Editora: Companhia Editora Nacional
ISBN: 978-85-0400-611-7
Tradução:
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 302
Sinopse: Publicada
originalmente em 1949, a distopia futurista 1984 é um dos
romances mais influentes do século XX, um inquestionável clássico moderno.
Lançada poucos meses antes da morte do autor, é uma obra magistral que ainda se
impõe como uma poderosa reflexão ficcional sobre a essência nefasta de qualquer
forma de poder totalitário.
Winston, herói de 1984, último romance de
George Orwell, vive aprisionado na engrenagem totalitária de uma sociedade
completamente dominada pelo Estado, onde tudo é feito coletivamente, mas cada
qual vive sozinho. Ninguém escapa à vigilância do Grande Irmão, a mais famosa
personificação literária de um poder cínico e cruel ao infinito, além de vazio
de sentido histórico. De fato, a ideologia do Partido dominante em Oceânia não
visa nada de coisa alguma para ninguém, no presente ou no futuro. O'Brien,
hierarca do Partido, é quem explica a Winston que “só nos interessa o poder em
si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade: só o poder pelo
poder, poder puro”.
Quando foi publicada em 1949, essa assustadora distopia
datada de forma arbitrária num futuro perigosamente próximo logo experimentaria
um imenso sucesso de público. Seus principais ingredientes – um homem sozinho
desafiando uma tremenda ditadura; sexo furtivo e libertador; horrores letais –
atraíram leitores de todas as idades, à esquerda e à direita do espectro
político, com maior ou menor grau de instrução.
À parte isso, a escrita translúcida de George Orwell, os
personagens fortes, traçados a carvão por um vigoroso desenhista de
personalidades, a trama seca e crua e o tom de sátira sombria garantiram a
entrada precoce de 1984 no restrito panteão dos grandes
clássicos modernos. Algumas das ideias centrais do livro dão muito o que pensar
até hoje, como a contraditória Novafala imposta pelo Partido para renomear as
coisas, as instituições e o próprio mundo, manipulando ao infinito a realidade.
Afinal, quem não conhece hoje em dia “ministérios da defesa” dedicados a
promover ataques bélicos a outros países, da mesma forma que, no livro de
Orwell, o “Ministério do Amor” é o local onde Winston será submetido às mais
bárbaras torturas nas mãos de seu suposto amigo OBrien. Muitos leram 1984 como
uma crítica devastadora aos belicosos totalitarismos nazifascistas da Europa,
de cujos terríveis crimes o mundo ainda tentava se recuperar quando o livro
veio a lume. Nos Estados Unidos, foi visto como uma fantasia de horror quase
cômico voltada contra o comunismo da hoje extinta União Soviética, então sob o
comando de Stálin e seu Partido único e inquestionável. No entanto, superando
todas as conjunturas históricas – e até mesmo a data futurista do título –, a
obra magistral de George Orwell ainda se impõe como uma poderosa reflexão
ficcional sobre os excessos delirantes, mas perfeitamente possíveis, de
qualquer forma de poder incontestado, seja onde for.
“Seu espírito mergulhou no mundo labiríntico
do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao
exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas
opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas;
usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade,
crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da
democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória
prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo,
aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir
conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de
hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar”
era necessário usar o duplipensar.”
“Ortodoxia quer dizer não pensar... não
precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência.”
“Contanto que continuassem a trabalhar e se
reproduzir, não tinham importância as atividades dos proles. Abandonados a si
mesmos, como gado solto nas planícies argentinas, haviam regressado a um modo
de vida que lhes parecia natural, uma espécie de tradição ancestral. Nasciam,
cresciam nas sarjetas, iam para o trabalho aos doze, atravessavam um breve
período de floração da beleza e do desejo sexual, casavam-se aos vinte,
atingiam a maturidade aos trinta, e em geral morriam aos sessenta. O trabalho
físico pesado, o trato da casa e dos filhos, as briguinhas com a vizinhança, o
cinema, o futebol, a cerveja e, acima de tudo, o jogo, enchiam-lhes os
horizontes. Mantê-los sob controle não era difícil. Alguns agentes da Polícia
do Pensamento estavam sempre entre eles, soltando boatos, marcando e eliminando
os poucos indivíduos julgados capazes de se tornar perigosos; mas não se
tentava doutriná-los com a ideologia do partido. Não era desejável que os
proles tivessem sentimentos políticos definidos. Tudo que se lhes exigia era
uma espécie de patriotismo primitivo ao qual se podia apelar sempre que fosse
necessário levá-los a aceitar rações menores ou maior expediente de trabalho. E
mesmo quando ficavam descontentes, como às vezes acontecia, o descontentamento
não os conduzia a parte alguma porque, não tendo ideias gerais, só podiam
focalizar a animosidade em ridículas reivindicações específicas. Os males
maiores geralmente lhes fugiam à observação.”
“Era à noite que vinham buscar a gente,
sempre à noite. O melhor era matar-se antes de ser apanhado. Sem dúvida havia
gente capaz disso. Com efeito, muitos dos desaparecidos eram suicidas. Mas era
preciso coragem desesperada para se matar num mundo em que era impossível obter
armas de fogo, ou veneno rápido e certo. Pensou, com uma espécie de assombro,
na inutilidade biológica da dor e do medo, na traição do corpo humano que
sempre se congela na inércia, no momento exato em que dele se exige esforço
especial. Poderia ter silenciado a moça morena se conseguisse agir com rapidez,
mas precisamente por causa do perigo extremo que corria perdera a capacidade de
agir. Ocorreu-lhe que, em momentos de crise, nunca se luta com um inimigo
externo, mas com o próprio organismo. Mesmo agora, apesar do gim, a dor surda
do ventre tornava impossível dois pensamentos consecutivos. E é o mesmo em
todas as situações aparentemente heroicas ou trágicas. No campo de batalha, na
câmara de tortura, num navio que naufraga, as causas por que lutamos são sempre
secundárias, esquecidas, porque o corpo incha e se infla até ocupar todo o
universo, e mesmo quando não nos paralisa o medo, nem gritamos de dor, a vida é
uma luta, minuto a minuto, contra a fome, o frio, a insônia, contra dor de
estômago ou de dentes.”
“– Estou disposta a correr riscos, mas só por
coisas que valham a pena, não por causa de pedacinhos de papel. Que poderias
fazer com o recorte, se o guardasses?
– Pouca coisa, talvez. Mas era prova. Poderia
ter semeado algumas dúvidas, aqui e ali, supondo que ousasse mostrá-lo a
alguém. Não creio que possamos alterar coisa alguma nesta vida. Mas posso
imaginar pequenos nódulos de resistência brotando aqui e ali... pequenos grupos
de gente que se reúne, e vão crescendo, e deixando algumas notas, de modo que a
geração seguinte possa continuar a obra.
– Não estou interessada na próxima geração,
querido, mas sim em nós.
– És rebelde só da cintura para baixo - disse
ele.
Ela achou esta frase excepcionalmente jocosa
e atirou os braços em torno dele, deliciada.
Tampouco tinha Júlia o menor interesse pelas
ramificações da doutrina do Partido. Sempre que ele começava a falar dos
princípios do Ingsoc, duplipensar, a mutabilidade do passado e a negação da
realidade objetiva, e a usar palavras de Novilíngua, ela ficava aborrecida,
confusa, e dizia não ter jamais prestado atenção a essas coisas. Sabia que era
tudo lixo, portanto para que se preocupar com ele? Sabia quando aplaudir e
quando vaiar, e era toda a ciência de que precisava. Quando ele persistia em
falar de tais assuntos, Júlia tinha o hábito desconcertante de adormecer. Era
uma dessas pessoas que podem adormecer a qualquer momento, em qualquer posição.
Falando com ela, Winston percebeu como era fácil aparentar ortodoxia, sem ter a
menor noção do que fosse ortodoxia. De certo modo, o ponto de vista do Partido
se impunha com mais êxito às pessoas incapazes de compreendê-lo. Aceitavam as
mais flagrantes violações da realidade porque jamais percebiam inteiramente a
enormidade do que lhes era exigido, e não estavam suficientemente interessadas
para observar o que acontecia. Graças à falta de compreensão permaneciam sãs de
juízo. Apenas engoliam tudo, e o que engoliam não lhes fazia mal, porque não
deixava resíduo, do mesmo modo que um grão de milho passa, sem ser digerido, pelo
corpo de uma ave.”
“Tornou-se também claro que o aumento total
da riqueza ameaça destruir – com efeito, de certo modo era a
destruição – de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que todos trabalhassem
pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com banheiro e
refrigerador, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais
flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a
riqueza não conferia distinção. Era possível, sem dúvida, imaginar uma
sociedade em que a riqueza, no sentido de posse pessoal de bens e luxos,
fosse igualmente distribuída, ficando o poder nas mãos de uma
pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não poderia ser
estável. Pois se o lazer e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa
de seres humanos, normalmente imbecilizada pela miséria, aprenderia a ler e
aprenderia a pensar por si; e uma vez isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde
veria que não tinha função a minoria privilegiada, e acabaria com ela. De maneira
permanente, uma sociedade hierárquica só é possível na base da pobreza e da
ignorância.”
“Todos os governantes de todas as épocas têm
tentado impor aos seus adeptos uma falsa visão do mundo, mas não podiam se dar
ao luxo de encorajar nenhuma ilusão que tendesse a prejudicar a eficiência
militar. Considerando que a derrota significava a perda de independência, ou
outro resultado geralmente julgado indesejável, era preciso tomar sérias
precauções contra a derrota. Não se podia ignorar os fatos físicos. Na filosofia,
religião, ética, ou política, dois e dois podem ser cinco, mas quando se
desenha um canhão ou um avião, somam quatro.”
“Mas quando a guerra se torna literalmente
contínua, cessa também de ser perigosa.”
“Desde que se começou a escrever a história,
e provavelmente desde o fim do Período Neolítico, tem havido três classes no
mundo: Alta, Média e Baixa. Têm-se subdividido de muitas maneiras, receberam
inúmeros nomes diferentes, e sua relação quantitativa, assim como sua atitude
em relação às outras, variaram segundo as épocas; mas nunca se alterou a
estrutura essencial da sociedade. (...)
Os objetivos desses três grupos são
inteiramente irreconciliáveis. O objetivo da Alta é ficar onde está. O da Média
é trocar de lugar com a Alta. E o objetivo da Baixa, quando tem objetivo – pois
é característica constante da Baixa viver tão esmagada pela monotonia do
trabalho cotidiano que só intermitentemente tem consciência do que existe fora
de sua vida – é abolir todas as distinções e criar uma sociedade em que todos
sejam iguais. Assim, por toda a história, trava-se repetidamente uma luta que é
a mesma em seus traços gerais. Por longos períodos a Alta parece firme no
poder, porém mais cedo ou mais tarde chega um momento em que, ou perde a fé em
si própria ou sua capacidade de governar com eficiência, ou ambas. É então
derrubada pela Média, que atrai a Baixa ao seu lado, fingindo lutar pela
liberdade e a justiça. Assim que alcança sua meta, a Média joga a Baixa na sua
velha posição servil e transforma-se em Alta. Dentro em breve, uma nova classe
Média se separa dos outros grupos, de um deles ou de ambos, e a luta recomeça.
Das três classes, só a Baixa nunca consegue nem êxito temporário na obtenção
dos seus ideais.”
“A chamada “abolição da propriedade privada”,
que se verificou em meados do século, significou, com efeito, a concentração da
propriedade em número muito menor de mãos, mas com a diferença de que os novos
donos eram um grupo em vez de uma massa de indivíduos. Individualmente, nenhum
membro do Partido possui coisa alguma, exceto ninharias pessoais.
Coletivamente, o Partido é dono de tudo na Oceania, porque tudo controla, e
dispõe dos seus produtos como bem lhe parece.”
“O Partido não é uma classe no antigo sentido
da palavra. Não tem por objetivo transmitir o poder aos próprios filhos; e se
não houvesse outro meio de conservar os mais capazes nos postos de comando,
estaria perfeitamente disposto a recrutar toda uma geração nova das fileiras do
proletariado. Nos anos cruciais, muito contribuiu para neutralizar a oposição o
fato de o Partido não ser um organismo hereditário. O antigo tipo de
socialista, treinado a lutar contra o que às vezes se chamava “privilégio de
classe”, supunha que o que não fosse hereditário não podia ser permanente. Não
percebia que a continuidade de uma oligarquia não precisava ser física, nem
fazia pausa para refletir que as aristocracias hereditárias sempre tiveram vida
curta, enquanto que organizações auto-renovantes, como a Igreja Católica, às
vezes duram centenas e mesmo milhares de anos. A essência do jugo oligárquico
não é a herança de pai a filho, mas a persistência de certo ponto de vista em
face do mundo e de certa maneira de viver, imposta aos vivos pelos mortos. Um
grupo dominante só continua mandando enquanto consegue nomear seus sucessores.
O Partido não se interessa pela perpetuação do seu sangue, mas pela perpetuação
da entidade. O que importa não é quem maneja o poder, contanto
que permaneça sempre a mesma a estrutura hierárquica.”
“Assim, o Partido rejeita e vilifica qualquer
princípio originalmente defendido pelo movimento socialista, e no entanto o faz
em nome do socialismo.”
“– Também te pegaram! – exclamou.
– Pegaram-me há muito tempo – disse O’Brien,
com leve ironia, quase arrependida. Deu um passo para o lado e por trás dele
apareceu um guarda de peito largo, com um longo bastão negro na mão.
– Sabias disto – disse O’Brien. – Não te
iludas, Winston. Sabias... sempre soube.
Sim, agora ele via que sempre soubera. Mas
não houve tempo para pensar. Só tinha olhos para o bastão do guarda. Podia cair
em qualquer parte: no alto da cabeça, na ponta da orelha, no braço, no
cotovelo...
O cotovelo! Caíra de joelhos, quase
paralisado, protegendo com a mão o cotovelo atingido. Tudo explodira numa luz
amarela. Inconcebível, inconcebível que um só golpe produzisse tamanha dor! O
amarelo se foi e ele pôde enxergar os dois a contemplá-lo. O guarda ria-se das
suas contorções. Ao menos uma dúvida fora esclarecida. Nunca, por nenhuma
razão, se poderia desejar que a dor aumentasse. Da dor, só se podia desejar uma
coisa, que parasse. Nada no mundo era tão horrível como a dor física. Em face
da dor não há heróis, não há heróis, ele pensou e tornou a pensar, torcendo-se
no chão, segurando à toa o braço esquerdo inválido.”
“– Somos diferentes de todas as oligarquias
do passado, porque sabemos o que estamos fazendo. Todas as outras, até mesmo as
que se assemelhavam conosco, eram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e
os comunistas russos muito se aproximaram de nós nos métodos, mas nunca tiveram
a coragem de reconhecer os próprios motivos. Fingiam, talvez até acreditassem,
ter tomado o poder sem querer, e por tempo limitado, e que bastava dobrar a
esquina para entrar num paraíso onde os seres humanos seriam iguais e livres. Nós
não somos assim. Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de
largá-lo. O poder não é um meio, é um fim em si. Não se estabelece uma ditadura
para salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a
ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a
tortura. O objetivo do poder é o poder. Agora começou a me compreender?”
“Se queres uma imagem do futuro, pensa numa
bota pisando num rosto humano, para sempre.”
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