domingo, 29 de dezembro de 2013

Pesadelo Refrigerado – Henry Miller

Editora: Francis
ISBN: 978-85-8936-268-9
Tradução: José Rubens Siqueira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 320
Sinopse: Publicado originalmente em 1945, este livro é um relato das viagens de Henry Miller pelos Estados Unidos. Miller fez essas viagens entre 1940 e 1945, depois de uma longa estada na Europa. O autor comenta o cenário do país, bem como o ânimo e o temperamento das pessoas, e destaca, entre outras coisas, o contraste entre os ideais dos fundadores da nação com o amor contemporâneo dos americanos em ganhar dinheiro.



“Os maiores homens do mundo morreram desconhecidos. Os budas e cristos que conhecemos não passam de heróis de segunda linha em comparação com os maiores nomes de que o mundo nada sabe. Centenas desses heróis desconhecidos viveram em todos os países, trabalhando em silêncio. Em silêncio viveram e em silêncio morreram; e a seu tempo seus pensamentos encontraram expressão em budas ou cristos; e estes últimos é que ficaram conhecidos para nós. Os homens mais elevados não procuram construir um nome nem buscam fama por seu conhecimento. Deixam suas ideias para o mundo; não reclamam nada para si próprios e não estabelecem escolas nem sistemas em seus nomes.” (Swami Vivekananda)



 “A América não é lugar para artistas: ser artista é ser um leproso moral, um desajustado econômico, uma obrigação social. Um porco alimentado a milho tem vida melhor que um escritor criativo, um pintor ou um músico.”


“Estamos acostumados a pensar em nós mesmos (estadunidenses) como um povo emancipado. Dizemos que somos democráticos, amantes da liberdade, livres de preconceitos e ódio. Aqui é o cadinho, o sítio do grande experimento humano. Belas palavras, cheias de sentimento nobre e idealista. Na verdade, somos uma turba vulgar e opressiva cujas paixões são facilmente mobilizadas por demagogos, jornalistas, charlatães religiosos, agitadores e que tais. Chamar isto aqui de sociedade de povos livres é uma blasfêmia. O que temos a oferecer ao mundo além da superabundante pilhagem que com total indiferença arrancamos da terra sob a maníaca ilusão de que essa atividade insana representa progresso e iluminação? A terra da oportunidade transformou-se em terra do suor e do esforço sem sentido. O objeto de nosso empenho há muito foi esquecido.”


“Os trabalhadores do mundo podem um dia, se pararem de dar ouvidos a seus fanáticos líderes, organizar uma irmandade humana. Mas os homens não podem ser irmãos sem primeiro se tornar pares, isto é, iguais em um sentido nobre. O que impede os homens de se unir como irmãos é sua própria e abjeta inadequação. Escravos não podem se unir; covardes não podem se unir; ignorantes não podem se unir. Só obedecendo aos nossos mais elevados impulsos podemos nos unir. O impulso de se superar tem de ser instintivo, não teórico, nem meramente acreditado. A menos que nos esforcemos para entender as verdades que estão em nós, continuaremos sempre fracassando.”


“Mas não, no mundo industrial tudo é sujo, degradado, aviltado. A coisa chegou a tal ponto que, quando se vê a bandeira ousada e orgulhosamente exposta, sente-se o cheiro de rato em algum lugar. A bandeira tornou-se o manto que esconde a iniquidade. Temos sempre duas bandeiras americanas: uma para os ricos e outra para os pobres. Quando os ricos a desfraldam quer dizer que as coisas estão sob controle; quando os pobres a desfraldam significa perigo, revolução, anarquia. Em menos de duzentos anos, a terra da liberdade, a pátria dos homens livres, refúgio dos oprimidos, alterou de tal forma o sentido das Listras e Estrelas que, hoje, quando um homem ou uma mulher consegue escapar dos horrores da (2ª guerra na) Europa, quando finalmente se vê diante do balcão debaixo de nosso glorioso emblema nacional, a primeira pergunta que se faz para ele é: “Quanto dinheiro você tem?”. Se você não tem dinheiro, mas apenas amor pela liberdade, apenas uma prece por misericórdia nos lábios, é excluído, devolvido para o matadouro, segregado como um leproso. É nessa amarga caricatura que os descendentes de nossos patriarcas amantes da liberdade transformam nosso emblema nacional.
Tudo é caricatural aqui. Pego um avião para ir ver meu pai em seu leito de morte e lá em cima, nas nuvens, em meio a uma furiosa tempestade, escuto dois homens atrás de mim discutindo como fechar um grande negócio, um grande negócio de caixas de papelão, nada mais, nada menos. A aeromoça, que foi treinada para se portar como mãe, enfermeira, amante, cozinheira, serva, nunca desarrumada, nunca com os cachos do cabelo despenteados, nunca com um sinal de fadiga ou decepção ou tristeza ou solidão, a aeromoça pousa a mão branca como lírio na testa de um dos vendedores da caixa de papelão e, com voz de anjo da guarda, diz: “Está cansado hoje? com dor de cabeça? Gostaria de uma aspirina?”
Estamos acima das nuvens e ela desempenha sua performance como uma foca amestrada. Quando o avião dá um tranco de repente, ela cai e revela um tentador par de coxas. Os dois vendedores falam de botões agora, onde comprar barato, como vender caro. Outro homem, um banqueiro cansado, lê notícias da guerra. Há uma grande greve acontecendo em algum lugar – várias greves, na verdade. Vamos construir uma frota de navios mercantes com a ajuda da Inglaterra – em dezembro que vem. A tempestade ruge. A moça cai de novo – está cheia de marcas roxas. Mas levanta-se sorrindo, servindo café e chicletes, pousando a mão branca como lírio na testa de alguém, perguntando se está tristinho, cansadinho talvez. Pergunto se ela gosta de seu trabalho. Como resposta, diz: “Melhor que ser enfermeira formada”. Os vendedores estão avaliando seus pontos; falam dela como se fosse um bem público. Eles compram e vendem, compram e vendem. Para isso precisam dos melhores quartos nos melhores hotéis, dos aviões mais rápidos e velozes, dos casacos mais grossos e quentes, das bolsas maiores e mais gordas. Precisamos de suas caixas de papelão, de seus botões, de suas peles sintéticas, de seus produtos de borracha, de suas meias, seus isto e aquilo de plástico. Precisamos do banqueiro, de seu gênio em pegar nosso dinheiro e enriquecer com ele. Do homem dos seguros, de suas apólices, de sua conversa sobre segurança, de dividendos – precisamos dele também. Precisamos mesmo? Não acredito que precisemos de nenhum desses abutres. Não vejo por que precisamos de nenhuma dessas cidades, dessas bocas do inferno em que estive. Não acho que precisemos de uma frota para dois oceanos também. Estava em Detroit algumas noites atrás. Vi a Linha Mannerheim no cinema. Vi como os russos a pulverizaram. Aprendi a lição. Você aprendeu? Diga-me: o que o homem é capaz de construir para se proteger que outros homens não possam destruir? O que estamos tentando defender? Só aquilo que é velho, inútil, morto, indefensável. Toda defesa é uma provocação ao ataque. Por que não se render? Por que não entregar – entregar tudo? É tão prático, tão absolutamente eficiente e desconcertante. Aqui estamos, somos o povo dos Estados Unidos: o maior povo da terra, pensamos. Temos tudo – tudo o que é preciso para deixar as pessoas felizes. Temos terra, água, céu e tudo o que vem com isso. Podíamos nos tornar o grande exemplo rutilante para o mundo; podíamos irradiar paz, alegria, poder, benevolência. Mas existem fantasmas por toda parte, fantasmas que parece que não conseguimos apanhar. Não estamos felizes, nem contentes, nem radiantes, nem destemidos.”


“Almas não crescem em fábricas. Almas são mortas em fábricas – até mesmo as mesquinhas.”


(...) “O sentimento inicial de atração e admiração pelo formidável poder da jovem república havia desaparecido. Vivekananda quase de imediato se sentiu vítima da brutalidade, da desumanidade, da pequenez de espírito, do estreito fanatismo, da monumental ignorância, da esmagadora incompreensão, tão franco e seguro de si quanto todos os que pensavam, que acreditavam, que viam a vida de um jeito diferente da nação protótipo da espécie humana... Então ele não teve mais paciência. Não fez nada. Ele estigmatizou os vícios e crimes da civilização ocidental com suas características de violência, pilhagem e destruição.
Uma vez, quando tinha de falar em Boston sobre uma bela questão religiosa que lhe era particularmente querida (Ramakrishna), sentiu tal repulsa ao ver a plateia, a multidão artificial e cruel de homens de negócios e do mundo, que se recusou a entregar a eles a chave de seu santuário e, mudando de assunto bruscamente, investiu furiosamente contra a civilização representada por aqueles lobos e raposas. O escândalo foi terrível. Centenas de pessoas saíram da sala ruidosamente e a imprensa se enfureceu. Ele foi especialmente amargo contra a falsa cristandade e a hipocrisia religiosa: ‘com toda a sua empáfia e orgulho, onde a cristandade foi bem-sucedida sem a espada? A sua é uma religião pregada em nome da luxúria. É tudo hipocrisia o que tenho ouvido neste país. Toda essa prosperidade, tudo isso de Cristo! Os que apelam para Cristo não se importam com nada além de acumular riquezas! Cristo não encontraria entre vocês nem uma pedra onde repousar a cabeça’...”


“O parque americano é um vácuo circunscrito cheio de parvos catalépticos. Assim como a arquitetura do lar americano, não existe nem um grama de personalidade no parque. Ele é, como o chamam corretamente, “apenas um pouco de espaço para respirar”, um oásis em meio ao fedor de asfalto, aos vapores químicos e à gasolina velha.
Fede a tuberculose, halitose, veias varicosas, paranoia, falsidade, onanismo e ocultismo. Todos os desajustados, todos os inadequados, os acabados e os frustrados da América parecem acabar ali. É o pântano emocional que se tem de atravessar a vau para chegar aos Everglades. Quinze anos atrás, quando me sentei nesse parque pela primeira vez, atribuí meus sentimentos e impressões ao fato de estar deprimido e acabado, com fome e sem um lugar para dormir. Ao retornar ali, fiquei ainda mais deprimido. Nada havia mudado. Os bancos estavam sujos como antes com os detritos da humanidade – não do tipo deprimido de Londres ou de Nova York, não do tipo pitoresco que pontilha os quais de Paris, mas aquela variedade americana balofa e suja que sai da respeitável classe média: claros globos de catarro, por assim dizer. Do tipo que tenta elevar a mente mesmo quando não resta mente nenhuma. Os detritos e refugos que boiam na água do esgoto para dentro e para fora das Igrejas de Ciência Cristã, dos tabernáculos rosa-cruzes, dos salões de astrologia, das clínicas gratuitas, das reuniões evangélicas, dos birôs de caridade, das agências de empregos, das pensões baratas e por aí vai. Do tipo que pode estar lendo o Bhagavad Gita com a barriga vazia ou fazendo flexões de braço no armário de roupas. O tipo americano por excelência, sempre pronto a acreditar no que está escrito nos jornais, sempre à espera do Messias. Nem um pingo de dignidade lhe resta. O verme branco se retorcendo no torno da respeitabilidade! (...)
Talvez meus desejos sejam humanos demais, tangíveis demais, imediatos demais. A pessoa tem de ser paciente, tem de ser capaz de esperar não milhares de anos, mas milhões de anos. Tem de ser capaz de sobreviver ao sol e à lua, sobreviver a Deus e à ideia de Deus, sobrepujar o cosmos, superar a molécula, o átomo, o elétron. Tem de se sentar nesses parques como numa privada pública, cumprindo suas funções – como a vaca de costelas na encosta vermelha. Não pense na América enquanto tal, na América per se, na América ad astra: pense nos céus sem atmosfera, nos canais sem água, nos habitantes sem roupas, nas palavras sem ideias, na vida sem morte, em algo que continue infindavelmente e sem nome, sem pé nem cabeça, sem ter sentido, fazendo grande sentido quando você perde a obsessão com tempo e espaço, com destino, causalidade, lógica, entropia, aniquilação, Nirvana e Maya.”


“A prisão, claro, é a escola de crime par excellence. Enquanto não passa por essa escola o sujeito é apenas um amador. Na prisão estabelecem-se laços de amizade, muitas vezes por causa de uma ninharia, de uma palavra gentil, de um olhar, de um osso. Depois, lá fora, no mundo, a pessoa fará qualquer coisa para provar sua lealdade. Mesmo que o sujeito deseje de todo coração se endireitar, quando chega o momento crítico, quando chega o impasse entre acreditar no mundo e acreditar no amigo, a pessoa escolhe este último. Lá se tem um gostinho do mundo; aprende-se que não é possível esperar justiça ou misericórdia. Mas nunca se pode esquecer um ato de generosidade num momento de grande necessidade. Explodir uma prisão? Mas é claro, se isso vai ajudar seu amigo. Mas também pode significar prisão perpétua ou morte na cadeira elétrica! E daí? Um favor merece outro. Você foi humilhado, torturado, reduzido ao nível de fera selvagem. Quem ligou para isso? Ninguém. Ninguém lá de fora, não, nem mesmo o próprio Deus, sabe o que um homem sofre do lado de dentro. Não há linguagem que possa descrever isso. Está além da compreensão humana. É uma coisa tão vasta, tão grande, tão profunda que até os anjos, com todo o seu poder de compreensão e todo o seu poder de locomoção, jamais poderiam explorar a totalidade disso. Não, quando um amigo pede, você tem de atender. Tem de fazer por ele o que nem Deus faria. É a lei. Senão você desmorona, vai latir de noite, feito um cachorro.”


“Acho que não existe na América região como o Sul para se ter uma boa conversa. Aqui os homens conversam, em vez de discutir e disputar. Imagino que aqui existam mais personagens excêntricos, bizarros, do que em qualquer outra parte dos Estados Unidos. O Sul gera caráter, não intelectualismo estéril. Em certos indivíduos, o fato de estarem isolados do mundo tende a produzir um florescimento forçado; eles irradiam força e magnetismo, sua fala é cintilante e estimulante. Têm uma vida sossegada e rica, toda própria, em harmonia com seu meio ambiente e livre das mesquinhas ambições e rivalidades do homem do mundo. Geralmente não assentam sem uma batalha, pois a maior parte deles possui talentos e energias insuspeitadas pelo invasor curioso. O sulista de verdade, em minha opinião, é mais dotado por natureza, muito mais aberto, mais dinâmico, mais inventivo e sem dúvida mais cheio de gosto pela vida do que o homem do Norte ou do Oeste. Quando ele escolhe se retirar do mundo, não é por derrotismo, mas porque, assim como no caso dos franceses e chineses, o próprio amor pela vida lhes instila uma sabedoria que se expressa na renúncia. A adaptação mais difícil que um expatriado tem de fazer ao voltar para sua terra natal se encontra nesse âmbito de conversação. A impressão que se tem, de início, é que não há conversa. Nós não conversamos – nós nos batemos uns aos outros com fatos e teorias recolhidos em leituras superficiais de jornais, revistas e resenhas. Conversar é algo pessoal, e, se tem algum valor, esse valor deve ser criativo. Tive de vir ao Sul para ouvir essa conversa. Tive de conhecer homens cujos nomes são desconhecidos, homens que vivem em locais inacessíveis, para poder gozar o que chamo de uma conversa verdadeira.”


“Na França, os velhos, principalmente os de origem camponesa, são uma alegria e uma inspiração a se imitar. São como grandes árvores que nenhuma tempestade consegue derrubar; irradiam paz, serenidade e sabedoria. Na América, os velhos são, em geral, uma tristeza, principalmente os bem-sucedidos que prolongam sua existência muito além dos termos naturais por meio de respiração artificial, por assim dizer. São horríveis exemplos vivos da arte do embalsamador, cadáveres semoventes manipulados por um séquito de atendentes muito bem pagos que são uma vergonha para a sua profissão.”


“Estamos quase acordando quando sonhamos que estamos sonhando.”


“Mas o homem branco americano (sem falar do indígena, do negro, do mexicano) não tem nem um fantasma de chance. Se ele tem qualquer talento, está condenado a vê-lo esmagado de uma forma ou de outra. O estilo americano é seduzir o homem por meio de propina e transformá-lo num prostituto. Ou então ignorá-lo, deixar que morra de fome até se submeter, e reduzi-lo a um picareta. Não são os oceanos que nos isolam do mundo – é o jeito americano de olhar as coisas. Nada se realiza aqui a não ser projetos utilitários. Pode-se viajar milhares de quilômetros absolutamente sem ter noção da existência do mundo da arte. Aprende-se a respeito de cerveja, leite condensado, produtos de borracha, comida enlatada, colchões infláveis etc., mas não se vê nem se ouve nada a respeito das obras-primas da arte. Para mim, parece nada menos que um milagre os jovens da América jamais ouvirem nomes como Picasso, Céline, Giotto ou que tais. Eles têm de lutar como o diabo para ver a obra dos mestres europeus, e como podem, quando se veem face a face com a obra deles, saber ou entender o que produziu aquilo? Que relação tem aquilo com eles? Se for um ser sensível, quando entrar em contato com a obra madura dos europeus, já estará meio enlouquecido. A maioria dos jovens de talento que encontrei neste país dá a impressão de ser um tanto demente. Por que não daria? Eles estão vivendo no meio de gorilas espirituais, vivendo com maníacos por comida e bebida, comerciantes de sucesso, inovadores de aparelhinhos, mastins da publicidade. Meu Deus, se eu fosse jovem hoje, se me visse diante de um mundo como este que criamos, seria capaz de explodir os miolos. Ou talvez, como Sócrates, eu entrasse no mercado e vertesse ao solo minha semente. Decerto nunca pensaria em escrever um livro, pintar um quadro ou compor uma peça musical. Para quem? Quem além de um punhado de almas desesperadas é capaz de reconhecer uma obra de arte? O que se pode fazer consigo mesmo se a própria vida é dedicada à beleza? Quem está disposto a encarar a perspectiva de passar o resto da vida em uma camisa-de-força?”


“Até agora não tivemos censura a música, embora me lembre de Huneker ter escrito em algum lugar que era surpreendente não termos censurado certas obras-primas. Quanto a Varèse, honestamente acredito que, se lhe dessem espaço, ele seria não apenas censurado, mas apedrejado. Por quê? Pela simples razão de que sua música é diferente. Esteticamente, somos talvez o povo mais conservador do mundo. Precisamos estar completamente bêbados para aceitar alguma coisa. Nossa educação é tão absoluta – e tediosa – que somos incapazes de gostar de alguma coisa nova, alguma coisa diferente, enquanto não nos explicarem do que se trata. Não confiamos nos cinco sentidos; dependemos dos nossos críticos e educadores, todos eles fracassos no reino da criação.
Em resumo, o cego conduz o cego. É o jeito democrático. E assim o futuro, que é sempre iminente, acaba absorvido e frustrado, jogado para escanteio, sufocado, mutilado, às vezes aniquilado, criando a ilusão familiar de um mundo einsteiniano que não é nem carne nem peixe, um mundo de curvas finitas que levam ao túmulo ou ao asilo de pobres, ou ao hospício, ou ao campo de concentração, ou às cálidas e protetoras dobras do Partido Democrata-Republicano. E assim surgem loucos que tentam restaurar a lei e a ordem com o machado. Quando milhões de vidas se perderem, quando finalmente chegarmos a elas e as exterminarmos a machadadas, poderemos respirar com um pouco mais de conforto em nossas celas acolchoadas.”


“A música é um belo ópio, se você não a levar muito a sério.”


“Tabus, embora não se admita, são potentes. O que as pessoas temem? Temem o que não entendem. Sob esse aspecto, o homem civilizado não é nada diferente do selvagem. O novo sempre traz consigo a sensação de violação, de sacrilégio. O que está morto é sagrado; o que é novo, isto é, diferente, é mau, perigoso ou subversivo.”


“Desde que resolvi vender o carro, ele tem andado maravilhosamente. A maldita máquina se comporta como uma mulher namoradeira.”


“Na noite anterior, quando dava meu passeio costumeiro pela beira do Canyon, a visão de uma folha de quadrinhos (o que me chamou a atenção foi o Príncipe Valente) caída na beira do abismo despertou em mim curiosas reflexões. O que podia parecer mais inútil, estéril e insignificante do que uma folha de quadrinhos de domingo diante de um espetáculo tão vasto e misterioso quanto o Grand Canyon? Lá estava ela, descuidadamente jogada fora por um leitor indiferente, pronta a ser levada pelo menor vento e extinta. Por trás dessa folha colorida com espalhafato, que exigiu para sua criação as energias de homens incontáveis, variados recursos da natureza, os tênues desejos de crianças superalimentadas, estava toda a história da culminação de nossa sociedade ocidental. Para mim é difícil fazer qualquer distinção de valor entre uma folha de quadrinhos, um navio de guerra, um dínamo, uma estação de radio-transmissão. Estão todos no mesmo plano, são todos manifestações de uma energia inquieta, descontrolada, de impermanência, de morte e dissolução. Olhando o Canyon, os grandes anfiteatros, coliseus, templos que a natureza escavou ao longo de incalculáveis períodos de tempo em diferentes ordens de rochas, perguntei-me por que efetivamente aquela vasta criação não podia ser obra do homem. Por que, na América, as grandes obras de arte são todas obras da natureza? Havia arranha-céus, com certeza, e diques, pontes, estradas de concreto. Todos utilitários. Em nenhum lugar da América havia nada comparável às catedrais da Europa, aos templos da Ásia e do Egito – monumentos duradouros criados pela fé, pelo amor, pela paixão. Nenhuma exaltação, nenhum fervor, nenhum zelo – a não ser para aumentar os negócios, facilitar o transporte, aumentar o domínio da impiedosa exploração. Resultado disso? Um povo em rápida decadência, um terço na pobreza, os mais inteligentes e influentes cometendo suicídio racial, os pobres coitados se tornando mais e mais desregrados, mais e mais criminosos, mais degenerados e degradados sob todos os aspectos. Um punhado de políticos indiferentes, ambiciosos tentando convencer a multidão de que este é o último refúgio da civilização, Deus salve os indicadores!
Os homens do futuro vão olhar as relíquias desta era como nós olhamos os artefatos da Idade da Pedra. Somos dinossauros mentais. Arrastamo-nos com pés pesados, cabeça entorpecida, sem imaginação em meio a milagres aos quais nos tornamos impermeáveis. Todas as nossas invenções e descobertas levam à aniquilação.”

domingo, 22 de dezembro de 2013

Deus e o Estado – Mikhail Bakunin

Editora: Domínio Público

Opinião: ★★☆☆☆

Tradução: Plínio Augusto Coelho

Páginas: 132

Sinopse: O que é a autoridade? É a força inevitável das leis naturais que se manifestam no encadeamento e na sucessão fatal dos fenômenos do mundo físico e do mundo social? Efetivamente, contra estas leis, a revolta é não somente proibida, é também impossível. Podemos conhecê-las mal, ou ainda não conhecê-las, mas não podemos desobedecê-las porque elas constituem a base e as próprias condições de nossa existência: elas nos envolvem, nos penetram, regulam todos os nossos movimentos, pensamentos e atos; mesmo quando pensamos desobedecê-las, não fazemos outra coisa que manifestar sua onipotência.



 

“Ouvi dizer que a necessidade de ar, como sensação irresistível, é mais intensa que a sede de água. Só por alguns minutos, garanto. Passados esses minutos, a gente morre e o desconforto da asfixia desaparece. Ao passo que a sede é um negócio demorado. Veja bem: o Cristo na Cruz morreu sufocado, mas a única coisa de que Ele se queixou foi de sede. Se a sede pode ser tão insuportável a ponto de o próprio Deus encarnado se queixar dela, imagine o efeito que exerce sobre um ser humano comum.”

 

 

“Os fatos têm primazia sobre as ideias.”

 

 

“A Bíblia, que é um livro muito interessante, e aqui e ali muito profundo, quando o consideramos como uma das mais antigas manifestações da sabedoria e da fantasia humanas, exprime esta verdade, de maneira muito ingénua, em seu mito do pecado original. Jeová, que, de todos os bons deuses adorados pelos homens, foi certamente o mais ciumento, o mais vaidoso, o mais feroz, o mais injusto, o mais sanguinário, o mais despótico e o maior inimigo da dignidade e da liberdade humanas, Jeová acabava de criar Adão e Eva, não se sabe por qual capricho, talvez para ter novos escravos. Ele pôs generosamente à disposição deles toda a terra, com todos os seus frutos e todos os seus animais, e impôs um único limite a este completo gozo: proibiu-os expressamente de tocar os frutos da árvore de ciência. Ele queria, pois, que o homem, privado de toda consciência de si mesmo, permanecesse um eterno animal, sempre de quatro patas diante do Deus “vivo”, seu criador e seu senhor. Mas eis que chega Satã, o eterno revoltado, o primeiro livre-pensador e o emancipador dos mundos! Ele faz o homem se envergonhar de sua ignorância e de sua obediência bestiais; ele o emancipa, imprime em sua fronte a marca da liberdade e da humanidade, levando-o a desobedecer e a provar do fruto da ciência.

Conhece-se o resto. O bom Deus, cuja presciência, constituindo uma das divinas faculdades, deveria tê-lo advertido do que aconteceria, pôs-se em terrível e ridículo furor: amaldiçoou Satã, o homem e o mundo criados por ele próprio, ferindo-se, por assim dizer, em sua própria criação, como fazem as crianças quando se põem em cólera; e não contente em atingir nossos ancestrais, naquele momento ele os amaldiçoou em todas as suas gerações futuras, inocentes do crime cometido por seus ancestrais. Nossos teólogos católicos e protestantes acham isto muito profundo e justo, precisamente porque é monstruosamente iníquo e absurdo. Depois, lembrando-se de que ele não era somente um Deus de vingança e cólera, mais ainda, um Deus de amor, após ter atormentado a existência de alguns bilhões de pobres seres humanos e tê-los condenado a um eterno inferno, sentiu piedade e para salvá-los, para reconciliar seu amor eterno e divino com sua cólera eterna e divina, sempre ávida de vítimas e de sangue, ele enviou ao mundo, como uma vítima expiatória, seu filho único, a fim de que ele fosse morto pelos homens. Isto é denominado mistério da Redenção, base de todas as religiões cristãs.”

 

 

“Esmagado por seu trabalho quotidiano, privado de lazer, de comércio intelectual, de leitura, enfim, de quase todos os meios e de uma boa parte dos estímulos que desenvolvem a reflexão nos homens, o povo aceita, na maioria das vezes, sem crítica e em bloco, as tradições religiosas.”

 

 

“Deus sendo tudo, o mundo real e o homem não são nada. Deus sendo a verdade, a justiça, o bem, o belo, a força e a vida, o homem é a mentira, a iniquidade, o mal, a feiura, a impotência e a morte. Deus sendo o senhor, o homem é o escravo. (...)

Eles dizem de uma só vez: Deus é a liberdade do homem, Deus é a dignidade, a justiça, a igualdade, a fraternidade, a prosperidade dos homens, sem se preocupar com a lógica fatal, em virtude da qual, se Deus existe, ele é necessariamente o senhor eterno, supremo, absoluto, e se este senhor existe, o homem é escravo; se ele é escravo, não há justiça, nem igualdade, nem fraternidade, nem prosperidade possível. De nada adiantará, contrariamente ao bom senso e a todas as experiências da história, eles representarem seu Deus animado do mais doce amor pela liberdade humana: um senhor, por mais que ele faça e por mais liberal que queira se mostrar, jamais deixa de ser, por isso, um senhor. Sua existência implica necessariamente a escravidão de tudo o que se encontra debaixo dele. Assim, se Deus existisse, só haveria para ele um único meio de servir à liberdade humana; seria o de cessar de existir.”

 

 

“Amoroso e ciumento da liberdade humana e considerando-a como a condição absoluta de tudo o que adoramos e respeitamos na humanidade, inverto a frase de Voltaire* e digo que, se Deus existisse, seria preciso aboli-lo.”

*: “Se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”.

 

 

“Numa palavra, rejeitamos toda legislação, toda autoridade e toda influência privilegiada, titulada, oficial e legal, mesmo emanada do sufrágio universal, convencido de que ela só poderia existir em proveito de uma minoria dominante e exploradora, contra os interesses da imensa maioria subjugada.

Eis o sentido no qual somos realmente anarquistas.”

 

 

“Proclamar como divino tudo o que se encontra de grande, de justo, de real, de belo, na humanidade, é reconhecer implicitamente que a humanidade, por si própria, teria sido incapaz de produzi-lo; isto significa dizer que abandonada a si própria, sua própria natureza é miserável, iníqua, vil e feia. Eis-nos de volta à essência de toda religião, isto é, à difamação da humanidade pela maior glória da divindade.”

 

 

“O Estado não se chamará mais monarquia, chamar-se-á república, mas nem por isso deixará de ser Estado, isto é, uma tutela oficial e regularmente estabelecida por uma minoria de homens competentes, gênios, homens de talento ou de virtude, que vigiarão e dirigirão a conduta desta grande, incorrigível e terrível criança, o povo. Os professores da Escola e os funcionários do Estado chamar-se-ão republicanos; mas não deixarão de ser menos tutores, pastores, e o povo permanecerá o que foi eternamente até agora: um rebanho. Os tosquiados que se cuidem, pois onde há rebanho há necessariamente pastores para tosquiá-lo e comê-lo.

O povo, neste sistema, será eterno estudante e pupilo. Apesar de sua soberania totalmente fictícia, ele continuará a servir de instrumento a pensamentos e vontades, e consequentemente também a interesses que não serão os seus. Entre esta situação e o que chamamos de liberdade, a única verdadeira liberdade, há um abismo. Será sob novas formas, a antiga opressão e a antiga escravidão; e onde há escravidão, há miséria, embrutecimento, a verdadeira materialização da sociedade, tanto das classes privilegiadas quanto das massas.”

 

 

“A força do sentimento coletivo ou do espírito público já é muito séria hoje. Os homens com maior tendência a cometer crimes raramente ousam desafiá-la, enfrentá-la abertamente. Eles procurarão enganá-la, mas evitarão ofendê-la, a menos que se sintam apoiados por uma minoria qualquer. Nenhum homem, por mais possante que se imagine, jamais terá força para suportar o desprezo unânime da sociedade, ninguém poderia viver sem sentir-se apoiado pelo consentimento e pela estima, ao menos por certa parte desta sociedade. É preciso que um homem seja levado por uma imensa e bem sincera convicção, para que encontre coragem de opinar e de marchar contra todos, e nunca um homem egoísta, depravado e covarde terá esta coragem.”

 

 

“Ao nos falarem de Deus, eles creem, eles querem nos educar, nos emancipar, nos enobrecer e, ao contrário, eles nos esmagam e nos aviltam. Com o nome de Deus, eles imaginam poder estabelecer a fraternidade entre os homens, e, ao contrário, criam o orgulho, o desprezo; semeiam a discórdia, o ódio, a guerra; fundam a escravidão. Isto porque, com Deus, vêm os diferentes graus de inspiração divina; a humanidade se divide em homens muito inspirados, menos inspirados, não inspirados. Todos são igualmente nulos diante de Deus, é verdade; mas comparados uns aos outros, uns são maiores do que os outros; não somente pelo fato, o que não seria nada, visto que uma desigualdade de fato se perde por si mesma na coletividade, quando ela não se pode agarrar a nenhuma ficção ou instituição legal; mas pelo direito divino da inspiração: o que constitui logo em seguida uma desigualdade fixa, constante, petrificada. Os mais inspirados devem ser escutados e obedecidos pelos menos inspirados, pelos não inspirados. Eis o princípio da autoridade bem estabelecido, e com ele as duas instituições fundamentais da escravidão: a Igreja e o Estado.”

 

 

“Até o presente momento toda a história humana nada mais foi senão uma imolação perpétua e sangrenta de milhões de pobres seres humanos a uma abstração impiedosa qualquer: Deus, Pátria, poder do Estado, honra nacional, direitos históricos, liberdade política, bem público. Tal foi até agora o movimento natural, espontâneo e fatal das sociedades humanas. Nada podemos fazer para mudar isso, devemos suportá-lo em relação ao passado, como suportamos todas as fatalidades atuais. Deve-se acreditar que esta era a única via possível para a educação da espécie humana. Não devemos nos enganar: mesmo procurando informar amplamente sobre os artifícios maquiavélicos das classes governamentais, devemos reconhecer que nenhuma minoria teria sido bastante poderosa para impor todos estes horríveis sacrifícios às massas, se não tivesse havido, nelas mesmas, um movimento vertiginoso, espontâneo, levando-as a se sacrificarem sempre, ora a uma, ora a outra destas abstrações devoradoras que, vampiros da história, sempre se nutriram de sangue humano.”

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

As aventuras de Pi, de Yann Martel

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-209-331-07

Tradução: Maria Helena Rouanet

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 424

Sinopse: Um dos romances mais importantes do século, As aventuras de Pi é uma narrativa singular de Yann Martel que se tornou um grande best-seller. O livro narra a trajetória do jovem Pi Patel, um garoto cuja vida é revirada quando seu pai, dono de um zoológico na Índia, decide embarcar em um navio rumo ao Canadá. Durante a viagem, um trágico naufrágio deixa o menino à deriva em um bote, na companhia insólita de um tigre-de-bengala, um orangotango, uma zebra e uma hiena. A luta de Pi pela sobrevivência ao lado de animais perigosos e sobre um imenso oceano é de uma força poucas vezes vista na literatura mundial.



“A primeira vez que fui a um restaurante indiano no Canadá, comi com as mãos. O garçom me olhou com um ar de crítica e disse: “Acabou de desembarcar, não é mesmo?” Fiquei lívido. Os meus dedos, que, um segundo antes, eram papilas gustativas, saboreando a comida ainda meio longe da boca, ficaram sujos diante daquele olhar. Estancaram como bandidos apanhados em flagrante. Não ousei lambê-los. Culpadíssimo, usei o guardanapo para limpá-los. Aquele garçom não podia imaginar o quanto as suas palavras me magoaram. Elas foram como pregos penetrando na minha carne. Peguei o garfo e a faca. Praticamente nunca tinha usado esses utensílios. As minhas mãos tremiam. O meu sambar ficou completamente sem gosto.”

 

 

“Não vou insistir mais. Não tenho a intenção de defender os zoológicos. Podem fechar todos eles, se quiserem (e esperemos que o que resta dos animais selvagens possa sobreviver no que resta da natureza). Sei que os zoológicos não gozam mais das boas graças das pessoas. A religião enfrenta o mesmo problema. Certas ilusões acerca da liberdade os contaminaram a ambos.”

 

 

“Os ateus são meus irmãos de uma outra fé, e cada palavra que eles dizem expressa fé. Como eu, vão até onde as pernas da razão podem levá-los, e, então, pulam.

Vou ser sincero. Não são os ateus que me irritam, são os agnósticos. A dúvida pode ser útil por um instante. Todos devemos atravessar o jardim do Getsêmani. Se Cristo lidava com a dúvida, devemos fazer isso também. Se Ele passou uma noite angustiado, rezando, se, lá na Cruz, exclamou: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”, com certeza também podemos duvidar. Mas precisamos ultrapassá-la. Escolher a dúvida como filosofia de vida equivale a escolher a imobilidade como meio de transporte.”

 

 

“A presença de Deus é a melhor das recompensas.”

 

 

“Palavras de uma consciência divina: exaltação moral; sentimentos duradouros de elevação, de elação, de alegria; uma aceleração do sentido moral, que nos causa impacto, parecendo mais importante que um entendimento intelectual das coisas; um alinhamento do Universo e das linhas morais, não das intelectuais; uma percepção de que o princípio básico da existência é aquilo que chamamos de amor, que às vezes se realiza de uma forma nada clara, nada simples, nem imediata e, no entanto, é inelutável.”

 

 

“Ravi fez a festa quando ficou sabendo que eu era hindu, cristão e muçulmano.

– E então, swami Jesus, vai fazer o hajj, a sua peregrinação desse ano? – perguntou ele, juntando as mãos diante do rosto, num reverente namaskar. – Meca está chamando por você? – acrescentou, fazendo o sinal da cruz. – Ou será que vamos a Roma para a sua coroação como o próximo Papa Pi...o? – Com a mão, traçou no ar uma letra grega para deixar bem clara a sua gracinha. – Já arranjou tempo para mandar cortarem a ponta do seu pau e virar judeu? Desse jeito, se for ao templo na terça, à mesquita na sexta, à sinagoga no sábado e à igreja no domingo, só precisa se converter a mais três religiões para ficar de folga para o resto da vida.”

 

 

“Existem sempre aqueles que se acham na obrigação de defender Deus, como se a Realidade Última ou a estrutura de sustentação da existência fossem algo fraco e desamparado. Essa gente passa por uma viúva deformada pela lepra, mendigando umas poucas paisas; passa por crianças esmolambadas, morando na rua, e pensa: “A vida é assim mesmo.” Se percebem, porém, uma coisinha de nada contra Deus, tudo muda de figura. Ficam com o rosto vermelho, o peito inflado, esbravejam palavras furiosas. O seu grau de indignação é espantoso. A sua transformação, assustadora.

O que essas pessoas não entendem é que é só internamente que Deus precisa ser defendido, não externamente. Deviam dirigir a sua fúria contra si mesmas. Pois o mal exterior nada mais é que o mal interior que conseguiu escapar. O principal campo de batalha para o bem não está no espaço aberto da arena pública, mas na pequena clareira de cada coração. Nesse meio-tempo, aquele monte de viúvas e crianças sem-teto são um problema sério e é em sua defesa, e não na de Deus, que essa gente moralista devia correr.

Para mim, religião é uma questão de dignidade, não de degradação.”

 

 

“Não sou do tipo que tem preconceito contra qualquer animal, mas ninguém ignora que a hiena-malhada não é muito bem-dotada em termos de aparência. Ela é feia de doer... Tem o pescoço grosso e os ombros altos que caem na direção do lombo dando a impressão de que saíram de um protótipo de girafa descartado, e a sua pelagem grossa e eriçada parece ter sido feita com remendos de sobras da criação. A sua cor é uma mistura estranha de caramelo, preto, amarelo e cinza, e as manchas não têm nada da ostentação classuda das pintas do leopardo; elas mais parecem sintomas de alguma doença de pele, uma forma virulenta de sarna. A cabeça é grande e excessivamente maciça, com uma testa alta, como a dos ursos, mas com umas entradas bem acentuadas, e aquelas orelhas, ridiculamente semelhantes às de um camundongo, grandes e redondas, quando não foram arrancadas numa briga qualquer. A boca vive aberta e ofegante. As narinas são grandes demais. O rabo é mirrado, sempre imóvel. O andar é arrastado. Juntando tudo, ela acaba ficando parecida com um cachorro, só que um cachorro que ninguém ia querer como bicho de estimação.

Mas eu não tinha esquecido as palavras do meu pai. Aqueles animais não eram uns covardes comedores de carniça. Se o National Geographic os retratava assim era porque as suas equipes filmavam durante o dia. É quando a lua aparece no céu que o dia das hienas começa, e elas demonstram ser caçadoras implacáveis. Atacam em bando qualquer bicho que possa ser capturado, e abrem-lhe o flanco ainda em pleno movimento. Atacam zebras, gnus e búfalos-d’água, e não só os velhos ou os doentes do rebanho, mas também os adultos em pleno vigor. São ousadas em seus ataques, levantando-se imediatamente quando lhes acertam chifradas e coices, nunca desistindo simplesmente por lhes faltar disposição. E são espertas; qualquer coisa que possa ser atraída para longe da mãe serve. O gnu com dez minutos de vida é um dos seus pratos favoritos, mas as hienas também podem perfeitamente comer filhotes de leões e rinocerontes. São diligentes quando os seus esforços são recompensados. Em quinze minutos contados no relógio, tudo o que resta de uma zebra é o crânio, que pode ser arrastado para a toca e mordiscado pelos filhotes como brincadeira. Nada se perde; até o mato respingado de sangue é comido. O estômago das hienas incha visivelmente quando elas engolem grandes nacos de caça. Em dias de sorte, ficam com a barriga tão cheia que mal conseguem andar. Depois de digerirem a presa, cospem umas bolas de pelo bem densas; catam ali dentro tudo o que for comestível e, depois, ficam se rolando em cima delas. Canibalismo acidental é coisa comum durante a empolgação com a comida; tentando alcançar uma zebra, uma hiena pode, sem segundas intenções, acertar a orelha ou uma narina de um dos membros do clã. Mas não vai ficar enojada com esse engano. São tantos os prazeres que não dá para admitir sentir nojo do que quer que seja.

Na verdade, a variedade do paladar da hiena é tão indiscriminada que chega quase a ser admirável. Ela bebe água mesmo que esteja urinando ali dentro. Aliás, esse animal tem outra utilidade bem original para a urina: quando o tempo está quente e seco, eles se refrescam aliviando a bexiga no chão, revolvendo aquela terra molhada com as patas e se deliciando com um refrescante banho de lama. Comem excremento de herbívoros lambendo os lábios de prazer. O difícil é dizer o que as hienas não comem. Devoram a própria espécie (o resto daqueles animais cujas orelhas ou focinhos arrancaram como aperitivo), desde que o bicho esteja morto, e isso depois de um período de luto que dura cerca de um dia. Chegam até a atacar veículos motorizados – faróis, cano de escapamento, espelhos laterais. Não é o suco gástrico das hienas que estabelece o limite da sua alimentação; é o poder das suas mandíbulas, que é formidável.”

 

 

“Há uma coisa mais perigosa que um animal saudável: um animal ferido.”

 

 

“– Para levar adiante a nossa investigação, gostaríamos de saber o que aconteceu efetivamente?

– O que aconteceu efetivamente?

– É.

– Então, querem que eu conte outra história?

–Hum... Não. Gostaríamos de saber o que aconteceu efetivamente.

– Contar alguma coisa não cria sempre uma história?

– Hum... Em inglês, talvez. Em japonês, uma história teria sempre um elemento de invenção. Não é o que queremos. Queremos que o senhor “se atenha aos fatos”, como se diz.

– Mas contar alguma coisa, usando as palavras, seja em inglês ou em japonês, já não é de certa forma uma invenção? O simples fato de olhar para esse mundo já não é de certa forma uma invenção?

– Hum...

– O mundo não é apenas do jeito que ele é. É também como nós o compreendemos, não é mesmo? E, ao compreender alguma coisa, trazemos alguma contribuição nossa, não é mesmo? Isso não faz da vida uma história?”

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Factótum – Charles Bukowski

Editora: L&PM
ISBN: 978-85-254-1192-1
Tradução: Pedro Gonzaga
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 184
Sinopse: Em Factótum, segundo romance de Charles Bukowski, publicado em 1975, encontramos mais uma vez Henry Chinaski, alter ego do autor, protagonista de vários dos seus livros e um dos mais célebres anti-heróis da literatura americana. Durante a Segunda Guerra Mundial, o loser Henry (que reaparece mais tarde em Misto-quente) é considerado “inapto para o serviço militar” e não consegue entrar para o exército. Assim, enquanto os Estados Unidos se unem em torno da guerra e os homens alistados são vistos como heróis, Chinaski, sem emprego, sem profissão nem perspectiva, cruza o país, arranjando bicos e trampos, fazendo de tudo um pouco – daí o nome do livro –, na tentativa de subsistir com empregos que não se interponham entre ele e seu grande amor: escrever.
Em meio a tragos, perambulações por ruas marginais, tentativas de ser publicado, vivendo da mão para a boca, o autor iniciante Henry Chinaski come o pão que o diabo amassou. Tais trechos, que tratam do escritor em formação, estão entre os mais pungentes e interessantes do livro. Na sua versão do artista quando jovem, Bukowski vê tudo através da lente da desmistificação – desmistifica a imagem do artista romântico e o milagre americano – e faz desse olhar cínico a sua profissão de fé.
  


“O problema, naqueles dias de guerra, eram as horas extras. Aqueles que estavam no comando sempre preferiam sobrecarregar uns poucos homens de modo contínuo a contratar mais pessoas para que todos pudessem trabalhar um pouco menos. Você dava a seu chefe oito horas, e ele sempre pedia por mais. Ele nunca lhe mandava para casa depois de seis horas, por exemplo. Isso daria tempo a você para que pensasse.”


“Isto era tudo de que um homem necessitava: esperança. Era a falta de esperança que desencorajava um homem. Lembrei de meus dias em Nova Orleans, vivendo de duas barras de caramelo de cinco centavos por dia, ao longo de várias semanas, para ter tempo livre para escrever. Mas passar fome, infelizmente, não melhora a arte. Apenas a obstrui. A alma de um homem está profundamente enraizada em seu estômago. Um homem pode escrever muito melhor após comer um belo pedaço de filé acompanhado de uma dose de uísque do que depois de uma barra de caramelo de um níquel. O mito do artista faminto é um embuste. Uma vez que você percebe que tudo é um embuste, você fica esperto e passa a sangrar e queimar seus semelhantes. Eu ergueria um império sobre as carcaças e vidas destroçadas de homens, mulheres e crianças indefesos – eu os atropelaria. Eu lhes daria uma bela lição!


“Quando voltei para Los Angeles, encontrei um hotel barato nas imediações da Hoover Street e fiquei na cama e bebi. Bebi por algum tempo, três ou quatro dias. Não conseguia achar disposição para ler os classificados. A ideia de me sentar diante de um homem e sua mesa e lhe dizer que eu queria um trabalho, que eu tinha as qualificações necessárias, era demais para mim. Francamente, eu estava horrorizado diante da vida, o que um homem precisava fazer para comer, dormir, manter-se vestido. Então fiquei na cama enchendo a cara. Quando você bebia, o mundo continuava lá fora, mas por um momento era como se ele não o trouxesse preso pela garganta.
Certa noite, saí da cama, me vesti e saí a caminhar pela cidade. Quando dei por mim, estava na Alvarado Street. Segui até chegar a um bar que me pareceu convidativo e entrei. Estava cheio. Havia apenas um lugar vago. Sentei. Pedi um scotch com água. À minha direita, estava uma loira quase castanha, um pouquinho gorda, o pescoço e as bochechas um tanto flácidas, na certa uma bêbada. Havia, no entanto, em seus traços um resquício ainda de sua beleza, e seu corpo continuava parecendo rijo, jovem e bem-proporcionado. De fato, suas pernas eram longas e adoráveis. Quando ela terminou seu drinque, perguntei se aceitaria outro. Ela disse sim. Paguei-lhe um.
– Mas que bando de idiotas vem aqui – ela disse.
– Estão em todo lugar, mas especialmente aqui – eu disse.
Paguei-lhe mais três ou quatro rodadas. Não nos dissemos nada. Então lhe comuniquei:
– Este foi o último. Estou quebrado.
– Sério?
– Sim.
– Tem algum lugar pra ficar?
– Um apartamento, com mais duas ou três diárias pagas.
– E você não tem mais nenhuma grana? Nem nada pra beber?
– Não.
– Vem comigo.
Segui-a para fora do bar. Percebi que ela tinha um traseiro e tanto. Fui junto com ela até a loja de bebidas mais próxima. Ela disse ao atendente o que queria: duas garrafas de uísque Grandad, um farnel com seis cervejas, dois maços de cigarros, algumas batatas chips, uns aperitivos, uns alka-seltzers, um bom charuto. O atendente fechou a conta.
– Para onde estamos indo com tudo isso?
– Para a sua casa. Você tem carro?
Levei-a até meu carro. Eu o havia comprado em um lote em Compton por trinta e cinco dólares. As molas estavam estouradas e o radiador vazava, mas ainda se podia rodar com ele. Chegamos à minha casa e eu coloquei as compras na geladeira, servi dois drinques, levei-os comigo, sentei e acendi um cigarro. Ela se sentou no sofá à minha frente, as pernas cruzadas. Usava brincos verdes.
– O máximo – ela disse.
– O quê?
– Você se considera o máximo, se acha muito fodão.
– Não.
– Sim, você se acha. Posso dizer pelo modo como se comporta. Mas ainda gosto de você. Gosto do seu jeito.
– Suba um pouco o vestido.
– É ligado em pernas?
– Sim. Suba mais o vestido.
Ela obedeceu. 
– Oh, Jesus, agora suba mais, muito mais!
– Escute, você não é algum tipo de maluco, é? Há um cara molestando as garotas. Leva elas pro apartamento dele e depois tira as roupas delas e, com uma navalha, marca os corpos delas com palavras cruzadas.
– Não sou ele.
– Tem uns caras também que comem você e depois fazem mil pedacinhos do seu corpo. Aí vão encontrar uma parte do seu cu entalada num cano de esgoto em Playa del Rey e o seu peito esquerdo numa lata de lixo em Oceanside...
– Parei de fazer isso anos atrás. Suba mais a saia. – Ela deu uma bela erguida na saia. Era como se a vida e a alegria começassem agora, estava ali o verdadeiro sol. Me aproximei, sentei-me ao seu lado no sofá e lhe dei um beijo. Então me levantei, servi mais dois drinques e sintonizei o rádio na KFAC. Pegamos o início de alguma coisa de Debussy.
– Você gosta desse tipo de música? – ela perguntou.
A certa altura daquela noite, enquanto conversávamos, despenquei do sofá. Caí no chão e fiquei olhando aquelas pernas maravilhosas.
– Baby – eu disse –, sou um gênio, mas ninguém além de mim sabe disso.
Ela me olhou, baixando a vista. 
– Levante do chão, seu retardado, e me traga um drinque. 
Trouxe-lhe a bebida e me encolhi perto dela. Sentia-me um idiota. Mais tarde fomos para a cama. As luzes estavam apagadas e fui por cima dela. Dei uma ou duas metidas, parei. 
– Qual seu nome mesmo? 
– Qual é a diferença, caralho? – ela respondeu.”


“– O que você faz? – perguntou Wilbur. 
– Ele é escritor – disse Laura. – As revistas têm publicado coisas dele. 
– Preciso de um escritor. Você é um dos bons? 
– Todo escritor pensa que é um dos bons.”


“Jan era uma excelente foda. Era mãe de duas filhas, mas trepava maravilhosamente bem. Havíamos nos conhecido num restaurante ao ar livre – eu gastava meus últimos cinquenta centavos num hambúrguer gorduroso – e iniciamos uma conversa. Ela me pagou uma cerveja, deu-me seu telefone, e três dias mais tarde eu me mudei para o seu apartamento.
Tinha uma buceta estreita e recebia cada golpe do meu pau como se estivesse sendo esfaqueada. Ela me lembrava uma pequena leitoa. Havia torpeza e hostilidade suficientes nela para me fazer sentir que a cada estocada eu lhe dava uma espécie de corretivo por seu gênio ruim. Ela havia removido um dos ovários e alegava que não podia mais engravidar; para quem tinha um ovário só, ela respondia generosamente.
Jan se parecia bastante com Laura – com a diferença de que ela era mais magra e mais bonita, cabelos loiros na altura dos ombros e olhos azuis. Ela era estranha; estava sempre com tesão pela manhã, apesar das ressacas. Eu não sentia esse tesão com as minhas. Eu era um homem noturno. Mas à noite ela estava sempre gritando e jogando coisas em mim: telefones, guias telefônicos, garrafas, copos (cheios e vazios), rádios, bolsas, violões, cinzeiros, dicionários, pulseiras de relógio arrebentadas, despertadores... Ela era uma mulher incomum. Mas uma coisa era certa: pela manhã, ela sempre queria trepar, e muito. E eu tinha meu emprego no depósito de bicicletas.
Olhando para o relógio, numa típica manhã, eu lhe dava a primeira, contendo o vômito, regurgitando um pouco, tentando esconder o fato; depois conseguia me esquentar, gozava, saía de cima. 
– Bem, é isso – eu dizia –, vou chegar quinze minutos atrasado.
E ela então seguia para o banheiro, feliz como um passarinho, lavava-se, cagava, olhava para os pelos debaixo do braço, olhava-se no espelho, preocupava-se mais em envelhecer do que com a morte, retornava e se metia debaixo das cobertas enquanto eu erguia minhas calças manchadas, pronto para me lançar no tráfego da Third Street, em direção a leste.”


“– Você é a casado, Manny?
– Sem chance. 
– Mulheres? 
– Às vezes. Mas nunca dura. 
– Qual é o problema? 
– Uma mulher é um emprego de turno integral. É preciso escolher sua profissão. 
– Acredito que há um esgotamento emocional. 
– E físico também. Elas querem trepar dia e noite. 
– Consiga uma que você goste de comer. 
– Sim, mas se você bebe ou joga elas pensam que isso deprecia o amor que elas sentem por você. 
– Arrume uma que goste de beber, jogar e foder.
 – Quem quer uma mulher assim?”


“– A Bíblia diz: “Amai ao próximo”.
– Isso poderia significar algo como “deixe-o em paz”.


“Como, diabos, pode um homem gostar de ser acordado às 6h30 da manhã por um despertador, sair da cama, vestir-se, alimentar-se à força, cagar, mijar, escovar os dentes e os cabelos, enfrentar o tráfego para chegar a um lugar onde essencialmente o que fará é encher de dinheiro os bolsos de outro sujeito e ainda por cima ser obrigado a mostrar gratidão por receber essa oportunidade?”


“Encontrei um emprego nos classificados do jornal. Fui contratado por uma loja de roupas, mas não em Miami, e sim em Miami Beach, e a cada manhã eu tinha que enfrentar uma travessia aquática junto com a minha ressaca. O ônibus corria por uma faixa muito estreita de cimento e ficava junto à água sem qualquer forma de guard-rail, nenhuma proteção. Só havia a pista. O motorista se recostava, e nós seguíamos sobre essa faixa estreita de cimento completamente cercada pela água, e todos a bordo, as vinte e cinco ou trinta pessoas confiavam nele, mas eu jamais. Às vezes, era um motorista novo, e eu pensava, como eles selecionam esses filhos da puta? Havia água profunda nos dois lados, e um erro de julgamento mataria a todos nós. Isso era ridículo. Suponha que ele tenha brigado com sua mulher naquela manhã? Ou que tenha câncer? Ou que tenha visões de Deus? Um dente podre? Qualquer coisa. Seria o suficiente para ele. Lá estaríamos nós no fundo do mar. Sei que, se eu estivesse dirigindo, consideraria a possibilidade ou o desejo de afogar todo mundo. E algumas vezes, depois de ter feito essa consideração, a possibilidade passaria à ação. Para cada Joana d’Arc há um Hitler suspenso do outro lado da balança. A velha história do bem e do mal. Mas nenhum dos motoristas jamais nos lançou no mar. Por suas cabeças não passava mais do que prestações do carro, resultados do beisebol, cortes de cabelo, férias, enemas, visitas familiares. Não havia um homem de verdade entre toda aquela merda. Eu sempre chegava enjoado no trabalho, ainda que em segurança.”