sexta-feira, 9 de julho de 2010

Baudolino, de Umberto Eco

Editora: BestBolso

ISBN: 978-85-7799-049-8

Tradução: Marco Lucchesi

Opinião: ★★★★★

Páginas: 600

Sinopse: Entre monstros que habitam o inconsciente da Idade Média, este livro de Umberto Eco combina diferentes modos de narrativa: o romance de aventuras, o conto fantástico, a história de mistério. Uma homenagem do autor ao santo protetor de sua cidade natal, Alexandria, protagonizada por Baudolino, adolescente, mentiroso e criativo que conquista o imperador Frederico Barba Ruiva e Nicetas Coniates, personagem inspirado em um historiador e orador que viveu em Constantinopla. Eco embaralha os seus personagens inventados e produz o mais recorrente efeito de seu texto: interferir em acontecimentos históricos conhecidos por meio de atos ou circunstâncias vividas pelos personagens fictícios. O resultado é imperdível: temperado por inúmeras situações cômicas, eis aqui uma narrativa divertida e acessível, tanto para quem busca a erudição de Umberto Eco como para quem apenas quer ler uma boa aventura. Uma celebração à força do mito e da utopia.


 

“Mas, afinal, isso tudo é conversa; quando um guerreiro entra numa cidade, não há religião que resista.”

 

 

“‘Baudolino’, dizia-lhe, ‘és um mentiroso nato’.

‘Mestre, por que dizes isso?’

‘Porque é verdade. Mas não penses que te censuro. Se queres transformar-te num homem de letras, e, quem sabe um dia, escrever Histórias, deves também mentir, e inventar histórias, pois senão a tua História ficaria monótona. Mas terás de fazê-lo com moderação. O mundo condena os mentirosos que só sabem mentir, até mesmo sobre coisas mínimas, e premia os poetas que mentem apenas sobre coisas grandiosas’.”

 

 

“Baudolino sentia pena daquele Frederico (Barba Ruiva) que, grande, forte e poderoso, não conseguia, no entanto, aprovar a maneira de pensar daqueles súditos. E pensar que gastava muito mais tempo na península italiana do que em suas terras. Ele, dizia para si Baudolino, quer bem à nossa gente e não entende a razão pela qual é traído por ela. Deve ser por isso talvez que a esteja matando, como um marido ciumento.”

 

 

“‘Em Paris, hás de estudar retórica e ler os poetas: a retórica é a arte de dizer bem aquilo que não é certo que seja verdade, e os poetas têm o dever de inventar belas mentiras.”

 

 

“Lia sobre terras distantes, onde viviam crocodilos, grandes serpentes aquáticas, que após terem comido os homens choravam, moviam a maxila superior e não possuíam língua; os hipopótamos, metade homens e metade cavalos; a besta leucrócoca, corpo de asno, traseiro de cervo, peito e coxas de leão, pés de cavalo, chifre bifurcado, boca cortada até as orelhas, da qual sai uma voz quase humana e no lugar dos dentes não havia mais que um osso. Lia sobre países onde moravam homens sem articulações nos joelhos, homens sem língua, homens de orelhas tão grandes que chegavam a proteger o corpo do frio, e os ciápodes, que correm, velocíssimos, num só pé.

Não podendo enviar a Beatriz as canções que não fossem as suas (e ainda que ele as escrevesse, não ousaria), decidiu que, tal como se costumam enviar flores ou joias à amada, haveria de dar-lhe todas as maravilhas que ia conquistando. Assim, escrevia-lhe sobre terras nas quais cresciam árvores da farinha e do mel, do monte Arafat, sobre cuja elevação, nos dias límpidos, viam-se os restos da arca de Noé, e quem chegou até lá em cima diz que conseguiu tocar com o dedo o furo pelo qual escapou o demônio quando Noé recitou o Benedicite. Falava-lhe da Albânia, um imenso país onde os homens são mais brancos do que em outros lugares e seus pés são finos como os bigodes dos gatos; de um país no qual, se alguém olha para o oriente, projeta a própria sombra à direita; de outro, habitado por gente ferocíssima, onde, ao nascerem as crianças, faz-se grande luto, e grande festas quando morrem; sobre regiões onde surgem enormes montanhas de ouro vigiadas por formigas tão grandes como os cães, e onde vivem as Amazonas, mulheres guerreiras que mantêm os homens numa região limítrofe, se dão à luz um menino mandam-no ao pai, quando não o matam; se geram uma menina arrancam-lhe o seio com um ferro em brasa, se for de origem nobre, o seio esquerdo, para que possa carregar o escudo, se de origem baixa, o seio direito para que possa atirar com o arco. E contava-lhe, afinal, sobre o Nilo, um dos quatro rios, que nascem do monte do Paraíso Terrestre, corre pelos desertos da Índia, avança pelo subsolo, volta a subir perto do monte Atlas, e finalmente se lança ao mar, após atravessar o Egito.”

 

 

“Na juventude temos a inclinação de nos apaixonarmos pelo amor.”

 

 

“‘Muitas relíquias guardadas aqui em Constantinopla são de origem duvidosa, mas o fiel que vai beijá-las sente a emanação de aromas sobrenaturais. É a fé que as faz verdadeiras, não são elas que fazem a verdadeira fé’.”

 

 

“Na corte aprendi quatro coisas: se estás do lado dos grandes homens, te tornas grande também, os grandes homens são na realidade muito pequenos, o poder é tudo, e não há razão pela qual um dia não o possas tomar, pelo menos em parte. É preciso saber esperar, é claro, mas não deixar passar a oportunidade’.”

 

 

““– Mas tu, Zózimo, jura, jura que não tentarás outro golpe...”

“Juro por todos os doze santíssimos apóstolos”, disse Zózimo.

“Onze, onze seu desgraçado”, gritou Baudolino, agarrando-o pela vestimenta, “se dizes doze estás incluindo Judas também!”

“Está bem, onze”.”

 

 

“O Poeta dizia, espumando de raiva, que nos manuscritos da biblioteca de São Vítor lia-se que quem viajava por aquelas terras não fazia mais que deparar-se com esplêndidas cidades, templos com telhados cobertos de esmeraldas, palácios com teto de ouro, colunas com capitéis de ébano, estátuas que pareciam vivas, altares de ouro com sessenta degraus, muros de safira pura, pedras tão luminosas que chegavam a luzir como tochas, montanhas de cristal, rios de diamantes, jardins com árvores das quais gotejam bálsamos perfumados, que permitem aos habitantes viver aspirando apenas seus aromas, mosteiros em que se criavam apenas pavões coloridíssimos, cuja carne não sofria corrupção, e se a levassem em viagem, mantinha-se conservada por trinta dias ou mais, mesmo sob um sol ardente, sem nunca emanar mau cheiro, fontes esplendorosas cuja água brilha como a luz de um raio, tanto que, se ali colocarmos um peixe seco, conservado em sal, ei-lo na juventude – mas, até então, viram desertos, matagais e maciços em que não se podia sequer descansar sobre suas pedras porque cozinhavam suas nádegas; as únicas cidades que haviam encontrado eram feitas de casebres miseráveis, e habitadas por uma gentalha repugnante, como em Colandiofonta, onde viram os artabantes, homens que caminhavam agachados como as ovelhas, em Iambut, onde esperavam repousar após ter atravessado planícies queimadas, e as mulheres, embora não fossem belas, não eram muito feias, mas descobriram que, fidelíssimas a seus maridos, guardavam serpentes venenosas na vagina para defender sua castidade – e se ao menos lhe tivessem dito isso pouco antes, mas não, uma fingira entregar-se ao Poeta, que por pouco não teve de se consagrar à castidade perpétua, e sorte a dele que ouviu um sibilo e deu um salto para trás. Perto dos pântanos de Catardese encontraram homens com testículos que chegavam até os joelhos, e em Necuveram, homens nus como animais selvagens, que copulavam na rua feito cães, o pai se unia com a filha e o filho com a mãe. Em Tana, encontraram antropófagos, que, por sorte, não comiam estrangeiros, porque lhes davam nojo, mas apenas as suas crianças. Junto do rio Arlon, passaram por uma aldeia onde os habitantes dançavam ao redor de um ídolo e com facas afiadas infligiam-se feridas em todos os membros, depois o ídolo foi colocado numa carroça, e levado pelas ruas, e muitos deles se lançavam com alegria debaixo das rodas da carroça, quebrando os próprios membros até morrer. Em Salibut, atravessaram um bosque infestado de pulgas tão grandes como as rãs, e em Cariamaria encontraram homens peludos que ladravam, e nem sequer Baudolino podia entender a sua língua, e mulheres com dentes de javalis, cabelos até os pés e rabo de vaca.

Viram essas e outras coisas horripilantes, mas nunca as maravilhas do Oriente, como se todos aqueles que escrevessem a seu respeito não passassem de grandes mentirosos.

Ardzrouni recomendou que tivessem paciência, porque dissera também que antes do Paraíso Terrestre havia uma terra muito selvagem, mas o Poeta respondia que a terra selvagem era habitada por animais ferozes, que por sorte ainda não haviam visto, e portanto ainda estava por vir, e se aquelas que viram eram, no entanto, as terras não selvagens, imaginemos o restante.”

 

 

“Quando reina a anarquia, dizia o Poeta, qualquer um pode se fazer rei. Para isso era preciso encontrar dinheiro. Nossos cinco sobreviventes estavam esfarrapados, sujos e sem qualquer recurso. Foram recebidos pelos genoveses de coração, mas diziam que hóspede é como o peixe, que começa a cheirar mal depois de três dias.”

 

 

“Não há nada mais injusto do que o castigo para o justo que pecou, meus amigos, porque para o pior dos pecadores perdoa-se o último dos pecados, mas ao justo nem sequer o primeiro.”

2 comentários:

N* disse...

tenho esse há anos e não li ainda.
vou providenciar isso já!

Doney disse...

Faça isto, companheiro, pois vale muito a pena, é uma obra muito cômica.