Este blog destina-se a dividir com os companheiros de estrada as impressões e alguns belos trechos deste fantástico universo que é a literatura.
domingo, 29 de dezembro de 2013
Pesadelo Refrigerado – Henry Miller
domingo, 22 de dezembro de 2013
Deus e o Estado – Mikhail Bakunin
Editora: Domínio Público
Opinião: ★★☆☆☆
Tradução: Plínio
Augusto Coelho
Páginas: 132
Sinopse: O que é a autoridade? É a força inevitável
das leis naturais que se manifestam no encadeamento e na sucessão fatal dos
fenômenos do mundo físico e do mundo social? Efetivamente, contra estas leis, a
revolta é não somente proibida, é também impossível. Podemos conhecê-las mal, ou
ainda não conhecê-las, mas não podemos desobedecê-las porque elas constituem a
base e as próprias condições de nossa existência: elas nos envolvem, nos
penetram, regulam todos os nossos movimentos, pensamentos e atos; mesmo quando
pensamos desobedecê-las, não fazemos outra coisa que manifestar sua
onipotência.
“Ouvi dizer que a
necessidade de ar, como sensação irresistível, é mais intensa que a sede de
água. Só por alguns minutos, garanto. Passados esses minutos, a gente morre e o
desconforto da asfixia desaparece. Ao passo que a sede é um negócio demorado.
Veja bem: o Cristo na Cruz morreu sufocado, mas a única coisa de que Ele se
queixou foi de sede. Se a sede pode ser tão insuportável a ponto de o próprio
Deus encarnado se queixar dela, imagine o efeito que exerce sobre um ser humano
comum.”
“Os fatos têm
primazia sobre as ideias.”
“A Bíblia, que é
um livro muito interessante, e aqui e ali muito profundo, quando o consideramos
como uma das mais antigas manifestações da sabedoria e da fantasia humanas,
exprime esta verdade, de maneira muito ingénua, em seu mito do pecado original.
Jeová, que, de todos os bons deuses adorados pelos homens, foi certamente o
mais ciumento, o mais vaidoso, o mais feroz, o mais injusto, o mais
sanguinário, o mais despótico e o maior inimigo da dignidade e da liberdade
humanas, Jeová acabava de criar Adão e Eva, não se sabe por qual capricho,
talvez para ter novos escravos. Ele pôs generosamente à disposição deles toda a
terra, com todos os seus frutos e todos os seus animais, e impôs um único
limite a este completo gozo: proibiu-os expressamente de tocar os frutos da
árvore de ciência. Ele queria, pois, que o homem, privado de toda consciência
de si mesmo, permanecesse um eterno animal, sempre de quatro patas diante do
Deus “vivo”, seu criador e seu senhor. Mas eis que chega Satã, o eterno
revoltado, o primeiro livre-pensador e o emancipador dos mundos! Ele faz o
homem se envergonhar de sua ignorância e de sua obediência bestiais; ele o
emancipa, imprime em sua fronte a marca da liberdade e da humanidade, levando-o
a desobedecer e a provar do fruto da ciência.
Conhece-se o
resto. O bom Deus, cuja presciência, constituindo uma das divinas faculdades,
deveria tê-lo advertido do que aconteceria, pôs-se em terrível e ridículo
furor: amaldiçoou Satã, o homem e o mundo criados por ele próprio, ferindo-se,
por assim dizer, em sua própria criação, como fazem as crianças quando se põem
em cólera; e não contente em atingir nossos ancestrais, naquele momento ele os
amaldiçoou em todas as suas gerações futuras, inocentes do crime cometido por
seus ancestrais. Nossos teólogos católicos e protestantes acham isto muito
profundo e justo, precisamente porque é monstruosamente iníquo e absurdo.
Depois, lembrando-se de que ele não era somente um Deus de vingança e cólera,
mais ainda, um Deus de amor, após ter atormentado a existência de alguns
bilhões de pobres seres humanos e tê-los condenado a um eterno inferno, sentiu
piedade e para salvá-los, para reconciliar seu amor eterno e divino com sua
cólera eterna e divina, sempre ávida de vítimas e de sangue, ele enviou ao
mundo, como uma vítima expiatória, seu filho único, a fim de que ele fosse
morto pelos homens. Isto é denominado mistério da Redenção, base de todas as
religiões cristãs.”
“Esmagado por seu
trabalho quotidiano, privado de lazer, de comércio intelectual, de leitura, enfim,
de quase todos os meios e de uma boa parte dos estímulos que desenvolvem a
reflexão nos homens, o povo aceita, na maioria das vezes, sem crítica e em
bloco, as tradições religiosas.”
“Deus sendo tudo,
o mundo real e o homem não são nada. Deus sendo a verdade, a justiça, o bem, o
belo, a força e a vida, o homem é a mentira, a iniquidade, o mal, a feiura, a
impotência e a morte. Deus sendo o senhor, o homem é o escravo. (...)
Eles dizem de uma
só vez: Deus é a liberdade do homem, Deus é a dignidade, a justiça, a
igualdade, a fraternidade, a prosperidade dos homens, sem se preocupar com a
lógica fatal, em virtude da qual, se Deus existe, ele é necessariamente o
senhor eterno, supremo, absoluto, e se este senhor existe, o homem é escravo;
se ele é escravo, não há justiça, nem igualdade, nem fraternidade, nem
prosperidade possível. De nada adiantará, contrariamente ao bom senso e a todas
as experiências da história, eles representarem seu Deus animado do mais doce
amor pela liberdade humana: um senhor, por mais que ele faça e por mais liberal
que queira se mostrar, jamais deixa de ser, por isso, um senhor. Sua existência
implica necessariamente a escravidão de tudo o que se encontra debaixo dele.
Assim, se Deus existisse, só haveria para ele um único meio de servir à
liberdade humana; seria o de cessar de existir.”
“Amoroso e
ciumento da liberdade humana e considerando-a como a condição absoluta de tudo
o que adoramos e respeitamos na humanidade, inverto a frase de Voltaire* e digo
que, se Deus existisse, seria preciso aboli-lo.”
*: “Se Deus não existisse, seria preciso
inventá-lo”.
“Numa palavra,
rejeitamos toda legislação, toda autoridade e toda influência privilegiada,
titulada, oficial e legal, mesmo emanada do sufrágio universal, convencido de
que ela só poderia existir em proveito de uma minoria dominante e exploradora,
contra os interesses da imensa maioria subjugada.
Eis o sentido no
qual somos realmente anarquistas.”
“Proclamar como
divino tudo o que se encontra de grande, de justo, de real, de belo, na
humanidade, é reconhecer implicitamente que a humanidade, por si própria, teria
sido incapaz de produzi-lo; isto significa dizer que abandonada a si própria,
sua própria natureza é miserável, iníqua, vil e feia. Eis-nos de volta à
essência de toda religião, isto é, à difamação da humanidade pela maior glória
da divindade.”
“O Estado não se
chamará mais monarquia, chamar-se-á república, mas nem por isso deixará de ser
Estado, isto é, uma tutela oficial e regularmente estabelecida por uma minoria
de homens competentes, gênios, homens de talento ou de virtude, que vigiarão e
dirigirão a conduta desta grande, incorrigível e terrível criança, o povo. Os
professores da Escola e os funcionários do Estado chamar-se-ão republicanos;
mas não deixarão de ser menos tutores, pastores, e o povo permanecerá o que foi
eternamente até agora: um rebanho. Os tosquiados que se cuidem, pois onde há
rebanho há necessariamente pastores para tosquiá-lo e comê-lo.
O povo, neste
sistema, será eterno estudante e pupilo. Apesar de sua soberania totalmente
fictícia, ele continuará a servir de instrumento a pensamentos e vontades, e
consequentemente também a interesses que não serão os seus. Entre esta situação
e o que chamamos de liberdade, a única verdadeira liberdade, há um abismo. Será
sob novas formas, a antiga opressão e a antiga escravidão; e onde há
escravidão, há miséria, embrutecimento, a verdadeira materialização da
sociedade, tanto das classes privilegiadas quanto das massas.”
“A força do
sentimento coletivo ou do espírito público já é muito séria hoje. Os homens com
maior tendência a cometer crimes raramente ousam desafiá-la, enfrentá-la
abertamente. Eles procurarão enganá-la, mas evitarão ofendê-la, a menos que se
sintam apoiados por uma minoria qualquer. Nenhum homem, por mais possante que
se imagine, jamais terá força para suportar o desprezo unânime da sociedade,
ninguém poderia viver sem sentir-se apoiado pelo consentimento e pela estima,
ao menos por certa parte desta sociedade. É preciso que um homem seja levado
por uma imensa e bem sincera convicção, para que encontre coragem de opinar e
de marchar contra todos, e nunca um homem egoísta, depravado e covarde terá
esta coragem.”
“Ao nos falarem de
Deus, eles creem, eles querem nos educar, nos emancipar, nos enobrecer e, ao
contrário, eles nos esmagam e nos aviltam. Com o nome de Deus, eles imaginam
poder estabelecer a fraternidade entre os homens, e, ao contrário, criam o
orgulho, o desprezo; semeiam a discórdia, o ódio, a guerra; fundam a
escravidão. Isto porque, com Deus, vêm os diferentes graus de inspiração
divina; a humanidade se divide em homens muito inspirados, menos inspirados,
não inspirados. Todos são igualmente nulos diante de Deus, é verdade; mas
comparados uns aos outros, uns são maiores do que os outros; não somente pelo
fato, o que não seria nada, visto que uma desigualdade de fato se perde por si
mesma na coletividade, quando ela não se pode agarrar a nenhuma ficção ou
instituição legal; mas pelo direito divino da inspiração: o que constitui logo
em seguida uma desigualdade fixa, constante, petrificada. Os mais inspirados
devem ser escutados e obedecidos pelos menos inspirados, pelos não inspirados.
Eis o princípio da autoridade bem estabelecido, e com ele as duas instituições
fundamentais da escravidão: a Igreja e o Estado.”
“Até o presente
momento toda a história humana nada mais foi senão uma imolação perpétua e
sangrenta de milhões de pobres seres humanos a uma abstração impiedosa
qualquer: Deus, Pátria, poder do Estado, honra nacional, direitos históricos,
liberdade política, bem público. Tal foi até agora o movimento natural,
espontâneo e fatal das sociedades humanas. Nada podemos fazer para mudar isso,
devemos suportá-lo em relação ao passado, como suportamos todas as fatalidades
atuais. Deve-se acreditar que esta era a única via possível para a educação da
espécie humana. Não devemos nos enganar: mesmo procurando informar amplamente
sobre os artifícios maquiavélicos das classes governamentais, devemos reconhecer
que nenhuma minoria teria sido bastante poderosa para impor todos estes
horríveis sacrifícios às massas, se não tivesse havido, nelas mesmas, um
movimento vertiginoso, espontâneo, levando-as a se sacrificarem sempre, ora a
uma, ora a outra destas abstrações devoradoras que, vampiros da história,
sempre se nutriram de sangue humano.”
quinta-feira, 19 de dezembro de 2013
As aventuras de Pi, de Yann Martel
Editora: Nova Fronteira
ISBN: 978-85-209-331-07
Tradução: Maria Helena Rouanet
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 424
Sinopse: Um dos
romances mais importantes do século, As aventuras de Pi é uma narrativa
singular de Yann Martel que se tornou um grande best-seller. O livro narra a
trajetória do jovem Pi Patel, um garoto cuja vida é revirada quando seu pai,
dono de um zoológico na Índia, decide embarcar em um navio rumo ao Canadá.
Durante a viagem, um trágico naufrágio deixa o menino à deriva em um bote, na
companhia insólita de um tigre-de-bengala, um orangotango, uma zebra e uma
hiena. A luta de Pi pela sobrevivência ao lado de animais perigosos e sobre um
imenso oceano é de uma força poucas vezes vista na literatura mundial.
“A primeira vez que fui a um restaurante indiano
no Canadá, comi com as mãos. O garçom me olhou com um ar de crítica e disse: “Acabou
de desembarcar, não é mesmo?” Fiquei lívido. Os meus dedos, que, um segundo antes,
eram papilas gustativas, saboreando a comida ainda meio longe da boca, ficaram sujos
diante daquele olhar. Estancaram como bandidos apanhados em flagrante. Não ousei
lambê-los. Culpadíssimo, usei o guardanapo para limpá-los. Aquele garçom não podia
imaginar o quanto as suas palavras me magoaram. Elas foram como pregos penetrando
na minha carne. Peguei o garfo e a faca. Praticamente nunca tinha usado esses utensílios.
As minhas mãos tremiam. O meu sambar ficou completamente sem gosto.”
“Não vou insistir mais. Não tenho a intenção de
defender os zoológicos. Podem fechar todos eles, se quiserem (e esperemos que o
que resta dos animais selvagens possa sobreviver no que resta da natureza). Sei
que os zoológicos não gozam mais das boas graças das pessoas. A religião enfrenta
o mesmo problema. Certas ilusões acerca da liberdade os contaminaram a ambos.”
“Os ateus são meus irmãos de uma outra fé, e cada
palavra que eles dizem expressa fé. Como eu, vão até onde as pernas da razão podem
levá-los, e, então, pulam.
Vou ser sincero. Não são os ateus que me irritam,
são os agnósticos. A dúvida pode ser útil por um instante. Todos devemos atravessar
o jardim do Getsêmani. Se Cristo lidava com a dúvida, devemos fazer isso também.
Se Ele passou uma noite angustiado, rezando, se, lá na Cruz, exclamou: “Meu Deus,
meu Deus, por que me abandonastes?”, com certeza também podemos duvidar. Mas precisamos
ultrapassá-la. Escolher a dúvida como filosofia de vida equivale a escolher a imobilidade
como meio de transporte.”
“A presença de Deus é a melhor das recompensas.”
“Palavras de uma consciência divina: exaltação
moral; sentimentos duradouros de elevação, de elação, de alegria; uma aceleração
do sentido moral, que nos causa impacto, parecendo mais importante que um entendimento
intelectual das coisas; um alinhamento do Universo e das linhas morais, não das
intelectuais; uma percepção de que o princípio básico da existência é aquilo que
chamamos de amor, que às vezes se realiza de uma forma nada clara, nada simples,
nem imediata e, no entanto, é inelutável.”
“Ravi fez a festa quando ficou sabendo que eu
era hindu, cristão e muçulmano.
– E então, swami Jesus, vai fazer o hajj,
a sua peregrinação desse ano? – perguntou ele, juntando as mãos diante do rosto,
num reverente namaskar. – Meca está chamando por você? – acrescentou, fazendo
o sinal da cruz. – Ou será que vamos a Roma para a sua coroação como o próximo Papa
Pi...o? – Com a mão, traçou no ar uma letra grega para deixar bem clara a sua gracinha.
– Já arranjou tempo para mandar cortarem a ponta do seu pau e virar judeu? Desse
jeito, se for ao templo na terça, à mesquita na sexta, à sinagoga no sábado e à
igreja no domingo, só precisa se converter a mais três religiões para ficar de folga
para o resto da vida.”
“Existem sempre aqueles que se acham na obrigação
de defender Deus, como se a Realidade Última ou a estrutura de sustentação da existência
fossem algo fraco e desamparado. Essa gente passa por uma viúva deformada pela lepra,
mendigando umas poucas paisas; passa por crianças esmolambadas, morando na rua,
e pensa: “A vida é assim mesmo.” Se percebem, porém, uma coisinha de nada contra
Deus, tudo muda de figura. Ficam com o rosto vermelho, o peito inflado, esbravejam
palavras furiosas. O seu grau de indignação é espantoso. A sua transformação, assustadora.
O que essas pessoas não entendem é que é só internamente
que Deus precisa ser defendido, não externamente. Deviam dirigir a sua fúria contra
si mesmas. Pois o mal exterior nada mais é que o mal interior que conseguiu escapar.
O principal campo de batalha para o bem não está no espaço aberto da arena pública,
mas na pequena clareira de cada coração. Nesse meio-tempo, aquele monte de viúvas
e crianças sem-teto são um problema sério e é em sua defesa, e não na de Deus, que
essa gente moralista devia correr.
Para mim, religião é uma questão de dignidade,
não de degradação.”
“Não sou do tipo que tem preconceito contra qualquer
animal, mas ninguém ignora que a hiena-malhada não é muito bem-dotada em termos
de aparência. Ela é feia de doer... Tem o pescoço grosso e os ombros altos que caem
na direção do lombo dando a impressão de que saíram de um protótipo de girafa descartado,
e a sua pelagem grossa e eriçada parece ter sido feita com remendos de sobras da
criação. A sua cor é uma mistura estranha de caramelo, preto, amarelo e cinza, e
as manchas não têm nada da ostentação classuda das pintas do leopardo; elas mais
parecem sintomas de alguma doença de pele, uma forma virulenta de sarna. A cabeça
é grande e excessivamente maciça, com uma testa alta, como a dos ursos, mas com
umas entradas bem acentuadas, e aquelas orelhas, ridiculamente semelhantes às de
um camundongo, grandes e redondas, quando não foram arrancadas numa briga qualquer.
A boca vive aberta e ofegante. As narinas são grandes demais. O rabo é mirrado,
sempre imóvel. O andar é arrastado. Juntando tudo, ela acaba ficando parecida com
um cachorro, só que um cachorro que ninguém ia querer como bicho de estimação.
Mas eu não tinha esquecido as palavras do meu
pai. Aqueles animais não eram uns covardes comedores de carniça. Se o National
Geographic os retratava assim era porque as suas equipes filmavam durante o
dia. É quando a lua aparece no céu que o dia das hienas começa, e elas demonstram
ser caçadoras implacáveis. Atacam em bando qualquer bicho que possa ser capturado,
e abrem-lhe o flanco ainda em pleno movimento. Atacam zebras, gnus e búfalos-d’água,
e não só os velhos ou os doentes do rebanho, mas também os adultos em pleno vigor.
São ousadas em seus ataques, levantando-se imediatamente quando lhes acertam chifradas
e coices, nunca desistindo simplesmente por lhes faltar disposição. E são espertas;
qualquer coisa que possa ser atraída para longe da mãe serve. O gnu com dez minutos
de vida é um dos seus pratos favoritos, mas as hienas também podem perfeitamente
comer filhotes de leões e rinocerontes. São diligentes quando os seus esforços são
recompensados. Em quinze minutos contados no relógio, tudo o que resta de uma zebra
é o crânio, que pode ser arrastado para a toca e mordiscado pelos filhotes como
brincadeira. Nada se perde; até o mato respingado de sangue é comido. O estômago
das hienas incha visivelmente quando elas engolem grandes nacos de caça. Em dias
de sorte, ficam com a barriga tão cheia que mal conseguem andar. Depois de digerirem
a presa, cospem umas bolas de pelo bem densas; catam ali dentro tudo o que for comestível
e, depois, ficam se rolando em cima delas. Canibalismo acidental é coisa comum durante
a empolgação com a comida; tentando alcançar uma zebra, uma hiena pode, sem segundas
intenções, acertar a orelha ou uma narina de um dos membros do clã. Mas não vai
ficar enojada com esse engano. São tantos os prazeres que não dá para admitir sentir
nojo do que quer que seja.
Na verdade, a variedade do paladar da hiena é
tão indiscriminada que chega quase a ser admirável. Ela bebe água mesmo que esteja
urinando ali dentro. Aliás, esse animal tem outra utilidade bem original para a
urina: quando o tempo está quente e seco, eles se refrescam aliviando a bexiga no
chão, revolvendo aquela terra molhada com as patas e se deliciando com um refrescante
banho de lama. Comem excremento de herbívoros lambendo os lábios de prazer. O difícil
é dizer o que as hienas não comem. Devoram a própria espécie (o resto daqueles animais
cujas orelhas ou focinhos arrancaram como aperitivo), desde que o bicho esteja morto,
e isso depois de um período de luto que dura cerca de um dia. Chegam até a atacar
veículos motorizados – faróis, cano de escapamento, espelhos laterais. Não é o suco
gástrico das hienas que estabelece o limite da sua alimentação; é o poder das suas
mandíbulas, que é formidável.”
“Há uma coisa mais perigosa que um animal saudável:
um animal ferido.”
“– Para levar adiante a nossa investigação, gostaríamos
de saber o que aconteceu efetivamente?
– O que aconteceu efetivamente?
– É.
– Então, querem que eu conte outra história?
–Hum... Não. Gostaríamos de saber o que aconteceu
efetivamente.
– Contar alguma coisa não cria sempre uma história?
– Hum... Em inglês, talvez. Em japonês, uma história
teria sempre um elemento de invenção. Não é o que queremos. Queremos que
o senhor “se atenha aos fatos”, como se diz.
– Mas contar alguma coisa, usando as palavras,
seja em inglês ou em japonês, já não é de certa forma uma invenção? O simples fato
de olhar para esse mundo já não é de certa forma uma invenção?
– Hum...
– O mundo não é apenas do jeito que ele é. É também
como nós o compreendemos, não é mesmo? E, ao compreender alguma coisa, trazemos
alguma contribuição nossa, não é mesmo? Isso não faz da vida uma história?”