segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A Exceção – Christian Jungersen

Editora: Intrínseca
ISBN: 978-85-9807-822-9
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 560
Sinopse: Com um enredo que envolve competição, sabotagem, terror psicológico e crimes, A exceção traz à luz um problema que no Brasil, de acordo com estudo realizado pela PUC-SP, atinge 33% das pessoas em seu ambiente de trabalho: o assédio moral.
O livro retrata o apodrecimento das relações entre cinco profissionais que atuam no Centro Dinamarquês de Informações sobre Genocídios, organização europeia com finalidades acadêmicas e humanitárias. Lá, duas jovens trabalham com a análise e a divulgação de dados sobre movimentos genocidas que deixaram, no século XX, 60 milhões de mortos em todo o mundo. Elas dividem o escritório com o chefe, que luta por financiadores, prestígio e contra uma possível fusão, e duas mulheres mais velhas: uma secretária de passado nebuloso e uma bibliotecária recém-contratada, alvo de inexplicáveis maus-tratos das colegas.
A hostilidade e os desentendimentos aumentam quando as jovens começam a receber e-mails com ameaças de teor neonazista. As pistas indicam que o autor é um criminoso de guerra, alvo de artigos publicados pelo Centro, mas, em meio a hostilidades contínuas, as duas acabam manipulando as circunstâncias para que a bibliotecária se torne a principal suspeita. Tudo isto produz uma paranóia que ultrapassa os limites do Centro e contamina os relacionamentos íntimos. Os personagens constroem e desfazem alianças ao sabor das conveniências. Amigas disputam o mesmo homem. Acadêmicos e jornalistas são manipulados visando vantagens pessoais. Profissionais de alto nível envolvem-se com invasões a domicílios, usam falsa identidade e cometem crimes de informática para rastrear mensagens particulares. Todos, em algum grau, são enredados nesta espiral de tensão e insegurança em um processo que culmina em morte.
Com um paralelo bem construído entre os padrões de comportamento dos personagens e estudos clássicos sobre psicologia social e ódio coletivo, Christian Jungersen faz pensar até que ponto a pessoa comum, numa situação extrema, consegue não se deixar corromper pela maldade. Em A exceção, quem foge à regra não é aquele que compactua com o mal, mas quem resiste a isso.



“Para Malene, essa percepção é muito mais difícil devido à piora da situação entre ela e Rasmus. É como disseram no seriado Seinfeld: “Terminar é como derrubar uma máquina de Coca-Cola. Não se pode fazer isso com um empurrão, é preciso balançar algumas vezes”. Malene percebeu que Rasmus está claramente balançando.”


“Ele coloca a panga sob o queixo dela. É tão larga que ela pode ver sua ponta enquanto a lâmina afiada toca a garganta. Este é o momento em que eu devia pensar em meus entes queridos no meu país, diz uma voz dentro dela. Ninguém lhe vem à mente.
Ela tenta, obriga-se a isso. Todos que eu amo, todos que me amam.
Ninguém ainda. Só a ideia de que desperdicei minha vida, vou morrer e nenhum homem vai chorar por amor e por me perder. Não tenho filhos, nem pai. Minha mãe vai chorar, e também as duas mulheres que são minhas melhores amigas. Mas isso não é o bastante, nem chega perto.”


O mais famoso experimento do mundo em psicologia social
O paradigma experimental de Milgram tornou-se reconhecido internacionalmente com a divulgação em livros para escolas e universidades, jornais, revistas, cinema e programas de televisão. Recentemente, chegou a ser citado em um comercial de TV.
Dois sujeitos são informados de que estão participando de um experimento que pretende testar os efeitos do castigo no aprendizado. Eles sorteiam quem será respectivamente o “professor” e o “aluno”. O sorteio é determinado com antecedência. O verdadeiro sujeito da experiência não sabe que o companheiro é um auxiliar no experimento, que está predestinado a ser o aluno. Consequentemente, o sujeito da experiência será sempre o professor.
O aluno é amarrado a uma cadeira preparada para dar choques elétricos. O examinado-professor é então levado a outra sala, onde só tem contato com o aluno através de um microfone ou do texto em uma tela, que mostra as respostas do aluno. Se o aluno responder incorretamente, o professor é instruído a lhe dar um choque como castigo, apertando um botão.
No começo, os choques são leves. Outra tela mostra a voltagem e o grau de severidade – por exemplo, 15 volts: choque leve. A cada resposta errada, o professor deve aumentar aos poucos a voltagem, em etapas de 15 volts. A escala chega a 420 volts: Perigo – choque grave e então, finalmente, 450 volts: XXX.
Para facilitar as comparações internacionais, há regras precisas para o comportamento do líder do experimento e de seu assistente. O aluno nunca leva um choque realmente, mas, quando o sujeito do experimento acredita que está aplicando uma carga de 300 volts, o aluno protesta batendo a cabeça na parede que o separa do professor. Ele bate com um choque de 315 volts e em seguida não faz ou não diz nada. A implicação é a de que, a essa altura, o aluno pode estar inconsciente.
O professor é informado de que qualquer erro em uma resposta deve ser considerado uma resposta incorreta e por isso, apesar do silêncio do aluno, a voltagem deve aumentar na etapa seguinte.
Se o sujeito da experiência protestar, o líder do experimento tem quatro opções de comando. A primeira é que: “Por favor, continue”; e depois: “o experimento requer que você continue”; em seguida: “É absolutamente essencial que você continue”. A última opção é “Você não tem escolha. Deve continuar.” Se o sujeito da experiência ainda se recusar a prosseguir, o experimento é interrompido.
A reação mais comum até agora é de que o examinado-professor proteste repetidamente e, à medida que o experimento prossiga, comece a suar, tremer, gaguejar, gemer e morder o lábio.
Quando chegam ao laboratório, em geral os participantes estão relaxados e confiantes, mas no curso dos primeiros vinte minutos costumam ficar perto de um colapso. Remexendo-se nervosos, eles andam pela sala, como se tentassem decidir se saem ou não. Em geral, prosseguem, falando em voz alta que não podem mais suportar aquilo. Os participantes sabem que estão livres para sair a qualquer hora e que a decisão de encerrar o experimento não terá repercussões. Tudo que têm de dizer é que não querem continuar e, depois, realmente parar.
Apesar disso, dois terços dos examinados no experimento original continuaram obedecendo ao líder até o fim. Em outras palavras, eles aumentaram as voltagens dos choques até o nível mais alto, momento em que o líder pode parar o experimento.
A opinião do próprio Stanley Milgram sobre seus resultados era de que eles confirmavam a percepção de Hannah Arendt da “banalidade do mal”. O sujeito da experiência, que no papel de professor acreditava que tinha usado potências letais de choque, não é um monstro desequilibrado, mas parte de uma maioria de dois terços da população. O comportamento desse subgrupo não era definido por psicose, racismo nem ódio, mas pela obediência.
O experimento de Milgram foi amplamente testado por vários outros grupos nos Estados Unidos e em outros países, e mais tarde Milgram, bem como muitos outros, repetiu a ideia geral com várias modificações. Agora se sabe que a porcentagem de participantes totalmente obedientes é relativamente constante, independentemente de gênero, nacionalidade e ano do teste (início da década de 1960 – dias atuais).
A proporção de sujeitos testados obedientes diminui apenas em pouco pontos percentuais se os gritos e gemidos do aluno são transmitidos por um sistema de intercomunicação, mas cai cerca de 65% para 40% se o professor e o aluno estão na mesma sala. Psicólogos sociais também obtiveram resultados que demonstram que, se o examinado está em uma situação de trabalho e alguém de cargo superior lhe dá ordens destrutivas, a porcentagem de “obediência” aumenta consideravelmente.
Ao longo das décadas, esses experimentos foram elogiados e condenados. A crítica se concentra na possível diferença fundamental entre dar choques elétricos em alguém por um determinado período de tempo e matar pessoas no decorrer de meses ou anos.
Um ponto de vista interessante é o de que muitos criminosos de guerra, em julgamentos no pós-guerra, defenderam-se declarando que “tinham de obedecer a ordens”. Porém, ninguém da defesa conseguiu dar um único exemplo de um soldado alemão punido por se recusar a servir em campos de concentração ou em outros ambientes onde civis eram assassinados.
Os experimentos de Milgram mudaram a percepção dessa questão crucial, transferindo a atenção da obediência forçada para a aceitação espontânea da autoridade.


A Psicologia do Mal II
Em seu livro On Killing, o tenente-coronel Dave Grossman declara que, em uma situação de guerra, homens e mulheres que matam a uma distância suficientemente grande das vítimas não ficam, de acordo com seu conhecimento pessoal, traumatizados mais tarde. Quanto mais perto os soldados chegam da vítima, mais difícil é matar. E, no entanto, nenhum governo sequer cancelou planos para o genocídio por falta de gente disposta a cumprir suas ordens.
Como resolver essa contradição?
Na edição anterior do Jornal do Genocídio, o artigo “A psicologia do Mal I” referiu-se ao trabalho experimental de Stanley Milgram sobre os parâmetros da “obediência à autoridade”. Há dezenas de outras abordagens da psicologia social que também esclarecem a psicologia do exterminador. Este artigo apresenta uma pequena seleção delas.


Os atos talham a postura
Em geral, acreditamos que é a nossa postura que determina nosso comportamento. O contrário também é verdade: o que fazemos afeta nossa maneira de pensar, nossos sentimentos e opiniões.
É inquietante perceber que os atos de uma pessoa estão em conflito com suas crenças. Para se distanciar disso, uma pessoa inconscientemente tende a adaptar sua postura e seus sentimentos, em vez de mudar seu comportamento. Os psicólogos sociais realizaram centenas de experimentos tentando identificar exatamente como é realizada esta mudança na postura.
Festinger e Carlsmith elaboraram um teste em que os participantes recebiam tarefas tediosas cuja conclusão consumia muitas horas, como mudar a posição de estacas, para frente e para trás, e de um lado para outro. Quando o líder finalmente diz aos participantes que o experimento terminou, eles também são informados de que o assistente do líder, que ia instruir o participante seguinte na fila e ressaltar como a tarefa era empolgante, chegaria atrasado. Os participantes atuais eram então indagados se podiam assumir o papel do assistente, recebendo os novos participantes e falando-lhes dos procedimentos. Um grupo foi solicitado a mentir sobre a alegria de participar do experimento, o outro grupo não foi solicitado a demonstrar entusiasmo.
Os resultados mostraram que os que receberam um dólar e mentiram aos novos participantes sentiram que o experimento realmente foi uma boa experiência. Aqueles que receberam vinte dólares e os que não foram solicitados a mentir admitiram depois que acharam a experiência insípida. Uma quantia maior proporcionava um incentivo externo mais forte para mentir aos novos participantes, e daí eles não sentiam a necessidade subconsciente de mudar a opinião que originalmente tinham do experimento para explicar seus atos a si mesmos. Só os que receberam uma pequena recompensa precisaram mudar de opinião a fim de fazer uma ligação entre seus pensamentos e seus atos. Este instinto é impelido pela falta de convicção interna, estado desagradável que é um conceito fundamental da psicologia social e é descrito pela expressão “dissonância cognitiva”.
Há decisões na vida real que levam à dissonância cognitiva e, portanto, a uma mudança na postura. Consideremos uma diretora de pesquisa com moral e opiniões liberais que recebe a oferta de um cargo em uma agência de publicidade, e aceita. Isso significa que ela começará a experimentar uma discrepância entre seus ideais e seus atos e, a não ser que rejeite a oferta de emprego, deverá tentar readaptar suas convicções para justificar sua nova situação. Depois de alguns meses ela pode argumentar, com paixão autêntica, que a publicidade é um aspecto essencial das sociedades democráticas com economia livre de mercado. Além disso, ela provavelmente sustentará essa opinião pelo resto da vida, mesmo que passe apenas um período relativamente curto na publicidade.
Outro exemplo é a testemunha de Jeová que logo aprende que entregar panfletos na rua serve a um propósito duplo. Ajudará a recrutar novos adeptos à fé, mas também reforçará o vínculo entre os fiéis e a seita. Na primeira vez eles podem muito bem hesitar em fazer panfletagem, mas depois voltarão para casa com brilho da fé mais intenso nos olhos.
O processo pode levar a um comportamento caritativo crescente – ou pernicioso crescente. Pode também criar mudanças profundas na perspectiva, muito mais do que seria possível só por meio das palavras.
Os nazistas dependiam muito desse mecanismo para garantir a conformidade entre os cidadãos alemães. Os riscos incalculáveis da recusa a dar sinais simbólicos de apoio ao regime, por exemplo, a saudação “Heil Hitler”, devem ter levado as pessoas a se perguntarem: “Que mal há em levantar meu braço direito?”. Mas a cada vez que alguém se conforma, muda sua maneira de pensar.
A conclusão deve ser a de que atos simples, que em si parecem causar um dano apenas limitado, podem levar a mudanças psicológicas que por sua vez possibilitam ações ainda maiores e mais destrutivas.

Os papéis determinam as pessoas
Em 1971, o psicólogo social Phillip G. Zimbardo e alguns colegas da Universidade de Stanford decidiram investigar as consequências psicológicas da relação entre um prisioneiro e um carcereiro.
Procuraram participantes entre os alunos, declarando que precisavam de 21 homens que seriam pagos pelo experimento de duas semanas. Todos os candidatos foram entrevistados, mas só foram selecionados os que pareciam razoavelmente estáveis, maduros e responsáveis. Estes foram depois divididos aleatoriamente em dois grupos: de prisioneiros e de carcereiros.
No primeiro dia, policiais verdadeiros foram à casa de dez dos participantes e os “prenderam sob suspeita” de invasão e assalto à mão armada. Eles foram levados ao corredor do porão da universidade, que fora reformado para parecer uma prisão, e receberam a ordem de se despir, ser despiolhados e colocar o macacão da prisão. Os “carcereiros” designados estavam de uniforme, com óculos de sol espelhados e cassetete.
Os carcereiros foram chamados a uma reunião e informados para manter os prisioneiros sob vigilância, mas não machucá-los fisicamente. Os prisioneiros ficaram na prisão 24 horas por dia, enquanto os carcereiros foram para casa, para sua vida normal, depois de uma jornada de trabalho de oito horas.
No começo do que ficou conhecido como o Experimento de Prisão de Stanford, não houve nenhuma diferença de personalidade significativa entre carcereiros e prisioneiros selecionados aleatoriamente. Mais tarde, os dois grupos mudaram de uma forma extraordinariamente rápida.
O poder absoluto dado aos carcereiros tornou os prisioneiros impotentes e submissos, o que permitiu que os carcereiros ampliassem ainda mais seus poderes. Essa influência mútua foi o começo de um processo perigoso de auto-reforço.
Um terço dos carcereiros comportou-se com uma insensibilidade cada vez maior e, de forma arbitrária, iniciou punições sem nenhum motivo e elaborou meios inventivos de humilhar os prisioneiros. Em sua vida comum, eles não mostraram tendências a comportamento agressivo ou tirânico.
Dois dos carcereiros deixaram seu papel de lado para defender os prisioneiros, mas nunca chegaram a enfrentar publicamente os carcereiros hostis. Os demais carcereiros eram durões, mas não davam início a nenhum castigo extraoficial.
Os prisioneiros ficaram deprimidos, desesperados a passivos. Três deles tiveram que ser “libertados” depois de apenas quatro dias do experimento porque choravam histericamente, perderam a capacidade de pensar com coerência e ficaram profundamente deprimidos. Um quarto prisioneiro foi liberado depois de contrair uma urticária que cobriu todo o seu corpo.
Todos os prisioneiros, com exceção de três, estavam dispostos a dispensar o pagamento pelos dias que passaram no experimento se pudessem ser libertados. Quando souberam que seus pedidos de “livramento condicional” tinham sido negados, arrastaram-se de volta às celas passiva e obedientemente.
O Experimento de Prisão de Stanford demonstrou que prisioneiros e carcereiros agiam de acordo com os papéis que lhes foram dados por um agente externo, mudando aos poucos seus padrões de pensamento, valores e reações emocionais, a fim de se adaptarem. A maioria dos participantes parecia incapaz de fazer uma distinção entre sua identidade real e seu papel no experimento. A brutalidade da prisão aumentava a cada dia. Desapareceram os valores morais comuns, apesar do fato de cada grupo ter sido determinado indiscriminadamente.
Foi necessário interromper o experimento depois de seis dias, principalmente em razão de os prisioneiros restantes estarem inaceitavelmente próximos de um colapso mental.
É claro que há muitos outros contextos em que o papel e a identidade tornam-se contíguos. Como afirma James Waller em seu livro intitulado Becoming Evil (partes do relato se baseiam em sua análise de provas reais): “Os atos de maldade não só refletem o self*, eles configuram o self*.”
*: Self = caráter


Grupos formados sem praticamente nenhum motivo
O psicólogo social Henri Tajfel e alguns colegas começaram a estudar quantas características diferentes as pessoas devem ter em comum para que se vejam como parte de um grupo e, como passo seguinte, criem um sistema de preconceitos contra outros grupos.
Seu plano inicial era recrutar pessoas sem considerar nenhuma característica em comum, distribuí-las aleatoriamente em grupos e depois, aos poucos, introduzir entre eles semelhanças, preconceitos negativos e conflitos. Ele esperava que este processo lhe permitisse observar como e quando era formada a identidade de grupo.
Em seu experimento mais conhecido, de “grupo mínimo”, ele pediu aos participantes para expressar suas opiniões sobre algumas telas abstratas e os separou depois em dois grupos. Um grupo foi informado de que todos expressaram uma preferência por pinturas semelhantes às de Paul Klee, enquanto outros preferiam o estilo de Wassily Kandinsky. Nada disso era verdade, já que a distribuição dos grupos foi inteiramente aleatória.
Os participantes não se conheciam e não tiveram contato prévio. Dada a oportunidade de avaliar fotos de todos os participantes, eles classificaram aqueles de seu próprio grupo como melhores em seus trabalhos e de convivência mais agradável. Quando os indivíduos eram solicitados a distribuir dinheiro, os membros do grupo sempre eram favorecidos.
Em um experimento semelhante, alguns participantes tinham um viés tão forte contra o outro grupo que ficaram mais felizes por seu próprio pessoal receber dois dólares em vez de três, com a condição de que os outros recebessem um no lugar de quatro. Em outras palavras, eles estavam mais interessados em “derrotar os outros” do que em conseguir o pagamento mais alto possível para seus próprios membros.
Até esta série de experimentos, a maioria dos psicólogos sociais pressupunha que a identidade de grupo fosse criada gradualmente em reação a experiências compartilhadas. Ninguém esperava que o preconceito e a hostilidade surgissem em meio a pessoas que não conheciam o próprio grupo nem o dos outros.
Os relacionamentos dentro de um grupo, ou entre grupos, constituem um campo clássico de pesquisa na psicologia social. Muitos experimentos diferentes mostram que nosso raciocínio funciona de acordo com um modelo “Nós-e-Eles”. É fácil entender a base para isso. Todos são obrigados a pensar em como lidar com um mundo interminavelmente complexo. Para simplificar a existência e classificar informações irrelevantes rapidamente, nós as dividimos em categorias.
A categorização é uma forma humana de pensamento, tão essencial quanto inevitável. Os tipos de categoria variam entre indivíduos e culturas, mas o processo é comum a todos nós. Ela configura como entendemos nosso ambiente e nossa relação com ele.
A psicologia social tem demonstrado algumas distorções coerentes causadas pelo modelo Nós-e-Eles. Tendemos a exagerar as semelhanças daqueles que pertencem a nosso grupo, assim como exageramos a homogeneidade em outros grupos e as diferenças entre eles. E, normalmente, nos importamos mais com os membros de nosso grupo do que com os outros.
Nas crises e nos conflitos abertos, essas atitudes se radicalizam. Toda a humanidade tem potencial para acreditar na máquina de propaganda quando ela repete sem parar: “Mate, ou morra!”

A vítima pede por isso
Todos estamos cientes de que as boas pessoas não são imunes a experiências ruins, todavia uma grande maioria de nós tenta se prender à esperança de um mundo fundamentalmente justo, um bom lugar para criar os filhos.
Como demonstraram vários estudos, essa esperança, combinada com a necessidade humana pouco consciente de significado e coerência nas informações que recebe, nos faz distorcer a realidade para que combine com nossa visão de ordem.
Não são só aqueles que perpetram atos terríveis que são iludidos por seus padrões de pensamento distorcido, lembranças e input sensorial para acreditar que seu mundo ainda é justo e importante. Os que testemunham as tragédias e, de fato, as próprias vítimas também colaboram para essa ficção.
As vítimas de doenças graves, bem como aquelas pessoas próximas do paciente, em geral estão decididas a encontrar a causa. Sentem uma forte necessidade de determinar exatamente o que fizeram de errado para merecer tal sofrimento. Novamente, é comum que vítimas de violência perguntem-se sobre a causa fundamental. “Talvez eu tenha pedido por isto; talvez eu não devesse andar por aquela rua tão tarde da noite; talvez eu não devesse ter usado esse vestido.” Essas ansiedades tornam-se o foco de seus pensamentos, independentemente do fato de elas terem o direito de andar por qualquer rua e usar a roupa que quiserem.
Às vezes parece que as vítimas preferem carregar ativamente o fardo da culpa, em vez de reconhecer que o acaso pode interferir e estragar uma vida. Uma profusão de dados experimentais ampara isso nos menores detalhes.
Em um desses experimentos, Melvin Lerner e Carolym Simmons pediram a 72 estudantes que observassem os castigos, na forma de fortes choques elétricos, aplicados sempre que uma vítima dava uma resposta errada a uma pergunta. A vítima era uma atriz, fingindo dor.
Alguns observadores foram informados de que teriam permissão para interromper os choques mais adiante. Solicitados a descrever como se sentiram com relação à vítima, os que acreditavam que ela continuaria a sentir dor a viram de formas mais negativa do que os que pensaram ser capazes de controlar os choques.
Esse modo de interpretar a posição da vítima é acentuado quando nós mesmos infligimos o sofrimento. A dissonância cognitiva nos faz gostar daqueles a quem ajudamos e rejeitar os que machucamos.
No contexto de seu experimento sobre a obediência à autoridade, Stanley Milgram observou que muitos participantes mais tarde disseram coisas como as que se seguem: “Ele [o ‘aluno’] era tão idiota que realmente merecia levar choque.” Outro argumento semelhante era de que, uma vez que concordou em participar do experimento, o aluno estava pedindo para ter problemas. Isso apesar do fato de que os que expressaram tal opinião também se juntaram ao experimento e, aparentemente, tiveram sorte no sorteio que decidiu quem era “professor” e quem era “aluno”.
Parece que impulsos psicológicos poderosos levam os perpetradores a pensar e sentir que suas vítimas merecem o que acontece com elas. Quanto mais pavorosamente brutal o ato cometido pelo perpetrador, mais fortemente ele passa a creditar que só ele está correto e é justo.
Todos temos tendência a interpretar a realidade da mesma forma que os civis alemães que comentaram, quando obrigados pelos soldados britânicos a andar por um campo de concentração recém-libertado: “Que crimes horrendos essas pessoas devem ter cometido para ser condenadas a esse tipo de punição.”


“O comportamento de Rasmus com Malene fez Iben questionar se os sentimentos dos homens são tão fortes quanto os das mulheres. Não há como saber. Mas há uma diferença grande: os homens parecem conseguir protelar suas reações emocionais até que lhes seja adequado. Até homens que pensamos conhecer podem nos dar as costas em um instante, agindo de forma mais distante do que achávamos possível.”


“– Tenho muita esperança de que o mundo venha se tornar um lugar melhor. E se isso acontecer, nossos netos poderão olhar para nós do modo como os jovens de hoje consideram a geração que colaborou com os nazistas. Eles vão dizer: “Eu não entendo você.” Vamos explicar que a vida simplesmente era assim. “A fome vem e vai, e ninguém fez nada a respeito disso. Pessoas morreram de fome para nos abastecer com um café mais barato.” Vamos ter que confessar que sabíamos, mas preferimos não fazer nada.
Malene se sente inquieta, mas não consegue entender porquê. Quer puxar a mão de volta, mas não o faz. Tem o impulso de dizer “Seu velho socialista”, e zombar dele, mas sabe que não deve.”

Alice no País dos Espelhos, de Lewis Carroll

Editora: Martin Claret

ISBN: 978-85-7232-730-5

Tradução: Pepita de Leão

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 184

Sinopse: O reverendo Charles Lutwidge Dodgson mais conhecido como Lewis Carroll era um solteirão tímido e excêntrico que lecionava no Christ College em Oxford na Inglaterra vitoriana e escrevia livros infanto-juvenis. Hoje ele é mais conhecido pelas duas obras-primas que escreveu para crianças: Alice no País das Maravilhas (1865) e Alice no País dos Espelhos (1872). Ele escreveu essas histórias para entreter a pequena Alice sua modelo fotográfico filha do deão Liddell que acabou tornando-se a heroína dessas suas duas obras. Os dois livros tiveram extraordinário sucesso na época da publicação e exerceram uma influência avassaladora na posteridade. Aparentemente destinado ao público infantil na verdade ocultam questionamentos de toda espécie lógicos ou semânticos problemas psicológicos de identidade e até políticos tudo sob a capa de aventuras fantásticas.


“– Imagine só se guardassem também todos os meus castigos!... – continuou ela, falando consigo mesma – Que fariam no fim do ano? Oh! Sem dúvida, quando chegasse o dia da punição, eu iria parar na cadeia...”

 

 

“Então Alice ergueu-a em frente do espelho, para que ela visse bem como é feio ser teimosa.

– E, se não se corrigir já e já, eu a atiro para dentro da Casa do Espelho. Quer isso? Agora – continuou ela –, se você der atenção, e não falar muito, eu lhe direi tudo o que sei da Casa do Espelho. Veja, primeiro é uma sala igual à nossa, só que as coisas estão todas viradas; pode ver pelo espelho. Subindo a uma cadeira, vejo tudo... menos a parte que fica por detrás da lareira. E eu desejava tanto ver esse pedaço! Porque eu queria saber se eles lá têm fogo no inverno. A gente só vê que, quando o nosso fogo aqui fumega, naquela sala também sobe fumaça para o ar; mas isso – ora! –, isso pode ser uma fumaça fingida, para a gente pensar que eles lá têm fogo... Vejo também os livros: são bem como os nossos, mas as palavras são viradas: vi isso um dia, porque ergui um livro na frente do espelho, e lá na outra sala também ergueram um. Gostaria de morar na Casa do Espelho, Mimi? E lá lhe dariam seu leite? Quem sabe se o leite do Espelho não é bom para beber... Mas veja, Mimi! Veja aqui! Agora vamos poder passar! Veja, deixando a porta da nossa sala aberta, você pode enxergar uma frestinha do corredor da Casa do Espelho: veja, é bem como o nosso, até onde a gente alcança com a vista, mas lá, mais adiante, há de ser muito diferente. Oh, Mimi, que lindo seria, se nós pudéssemos passar para a Casa do Espelho! Eu sei que lá dentro há muitas coisas lindas! Mimi, faça de conta que o vidrou ficou macio como uma gaze, e que nós podemos atravessá-lo... Mas repare, Mimi, está ficando tudo numa cerração... E, nós podemos passar agora...”

 

 

“– Afirmo-lhe, minha querida – dizia o Rei –: fiquei gelado até as pontas das minhas barbas!

Ao que a Rainha replicou:

– Você não tem barbas...”

 

 

“– Ó Lírio-tigre! – disse ela, dirigindo-se a uma flor que ondulava graciosamente ao vento. – Eu queria que você pudesse falar!

– Mas nós podemos falar – disse o Lírio-tigre, – e falamos sempre que encontramos alguém que o mereça.”

 

 

“Alice nunca pôde esclarecer, quando, mais tarde, pensava nisso, de que modo tinham começado: só o que lembrava é que corriam de mãos dadas, e que a Rainha ia tão depressa, que ela mal podia se manter ao seu lado. E, ainda assim, a Rainha ao sempre gritando: “Mais depressa! Mais depressa!”

E Alice via que não podia correr mais, mas nem fôlego tinha pra dizer isso.

Mas o mais curioso era que as árvores, e as outras coisas ao redor delas, não mudavam de lugar: por mais que corressem, parecia que não passavam adiante de coisa alguma.

– Eu queria saber se todas as coisas se movem conosco – pensava, assombrada, a pobre Alice.

E a Rainha parecia adivinhar-lhe os pensamentos, porque gritava:

– Mais ligeiro! Mais ligeiro! Não fale!

Não que Alice tivesse a menor intenção de fazê-lo, parecia-lhe que nunca mais poderia falar, e cada vez mais lhe faltava a respiração. E ainda assim a Rainha gritava: “Mais ligeiro! Mais ligeiro!” e, puxando por ela, arrastava-a.

Afinal, ela conseguiu dizer, ofegante:

– Estamos perto?

– Perto! – repetiu a Rainha. – Mas nós já passamos há dez minutos! Mais ligeiro!

(...)

A Rainha encostou-a a uma árvore, e disse com ar bondoso:

– Agora pode descansar um pouco.

A menina olhou em roda, muito surpreendida.

– Mas... creio que estive sempre debaixo desta árvore! Tudo aqui está bem como era!

– Pois sem dúvida que está! Como queria que estivesse?

– É que na minha terra – disse Alice, ainda ofegante –, quando a gente corre como nós corremos agora, acha sempre alguma coisa diferente.

– É uma espécie de terra muito vagarosa! – disse a Rainha. – Agora você já viu que, para ficar no mesmo lugar, é preciso correr a bom correr, como você fez.”

 

 

“– E o que é que ele come? – perguntou ela, olhando para o chão, assustada.

– Chá fraco com creme dentro.

Mas ocorreu a Alice uma nova dificuldade.

– E se não achar isso?

– Então ele morre, com certeza.

– Mas isso há de acontecer muitas vezes – observou ela, pensativa.

– Isso sempre acontece – respondeu o Mosquito.”

 

 

“– Eu sou de verdade! – exclamou Alice, chorando.

– Veja, você não fica mais real por chorar – disse Tweedledum –, visto que você é apenas mais uma das coisas do seu sonho. Você bem sabe que não existe de verdade.

– Se eu não fosse real – disse Alice, meio rindo por entre as lágrimas –, tudo isto seria tão ridículo... e eu não seria capaz de chorar.

– Mas você está pensando mesmo que essas lágrimas são reais? – disse Tweedledum com o maior desdém.”

 

 

“– Que é que você quer comprar? – perguntou a Ovelha, erguendo os olhos do tricô.

– Ainda não sei bem – disse Alice com delicadeza. – Gostaria de olhar ao redor primeiro, se me dá licença...

– Pode olhar para o que está em frente e dos lados, se quiser; mas ao redor de você não pode, a menos que tenham nascido olhos atrás da sua cabeça.”

 

 

“Aquilo parecia já irritante, “quase como se fosse de propósito”, pensava ela: sempre que alcançava, à custa de muito esforço, uma moita de juncos cobiçada, aparecia outra mais linda, e mais afastada, que ela não podia alcançar.”

 

 

“– Eu não a reconheceria se tornasse a encontrá-la. (...) Você é tão igual as outras pessoas...”

 

 

“– Olhe para a estrada, e veja se pode avistar algum deles.

– Ninguém aparece na estrada – disse ela.

– Oh! Quem me dera ter tais olhos! – observou o Rei em tom impertinente. – Poder ver ninguém! E a esta distância! Porque eu, o mais que posso fazer, com estes olhos, é ver as pessoas de verdade.”

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O Correspondente Estrangeiro – Alan Furst

Editora: Suma de Letras
ISBN: 978-85-6028-012-4
Tradutor: Heloísa Mourão
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 271
Sinopse: Inverno de 1938 em Paris. Num discreto hotel para amantes ocorre um assassinato seguido de suicídio. Trata-se de uma ação da OVRA, a polícia secreta fascista de Mussolini, orquestrada para eliminar o editor do Liberazione, um jornal clandestino de intelectuais emigrados. Carlo Weisz, que fugira de Trieste e conseguira trabalho como correspondente da agência de notícias Reuters, torna-se seu novo editor. Weisz – um homem obrigado a agir em diversos fronts e determinado a salvar a amada, espiã na Alemanha de Hitler – passa a ser perseguido pela Sûreté (a polícia de segurança nacional francesa), pelos espiões da OVRA e pelos agentes do Serviço Secreto Britânico. Em meio ao confuso ambiente político da Europa à beira da guerra, o correspondente se torna uma peça importante no intrincado tabuleiro dos bastidores do conflito.


“A conversa passou para a conferência da tarde, o sarcasmo conservador de Sparrow não tão distante do afável liberalismo de Weisz, e para Olivia tudo começava e acabava em barbas. O sr. Brown era bem mais opaco, suas opiniões políticas aparentemente mantidas em segredo, embora fosse um enfático partidário de Churchill. Até citou Winston, quando este se dirigiu a Chamberlain e seus colegas na ocasião do covarde acordo de Munique:
– “Foi lhes dada uma escolha entre a vergonha e a guerra. Escolheram a vergonha e terão a guerra” – e acrescentou: – E tenho certeza de que o senhor concorda com isto, sr. Weisz.
– Parece estar certo, de fato – disse Weisz. No pequeno silêncio que se seguiu, ele disse: - Perdoe-me pela pergunta de jornalista, sr. Brown, mas posso saber a que tipo de atividade o senhor se dedica?
– Certamente que sim, embora, como dizem, não para divulgação.
Neste momento o cachimbo emitiu uma grande nuvem de fumaça adocicada, como para sublinhar a proibição.
– Por hoje o senhor está a salvo – disse Weisz. – Informação confidencial. – Seu tom brincalhão, Brown jamais poderia pensar que estava sendo entrevistado.
– Sou proprietário de uma pequena companhia que controla alguns armazéns no porto de Istambul – disse ele. – Temo que seja apenas o bom e velho comércio, e só estou lá às vezes.
Puxou um cartão e entregou a Weisz.
– E o que o senhor pode fazer é torcer para que os turcos não se alinhem com a Alemanha.
– Exato – disse Brown. – Mas creio que ficarão neutros. Tiveram toda a guerra que queriam em 1918.
– Nós todos tivemos – disse Sparrow. – Não vamos fazer isso outra vez, combinado?
– Não se pode parar uma vez que começa – disse Brown. – Veja a Espanha.
– Acho que deveríamos ter ajudado – disse Olivia.
– Suponho que deveríamos – disse Brown. – Mas, de nossa parte, estávamos pensando em 1914, sabe como é.”


“Os espiões estavam sempre atrás de alguma coisa. Se você era um jornalista, de repente aparecia o russo mais amável, o alemão mais culto, a francesa mais sofisticada que jamais conheceu. O favorito de Weisz em Paris era o magnífico Conde Polanyi, da diplomacia húngara – adoráveis modos de europeu dos velhos tempos, honestidade implacável e senso de humor; muito interessante, muito perigoso. Era um erro estar perto dele em quaisquer circunstâncias, mas erros são cometidos de vez em quando.”


“Ele moveu a mão um pouco e logo a repousou. Ela pôs a mão sobre a dele. Weisz fitou-a por um longo tempo.
– Então, o que vê?
– A melhor coisa que já vi.
De Christa, um sorriso duvidoso.
– Não, é verdade – disse ele.
– São seus olhos, amor. Mas eu adoro ser o que você vê.”


“14 de abril, 3h30 (1939). Weisz postou-se na esquina onde a rue Daphine encontrava a marginal do Sena, e esperou por Salamone. E esperou. E essa agora? Era culpa daquele maldito Renault, velho e melindroso. Por que ninguém de seu mundo jamais tinha qualquer coisa nova? Tudo em suas vidas era gasto, usado, não funcionava bem havia muito. Que se dane, pensou, eu vou para a América. Onde ele seria pobre novamente, no meio da riqueza. Era a velha história para os imigrantes italianos – o famoso cartão-postal de volta à Itália dizendo: “Não apenas as ruas não são pavimentadas de ouro, elas não são pavimentadas, e eles esperam que nós as pavimentemos”.”


“O objetivo era acabar com o Liberazione – não adiar a publicação – e gerar um exemplo, para demonstrar aos outros, comunistas, socialistas, católicos, o que acontecia com aqueles que ousavam se opor ao fascismo. Além disso, acreditavam piamente no ditado inglês do século XVII, cunhado na guerra civil, que dizia: “Aquele que puxa sua espada contra seu príncipe deve atirar fora a bainha”.”

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Relatório da CIA – Che Guevara: documentos inéditos dos arquivos secretos – Organização, introdução e notas: Mauricio Dias e Mario J. Ceregino

Editora: Ediouro
ISBN: 978-85-0002-229-6
Opinião★★★☆☆
Páginas: 152
     “Naquele março de 1967, aos olhos do embaixador (estadunidense na Bolívia), a “ameaça guerrilheira” pareceu um pretexto, alegado apressadamente pelos militares da Bolívia para engordar o caixa. Era muito ruim a imagem dos bolivianos junto às autoridades norte-americanas em La Paz e Washington. Como sempre.”


     “Em 27 de março, às 16h, encontrei o presidente em sua residência (eu estava acompanhado por um funcionário da nossa Embaixada). Por cerca de uma hora, Barrientos nos atualizou sobre os últimos relatórios (e os boatos) relacionados às atividades dos rebeldes. [...] Desconfio de que o presidente esteja muito angustiado pelo triste espetáculo dado pelas Forças Armadas de seu país. Logo depois que os serviços secretos comunicaram uma suposta e impetuosa ofensiva da guerrilha, deu-se um desastre de dimensões controladas. O ocorrido, no entanto, acabou por deixar em pânico o governo boliviano, que reagiu de maneira nervosa e mal coordenada [...].”
(Telegrama do embaixador Henderson ao departamento de Estado, confidencial, 28 de março de 1967, 22h45, National Arquives and Records Administration – NARA).


     “[...] Confirmei ao embaixador argentino a veracidade das notícias que a imprensa divulgou: os Estados Unidos estão treinando e equipando um batalhão (boliviano) de rangers em Santa cruz, no âmbito do Programa de Assistência Militar. A duração prevista é de um ano, mas o treinamento poderia ser acelerado devido à ameaça que a guerrilha representa. [...].”
(Telegrama do embaixador Henderson ao departamento de Estado, confidencial, 18 de abril de 1967, 20h30, NARA).


     “De surpresa, o presidente Barrientos anunciou à imprensa que está de posse das provas de que Che Guevara passou pela Bolívia. Ofereceu também uma recompensa de 50 mil pesos por sua captura (preferencialmente vivo)* [...].”
(Telegrama do embaixador Henderson ao departamento de Estado, confidencial, 11 de setembro de 1967, 23h45, NARA).”
* “11 de setembro [...] O rádio trouxe [...] a notícia de que Barrientos afirmava que eu estava morto há bastante tempo e tudo era propaganda. De noite, a de que oferecia $50.000 (U$ 4.200) por dados que facilitassem minha captura vivo ou morto”. – Diário de Che na Bolívia, p. 181.


     “ [...] A reação mais grotesca (à morte de Che) foi a do presidente do Senado chileno, o socialista (e filocubano) Salvador Allende. Com efeito, na semana passada, solicitou oficialmente às autoridades bolivianas que os restos mortais de Ernesto Guevara fossem entregues pessoalmente a ele. Por essa razão, no Chile, Allende*, agora é objeto de zombaria [...].”
(Telegrama da embaixada norte-americana de Santiago do Chile ao departamento de Estado, confidencial, 16 de outubro de 1967, 23h15, NARA).
* Eleito presidente do Chile em 1970, o socialista Salvador Allende (1908-1973) foi deposto, em setembro de 1973, por um sangrento golpe de Estado liderado pelo general Augusto Pinochet e apoiado pelos Estados Unidos.


     “ [...] O cerne da guerrilha era constituído por Che Guevara e, no período de máxima expansão, por 15 cubanos, por outros revolucionários estrangeiros, por vários veteranos de Sierra Maestra e por comunistas bolivianos treinados em Cuba. O primeiro grupo chegou ao norte da cidade de Camiri, na região sul-oriental da Bolívia, em novembro de 1966. Parece que seu objetivo inicial era o de desenvolver uma força bem treinada e disciplinada, apta a perseguir ou atacar o Exército já a partir de setembro ou outubro de 1967. Após ter adquirido um sítio que devia servir de base logística, o bando se deslocou para o norte (uma região despovoada e inóspita, que se caracteriza por florestas, córregos e desfiladeiros), com o objetivo de se familiarizar com o território. Os guerrilheiros tinham remédios, armas automáticas e equipamentos para comunicação (que lhes permitiam, entre outras coisas, entrar em contato com Cuba via rádio de ondas curtas). Após ter dividido o grupo em vanguarda, centro e retaguarda, os rebeldes organizaram vários acampamentos e pontos de observação, escondendo, ao mesmo tempo, armas e suprimentos. Então, deram início ao patrulhamento da área. A primeira indicação da existência de um bando guerrilheiro se deu no início de março de 1967, quando dois bolivianos (que por um breve período haviam se unido ao grupo) desertaram e foram presos pelas autoridades enquanto tentavam vender um fuzil (roubado no acampamento dos insurgentes). No entanto, continuou-se a avaliar com ceticismo notável seus relatos sobre um bando liderado por cubanos. Mas, em 23 de março, uma patrulha do Exército boliviano topou com uma formação rebelde. O choque armado causou a morte de sete soldados e deixou muitos outros feridos. Alguns militares caíram presos dos insurgentes. Por conseguinte, o governo começou a considerar mais seriamente a ameaça de um movimento de guerrilha comunista. Outras patrulhas do exército foram enviadas à região, com resultados desastrosos. Os soldados em serviço militar, mal treinados e mal armados, eram constantemente afugentados por subversivos que pareciam invencíveis. Gritos de zombaria provinham da floresta e, com frequência, viam-se militares bolivianos abandonando suas armas antiquadas para fugirem. Minado pelos expurgos que se seguiram ao golpe de Estado de 1952, e também pelas derrotas militares que custaram à Bolívia largas partes de seu território, o moral do Exército, já baixo, continuou a cair, sobretudo entre os recrutas. Enquanto isso, os guerrilheiros pareciam ganhar confiança e força. Em julho, com uma manobra audaciosa, conseguiram ocupar, por um dia, a cidade de Samaipata e desarmar a guarnição militar local. Os rebeldes tentavam constituir um apoio popular para sua causa. Batizados de “Exército de Libertação Nacional” (pelo menos pela rádio Havana), tentavam atrair a simpatia dos campesinos da região. Ao pedir comida e suprimentos aos moradores, os guerrilheiros costumavam pagar um preço mais alto em relação ao de mercado. Entre eles, havia médicos que tentavam tratar das crianças dos lugarejos, na tentativa de ganhar a confiança da população. No final de abril, o teórico marxista francês Régis Debray foi capturado, depois de ter ficado várias semanas em um acampamento dos subversivos. Foi então que o movimento chamou a atenção da opinião pública mundial. Debray afirmou que o bando era chefiado e composto por cubanos e por outros guerrilheiros profissionais latino-americanos e que, talvez, Che Guevara estivesse no comando. Suas declarações frisaram a gravidade da ameaça. Aos olhos de quem supunha que Guevara estivesse realmente liderando os rebeldes, o conflito entre Che e o Exército boliviano não pareceu mais uma luta entre iguais. Cada vez mais alarmado, o governo boliviano buscou a ajuda dos Estados Unidos e de alguns países vizinhos (Argentina, Brasil e Peru). O governo norte-americano promoveu um programa de treinamento para a contraguerrilha destinado ao 2º batalhão de rangers bolivianos, que se deslocou para a região dos conflitos em setembro de 1967. Além disso, os Estados Unidos forneceram armas automáticas relativamente modernas e outros equipamentos ao Exército boliviano. Enquanto os rebeldes continuavam tendo êxito nos embates com o Exército, vários dissidentes bolivianos tramaram contra o governo de La Paz. Os partidos de oposição criticavam o presidente Barrientos pela má gestão da emergência. Em junho, os mineradores de Catavi – Siglo XX ofereceram sua solidariedade aos guerrilheiros e, quando o governo enviou as tropas para conter a revolta, pelo menos 16 trabalhadores foram mortos. Além disso, foram colocados na ilegalidade vários partidos comunistas bolivianos: o filosoviético, o filochinês e o trotskista. A gravidade potencial do movimento não escapou aos países vizinhos. Argentina, Paraguai e Peru (e, em menor medida, o Brasil) começaram a planejar os passos necessários para prevenir que, na Bolívia, os comunistas tomassem o poder, pois isso acabaria ameaçando suas fronteiras. Reforçaram-se os patrulhamentos nas regiões próximas às fronteiras argentina, brasileira e paraguaia, enquanto Argentina e Peru sondaram a possibilidade de enviar tropas para auxiliar o Exército boliviano na derrota da guerrilha. Paraguai e Argentina planejaram a execução de manobras militares nos arredores de suas fronteiras com a Bolívia, enquanto esta obtinha assistência material da Argentina e do Brasil. A partir de julho, a situação começou a melhorar. Alguns rebeldes foram apanhados ou mortos, enquanto os bolivianos ganhavam terreno nos conflitos armados. O Exército descobriu um campo-base da guerrilha, sequestrando, ali, inúmeros documentos. Entre eles, algumas fotografias de um sujeito que apresentava forte semelhança com Che Guevara. Além disso, foram encontrados dois passaportes falsos com suas impressões digitais. Esses papéis ajudaram a construir as acusações do governo boliviano contra a intervenção cubana na Bolívia, acusações apresentadas em Washington durante o décimo segundo encontro dos ministros das relações exteriores da OEA, em setembro. A primeira e importante vitória militar do governo aconteceu dia 31 de agosto, quando uma unidade do Exército boliviano armou uma emboscada contra a retaguarda guerrilheira, enquanto esta tentava cruzar o Rio Grande. Dez insurgentes foram mortos. Entre eles, três cubanos, um peruano e diversos bolivianos (um era o militante comunista Moisés Guevara). Graças à sua boa sorte e ao planejamento da ação, as tropas bolivianas não sofreram nenhuma perda. Em setembro, por causa dos documentos confiscados aos rebeldes, a rede de apoio urbano à guerrilha foi desbaratada em La Paz. Em 26 de setembro, um segundo conflito armado provocou inúmeras mortes entre os insurgentes (entre eles, estavam importantes líderes cubanos e bolivianos). No final de setembro, o 2º Batalhão de rangers (treinado pelos Estados Unidos) foi enviado à região. Sua primeira vitória foi também a mais espetacular de toda a campanha militar e, provavelmente, assinalou o fim da guerrilha boliviana. Em 8 de outubro, os rangers se chocaram contra a facção principal dos subversivos. Cerca de sete rebeldes morreram em batalha (entre eles Che Guevara*). Os últimos relatórios indicavam que apenas um punhado de guerrilheiros (talvez uma dúzia) continuava lutando na tentativa de se afastar da região. Dizia-se, ainda, que tinham obrigado os moradores locais a servirem de guias, na tentativa de furar o cerco promovido pelo Exército. Em retrospectiva, são evidentes os inúmeros erros cometidos pela guerrilha, que estava fascinada pelas teses sobre a revolução rural descritas por Debray em seu volume Revolução na revolução?, uma síntese romantizada que superestimava os sucessos de Fidel Castro. Segundo Debray, a revolução, em primeiro lugar, tem de confiar na autoridade do movimento guerrilheiro camponês, ao qual acabará aderindo um número cada vez maior de patriotas. A seu ver, é preciso evitar o vínculo formal com os partidos comunistas tradicionais, já que o processo revolucionário da guerrilha terminará produzindo seus próprios líderes. A população local dos campesinos não apoiaram o movimento de Che e o consequente desastre se transformou num fator crítico. Conservadores, desconfiando dos estrangeiros, proprietários (em boa parte) do pedaço de terra no qual viviam, os campesinos não foram abertamente hostis aos guerrilheiros, mas não apoiaram sua causa. Além disso, não raro acontecia de eles denunciarem a presença dos rebeldes às autoridades e, algumas vezes, servirem de guias para o Exército. Em seu diário (sequestrado durante o choque de 8 de outubro), Che comenta as dificuldades encontradas na tentativa de conquistar os campesinos para a causa revolucionária. Além disso, desde o começo pareceu evidente a falta de coordenação entre os guerrilheiros e os partidos comunistas com sede nos centros urbanos. O PC filosoviético e o filochinês apoiaram publicamente o esforço dos insurgentes, mas surgiram controvérsias internas quanto à medida do apoio a ser dado. Então, apareceram ressentimentos sobre o fato de que o movimento revolucionário fosse liderado por cubanos, e não por bolivianos. As hipóteses de promover o terrorismo urbano ou de abrir outras frentes de guerrilha – ações que seguramente teriam colocado o governo em sérias dificuldades – não chegaram a lugar algum. Os guerrilheiros não queriam este tipo de ajuda, convencidos que estavam de ser a única força da qual a revolução poderia brotar. A mesma falta de coordenação era evidente com relação a outros homens dissidentes, com os quais os rebeldes poderiam ter contado, se quisessem: os estudantes, os mineradores e o proletariado urbano. Mas está claro que a rápida e surpreendente derrota dos mineradores (em junho) pode ter desalentado tanto os guerrilheiros quanto seus potenciais aliados. Outro erro, que o próprio Che reconheceu, foi o papel predominante que os cubanos assumiram no movimento. Não só alimentou o rancor dos comunistas bolivianos, como tornou ainda mais árduo qualquer esforço para a conquista do apoio e da confiança dos campesinos. O governo tirou proveito do forte sentimento nacionalista dos bolivianos para enfraquecer a guerrilha. Até mesmo aqueles dissidentes que tendiam a aderir ao movimento no período de seus maiores êxitos militares provavelmente se ofenderam com o jeito “estrangeiro” do bando de Che. Barrientos, sempre repetia isso durante a campanha antiguerrilha: “Cuba, um fantoche de uma potência estrangeira (URSS), tenta, agora, estender seu controle à Bolívia”. Por conseguinte, a guerrilha pareceu aos olhos dos cidadãos um movimento cada vez menos ligado ao país, mais uma aventura agressiva financiada por um governo estrangeiro do que o produto das injustiças e da pobreza. Quando essa argumentação se espalhou, boa parte da mística romantizada dos insurgentes veio a faltar. Sem a proteção e o auxílio dos camponeses (especialmente com relação aos alimentos, que sempre faltavam) e obrigados a combater unicamente com suas forças numa área delimitada, o destino do movimento pareceu selado. Até mesmo um exército fraco como o boliviano foi capaz de cercar e derrotar os rebeldes, já que a razão numérica exército-guerrilha já era de trinta para um [...].”
(Relatório do departamento de Estado, secreto, 27 de outubro de 1967, NARA)
* O Departamento de Estado desconhece as informações da CIA e do embaixador Henderson de que Che foi capturado vivo, provavelmente na tentativa de prorrogar ao máximo a verdade sobre a morte do guerrilheiro.


     “ (...) Enquanto isso, algumas cervejas tinham dado novo ânimo a Teran, que voltou para a prisão de Che. À sua chegada, Guevara (amarrado pelos pulsos à frente do corpo) levantou-se e exclamou: “Sei por que está aqui. Estou pronto”. Teran lhe respondeu: “Está errado. Sente-se”, abandonando mais uma vez o local por alguns minutos. “Willy” tinha sido preso num casebre a poucos metros de distância. Enquanto Teran, do lado de fora, procurava se recompor, Huanca executou “Willy”(...). Ouvindo os tiros pela primeira vez Che pareceu apavorado. Ao ver Teran entrar de novo, o prisioneiro se levantou mais uma vez para enfrentá-lo. Teran mandou que ficasse sentado, mas Guevara respondeu. “Agora quero ficar em pé”. Enfurecido, o sargento o intimou para que se sentasse. Mas Che perdeu a calma: “Saiba que está matando um homem”. Nesta altura, empunhando uma carabina M2, Teran o matou com uma rajada de balas, arremessando-o contra a parede do cômodo [...].”
(Relatório do exército norte-americano, Washington, secreto, 28 de novembro de 1967, sem colocação)


     “Embora esses papéis oficiais – liberados, essencialmente, dos arquivos da CIA e do Departamento de Estado – não expressem a versão definitiva da história, eles apresentam, até prova em contrário, evidências que soterram suposições que persistiam ao longo das quatro décadas que se seguiram ao assassinato de Che. São informações, análises e avaliações escritas no calor da hora. Contaminadas, certamente, por interesses políticos, mas não necessariamente falsas, elas sustentam deduções mais seguras sobre o fracasso de Che naquele conflito desigual. A relação entre as forças oficiais e os insurgentes atingiu, no auge do conflito, 150 soldados para um guerrilheiro. Muito mais do que exigiam os cálculos do cuidadoso embaixador Henderson. Ele imaginava que seriam necessários “cerca de oito ou dez homens bem treinados para derrotar um guerrilheiro”.”