segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Muito além do nosso eu – Miguel Nicolelis

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1873-1
Tradução: Miguel Nicolelis
Opinião★★★☆☆
Páginas: 536
  
“No jargão típico da neurociência moderna, minha pesquisa se enquadra no trabalho desenvolvido por neurofisiologistas de sistemas neurais. Pelo menos, essa é a designação que a maioria de meus colegas normalmente usaria para classificar o produto desenvolvido por mim e meus alunos em nosso laboratório no Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke. Em termos gerais, neurofisiologistas de sistemas neurais passam boa parte de suas vidas investigando os princípios fisiológicos que determinam a operação de vários circuitos neuronais, verdadeiras redes celulares formadas por nervos que emanam de centenas de bilhões de células que habitam o cérebro humano. Essas intricadas redes, cujo grau de complexidade e conectividade suplanta, por várias ordens de magnitude, qualquer outra rede elétrica, computacional, mecânica ou telefônica jamais criada por seres humanos, permitem que cada célula cerebral, ou neurônio, estabeleça contato direto e se comunique com centenas ou mesmo milhares de outras células cerebrais. Graças a sua morfologia particular, os neurônios são altamente especializados em receber e transmitir diminutas mensagens eletroquímicas através de contatos celulares, chamados sinapses, que medeiam a maioria das comunicações entre populações dessas células. É por meio dessas imensas redes neuronais altamente conectadas e de operação extremamente dinâmica, conhecidas pela alcunha de circuitos neurais, que o cérebro humano desempenha sua principal função: produzir uma enorme variedade de comportamentos especializados que coletivamente define aquilo a que costumamos nos referir, orgulhosamente, como “a natureza humana”.
Ao recrutar maciças ondas milivoltaicas de descargas elétricas, essas redes neuronais microscópicas são na verdade as únicas responsáveis pela geração de cada ato de pensamento, criação, destruição, descoberta, ocultação, comunicação, conquista, sedução, rendição, amor, ódio, felicidade, tristeza, solidariedade, egoísmo, introspecção e exultação jamais perpetrado por todo e qualquer um de nós, nossos ancestrais e progênie, ao longo de toda a existência da humanidade. Se a palavra milagre não tivesse sido apropriada indevidamente por outro ramo de negócios, acredito que a sociedade deveria licenciar o termo para uso exclusivo da neurociência ao relatar as maravilhas que brotam do trabalho rotineiro de nossos circuitos neurais.”


“Quando, no outono de 1984, as tradicionais águas de março começaram a cumprir o seu costumeiro ritual de escorrer torrencialmente dos céus tropicais, tal qual um pranto incontrolável, a grande maioria dos brasileiros tinha chegado ao limite do suportável. Depois de viver por vinte anos sob a opressiva sombra de uma ditadura militar que, emblematicamente, tomara o poder nas primeiras horas da data mundialmente conhecida como o dia dos mentirosos, milhões de habitantes desse país radiante decidiram tomar em suas próprias mãos a tarefa de resgatar o destino de sua querida nação. Por duas décadas, a ditadura dos generais brasileiros havia edificado um legado infame marcado única e exclusivamente pela incomparável e megalomaníaca incompetência, pela corrupção voraz e desenfreada e, acima de tudo, pela violência abominável e atroz contra aqueles que se opuseram frontalmente à ilegalidade de todos os seus atos.
No ano de 1979, graças a uma oposição popular crescente ao regime militar, o último general de quatro estrelas, em pleno gozo do delito de apropriação indébita do Palácio do Planalto em Brasília, não teve como evitar a concessão da tão almejada anistia política a todos os líderes, intelectuais, cientistas e cidadãos que haviam sido banidos ou se exilado voluntariamente do país, devido à perseguição institucional imposta pela ditadura. Esse mesmo último general déspota, cercado de seus (muitos) lacaios de plantão, havia também planejado, em algum esconderijo secreto, a sua peculiar estratégia paroquial para um retorno gradual e controlado do poder às mãos da sociedade civil. De acordo com esse plano, o primeiro passo seria dado com eleições para governadores dos estados em novembro de 1982.
Para o total dissabor daquele último general ditador, em novembro os partidos da oposição venceram as eleições nos principais estados do país, derrotando o único partido político, se é que se pode assim denominar tal aglomerado de parasitas, a apoiar a ditadura dos generais. Apenas um ano após essa vitória retumbante, todavia, a pequena amostra de democracia oferecida pelo regime militar já fora totalmente esquecida. Naquele momento épico de ousadia e catarse nacional, que para todo sempre ficará registrado na história popular desse país, brasileiros de todas as idades, cores, crenças e times de futebol, repentinamente, vislumbraram que não só lhes pertencia o direito, mas também os meios de atropelar os planos para “uma abertura gradual e controlada”, que significava pouco mais do que algumas migalhas de liberdade, e exigir o fim, o término, em suma, a completa aniquilação do aparato ditatorial em todas as suas formas, cores e sons.
Definido o objetivo, a estratégia seria bem diferente da escolhida pelos protagonistas da mentirosa quartelada de 1964; em vez de perpetrar-se outro triste e medíocre golpe de estado latino-americano, o povo brasileiro optou por despejar o último general trapalhão, para a sua anônima aposentadoria, através de eleições diretas para presidente. E foi assim que, virtualmente quase de lugar nenhum, um movimento nacional por eleições diretas para presidente do Brasil, imortalizado pelo lema “Diretas Já!”, foi lançado. Apropriadamente, para um movimento popular espontâneo, o primeiro comício pelas Diretas Já ocorreu na pequena, mas certamente arretada, cidade pernambucana de Abreu e Lima no dia 31 de março de 1983. Em novembro de 1983, uma multidão de pouco mais de 10 mil paulistanos se reuniu no primeiro comício das Diretas Já realizado na cidade de Adoniran Barbosa e Mário de Andrade, a São Paulo, ou Sampa para os mais íntimos. A partir daí, sem qualquer explicação, o país inteiro se incendiou, tomado pela febre de alta intensidade, conhecida apenas pelo refrão pronunciado por aqueles contaminados pelo vírus da libertação iminente:
Diretas Já! Era só o que se ouvia pelas ruas, pelos bares e nas praças de todo Brasil.
Dois meses depois, 25 de janeiro de 1984, no dia em que São Paulo celebrou o seu 430º aniversário de fundação, uma nova manifestação, dessa vez com mais de 200 mil pessoas, ocupara a praça da Sé para, a 400 mil mãos, compor uma serenata de apenas duas palavras ao último general de plantão, que comunicava a principal demanda da nação:
Diretas Já!
Numa questão de dias, sucessivos comícios formados por gigantescas e históricas multidões haviam ocorrido nas principais praças do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e outras capitais brasileiras. Com exceção do general de aluguel, todos os brasileiros passaram a exercitar o lento e penoso processo de conquistar a própria cidadania e construir uma nova nação, com escritura lavrada e firma reconhecida em cartório, como manda a tradição nacional.
No anoitecer do dia 16 de abril de 1984, mais de 1 milhão de pessoas procuravam encontrar, da melhor forma possível, uma maneira de chegar à enorme praça que cobre o vale central da cidade de São Paulo, para participar da maior manifestação popular de toda história brasileira. Em poucas horas daquele entardecer inesquecível, verdadeiros rios de gente – vestidos de verde e amarelo, o tradicional arco-íris brasileiro conhecido mundo afora –, inundaram cada milímetro quadrado do tradicional vale do Anhangabaú, muito perto da então humilde colina onde essa megalópole fora um dia fundada. Cada novo grupo, logo ao chegar ao centro do comício, juntava-se ao já mais do que familiar coral que continuava a repetir, incessantemente, o seu poema de duas palavras. A cada instante, aquele grito que vinha do íntimo de cada um de nós se transformava, de repente, numa verdadeira erupção vocal, espalhando-se, como uma daquelas tempestades de verão paulistano, pelos céus entrecortados pelos últimos raios do sol, que parecia querer ficar, só mais um pouquinho, entre nós, para também participar daquele momento. Que inveja o sol deve ter sentido da lua, que logo a seguir passou a ser nossa celestial companheira e testemunha daquele mar de vozes a repetir, sem perder a rima, o ritmo ou o foco.
Diretas Já, Diretas Já, Diretas Já!
Se você, caro leitor, nunca teve a oportunidade de participar de um coral formado por 1 milhão de vozes, eu certamente recomendo a experiência. Nada pode nos preparar para o som penetrante que nasce dessa sinfonia de anseios e desejos; e nada desse lado da Via Láctea fará você esquecer essa música, esse quase pranto, pois ela, como ele, carrega o tipo de som que entalha memórias para toda uma vida. Para enquanto durar o sempre de uma vida mortal.
Pressionado pelo fluxo crescente de pessoas, eu não tive alternativa a não ser escalar uma banca de jornais e, do alto do seu teto de zinco, pela primeira vez naquela noite, deleitar-me com uma visão panorâmica de toda aquela multidão que decidira conquistar plenamente o gigantesco vale, armada apenas com uma canção de dois verbetes. Para os praticamente dizimados índios Tupy-Guarani, a tribo nativa que ocupava aquela terra antes da chegada dos portugueses em 1500, o riacho que cortava aquele vale era conhecido como “o rio dos maus espíritos”. Não mais. Naquela noite emocionante, o único rio visível naquele vale era um poderoso Amazonas feito de gente. Nenhum espírito do mal ousaria aparecer no meio daquele verdadeiro oceano humano.”


“Enquanto o neurônio individual constitui tanto a unidade anatômica como o elemento básico de processamento de sinais do sistema nervoso, ele não é capaz, por si só, de gerar nenhum comportamento e, em última análise, nem sequer um pensamento. A verdadeira unidade funcional do sistema nervoso é formada por uma população de neurônios, também conhecida como grupamento ou rede neuronal. O mecanismo funcional no qual populações de neurônios, em vez de células únicas, são responsáveis pela informação necessária para a geração de comportamentos também é denominado, na literatura especializada, código neuronal distribuído.”


“Os primeiros relatos do fenômeno do membro fantasma datam de muitos séculos atrás. Na Idade Média, por exemplo, o folclore europeu glorificava a reposição de membros amputados em soldados. Uma dessas histórias mitológicas se referia a uma série de curas milagrosas, supostamente realizadas no porto de Aegea, na então província romana da Síria, no século IV. De acordo com a lenda, vários pacientes vítimas de amputações tinham tido seus braços ou pernas restaurados graças à intervenção angelical de dois jovens irmãos gêmeos que depois seriam canonizados pela Igreja Católica. Segundo os documentos da canonização, são Cosme e são Damião eram capazes de restaurar a sensação de uma perna amputada ao transplantar, miraculosamente, o membro de um morto no coto do paciente. Dizia a lenda que qualquer amputado que evocasse com fervor o nome desses santos poderia, uma vez mais, sentir a presença do membro perdido.
No século XVI, o fenômeno do membro fantasma finalmente saiu do domínio da religião para se alojar nos tratados médicos. Quando o cirurgião militar francês Ambroise Paré (c. 1510-90) descreveu as técnicas por ele introduzidas para melhorar a sobrevida de milhares de soldados vítimas de amputações, resultantes dos infinitos conflitos armados deflagrados em solo europeu, ele dedicou especial atenção à descrição de múltiplos casos de membros fantasmas entre os soldados que tinham a rara boa-aventurança de sobreviver à carnificina inútil desses campos de batalha. Embora acreditasse no relato de seus pacientes, Paré provavelmente ficou com receio de que os colegas duvidassem de sua própria sanidade mental depois de tratar tantos casos como esses. Isso talvez explique por que o emérito cirurgião decidiu publicar seus achados clínicos num tratado em francês, e não em latim, a língua da ciência europeia da época. Certamente, tal escolha não favoreceu a difusão deles, uma vez que o fenômeno permaneceu negligenciado nos três séculos seguintes.
A investigação clínica moderna das causas possíveis do membro fantasma, todavia, teve de aguardar a ocorrência de uma batalha ainda mais sangrenta. Dias depois da carnificina que entrou para a história como a Batalha de Gettysburg, o neurologista americano Silas Weir Mitchell, que servia no exército do presidente Abraham Lincoln, documentou dezenas de casos de membros fantasmas, a maioria entre os soldados confederados. Sobreviventes da infame “carga de Pickett”, um maciço assalto frontal do exército sulista, autorizado pelo legendário General Robert Lee e comandando pelo flamboyant Major General George Pickett, contra as muito mais numerosas e bem armadas tropas da União, alojadas no topo de um morro, macabramente conhecido como “Topo do Cemitério”, esses veteranos confederados agora se sentiam compelidos a reviver sua participação no que foi o mais mortal dos eventos do dia 3 de julho de 1863. Confinados em barracas médicas, eles começavam a experimentar o terror de sentir pernas invisíveis tentando levá-los de volta aos matagais onde haviam sido alvejados. Testemunha do sofrimento desses soldados desesperados, Mitchell batizou a coleção de sintomas que os assolava de “síndrome do membro fantasma”.
Entrevistas detalhadas com milhares de amputados foram publicadas desde o final da guerra civil americana. Esses casos sugerem que a presença de dor intensa antes do episódio que leva à amputação de um membro, devido a uma fratura severa, uma úlcera profunda, uma queimadura extensa ou gangrena disseminada, é o maior fator de risco associado ao desenvolvimento de um membro fantasma doloroso. Mais de 70% dos pacientes reportam que seu membro fantasma produz algum tipo de sensação dolorosa depois de uma amputação cirúrgica eletiva; em 60% desses pacientes, uma dor pulsante e incessante, numa parte do corpo que não existe mais, persiste para o resto da vida. Como mencionado acima, no caso dos soldados confederados, membros fantasmas frequentemente realizam movimentos fantasmas. Em enfermarias com grandes números de amputados é comum ouvir gritos de pacientes desesperados com a súbita percepção de que suas pernas inexistentes estão prestes a pular da cama e sair correndo por conta própria! Em um terço desses pacientes, o membro amputado assume postura anormal, e extremamente dolorosa, permanecendo assim por meses ou mesmo anos a fio. Essa postura pode lembrar a sensação de manter o braço imerso em gelo, ou permanentemente torcido numa configuração espiral, ou alojado nas costas numa posição jamais experimentada antes.
Pesquisas revelam que a sensação de membro fantasma pode se manifestar após a amputação de qualquer parte do corpo, e não somente de pernas e braços. Pacientes que perderam uma mama, dentes, genitais e mesmo órgãos internos podem experimentar sua presença após o procedimento ou evento que resultou em sua remoção. Mulheres que passaram por histerectomia reportam cólicas menstruais fantasmas, bem como contrações uterinas semelhantes às causadas pela dor de um parto. Curiosamente, travestis masculinos que optam por realizar cirurgia de mudança de sexo parecem não experimentar um “pênis fantasma”, sugerindo que, para seus cérebros, esses homens já viviam num corpo feminino antes da operação.”


     “Afora a memória, a habilidade de aprender é o maior presente concedido a cada um de nós por nosso cérebro de primata.”

Um comentário:

Doney disse...

O livro é bem escrito, porém, destaco que o assunto é extremamente específico (pesquisa neurológica), portanto, me pareceu pouco recomendável ao público leigo - como eu. :)