terça-feira, 6 de março de 2012

A privataria tucana – Amaury Ribeiro Jr.

Editora: Geração Editorial
ISBN: 978-85-61501-98-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 344
Sinopse: Prepare-se, leitor, porque este, infelizmente, não é um livro qualquer.
A Privataria Tucana nos traz, de maneira chocante e até decepcionante, a dura realidade dos bastidores da política e do empresariado brasileiro, em conluio para roubar dinheiro público. Faz uma denúncia vigorosa do que foi a chamada Era das Privatizações, instaurada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso e por seu então Ministro do Planejamento, José Serra. Nomes imprevistos, até agora blindados pela aura da honestidade, surgirão manchados pela imprevista descoberta de seus malfeitos.
Amaury Ribeiro Jr. faz um trabalho investigativo que começa de maneira assustadora, quando leva um tiro ao fazer reportagem sobre o narcotráfico e assassinato de adolescentes, na periferia de Brasília. Depois do trauma sofrido, refugia-se em Minas e começa a investigar uma rede de espionagem estimulada pelo ex-governador paulista José Serra, para desacreditar seu rival no PSDB, o ex-governador mineiro Aécio Neves. Ao puxar o fio da meada, mergulha num novelo de proporções espantosas.

Serra e o martelo, uma relação amistosa e frequente a serviço da máxima de FHC: “vender tudo o que der para vender”


“Não é um riso aberto, caricatural, mas um sorriso quase íntimo, derramado para dentro. Observa-se um repuxar dos lábios, que expõem os dentes e esgarçam a pele das bochechas e do pescoço. É uma composição introspectiva, coadjuvada pelos olhos baixos, espreitando o martelo em sua descida vigorosa conduzido por sua mão direita. Quando se ouve o som da madeira contra a madeira, mais uma empresa pública foi vendida. A mão, a face e o sorriso pertencem a José Serra. A Light do Rio pertencia à Eletrobrás. Na foto histórica, os gestos e as emoções estão congelados, mas o patrimônio público moveu-se: passou a ser privado.
O leilão, no dia 21 de maio de 1996, dava continuidade ao programa federal de desestatização. Fernando Henrique Cardoso deflagrara o programa em 1995. Estreou com a venda da Excelsa, a companhia de eletricidade do Espírito Santo. E a mão de Serra também brandiu o martelo.
Nenhum político, mesmo os que privatizaram ou pretendem privatizar, recebe de bom grado a fama de privatizador. Mas, nos anos 1990, o que hoje é estigma era então condição inexorável para ser aceito na modernidade. O discurso tucano, hoje omisso quanto ao passado, possuía a arrogância dos donos da verdade. Mas está tudo registrado.
As lamúrias da revista Veja (edição de 03/05/1995) quanto à lentidão na venda das estatais receberam uma resposta rápida e reconfortante. O ministro José Serra, do Planejamento, anunciou “um ritmo mais veloz na venda das estatais” e encaixou as empresas de energia elétrica na lista das privatizáveis – prometeu e cumpriu, vibrando ele próprio o martelo na Excelsa, no mesmo ano, e na Light, no ano seguinte. E o presidente FHC expressou-se com tal ênfase que merece um parágrafo inteiro:
– É preciso dizer sempre e em todo lugar que este governo não retarda privatização, não é contra nenhuma privatização e vai vender tudo o que der para vender.”


“Independentemente do juízo que cada um possa fazer sobre a eficácia ou ineficácia do Estado ao gerir os bens públicos, ninguém precisa ser um inimigo do mercado para perceber que o modelo de privatização que assolou o Brasil nos anos FHC não foi, para ser leniente, o mais adequado aos interesses do país e do seu povo. Nem mesmo a Nossa Senhora Aparecida do fundamentalismo neoliberal, a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, teve o atrevimento de fazer o que foi feito na desestatização à brasileira. Nos anos 1980, Thatcher levou ao martelo as estatais inglesas, pulverizando suas ações e multiplicando o número de acionistas.
Contrapondo-se a essa “democratização”, o jeito tucano de torrar estatais envolveu “doação de empresas estatais, a preços baixos, a poucos grupos empresariais” (O Brasil privatizado – Aloysio Biondi).
Antes, porém, as estatais e seus servidores passaram a ser perseguidos e linchados diariamente nas manchetes. O Estado passou a ser o Grande Satã, semeando-se uma ira santa contra sua presença na economia e um fogo constante dirigido aos seus serviços. Seus erros foram escancarados e seus acertos, subtraídos. Era preciso preparar o clima para vender as estatais, fossem quais fossem. As pessoas precisavam entender que leiloar patrimônio público “seria um benefício” para todos. O Estado reduziria suas dívidas interna e externa e receberia um aporte de dólares que permitiria que se dedicasse somente à saúde, à educação e a um ou outro setor. E todos se livrariam daqueles trastes que não se sabia, afinal, por que ainda continuavam existindo. Na prática, a teoria acabou sendo outra. O torra-torra das estatais não capitalizou o Estado, ao contrário, as dívidas interna e externa aumentaram, porque o governo engoliu o débito das estatais leiloadas – para torná-las mais palatáveis aos compradores – e ainda as multinacionais não trouxeram capital próprio para o Brasil. Em vez disso, contraíram empréstimos no exterior e, assim, fizeram crescer a dívida externa. (Idem)
Para agravar o quadro, os cofres nacionais financiaram a aquisição das estatais e aceitaram moedas podres, títulos públicos adquiridos por metade do valor de face, na negociação.
Alguns cases clássicos do processo ajudam a esclarecer o que se passou. Na privatização da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) dos R$ 1,05 bilhão pagos pela maior siderúrgica da América Latina e marco da industrialização nacional no pós-guerra, R$ 1bilhão era formado de moedas podres. Nos cofres públicos só ingressaram, de verdade, R$ 38 milhões... E, como se o incrível habitasse o inacreditável, as moedas podres foram leiloadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. Nesta matrioshka*, na qual as aberrações brotam uma do interior da outra, o BNDES ainda financiou a aquisição das moedas podres com prazo de 12 anos para pagá-las. Na privatização da Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa), o governo de São Paulo, sob o PSDB de Mário Covas, demitiu dez mil funcionários e assumiu a responsabilidade pelos 50 mil aposentados da ferrovia! No Rio, o também tucano Marcelo Alencar realizou proeza maior: vendeu o Banerj para o Itaú por R$ 330 milhões, mas antes da privatização demitiu 6,2 mil dos 12 mil funcionários do banco estadual. Como precisava pagar indenizações, aposentadorias e o plano de pensões dos servidores, pegou um empréstimo de R$ 3,3 bilhões, ou seja, dez vezes superior ao que apurou no leilão. Na verdade, 20 vezes superior, porque o Rio só recebeu R$ 165 milhões, isto porque aceitou moedas podres, com metade do valor de face.
A temporada de bondades com dinheiro público ultrapassou os preços baixos, os financiamentos, as prestações em 12 anos e as moedas podres. Nos anos que antecederam a transferência das estatais para o controle privado, suas tarifas sofreram uma sequência de reajustes para que as empresas privatizadas não tivessem “de enfrentar o risco de protesto e indignação do consumidor”. No caso das tarifas telefônicas, aumentos de até 500% a partir de 1995 e, no caso da energia elétrica, de 150%. Tais custos ficaram com o Estado e o cidadão. Mas a cereja do bolo foram os empréstimos do BNDES. Quem adquiria uma estatal imediatamente se habilitava a contratar financiamentos oficiais com juros abaixo dos patamares do mercado. Comprada com moedas podres, a CSN foi contemplada com R$ 1,1 bilhão. E a Light, onde Serra bateu seu martelo, ganhou R$ 730 milhões. O resultado de tudo isso é que, em dezembro de 1998, quando já haviam sido leiloadas grandes empresas como a Vale, Embraer, Usiminas, Copesul, CSN, Light, Acesita e as ferrovias, havia um descompasso entre expectativa e realidade. Enquanto o governo FHC afirmava ter arrecadado R$ 85,2 bilhões no processo, o jornalista econômico Aloysio Biondi publicava no seu best‑seller O Brasil Privatizado que o país pagara para vender suas estatais. Este pagamento atingira R$ 87,6 bilhões, portanto R$ 2,4 bilhões a mais do que recebera. Reunindo sete itens que conseguiu calcular  –  vendas a prazo com dinheiro já contabilizado, mas fora dos cofres públicos; dívidas absorvidas; juros de 15% sobre dívidas assumidas; investimento nas estatais antes do leilão; juros sobre tais investimentos; uso de moedas podres e mais R$ 1,7 bilhão deixados nos cofres das estatais privatizadas – Biondi chegou ao seu valor. Mais cinco itens, entre eles custo de demissões e compromissos com fundos de pensão, considerados incalculáveis, não integram a coluna das despesas.
*Matrioshka: conjunto de bonecas típicas russas, de madeira pintada, que se sobrepõem umas às outras, encaixando-se.


“Um paraíso fiscal é, quase sempre, um pedaço de terra cercado por água e povoado por mais pessoas jurídicas do que por gente de carne e osso. É onde o dinheiro sujo, como ave migratória, pousa, repousa e segue adiante, com as impurezas originais já removidas. Lá, acontecem outras bizarrices: as empresas são do tamanho de uma caixa postal, e as contas bancárias ocultam seus titulares. São paraísos para o narcotráfico, o terrorismo, o tráfico de mulheres e o contrabando de armas. Lavam o dinheiro de todas as máfias e, também, aquele que provém da corrupção política. “A lavagem de dinheiro é a espinha dorsal do crime organizado”, garante o ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Hoje – diz – 70% do dinheiro lavado no país vem da corrupção e não mais do tráfico internacional de entorpecentes e do contrabando de armas e munição, como ocorria antigamente.”*
Desses centros financeiros mundiais, 38 são ilhas. É mais da metade dos países ou regiões autônomas que se dedicam à hospedagem vip da dinheirama de procedência desconhecida ou imprecisa. Os valores transitam por empresas off-shore, um termo que presta reverência aos velhos tempos dos corsários que saqueavam os mares e depositavam a pilhagem off‑shore ou fora da costa. Os tempos mudaram, mas os modos operantes continuam os mesmos.”
*: Artigo publicado no site Consultor Jurídico.


“O desconforto do assessor, que acabara de envelopar um relatório com os dados que evisceravam as movimentações financeiras do ex-caixa de campanha de José Serra e de Fernando Henrique Cardoso, tinha lá suas razões. Em suas quase 50 páginas, o documento revira as entranhas das atividades do ex-tesoureiro tucano. Mostra que a Off-shore Infinity Trading depositou US$ 410 mil em favor da Franton Interprises no MTB Bank, de Nova York. Dito desta maneira ninguém se dá conta do que estes muitos milhares de dólares significam, de onde vieram e para onde foram. É que os nomes das empresas servem como biombo para seus controladores. O homem atrás da Franton é Ricardo Sérgio de Oliveira. E agora se sabe que quem se esconde atrás da Infinity Trading é o megaempresário Carlos Jereissati, dono do grupo La Fonte, e irmão do cacique tucano e ex-senador Tasso Jereissati (PSDB/CE).
A conexão entre Infinity Trading e Jereissati ratifica, pela primeira vez, aquilo que sempre se suspeitou, mas que nunca havia sido comprovado: que o ex-tesoureiro das campanhas do PSDB recebeu propina de Jereissati, um dos vencedores no leilão da privatização da Telebrás. Por meio do consórcio Telemar, Jereissati adquiriu a Tele Norte Leste e passou a controlar a telefonia de 16 estados. O Telemar pagou R$ 3,4 bilhões pelo sistema, ágio de 1%, em 1998.
A comprovação de que Jereissati é o dono da Infinity Trading está estampada em documento oficial. Consta do Relatório 369, da Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda, também encaminhado à Justiça. Oculto até agora nos porões do Tribunal de Justiça de São Paulo, o relatório e outros papéis inéditos da CPMI do Banestado confirmam a vinculação. A Infinity Trading, de Jereissati, favoreceu a Franton, de Ricardo Sérgio, com dois depósitos. O primeiro, de 18 de janeiro de 2000, somou precisamente US$ 246.137,00. E o segundo, no total de US$ 164.085,00, aconteceu em 3 de fevereiro do mesmo ano. Sigiloso, o documento saiu das sombras depois que o senador Antero Paes de Barros (PSDB), presidente da CPMI do Banestado, foi instado pela Justiça a permitir o acesso aos papéis devido a uma ação de exceção da verdade* movida pela Editora Três contra Ricardo Sérgio, que processava a empresa e o autor deste livro por danos morais. Buscando evitar uma eventual ação da Polícia Federal, munida de ordem judicial, contra a CPMI do Banestado para apreender o relatório, o senador tucano não teve outra saída senão entregá-lo.”
*: Ação que possibilita ao acusado por crime de calúnia ou injúria comprovar que é verídica a conduta por ele atribuída à pessoa que se julga ofendida e o processou por isso.


“A trajetória de Ricardo Sérgio nos anos FHC, seu poder e sua audácia ao mover-se nos bastidores do poder tucano com frequência o aproximaram das grandes fortunas do país. Naquele ponto privilegiado e nebuloso em que o interesse particular prevalece sobre o público, ele articulou, manobrou e formatou os consórcios de empresas para arrematar estatais durante os anos dourados da privataria. Para Ricardo Sérgio, a vida muda para valer quando Clóvis Carvalho, futuro ministro da Casa Civil, apresenta-o a José Serra e Fernando Henrique Cardoso. É o ponto zero a partir do qual principia a construir sua saga de coletor de contribuições milionárias para o PSDB. Corria o ano de 1990 e Serra, candidato a deputado federal, estava com dificuldades para levantar dinheiro para a campanha. Ricardo Sérgio era o homem certo. Virou tesoureiro, papel de que também se incumbiria em 1994, na eleição de Serra ao Senado. Para Fernando Henrique, arrecadou dinheiro nas campanhas presidenciais de 1994 e 1998.
Sob FHC, o caixa de campanha, que já lidava com poderosos cifrões, passou a manusear quantias espetaculares. Mais ainda após sua indicação – por Serra – para dirigir a área internacional do Banco do Brasil. Desde o seu gabinete, articularia a sucção dos recursos dos fundos de pensão estatais – Previ, Petros, entre outros – para a ciranda das privatizações. Era o homem de Serra quem orquestrava a montagem de grupos para disputar os leilões e garantia o aporte do dinheiro do BB e dos fundos para cada consórcio. Nesta modalidade dois-em-um da privataria, o dinheiro público financiava a alienação das empresas públicas. Leiloadas as estatais, a gratidão expressava-se zelosamente nas campanhas eleitorais do PSDB.
Uma gratidão, porém, que extravasava o limite do estrito financiamento dos gastos eleitorais. E que promoveria um primeiro contato explícito entre Ricardo Sérgio e Jereissati. Em 1994, Jereissati entregou R$ 2 milhões a Ricardo Sérgio para incrementar o caixa de Serra. A soma teria sido paga em quatro ou cinco parcelas. Foi o que o empresário declarou à revista Veja, em março de 2001. No entanto, a prestação de contas de Serra ao TRE/SP contabilizou tão somente a entrada de um cheque de R$ 50 mil. E duas ajudas de serviço totalizando mais R$ 45 mil. Ao todo, portanto R$ 95 mil.
Entre a mão do empresário e o cofre da campanha, os R$ 2 milhões volatilizaram-se, chegando menos de cinco por cento ao destino final. Ignora-se onde a bolada se materializou mais tarde.
O que se sabe é que as declarações de Jereissati desencadearam um festival de bate-cabeças em 2002, ano eleitoral. O próprio empresário apareceu com um remake da versão anterior. Nesta reengenharia semântica, não teria doado R$ 2 milhões, mas somente R$ 700 mil, dos quais R$ 600 mil em serviço – pagara o aluguel do jatinho de Serra durante cinco meses. Apesar do remendo, o problema persistia: os R$ 600 mil também estavam ausentes da prestação de contas do PSDB. E complicou-se ainda mais. Foi quando Serra surgiu, então, brandindo a terceira versão: negou toda a revelação de Jereissati e acrescentou – pior – que não usara nenhum avião do empresário. O que era insatisfatório ficou ainda mais grave depois de uma checagem na documentação oficial da campanha: ali aparece o cheque 642487, da agência 0564 do Unibanco, no valor de R$ 50 mil. E nada mais.
A proximidade entre Jereissati e Ricardo Sérgio ficaria mais evidente em 1998, ano notável em que todo o sistema de telefonia do Brasil, a Telebrás, é vendido por pouco mais de R$ 22 bilhões. É uma quantia tão impressionante quanto aquela que a União investira na Telebrás nos dois anos e meio anteriores à privatização: R$ 21 bilhões.”


“O controle acionário da Vale foi vendido em maio de 1997, com direito a financiamento oficial subsidiado aos compradores e uso de moedas podres... Custou a bagatela de US$ 3,3 bilhões. Hoje, o mercado lhe atribui preço 60 vezes maior, ou seja, rondando os US$ 200 bilhões. A companhia foi privatizada de forma perversa, atribuindo-se valor zero às suas imensas reservas de minério de ferro, capazes de suprir a demanda mundial por 400 anos. Além disso, a matéria-prima registrou elevação substancial de preço na primeira década do século 21.”


“Mendonça de Barros liga para Ricardo Sérgio e explica que o Opportunity está com “um problema de fiança” para participar do leilão das teles. E propõe: “Não dá para o Banco do Brasil dar (a fiança)?”
– Acabei de dar – responde Ricardo Sérgio, que alcançou R$ 874 milhões para o consórcio de Dantas. E agrega, cometendo a frase síntese do processo de privatização à brasileira. “Nós estamos no limite da nossa irresponsabilidade.” E emenda outra, mais tosca e premonitória: “Na hora que der merda, estamos juntos desde o início.”
Vale relembrar um telefonema de FHC para Mendonça de Barros. Queria saber a quantas andava a preparação do leilão das teles. Recebe, como resposta, que “estamos com o quadro praticamente fechado”. À vontade, os dois comentam o tom apologético adotado pela mídia para saudar as privatizações, que catapultariam o Brasil ao concerto das grandes nações. Não era ingenuidade. Se, de um lado, os grandes conglomerados propagandeavam as benesses que a venda do patrimônio público traria ao país, de outro, sonegavam aos seus leitores, ouvintes e telespectadores a condição de integrante de consórcios que disputavam a aquisição das teles.
– A imprensa está muito favorável, com editoriais – comenta Mendonça de Barros.
– Está demais, né – diz FHC. – Estão exagerando até... – acrescenta, mordaz com seus áulicos midiáticos.”


“Desde que passou a integrar o clã dos Serra, os horizontes do primo Preciado expandiram-se consideravelmente. Casado com uma prima em primeiro grau do ex-governador de São Paulo, Preciado arrebatou vantagens bancárias distantes das que arrebatariam mortais comuns, brasileiros ou espanhóis. Ou você, leitor, obteria, munido somente de sua integridade e seus belos olhos, um abatimento de seu débito com o Banco do Brasil de R$ 448 milhões para irrisórios R$ 4,1 milhões? Uma redução amiga de 109 vezes o valor da pendência, decididamente, não é para qualquer bico. Mas para bico de tucano, com certeza é...”


“Devendo milhões ao Banco do Brasil, com suas empresas arruinadas ou à beira da bancarrota, Gregório Marín Preciado é uma carta fora do baralho. Certo? Nada disso. Acontece que o empreendedor, primo e sócio de Serra, não é homem de se intimidar com pouca coisa.
Quando se abriu a porteira dourada dos grandes negócios das privatizações na Era FHC, Preciado, num estalar de dedos, transmutou-se em player global para jogar o jogo pesado da privataria. E foi às compras. Representante da empresa Iberdrola, da Espanha, montou o consórcio Guaraniana, que adquiriu três estatais de energia elétrica: a Coelba, da Bahia; a Cosern, do Rio Grande do Norte; e a Celpe, de Pernambuco.
Parece mágica, mas não é. É algo bem mais soturno, movido não pela mão invisível do mercado, mas pela mão onipresente do ex-tesoureiro de Serra e de FHC, Ricardo Sérgio de Oliveira que, no exercício desmesurado do seu cargo, obrigou o Banco do Brasil e a Previ, a caixa de previdência dos funcionários do BB, dois lugares onde dava as cartas e jogava de mão, a entrar na dança de Preciado.”


“Em 2008, quando a empresa de Miami tornou-se novamente notícia devido à repercussão da Satiagraha, que resultou na prisão de Dantas, Verônica Serra distribuiu nota à imprensa negando ser sócia da Decidir. A filha do governador dizia que apenas fazia parte do conselho da Decidir, aberta, de acordo com ela mesma, com o capital do Citibank e do Opportunity.
Sustentava que sua xará Verônica Dantas “foi indicada pelo CVC Opportunity para representá-lo no conselho de administração da Decidir. Não conheço Verônica Dantas, nem pessoalmente, nem de vista, nem por telefone, nem por e‑mail. Ela nunca participou de nenhuma reunião de conselho da Decidir – todas ocorriam mensalmente em Buenos Aires. O Citibank VentureCapital com sede em NY é quem mantinha o CVC Opportunity informado sobre a Decidir”.
A filha do ex-governador afiançava ainda que a Decidir sempre foi sediada em Buenos Aires e que no auge da bolha da internet foi aberta uma subsidiária em Miami. “Eu não tenho nenhuma ligação com a empresa desde o primeiro semestre de 2001”, dizia ainda na nota.
E o que este livro tem de novo a acrescentar sobre a Decidir? Documentos, é claro, obtidos de forma lícita, que esclarecem de vez a saga da sociedade entre as Verônicas. Os papéis comprovam que Verônica mentiu várias vezes em sua nota. A empresa não fechou as portas, Verônica não deixou a empresa e o dinheiro do Opportunity e do Citibank aplicado na firma também nunca esteve na Argentina. Após cancelar seu registro de funcionamento no Departamento de Comércio da Flórida em 2001, a Decicir passa a ter outro endereço. Dá para adivinhar?
As Ilhas Virgens Britânicas, é claro, e mais especificamente para o Citco Building, o velho navio pirata que ajudou a amoitar o dinheiro da propina das privatizações. A Decidir é transformada em offshore e rebatizada como Decidir International Limited. Não se trata de uma estratégia de investimento no Caribe. A legislação do paraíso fiscal caribenho veda transações financeiras em seu próprio território. A finalidade das offshores é a de propiciar transações financeiras intercontinentais. Como ensinam os manuais internacionais de combate aos crimes financeiros, as offshores funcionam como empresas-ônibus, que transportam dinheiro, quase sempre sem origem justificada, entre contas bancárias, um artifício que visa apenas dificultar as investigações fiscais e policiais e de outras autoridades que verificam atividades financeiras provenientes da corrupção, do narcotráfico e do terrorismo. E qual é a função da offshore Decidir? Internar dinheiro. Onde? Na empresa Decidir do Brasil, que funciona no escritório da filha do ex-governador, localizado na Rua Renato Paes de Barros, no bairro Itaim Bibi, em São Paulo (SP). Documento da Junta Comercial de São Paulo revela como a empresa injeta de uma vez R$ 10 milhões, em 2006, na Decidir do Brasil, que muda de nome para Decidir.com.Brasil S.A. Como isto ocorreu? Simplesmente, a offshore de Verônica Serra adquiriu 99% das ações – correspondentes, na época, aos US$ 5 milhões investidos por Dantas e o Citicorp na empresa homônima de Miami – da empresa Decidir Brasil.com.br. É exatamente o que você está lendo: surge na nossa crônica uma terceira “Decidir”...Não é falta de imaginação. Ao contrário, trata-se de uma demonstração inegável de criatividade na tortuosa arte da esquiva. 
Além de funcionar no escritório de Verônica Serra na Rua Dr. Renato Paes de Barros, bairro do Itaim Bibi, em São Paulo, a Decidir brasileira tem como vice-presidente a própria filha do governador.”


“De acordo com documentos obtidos em cartórios, a filha do governador fecha outro negócio, este mais interessante: compra de terceiros, em setembro de 2001, por R$ 475 mil, a mansão em que Serra mora, no bairro Alto de Pinheiros, área nobre de São Paulo. Um excelente negócio para Serra, que continua morando no mesmo endereço. Mas de onde vem esse dinheiro? Não se sabe. Mas Verônica tenta nos ajudar: a fortuna lhe sorriria por obra de ganhos de capital no exterior. À revista IstoÉ Dinheiro (sempre a mesma publicação) ela disse que a chave do cofre traria o nome de Patagon, uma companhia argentina de internet por meio da qual teria levantado cerca de R$ 1 milhão como resultado de aplicações financeiras.”


“A papelada cedida ao autor pelo jornalista Gilberto Nascimento evidencia que o então governador paulista José Serra contratou, sem licitação, por meio da Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo (Prodesp), a empresa Fence Consultoria Empresarial. A Fence é propriedade do ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI), o legendário coronel reformado do Exército Ênio Gomes Fontelle, 73 anos, conhecido na comunidade de informações como “Doutor Escuta”.
A empresa do “Doutor Escuta” foi contratada por R$ 858 mil por ano “mais extras emergenciais” – pagos pelo contribuinte – no dia 10 de julho de 2008. Vale lembrar que nessa época a vida particular do ex-governador de Minas Gerais Aécio Neves estava sendo espreitada por arapongas no Rio de Janeiro, onde a Fence está sediada. Talvez isso explique por que a Prodesp tenha invocado “inelegibilidade” para contratar a empresa do araponga sem licitação.
Em outras palavras, a Prodesp afirma que o “Doutor Escuta” não tinha concorrentes à altura para realizar o serviço. Conforme o contrato, entre outros serviços, a Fence é responsável pela “detecção de incursões eletrônicas nas instalações da Prodesp ou em outras localizações de interesse da empresa”. Isto significa que a empresa tem como acessar os dados pessoais de funcionários públicos, de juízes e até de parlamentares por uma simples razão: a Prodesp é a responsável não só pela folha de pagamento, mas também por todos os serviços de informação do Estado. Ou seja, o contrato concede à firma do “Doutor Escuta” o direito de invadir esses dados na hora que bem entender. Até o fechamento deste livro (final de junho) o governador Geraldo Alckmin (PSDB) mantinha o contrato com a empresa de Fontelle.
E o que o delegado federal e ex-deputado, também federal, Marcelo Itagiba, tem a ver com isso? A resposta quem fornece é o próprio currículo do coronel. O “Doutor Escuta” jacta-se de haver integrado o seleto grupo de arapongas que Serra, quando era ministro da Saúde de FHC, montou na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Sob a batuta de Itagiba, além do coronel Fontelle, estavam ainda mais dois personagens destas páginas. Um deles, o ex-agente do SNI Fernando Luiz Barcellos, de alcunha “agente Jardim”. E… adivinhe quem mais! Sim, ele mesmo, o delegado Onézimo das Graças Sousa, aquele mesmo frequentador do restaurante Fritz, da confeitaria Praline e das páginas da Veja e dos jornalões em 2010.
O ninho de arapongas da Anvisa foi desativado pelo próprio Serra, o que aconteceu após a imprensa denunciar que a vida privada de servidores do Ministério da Saúde e de desafetos do então ministro – entre eles seu colega, o ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, falecido em 2010 – estaria sendo esquadrinhada. Na época, o argumento de Serra para a arregimentação de arapongas foi o medo. Receava ser grampeado por representantes das indústrias de medicamentos, que teriam sido contrariados por medidas do governo.
Coincidentemente, o “Doutor Escuta” e os demais pássaros foram contratados em 2002, quando partidários do PFL (atual DEM) denunciaram a suposta vinculação de setores do governo do PSDB com os grampos fatais à candidatura pefelista à Presidência da República. Teriam levado a Polícia Federal a descobrir que a empresa Lunus, de propriedade da candidata Roseana Sarney e de seu marido Jorge Murad, guardava R$ 1,34 milhão em seu cofre. Suspeita-se que o dinheiro alimentaria a campanha do PFL, implodida ali mesmo pela apreensão.”


“Toda essa simulação para internar dinheiro sujo certamente teria fim com uma providência: a proibição pelo governo da entrada de offshores em sociedades com firmas do Brasil. Só deveria ser permitido o ingresso nas empresas nacionais de companhias estrangeiras que identificassem o nome de seus verdadeiros donos em seus balanços contábeis. É uma medida simples que certamente ajudaria a conter o grande esquema de lavagem do dinheiro e o assalto aos recursos públicos.”


“Como já foi evidenciado, todos os dados que alimentam estas páginas foram coletados de forma legal em cartórios de títulos e documentos, juntas comerciais do país e do exterior e em processos judiciais diversos. Comparar as datas serve para constatar, por exemplo, a inutilidade das declarações de renda do vice-presidente do PSDB e de familiares de Serra – vazadas por funcionário da agência da Receita Federal em Mauá, na região do ABC paulista – para a produção deste livro. Segundo investigação da PF e da Corregedoria da Receita Federal, os sigilos dos dirigentes tucanos e familiares de Serra foram acessados irregularmente nos anos de 2007 e 2008. Acontece que este livro detalha exclusivamente operações do período que vai de 1998 a 2003. Ou seja, as movimentações verificadas durante e logo após as privatizações. Por isso é tão importante cotejar data com data. “Eu falo para os chefes do meu jornal que as datas não batem, que a história não bate, mas a verdade não lhes interessa”, ouvi de um colega de um dos jornalões durante a cobertura da crise.”


“Nos dias anteriores ouvira relatos de jornalistas e mesmo de tucanos de que o Eduardo “Sombra” Jorge havia transformado a cobertura midiática da quebra do sigilo numa grande ópera bufa, em que ele era o mais divertido dos personagens. Com ironia, colegas de imprensa diziam que, de posse de informações privilegiadas do inquérito, o prócer do PSDB travestira-se de pauteiro e editor de veículos dos quais arrancara indenizações milionárias em ações de danos morais. EJ teria iniciado um verdadeiro leilão em trocadas informações privilegiadas. Não pedia dinheiro ou algum benefício pessoal. Apenas exigia determinado espaço, chegando a definir qual seria a linha editorial da matéria. Se determinado jornal não concordasse com suas exigências, simplesmente transferia o “furo” ao concorrente. Pareceu algo simplesmente genial. EJ conseguira a façanha tão desejada pelos blogs: levar a mídia ao papel ridículo que se propôs a assumir no pleito. Além de arrancar fábulas de dinheiro dos jornais e revistas que no passado haviam publicado reportagens que considerou caluniosas, EJ tinha o prazer de aumentar seu poder de vingança, ao assumir o controle editorial, mesmo que momentâneo, das páginas de política. E, de sobra, irritava Serra que o havia deixado de lado durante a campanha eleitoral. Afinal, Serra acionara seus arapongas com o objetivo inverso, o de impedir que as denúncias viessem a público. Acabou perdendo o controle da situação devido aos conflitos internos do PSDB e ao fogo amigo petista, que colocaram o tema em pauta. O sinal de que o candidato tucano não queria confusão com o assunto foi sinalizado pelo próprio Serra ao autor. Na reta final da campanha, quando meu nome frequentava as manchetes, Márcio Aith, assessor de imprensa do tucano, tentou marcar um encontro comigo. Escaldado com a arapongagem serrista, rejeitei a ideia. “Não é nada disso. O Serra só quer dizer que não tem nada contra você”, mandou Aith dizer.”


“Depois desta jornada pelos pântanos da política em que todos são vilões e o Brasil é a vítima, acho importante encerrar a narrativa com algumas observações. A primeira delas é que o país e suas instituições não têm o direito de continuar fazendo de conta que não viram a rapinagem organizada que devastou os bens do Estado nos anos 1990 e começo da década seguinte. E que serviu para tornar os ricos mais ricos.
Varrer a sujeira para debaixo do tapete, como se fez tantas vezes, não é mais possível. Não há tapete suficiente para acobertar tanto lixo. O Brasil, que escondeu a escravidão e ainda oculta a barbárie de suas ditaduras, não pode negar aos brasileiros a evisceração da privataria. Quem for inocente que seja inocentado, quem for culpado que expie sua culpa.
Se isso não acontecer, isto é, se a memória do saque não se tornar um patrimônio dos brasileiros, o país poderá repetir esta história, mais cedo ou mais tarde. Não é demais reparar que, na América Latina, estamos atrasados nestas providências. No México, o ex-presidente Carlos Salinas de Gortari – espécie de santo padroeiro da privataria latina – crivado de denúncias de corrupção, saltou em seu jatinho e fugiu para Nova York. Na Bolívia, após privatizar até a água, que entregou à francesa Suez-Lyonnaise des Eaux e à norte-americana Betchel, o “modernizador neoliberal” Gonzalo Sánchez de Lozada foi ejetado do seu trono aos gritos de “assassino” e voou para Miami.
Tripulando uma razia privatizante que liquidou até mesmo estatais que davam lucro e um processo de concentração de renda que desempregou 30% da população ativa, Carlos Menen virou sinônimo de azar. Na Argentina, as pessoas dizem “Mendéz” para não pronunciar seu nome receando uma catástrofe. No Peru, após aprovar sua segunda reeleição, Alberto Fujimori evadiu-se do país sob acusação de surrupiar US$ 15 milhões do erário e de autorizara execução de dissidentes. Condenado a 25 anos de prisão, Fujimori admitiu, depois, ter concedido propinas – “briberization”, como diria Joseph Stiglitz – o que somou à sua pena mais alguns anos de cadeia.
Para quem entende a desigualdade social como um valor em si mesmo e o Estado do Bem-Estar Social como um trambolho no caminho da realização plena do indivíduo, Salinas de Gortari, Sánchez de Losada, Menem, Fujimori e similares fizeram o que tinham que fazer. Foram flagrados – uma lástima do seu ponto de vista – mas não se pode fazer maiores reparos à sua ação política em termos de coerência. Resta saber se quem interpreta o Estado Mínimo como uma perversidade ineficaz – aqui ou em qualquer outro lugar – está disposto a fazer valer sua condição cidadã e exigir da Polícia, do Fisco, do Ministério Público e da Justiça que cumpram a sua parte. Se jogar uma luz sobre este passado ainda imerso nas sombras, este livro, que termina aqui, terá cumprido a sua parte. E tudo o que houve terá valido a pena.”

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