Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1873-1
Tradução: Miguel Nicolelis
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 536
“No jargão típico da neurociência moderna, minha
pesquisa se enquadra no trabalho desenvolvido por neurofisiologistas de
sistemas neurais. Pelo menos, essa é a designação que a maioria de meus colegas
normalmente usaria para classificar o produto desenvolvido por mim e meus
alunos em nosso laboratório no Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke.
Em termos gerais, neurofisiologistas de sistemas neurais passam boa parte de
suas vidas investigando os princípios fisiológicos que determinam a operação de
vários circuitos neuronais, verdadeiras redes celulares formadas por nervos que
emanam de centenas de bilhões de células que habitam o cérebro humano. Essas
intricadas redes, cujo grau de complexidade e conectividade suplanta, por
várias ordens de magnitude, qualquer outra rede elétrica, computacional,
mecânica ou telefônica jamais criada por seres humanos, permitem que cada
célula cerebral, ou neurônio, estabeleça contato direto e se comunique com centenas
ou mesmo milhares de outras células cerebrais. Graças a sua morfologia
particular, os neurônios são altamente especializados em receber e transmitir
diminutas mensagens eletroquímicas através de contatos celulares, chamados
sinapses, que medeiam a maioria das comunicações entre populações dessas
células. É por meio dessas imensas redes neuronais altamente conectadas e de
operação extremamente dinâmica, conhecidas pela alcunha de circuitos neurais,
que o cérebro humano desempenha sua principal função: produzir uma enorme
variedade de comportamentos especializados que coletivamente define aquilo a
que costumamos nos referir, orgulhosamente, como “a natureza humana”.
Ao recrutar maciças ondas milivoltaicas de
descargas elétricas, essas redes neuronais microscópicas são na verdade as
únicas responsáveis pela geração de cada ato de pensamento, criação,
destruição, descoberta, ocultação, comunicação, conquista, sedução, rendição,
amor, ódio, felicidade, tristeza, solidariedade, egoísmo, introspecção e exultação
jamais perpetrado por todo e qualquer um de nós, nossos ancestrais e progênie,
ao longo de toda a existência da humanidade. Se a palavra milagre não tivesse
sido apropriada indevidamente por outro ramo de negócios, acredito que a
sociedade deveria licenciar o termo para uso exclusivo da neurociência ao
relatar as maravilhas que brotam do trabalho rotineiro de nossos circuitos
neurais.”
“Quando, no outono de 1984, as tradicionais águas
de março começaram a cumprir o seu costumeiro ritual de escorrer
torrencialmente dos céus tropicais, tal qual um pranto incontrolável, a grande
maioria dos brasileiros tinha chegado ao limite do suportável. Depois de viver
por vinte anos sob a opressiva sombra de uma ditadura militar que,
emblematicamente, tomara o poder nas primeiras horas da data mundialmente
conhecida como o dia dos mentirosos, milhões de habitantes desse país radiante
decidiram tomar em suas próprias mãos a tarefa de resgatar o destino de sua
querida nação. Por duas décadas, a ditadura dos generais brasileiros havia
edificado um legado infame marcado única e exclusivamente pela incomparável e
megalomaníaca incompetência, pela corrupção voraz e desenfreada e, acima de
tudo, pela violência abominável e atroz contra aqueles que se opuseram frontalmente
à ilegalidade de todos os seus atos.
No ano de 1979, graças a uma oposição popular
crescente ao regime militar, o último general de quatro estrelas, em pleno gozo
do delito de apropriação indébita do Palácio do Planalto em Brasília, não teve
como evitar a concessão da tão almejada anistia política a todos os líderes,
intelectuais, cientistas e cidadãos que haviam sido banidos ou se exilado
voluntariamente do país, devido à perseguição institucional imposta pela
ditadura. Esse mesmo último general déspota, cercado de seus (muitos) lacaios
de plantão, havia também planejado, em algum esconderijo secreto, a sua
peculiar estratégia paroquial para um retorno gradual e controlado do poder às
mãos da sociedade civil. De acordo com esse plano, o primeiro passo seria dado
com eleições para governadores dos estados em novembro de 1982.
Para o total dissabor daquele último general
ditador, em novembro os partidos da oposição venceram as eleições nos
principais estados do país, derrotando o único partido político, se é que se
pode assim denominar tal aglomerado de parasitas, a apoiar a ditadura dos
generais. Apenas um ano após essa vitória retumbante, todavia, a pequena
amostra de democracia oferecida pelo regime militar já fora totalmente
esquecida. Naquele momento épico de ousadia e catarse nacional, que para todo
sempre ficará registrado na história popular desse país, brasileiros de todas
as idades, cores, crenças e times de futebol, repentinamente, vislumbraram que
não só lhes pertencia o direito, mas também os meios de atropelar os planos
para “uma abertura gradual e controlada”, que significava pouco mais do que
algumas migalhas de liberdade, e exigir o fim, o término, em suma, a completa
aniquilação do aparato ditatorial em todas as suas formas, cores e sons.
Definido o objetivo, a estratégia seria bem
diferente da escolhida pelos protagonistas da mentirosa quartelada de 1964; em
vez de perpetrar-se outro triste e medíocre golpe de estado latino-americano, o
povo brasileiro optou por despejar o último general trapalhão, para a sua
anônima aposentadoria, através de eleições diretas para presidente. E foi assim
que, virtualmente quase de lugar nenhum, um movimento nacional por eleições
diretas para presidente do Brasil, imortalizado pelo lema “Diretas Já!”, foi
lançado. Apropriadamente, para um movimento popular espontâneo, o primeiro
comício pelas Diretas Já ocorreu na pequena, mas certamente arretada, cidade
pernambucana de Abreu e Lima no dia 31 de março de 1983. Em novembro de 1983,
uma multidão de pouco mais de 10 mil paulistanos se reuniu no primeiro comício
das Diretas Já realizado na cidade de Adoniran Barbosa e Mário de Andrade, a
São Paulo, ou Sampa para os mais íntimos. A partir daí, sem qualquer
explicação, o país inteiro se incendiou, tomado pela febre de alta intensidade,
conhecida apenas pelo refrão pronunciado por aqueles contaminados pelo vírus da
libertação iminente:
Diretas Já! Era só o que se ouvia pelas ruas, pelos
bares e nas praças de todo Brasil.
Dois meses depois, 25 de janeiro de 1984, no dia em
que São Paulo celebrou o seu 430º aniversário de fundação, uma nova
manifestação, dessa vez com mais de 200 mil pessoas, ocupara a praça da Sé
para, a 400 mil mãos, compor uma serenata de apenas duas palavras ao último
general de plantão, que comunicava a principal demanda da nação:
Diretas Já!
Numa questão de dias, sucessivos comícios formados
por gigantescas e históricas multidões haviam ocorrido nas principais praças do
Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e outras capitais brasileiras. Com
exceção do general de aluguel, todos os brasileiros passaram a exercitar o
lento e penoso processo de conquistar a própria cidadania e construir uma nova
nação, com escritura lavrada e firma reconhecida em cartório, como manda a
tradição nacional.
No anoitecer do dia 16 de abril de 1984, mais de 1
milhão de pessoas procuravam encontrar, da melhor forma possível, uma maneira
de chegar à enorme praça que cobre o vale central da cidade de São Paulo, para
participar da maior manifestação popular de toda história brasileira. Em poucas
horas daquele entardecer inesquecível, verdadeiros rios de gente – vestidos de
verde e amarelo, o tradicional arco-íris brasileiro conhecido mundo
afora –, inundaram cada milímetro quadrado do tradicional vale do
Anhangabaú, muito perto da então humilde colina onde essa megalópole fora um
dia fundada. Cada novo grupo, logo ao chegar ao centro do comício, juntava-se
ao já mais do que familiar coral que continuava a repetir, incessantemente, o
seu poema de duas palavras. A cada instante, aquele grito que vinha do íntimo
de cada um de nós se transformava, de repente, numa verdadeira erupção vocal,
espalhando-se, como uma daquelas tempestades de verão paulistano, pelos céus
entrecortados pelos últimos raios do sol, que parecia querer ficar, só mais um
pouquinho, entre nós, para também participar daquele momento. Que inveja o sol
deve ter sentido da lua, que logo a seguir passou a ser nossa celestial
companheira e testemunha daquele mar de vozes a repetir, sem perder a rima, o
ritmo ou o foco.
Diretas Já, Diretas Já, Diretas Já!
Se você, caro leitor, nunca teve a oportunidade de
participar de um coral formado por 1 milhão de vozes, eu certamente recomendo a
experiência. Nada pode nos preparar para o som penetrante que nasce dessa
sinfonia de anseios e desejos; e nada desse lado da Via Láctea fará você
esquecer essa música, esse quase pranto, pois ela, como ele, carrega o tipo de
som que entalha memórias para toda uma vida. Para enquanto durar o sempre de
uma vida mortal.
Pressionado pelo fluxo crescente de pessoas, eu não
tive alternativa a não ser escalar uma banca de jornais e, do alto do seu teto
de zinco, pela primeira vez naquela noite, deleitar-me com uma visão panorâmica
de toda aquela multidão que decidira conquistar plenamente o gigantesco vale,
armada apenas com uma canção de dois verbetes. Para os praticamente dizimados
índios Tupy-Guarani, a tribo nativa que ocupava aquela terra antes da chegada
dos portugueses em 1500, o riacho que cortava aquele vale era conhecido como “o
rio dos maus espíritos”. Não mais. Naquela noite emocionante, o único rio
visível naquele vale era um poderoso Amazonas feito de gente. Nenhum espírito
do mal ousaria aparecer no meio daquele verdadeiro oceano humano.”
“Enquanto o neurônio individual constitui tanto a
unidade anatômica como o elemento básico de processamento de sinais do sistema
nervoso, ele não é capaz, por si só, de gerar nenhum comportamento e, em última
análise, nem sequer um pensamento. A verdadeira unidade funcional do sistema
nervoso é formada por uma população de neurônios, também conhecida como
grupamento ou rede neuronal. O mecanismo funcional no qual populações de
neurônios, em vez de células únicas, são responsáveis pela informação
necessária para a geração de comportamentos também é denominado, na literatura
especializada, código neuronal distribuído.”
“Os primeiros relatos do fenômeno do membro
fantasma datam de muitos séculos atrás. Na Idade Média, por exemplo, o folclore
europeu glorificava a reposição de membros amputados em soldados. Uma dessas
histórias mitológicas se referia a uma série de curas milagrosas, supostamente
realizadas no porto de Aegea, na então província romana da Síria, no século IV.
De acordo com a lenda, vários pacientes vítimas de amputações tinham tido seus
braços ou pernas restaurados graças à intervenção angelical de dois jovens
irmãos gêmeos que depois seriam canonizados pela Igreja Católica. Segundo os
documentos da canonização, são Cosme e são Damião eram capazes de restaurar a
sensação de uma perna amputada ao transplantar, miraculosamente, o membro de um
morto no coto do paciente. Dizia a lenda que qualquer amputado que evocasse com
fervor o nome desses santos poderia, uma vez mais, sentir a presença do membro
perdido.
No século XVI, o fenômeno do membro fantasma finalmente
saiu do domínio da religião para se alojar nos tratados médicos. Quando o
cirurgião militar francês Ambroise Paré (c. 1510-90) descreveu as
técnicas por ele introduzidas para melhorar a sobrevida de milhares de soldados
vítimas de amputações, resultantes dos infinitos conflitos armados deflagrados
em solo europeu, ele dedicou especial atenção à descrição de múltiplos casos de
membros fantasmas entre os soldados que tinham a rara boa-aventurança de
sobreviver à carnificina inútil desses campos de batalha. Embora acreditasse no
relato de seus pacientes, Paré provavelmente ficou com receio de que os colegas
duvidassem de sua própria sanidade mental depois de tratar tantos casos como
esses. Isso talvez explique por que o emérito cirurgião decidiu publicar seus
achados clínicos num tratado em francês, e não em latim, a língua da ciência
europeia da época. Certamente, tal escolha não favoreceu a difusão deles, uma
vez que o fenômeno permaneceu negligenciado nos três séculos seguintes.
A investigação clínica moderna das causas possíveis
do membro fantasma, todavia, teve de aguardar a ocorrência de uma batalha ainda
mais sangrenta. Dias depois da carnificina que entrou para a história como a
Batalha de Gettysburg, o neurologista americano Silas Weir Mitchell, que servia
no exército do presidente Abraham Lincoln, documentou dezenas de casos de
membros fantasmas, a maioria entre os soldados confederados. Sobreviventes da
infame “carga de Pickett”, um maciço assalto frontal do exército sulista,
autorizado pelo legendário General Robert Lee e comandando pelo flamboyant
Major General George Pickett, contra as muito mais numerosas e bem armadas
tropas da União, alojadas no topo de um morro, macabramente conhecido como
“Topo do Cemitério”, esses veteranos confederados agora se sentiam compelidos a
reviver sua participação no que foi o mais mortal dos eventos do dia 3 de julho
de 1863. Confinados em barracas médicas, eles começavam a experimentar o terror
de sentir pernas invisíveis tentando levá-los de volta aos matagais onde haviam
sido alvejados. Testemunha do sofrimento desses soldados desesperados, Mitchell
batizou a coleção de sintomas que os assolava de “síndrome do membro fantasma”.
Entrevistas detalhadas com milhares de amputados
foram publicadas desde o final da guerra civil americana. Esses casos sugerem
que a presença de dor intensa antes do episódio que leva à amputação de um
membro, devido a uma fratura severa, uma úlcera profunda, uma queimadura
extensa ou gangrena disseminada, é o maior fator de risco associado ao
desenvolvimento de um membro fantasma doloroso. Mais de 70% dos pacientes
reportam que seu membro fantasma produz algum tipo de sensação dolorosa depois
de uma amputação cirúrgica eletiva; em 60% desses pacientes, uma dor pulsante e
incessante, numa parte do corpo que não existe mais, persiste para o resto da
vida. Como mencionado acima, no caso dos soldados confederados, membros
fantasmas frequentemente realizam movimentos fantasmas. Em enfermarias com
grandes números de amputados é comum ouvir gritos de pacientes desesperados com
a súbita percepção de que suas pernas inexistentes estão prestes a pular da cama
e sair correndo por conta própria! Em um terço desses pacientes, o membro
amputado assume postura anormal, e extremamente dolorosa, permanecendo assim
por meses ou mesmo anos a fio. Essa postura pode lembrar a sensação de manter o
braço imerso em gelo, ou permanentemente torcido numa configuração espiral, ou
alojado nas costas numa posição jamais experimentada antes.
Pesquisas revelam que a sensação de membro fantasma
pode se manifestar após a amputação de qualquer parte do corpo, e não somente
de pernas e braços. Pacientes que perderam uma mama, dentes, genitais e mesmo
órgãos internos podem experimentar sua presença após o procedimento ou evento
que resultou em sua remoção. Mulheres que passaram por histerectomia reportam
cólicas menstruais fantasmas, bem como contrações uterinas semelhantes às
causadas pela dor de um parto. Curiosamente, travestis masculinos que optam por
realizar cirurgia de mudança de sexo parecem não experimentar um “pênis
fantasma”, sugerindo que, para seus cérebros, esses homens já viviam num corpo
feminino antes da operação.”
“Afora a memória, a
habilidade de aprender é o maior presente concedido a cada um de nós por nosso
cérebro de primata.”
Um comentário:
O livro é bem escrito, porém, destaco que o assunto é extremamente específico (pesquisa neurológica), portanto, me pareceu pouco recomendável ao público leigo - como eu. :)
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