meus olhos, até me matar – a todos ou qualquer dessas coisas eu deveria preferir à descida por aquele maldito penhasco. Eu também estava de péssimo humor, e disse a Herger:

− Você, Buliwyf e todos os guerreiros podem ser heróis do jeito que quiserem, mas não tenho de participar desta aventura, e não irei acompanhá-los.

Herger riu ao fim deste discurso. Depois chamou Buliwyf, e falou depressa; Buliwyf respondeu-lhe prontamente, por cima do ombro. Depois, Herger me falou:

− Buliwyf diz que você fará o mesmo que nós.

Na verdade, eu agora afundava no desespero, e disse a Herger:

− Não posso fazer isto. Se me obrigarem a fazê-lo, certamente morrerei.

− Morrerá por quê? – indagou Herger.

− Perderei minha firmeza nas cordas – repliquei.

Esta resposta fez Herger rir vigorosamente outra vez, e ele repetiu minhas palavras para todos os nórdicos, e todos riram do que eu tinha dito. Então Buliwyf pronunciou umas poucas palavras.

Herger me disse:

− Buliwyf diz que só perderá sua firmeza se soltar as cordas de suas mãos, e só um tolo faria isso. Buliwyf diz que você é um árabe, não um tolo.

Agora, eis aqui um verdadeiro aspecto da natureza dos homens: que, desta maneira, Buliwyf dizia que eu poderia me pendurar nas cordas; e que, por suas palavras, eu acreditava tanto quanto ele, o que consolava um pouquinho meu coração. A isto Herger disse, com as seguintes palavras:

− Cada pessoa suporta um medo que é especial para ela. Um homem teme um espaço fechado e outro tem medo de se afogar; cada um deles ri do outro, chamando-o de idiota. Assim, o medo é apenas uma preferência, tal como a preferência por uma mulher ou outra, ou por carneiro em vez de porco, ou repolho em vez de cebola. Medo é medo, costumamos dizer.

Eu não estava com ânimo para filosofias; disse isto a ele, pois na verdade eu estava mais próximo da raiva do que do medo. Herger agora riu na minha cara e falou:

− Dê graças a Alá por ter colocado a morte no fim da vida e não no começo.

Repliquei brevemente que não via vantagem em apressar o fim.

− Na verdade, nenhum homem vê – disse Herger e acrescentou: − Olhe para Buliwyf. Veja como ele monta ereto. Veja como cavalga à frente, embora saiba que morrerá em breve (como lhe foi vaticinado).

− Não sei se ele morrerá – respondi.

− Sim – disse Herger –, mas Buliwyf sabe.”

 

 

(Depois de ter descido sofridamente o penhasco através das cordas) “Eu lutava para manter o equilíbrio sobre esta saliência escorregadia, e isto tanto ocupou minha atenção que não observei os outros descendo o rochedo. Meu único desejo era este: impedir de ser varrido para o mar. Na verdade, vi com meus próprios olhos que as ondas eram mais altas que três homens de pé um sobre o outro, e que quando cada onda arrebentava eu ficava por um momento desnorteado num redemoinho de água gelada e força rodopiante. Muitas vezes fui derrubado por estas ondas; estava encharcado por todo o corpo e tremia tão intensamente que meus dentes estrepitavam como um cavalo a galope. Não podia pronunciar palavras porque os dentes chocalhavam.

Então Buliwyf falou:

− Desceremos até a água e nadaremos até a caverna. Serei o primeiro. Carreguem suas adagas entre os dentes, de modo que os braços fiquem livres para enfrentar a correnteza.

Estas palavras de nova loucura me atingiram num momento em que não poderia suportar nada mais. A meus olhos, o plano de Buliwyf era o máximo de insensatez. Eu via as ondas se quebrando, explodindo sobre rochas pontudas; via as ondas refluírem com o arranco da força de um gigante, apenas para recuperar seu poder de arremeter de novo à frente. Na verdade, observei e acreditei que nenhum homem poderia nadar naquela água, mas que em vez disso teria os ossos moídos num instante.

Mas não protestei, pois estava além de qualquer compreensão. No meu modo de pensar, eu já estava tão próximo da morte que não importava se chegasse mais perto ainda. Portanto prendi a adaga no cinto, pois meus dentes chocalhavam demais para eu poder levá-la na boca. Quanto aos nórdicos, eles não davam sinal de frio ou fadiga, mas saudavam cada nova onda como um revigorante; também sorriam com a feliz expectativa da batalha iminente, e por isto eu os odiei.

Buliwyf observou o movimento das ondas, escolhendo o momento propício, e então pulou na arrebentação. Hesitei e alguém – sempre acreditei que foi Herger – me empurrou.”

 

 

“Herger me disse:

− Você está iniciando uma longa jornada. Faremos preces para sua proteção.

Perguntei a quem ele faria preces, e Herger respondeu:

− A Odin, Frey, Thor e Wyrd, e a vários outros deuses que podem influenciar na segurança de sua jornada.

Repliquei:

− Só creio em um único Deus, que é Alá, o Todo-Misericordioso e Compassivo.

− Sei disso – retrucou Herger. − Talvez um único deus seja o bastante lá nas suas terras, mas não aqui.”

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Muito além do nosso eu – Miguel Nicolelis

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1873-1
Tradução: Miguel Nicolelis
Opinião★★★☆☆
Páginas: 536
  
“No jargão típico da neurociência moderna, minha pesquisa se enquadra no trabalho desenvolvido por neurofisiologistas de sistemas neurais. Pelo menos, essa é a designação que a maioria de meus colegas normalmente usaria para classificar o produto desenvolvido por mim e meus alunos em nosso laboratório no Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke. Em termos gerais, neurofisiologistas de sistemas neurais passam boa parte de suas vidas investigando os princípios fisiológicos que determinam a operação de vários circuitos neuronais, verdadeiras redes celulares formadas por nervos que emanam de centenas de bilhões de células que habitam o cérebro humano. Essas intricadas redes, cujo grau de complexidade e conectividade suplanta, por várias ordens de magnitude, qualquer outra rede elétrica, computacional, mecânica ou telefônica jamais criada por seres humanos, permitem que cada célula cerebral, ou neurônio, estabeleça contato direto e se comunique com centenas ou mesmo milhares de outras células cerebrais. Graças a sua morfologia particular, os neurônios são altamente especializados em receber e transmitir diminutas mensagens eletroquímicas através de contatos celulares, chamados sinapses, que medeiam a maioria das comunicações entre populações dessas células. É por meio dessas imensas redes neuronais altamente conectadas e de operação extremamente dinâmica, conhecidas pela alcunha de circuitos neurais, que o cérebro humano desempenha sua principal função: produzir uma enorme variedade de comportamentos especializados que coletivamente define aquilo a que costumamos nos referir, orgulhosamente, como “a natureza humana”.
Ao recrutar maciças ondas milivoltaicas de descargas elétricas, essas redes neuronais microscópicas são na verdade as únicas responsáveis pela geração de cada ato de pensamento, criação, destruição, descoberta, ocultação, comunicação, conquista, sedução, rendição, amor, ódio, felicidade, tristeza, solidariedade, egoísmo, introspecção e exultação jamais perpetrado por todo e qualquer um de nós, nossos ancestrais e progênie, ao longo de toda a existência da humanidade. Se a palavra milagre não tivesse sido apropriada indevidamente por outro ramo de negócios, acredito que a sociedade deveria licenciar o termo para uso exclusivo da neurociência ao relatar as maravilhas que brotam do trabalho rotineiro de nossos circuitos neurais.”


“Quando, no outono de 1984, as tradicionais águas de março começaram a cumprir o seu costumeiro ritual de escorrer torrencialmente dos céus tropicais, tal qual um pranto incontrolável, a grande maioria dos brasileiros tinha chegado ao limite do suportável. Depois de viver por vinte anos sob a opressiva sombra de uma ditadura militar que, emblematicamente, tomara o poder nas primeiras horas da data mundialmente conhecida como o dia dos mentirosos, milhões de habitantes desse país radiante decidiram tomar em suas próprias mãos a tarefa de resgatar o destino de sua querida nação. Por duas décadas, a ditadura dos generais brasileiros havia edificado um legado infame marcado única e exclusivamente pela incomparável e megalomaníaca incompetência, pela corrupção voraz e desenfreada e, acima de tudo, pela violência abominável e atroz contra aqueles que se opuseram frontalmente à ilegalidade de todos os seus atos.
No ano de 1979, graças a uma oposição popular crescente ao regime militar, o último general de quatro estrelas, em pleno gozo do delito de apropriação indébita do Palácio do Planalto em Brasília, não teve como evitar a concessão da tão almejada anistia política a todos os líderes, intelectuais, cientistas e cidadãos que haviam sido banidos ou se exilado voluntariamente do país, devido à perseguição institucional imposta pela ditadura. Esse mesmo último general déspota, cercado de seus (muitos) lacaios de plantão, havia também planejado, em algum esconderijo secreto, a sua peculiar estratégia paroquial para um retorno gradual e controlado do poder às mãos da sociedade civil. De acordo com esse plano, o primeiro passo seria dado com eleições para governadores dos estados em novembro de 1982.
Para o total dissabor daquele último general ditador, em novembro os partidos da oposição venceram as eleições nos principais estados do país, derrotando o único partido político, se é que se pode assim denominar tal aglomerado de parasitas, a apoiar a ditadura dos generais. Apenas um ano após essa vitória retumbante, todavia, a pequena amostra de democracia oferecida pelo regime militar já fora totalmente esquecida. Naquele momento épico de ousadia e catarse nacional, que para todo sempre ficará registrado na história popular desse país, brasileiros de todas as idades, cores, crenças e times de futebol, repentinamente, vislumbraram que não só lhes pertencia o direito, mas também os meios de atropelar os planos para “uma abertura gradual e controlada”, que significava pouco mais do que algumas migalhas de liberdade, e exigir o fim, o término, em suma, a completa aniquilação do aparato ditatorial em todas as suas formas, cores e sons.
Definido o objetivo, a estratégia seria bem diferente da escolhida pelos protagonistas da mentirosa quartelada de 1964; em vez de perpetrar-se outro triste e medíocre golpe de estado latino-americano, o povo brasileiro optou por despejar o último general trapalhão, para a sua anônima aposentadoria, através de eleições diretas para presidente. E foi assim que, virtualmente quase de lugar nenhum, um movimento nacional por eleições diretas para presidente do Brasil, imortalizado pelo lema “Diretas Já!”, foi lançado. Apropriadamente, para um movimento popular espontâneo, o primeiro comício pelas Diretas Já ocorreu na pequena, mas certamente arretada, cidade pernambucana de Abreu e Lima no dia 31 de março de 1983. Em novembro de 1983, uma multidão de pouco mais de 10 mil paulistanos se reuniu no primeiro comício das Diretas Já realizado na cidade de Adoniran Barbosa e Mário de Andrade, a São Paulo, ou Sampa para os mais íntimos. A partir daí, sem qualquer explicação, o país inteiro se incendiou, tomado pela febre de alta intensidade, conhecida apenas pelo refrão pronunciado por aqueles contaminados pelo vírus da libertação iminente:
Diretas Já! Era só o que se ouvia pelas ruas, pelos bares e nas praças de todo Brasil.
Dois meses depois, 25 de janeiro de 1984, no dia em que São Paulo celebrou o seu 430º aniversário de fundação, uma nova manifestação, dessa vez com mais de 200 mil pessoas, ocupara a praça da Sé para, a 400 mil mãos, compor uma serenata de apenas duas palavras ao último general de plantão, que comunicava a principal demanda da nação:
Diretas Já!
Numa questão de dias, sucessivos comícios formados por gigantescas e históricas multidões haviam ocorrido nas principais praças do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e outras capitais brasileiras. Com exceção do general de aluguel, todos os brasileiros passaram a exercitar o lento e penoso processo de conquistar a própria cidadania e construir uma nova nação, com escritura lavrada e firma reconhecida em cartório, como manda a tradição nacional.
No anoitecer do dia 16 de abril de 1984, mais de 1 milhão de pessoas procuravam encontrar, da melhor forma possível, uma maneira de chegar à enorme praça que cobre o vale central da cidade de São Paulo, para participar da maior manifestação popular de toda história brasileira. Em poucas horas daquele entardecer inesquecível, verdadeiros rios de gente – vestidos de verde e amarelo, o tradicional arco-íris brasileiro conhecido mundo afora –, inundaram cada milímetro quadrado do tradicional vale do Anhangabaú, muito perto da então humilde colina onde essa megalópole fora um dia fundada. Cada novo grupo, logo ao chegar ao centro do comício, juntava-se ao já mais do que familiar coral que continuava a repetir, incessantemente, o seu poema de duas palavras. A cada instante, aquele grito que vinha do íntimo de cada um de nós se transformava, de repente, numa verdadeira erupção vocal, espalhando-se, como uma daquelas tempestades de verão paulistano, pelos céus entrecortados pelos últimos raios do sol, que parecia querer ficar, só mais um pouquinho, entre nós, para também participar daquele momento. Que inveja o sol deve ter sentido da lua, que logo a seguir passou a ser nossa celestial companheira e testemunha daquele mar de vozes a repetir, sem perder a rima, o ritmo ou o foco.
Diretas Já, Diretas Já, Diretas Já!
Se você, caro leitor, nunca teve a oportunidade de participar de um coral formado por 1 milhão de vozes, eu certamente recomendo a experiência. Nada pode nos preparar para o som penetrante que nasce dessa sinfonia de anseios e desejos; e nada desse lado da Via Láctea fará você esquecer essa música, esse quase pranto, pois ela, como ele, carrega o tipo de som que entalha memórias para toda uma vida. Para enquanto durar o sempre de uma vida mortal.
Pressionado pelo fluxo crescente de pessoas, eu não tive alternativa a não ser escalar uma banca de jornais e, do alto do seu teto de zinco, pela primeira vez naquela noite, deleitar-me com uma visão panorâmica de toda aquela multidão que decidira conquistar plenamente o gigantesco vale, armada apenas com uma canção de dois verbetes. Para os praticamente dizimados índios Tupy-Guarani, a tribo nativa que ocupava aquela terra antes da chegada dos portugueses em 1500, o riacho que cortava aquele vale era conhecido como “o rio dos maus espíritos”. Não mais. Naquela noite emocionante, o único rio visível naquele vale era um poderoso Amazonas feito de gente. Nenhum espírito do mal ousaria aparecer no meio daquele verdadeiro oceano humano.”


“Enquanto o neurônio individual constitui tanto a unidade anatômica como o elemento básico de processamento de sinais do sistema nervoso, ele não é capaz, por si só, de gerar nenhum comportamento e, em última análise, nem sequer um pensamento. A verdadeira unidade funcional do sistema nervoso é formada por uma população de neurônios, também conhecida como grupamento ou rede neuronal. O mecanismo funcional no qual populações de neurônios, em vez de células únicas, são responsáveis pela informação necessária para a geração de comportamentos também é denominado, na literatura especializada, código neuronal distribuído.”


“Os primeiros relatos do fenômeno do membro fantasma datam de muitos séculos atrás. Na Idade Média, por exemplo, o folclore europeu glorificava a reposição de membros amputados em soldados. Uma dessas histórias mitológicas se referia a uma série de curas milagrosas, supostamente realizadas no porto de Aegea, na então província romana da Síria, no século IV. De acordo com a lenda, vários pacientes vítimas de amputações tinham tido seus braços ou pernas restaurados graças à intervenção angelical de dois jovens irmãos gêmeos que depois seriam canonizados pela Igreja Católica. Segundo os documentos da canonização, são Cosme e são Damião eram capazes de restaurar a sensação de uma perna amputada ao transplantar, miraculosamente, o membro de um morto no coto do paciente. Dizia a lenda que qualquer amputado que evocasse com fervor o nome desses santos poderia, uma vez mais, sentir a presença do membro perdido.
No século XVI, o fenômeno do membro fantasma finalmente saiu do domínio da religião para se alojar nos tratados médicos. Quando o cirurgião militar francês Ambroise Paré (c. 1510-90) descreveu as técnicas por ele introduzidas para melhorar a sobrevida de milhares de soldados vítimas de amputações, resultantes dos infinitos conflitos armados deflagrados em solo europeu, ele dedicou especial atenção à descrição de múltiplos casos de membros fantasmas entre os soldados que tinham a rara boa-aventurança de sobreviver à carnificina inútil desses campos de batalha. Embora acreditasse no relato de seus pacientes, Paré provavelmente ficou com receio de que os colegas duvidassem de sua própria sanidade mental depois de tratar tantos casos como esses. Isso talvez explique por que o emérito cirurgião decidiu publicar seus achados clínicos num tratado em francês, e não em latim, a língua da ciência europeia da época. Certamente, tal escolha não favoreceu a difusão deles, uma vez que o fenômeno permaneceu negligenciado nos três séculos seguintes.
A investigação clínica moderna das causas possíveis do membro fantasma, todavia, teve de aguardar a ocorrência de uma batalha ainda mais sangrenta. Dias depois da carnificina que entrou para a história como a Batalha de Gettysburg, o neurologista americano Silas Weir Mitchell, que servia no exército do presidente Abraham Lincoln, documentou dezenas de casos de membros fantasmas, a maioria entre os soldados confederados. Sobreviventes da infame “carga de Pickett”, um maciço assalto frontal do exército sulista, autorizado pelo legendário General Robert Lee e comandando pelo flamboyant Major General George Pickett, contra as muito mais numerosas e bem armadas tropas da União, alojadas no topo de um morro, macabramente conhecido como “Topo do Cemitério”, esses veteranos confederados agora se sentiam compelidos a reviver sua participação no que foi o mais mortal dos eventos do dia 3 de julho de 1863. Confinados em barracas médicas, eles começavam a experimentar o terror de sentir pernas invisíveis tentando levá-los de volta aos matagais onde haviam sido alvejados. Testemunha do sofrimento desses soldados desesperados, Mitchell batizou a coleção de sintomas que os assolava de “síndrome do membro fantasma”.
Entrevistas detalhadas com milhares de amputados foram publicadas desde o final da guerra civil americana. Esses casos sugerem que a presença de dor intensa antes do episódio que leva à amputação de um membro, devido a uma fratura severa, uma úlcera profunda, uma queimadura extensa ou gangrena disseminada, é o maior fator de risco associado ao desenvolvimento de um membro fantasma doloroso. Mais de 70% dos pacientes reportam que seu membro fantasma produz algum tipo de sensação dolorosa depois de uma amputação cirúrgica eletiva; em 60% desses pacientes, uma dor pulsante e incessante, numa parte do corpo que não existe mais, persiste para o resto da vida. Como mencionado acima, no caso dos soldados confederados, membros fantasmas frequentemente realizam movimentos fantasmas. Em enfermarias com grandes números de amputados é comum ouvir gritos de pacientes desesperados com a súbita percepção de que suas pernas inexistentes estão prestes a pular da cama e sair correndo por conta própria! Em um terço desses pacientes, o membro amputado assume postura anormal, e extremamente dolorosa, permanecendo assim por meses ou mesmo anos a fio. Essa postura pode lembrar a sensação de manter o braço imerso em gelo, ou permanentemente torcido numa configuração espiral, ou alojado nas costas numa posição jamais experimentada antes.
Pesquisas revelam que a sensação de membro fantasma pode se manifestar após a amputação de qualquer parte do corpo, e não somente de pernas e braços. Pacientes que perderam uma mama, dentes, genitais e mesmo órgãos internos podem experimentar sua presença após o procedimento ou evento que resultou em sua remoção. Mulheres que passaram por histerectomia reportam cólicas menstruais fantasmas, bem como contrações uterinas semelhantes às causadas pela dor de um parto. Curiosamente, travestis masculinos que optam por realizar cirurgia de mudança de sexo parecem não experimentar um “pênis fantasma”, sugerindo que, para seus cérebros, esses homens já viviam num corpo feminino antes da operação.”


     “Afora a memória, a habilidade de aprender é o maior presente concedido a cada um de nós por nosso cérebro de primata.”