segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

A menina que roubava livros, de Markus Zusak

Editora: Intrínseca

ISBN: 978-85-9807-837-3

Tradução: Vera Ribeiro

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 494

Sinopse: A trajetória de Liesel Meminger é contada por uma narradora mórbida, surpreendentemente simpática. Ao perceber que a pequena ladra de livros lhe escapa, a Morte afeiçoa-se à menina e rastreia suas pegadas de 1939 a 1943. Traços de uma sobrevivente: a mãe comunista, perseguida pelo nazismo, envia Liesel e o irmão para o subúrbio pobre de uma cidade alemã, onde um casal se dispõe a adotá-los por dinheiro. O garoto morre no trajeto e é enterrado por um coveiro que deixa cair um livro na neve. É o primeiro de uma série que a menina vai surrupiar ao longo dos anos. O único vínculo com a família é esta obra, que ela ainda não sabe ler.

Assombrada por pesadelos, ela compensa o medo e a solidão das noites com a conivência do pai adotivo, um pintor de parede bonachão que lhe dá lições de leitura. Alfabetizada sob vistas grossas da madrasta, Liesel canaliza urgências para a literatura. Em tempos de livros incendiados, ela os furta, ou os lê na biblioteca do prefeito da cidade.

A vida ao redor é a pseudo-realidade criada em torno do culto a Hitler na Segunda Guerra. Ela assiste à eufórica celebração do aniversário do Führer pela vizinhança. Teme a dona da loja da esquina, colaboradora do Terceiro Reich. Faz amizade com um garoto obrigado a integrar a Juventude Hitlerista. E ajuda o pai a esconder no porão um judeu que escreve livros artesanais para contar a sua parte naquela História. A Morte, perplexa diante da violência humana, dá um tom leve e divertido à narrativa deste duro confronto entre a infância perdida e a crueldade do mundo adulto, um sucesso absoluto - e raro - de crítica e público.




“Os empobrecidos sempre tentam continuar andando, como se a relocação ajudasse. Desconhecem a realidade de que uma nova versão do mesmo velho problema estará à sua espera no fim da viagem – aquele parente que a gente evita beijar.”

 

 

“Como a maioria dos sofrimentos, esse começou com uma aparente felicidade.”

 

 

“Mas, afinal, será que é covardia reconhecer o medo?”

 

 

“Uma oportunidade conduz diretamente à outra, assim como o risco leva a mais risco, a vida, a mais vida, e a morte, a mais morte...”

 

 

“Que grande maldade havia em se deixar uma coisa viva!”

 

 

“A morte não espera por ninguém – e, quando espera, em geral não é por muito tempo.”

 

 

“Muito bem que eles compartilhassem o pão e a música, mas, para Liesel, era bom saber que Hans também era mais do que competente em sua ocupação. A competência era atraente.”

 

 

“Não, pensou Liesel, enquanto andava. É o meu coração que está cansado. Um coração de treze anos não devia sentir-se assim.”

 

 

“O ser humano não tem um coração como o meu. O coração humano é uma linha, ao passo que o meu é um círculo, e tenho a capacidade interminável de estar no lugar certo na hora certa. A consequência disso é que estou sempre achando seres humanos no que eles têm de melhor e pior. Vejo sua feiura e beleza, e me pergunto como uma mesma coisa pode ser duas. Mas eles têm uma coisa que eu invejo. Que mais não seja, os humanos têm o bom senso de morrer.”

 

 

“Os seres humanos me assombram.”

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Amêndoa: um relato erótico – Nedjma

Editora: Objetiva

ISBN: 978-85-7302-636-8

Tradução: Adalgisa Campos da Silva

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 208

Sinopse: No Marrocos da segunda metade do século XX, Badra conta a história de sua vida, decidida a não medir palavras ou sensações e a honrar a milenar, tradição árabe de escrita erótica. Testemunho excepcional de uma mulher de origem árabe que ousa transgredir o tabu do sexo e do silêncio, A Amêndoa assinala um verdadeiro acontecimento: pela primeira vez uma mulher muçulmana se exprime com liberdade sobre sua vida íntima. Badra tem 50, anos e corajosamente decidiu revelar sua trajetória. De sua infância, quando corria descalça, curiosa e despreocupada em sua aldeia. De sua, adolescência, quando foi casada contra sua vontade, por conveniência, com um homem muito mais velho, que não demonstrou nenhum respeito ou carinho, por sua juventude ou virgindade. De sua fuga para Tânger, que lhe abriu um mundo novo onde as mulheres não viviam apenas para seus maridos. E, principalmente sua história com Driss, seu mestre e seu carrasco, homem da alta sociedade que se apaixona intensamente pela tímida e ardente, provinciana, e que lhe apresenta um amor total, arrebatado, profundamente sensual. Num relato perturbador e libertino, o livro abre uma janela para a, intimidade da mulher muçulmana. Com uma mistura de sensualidade e revolta, a autora mostra que por baixo dos véus e das proibições existe um mundo de desejos e sentimentos esperando para ser libertado. Uma obra cheia de volúpia, incandescente, radiosa, mas que é também um ato político: uma, reconquista da palavra e do corpo das mulheres árabes.



“No Livro de Contabilidade que o Eterno mantém, os homens certamente estão inscritos no capítulo dos Fanfarrões.”

 

 

“Eu até disse a mim mesma que a liberdade era mais embriagadora que a primavera.”

 

 

“O pecado! Eles (os religiosos) só têm esta palavra na boca.”

 

 

“Felicidade? Felicidade é fazer amor por amor. É o coração quase explodindo de tanto palpitar quando um olhar único pousa em sua boca, quando uma mão deixa um pouco de seu suor atrás de seu joelho esquerdo. É a saliva do ser amado que lhe escorre na garganta, doce, transparente. É o pescoço que se alonga, desfaz seus nós e seus cansaços, vira o infinito porque uma língua o percorrem em toda sua extensão. É o lóbulo da orelha que pulsa como um quadril. São as costas que deliram e inventam sons e arrepios para dizer “eu te amo”. É a perna que levanta, aquiescente, a calcinha que cai como uma folha, inútil e incômoda. É uma mão que penetra a floresta dos cabelos, desperta as raízes da cabeça e as rega, generosamente, com sua ternura. É o terror de dever se abrir e a incrível força de se oferecer, quando tudo no mundo é pretexto para chorar. Felicidade é Driss, teso pela primeira vez dentro de mim, e cujas lágrimas pingavam no meu ombro. Felicidade era ele. Era eu.

O resto eram apenas fossas comuns e descargas públicas.”

 

 

“Com cuidado, depois cada vez mais freneticamente, torno a explorá-lo, coroado de uma virgindade desprezível e magnífica. Ele quer isso. Não tenho Driss nem a cenoura de Bornia na mão. Pego-o e colho-o, severa. Ele pede mais. A extremidade do clitóris desponta, solta, como uma língua de fogo. Sucumbo. Quero isso. Quero a mim. Com o polegar, provoco a ereção sublime. Meu clitóris se escora no indicador caridoso e compreensivo que sustenta sua rigidez. Sua embriaguez. Comprimo essa massa de água e fogo para puni-la. Meu sexo me venceu. Está feliz e vibro até os dedos dos pés com sua felicidade. Mais que tudo, é a superfície macia e branca que me emociona. Gozo com e por esse sexo nu que caçoa de mim. Ele é tão lindo que compreendo que queiram enfiar a língua nele. Não me masturbo: faço amor com o bicho abençoado que goza sem vergonha nos meus dedos. Ele não para de escorrer e eu de lhe dizer: “Mais... Mais.” É de morrer de rir: apaixonei-me por minha própria boceta. Em uma noite, dei um passo de sete léguas, atravessei o espelho para finalmente me encontrar.”

 

 

“Se nunca pude pôr um filho no mundo, foi por não ter encontrado o pai que o protegesse dele.”

 

 

“Uma boceta tem mais necessidade de duas picas que uma pica de duas bocetas.”

 

 

“Cada boceta traz, desde que nasce, os nomes de quem vai comê-la.”

 

 

“– Por que você não se casou?

– Pelas mesmas razões que você, imagino. Liberdade demais, orgulho demais, tudo demais.”

 

 

“Diante dos pecados de uma mulher, os anjos são somente homens iguais aos outros.”

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Sistema das Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria - Pierre-Joseph Proudhon (Tomo I)

Editora: Escala
ISBN: 978-85-7556-893-4
Opinião★★★☆☆
Páginas: 394


“Obrigar-me ao devotamento é me assassinar! Deus! Não conheço Deus, é mais um misticismo. Comecem por riscar esta palavra de seus discursos se quiserem que os escute, pois, três mil anos de experiência me ensinaram que qualquer um que fale de Deus deseja minha liberdade ou minha bolsa.”


“Quando o povo não tem mais vingança, não tem mais providência.”


(aos detentores do monopólio): “Se seu suplício devesse durar tanto quanto o meu desprezo, deveriam acreditar na eternidade do inferno.”


“Ó justiça dos homens, cortesã estúpida, até quando sob teus ouropéis de deusa, beberás o sangue do proletário degolado?”


“Os juros, ou direito de ganhos inesperados, é ao mesmo tempo a expressão e a condenação do monopólio; é a espoliação do trabalho pelo capital organizado e legalizado; de todas as subversões econômicas é a que acusa mais frontalmente a antiga sociedade e cuja escandalosa persistência justificaria a expropriação brusca e sem indenização de toda a classe capitalista.”


“Não há nada no socialismo que não se encontre na economia política; e este plágio perpétuo é a condenação irrevogável de ambos.”


“O socialismo, desertando da crítica para entregar-se à peroração e à utopia, mesclando-se nas intrigas políticas e religiosas, traiu sua missão e menosprezou o caráter do século. A revolução de 1830 nos havia desmoralizado, o socialismo nos efemina. Com a economia política, cujas contradições apenas repisa, o socialismo é impotente para satisfazer o movimento das inteligências; não é mais, naqueles que subjuga, senão um novo preconceito a destruir e, naqueles que o propagam, um charlatanismo a desmascarar, tanto mais perigoso porque quase sempre é praticado de boa-fé.”


“Graças ao imposto, o ano inteiro é quaresma para o trabalhador; e sua ceia pascal não chega perto do café da manhã de sexta-feira santa do senhor bispo.”


“É igualmente impossível que numa sociedade fundada sobre o princípio de propriedade não se termine pela distinção de castas, que numa democracia não chegue ao despotismo, que uma religião seja razoável e que o fanatismo se mostre tolerante. É a lei da contradição, quanto tempo será ainda necessário para entendê-la?”


“É uma triste verdade que na sociedade o bem geral nunca é o efeito de uma conspiração das vontades particulares!”


“A justiça criminal (...) se tornou para a sociedade um princípio de existência tão necessário como o pão é para a vida do homem; mas com a diferença de que o homem vive do produto de suas mãos, ao passo que a sociedade devora seus membros e se alimenta de sua própria carne.”


“De fato, a partir do momento em que as condições constitutivas do poder, isto é, a autoridade, a propriedade, a hierarquia, são conservadas, o sufrágio do povo nada mais é que o consentimento do povo a sua opressão; o que revela o mais torno charlatanismo.”


“Essa é a guerra que têm que sustentar: guerra do trabalho contra o capital, guerra da liberdade contra a autoridade, guerra do produtor contra o improdutivo, guerra da igualdade contra o privilégio. O que pedem, para conduzir a guerra a bom termo, é precisamente contra que devem combater. Ora, para combater e reduzir o poder, para colocá-lo no lugar que lhe convém na sociedade, de nada serve mudar os depositários do poder, nem trazer alguma variante em suas manobras: é necessário encontrar uma combinação agrícola e industrial por meio da qual o poder, hoje denominador da sociedade, se torne seu escravo.”


“O povo é o primeiro a acusar os pobres de vagabundagem.”


“O homem é tirano ou escravo por vontade, antes de sê-lo pela sorte; o coração do proletário é como aquele do rico, um esgoto de sensualidade fervilhante, um lar de crápulas e de impostura.”


“Já se viu um capitalista, cansado de ganhar, conspirar para o bem geral e fazer da emancipação do proletariado sua última especulação?”


“O homem, súmula do universo, resume e sintetiza em sua pessoa todas as virtualidades do ser, todas as cisões do absoluto; é o topo onde essas virtualidades, que só existem por sua divergência, se reúnem em feixe, mas sem se penetrar nem se confundir.”



“Deus, que a fé apresenta como um pai terno e mestre prudente, nos entrega à fatalidade de nossas concepções incompletas; cava o fosso sob nossos pés; ele nos faz caminhar como cegos e depois, a cada queda, nos pune como celerados. Que digo? Parece que seja apesar dele que, no fim, totalmente contundidos pela viagem, reconhecemos nossos caminhos, como se fosse ofender sua glória nos tornarmos, pelas provas que ele nos impõe, mais inteligentes e mais livres. (...) Certamente, creio ter provado que o abandono da providência não nos justifica, mas, qualquer que seja nosso crime, não somos culpados diante dela e, se há um ser que, antes de nós e mais que nós, tenha merecido o inferno, é realmente necessário que o diga: É Deus.”

terça-feira, 23 de outubro de 2007

A Sombra do Silêncio, de Mino Carta

Editora: Francis

ISBN: 978-85-8936-219-1

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 224

Sinopse: Criando novamente um misto de ficção e memória (como em seu primeiro romance, O castelo de âmbar), Mino Carta mostra-se um alquimista do estilo, capaz de combinar musicalidade e metáfora em achados surpreendentes. A sombra do silêncio se passa num país que é mas não é o Brasil, e onde os personagens e os lugares da vida real se escondem atrás de nomes fantasiosos, pitorescos e às vezes nada sutis. A sombra do silêncio é, portanto, um “roman à clef”, mas que o autor prefere chamar de “sátira à clef”, pois o tom é sempre satírico.

Nessa sequência de O castelo de âmbar, Mino Carta continua e encerra a história do jornalista Mercúcio Parla, que poderia ser, sem dúvida, seu alter ego. Mas, na realidade, quem protagoniza talvez mais que o próprio Mercúcio esse romance seja Core Mio, a moça risonha que mereceu a admiração de mais bela do bairro. Na rua Áurea, Mercúcio encontrou “o único e autêntico amor” de sua vida. Core Mio é o coração de Mercúcio, e A sombra do silêncio conta a história desse coração, que se descobre e desvela na dedicação absoluta à verdade do amor.




“Para ter compaixão pelos homens é preciso compadecer-se de Deus.”

 

 

“As mãos navegam em meio ao arquipélago luminescente, há todo o tempo da solidão na pescaria das emoções. Achado o ancoradouro temporário, tornam-se doces prumos, nem agora ansiosos, agrada-as a ausência da pressa ao vasculhar a súbita ilha de lembranças em busca da imagem que convém ao momento.”

 

 

“A classe média é egoísta, ignorante, o povo, manso e lerdo...”

 

 

“Sim, os homens... Você sabe que eles são iguais a nós, não sabe? Gente inconfiável, para dizer o mínimo.”

 

 

“Eis o pior momento do leitor de mãos, a sina do espião trágico, a descoberta em si mesmo da desgraça alheia.”

 

 

“Eu sei, sei bem demais que o amor é mais uma utopia, e eu a temo, a utopia...”

 

 

“Naquela noite decide caminhar pela cidade, que vagarosamente se abre ante seu passo e pressente ser aquele um dos últimos passeios tranquilos de um notívago. Das vísceras da terra ofendida, das memórias destruídas, da floresta abatida, da desigualdade consagrada, nasceriam os demônios que transitam entre a doença e o pesadelo.”

 

 

“Você é um anárquico cujos heróis são cavaleiros de ventura. Às vezes pensa dispor de um ideário complexo e bem articulado, mesmo porque leu uns livros e deu ouvidos a determinadas pregações, mas tudo se resume na natural compaixão, natural para gente como nós, pelos humilhados e ofendidos. E pelo natural desprezo pelos donos do poder. No fundo é uma postura aristocrática... a seu modo...”

 

 

“Nada tenho a revelar, apenas aconselho: abandone-se ao enredo do destino, relaxe e se entregue, na vida e na morte. Confie no sentido da falta de sentido.”

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

A Caixa-preta - Amós Oz

Editora: Companhia de Bolso
ISBN: 978-85-3591-067-4
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 272
Sinopse: Que segredos pode conter a caixa preta de um avião que caiu? Revelações sobre as razões da queda, gritos de horror, pânico, tentativas desesperadas de salvação: vestígios da catástrofe. O romance do israelense Amós Oz tem tudo isso, mas a caixa preta a que se refere o título não pertence a um avião, e sim a uma relação amorosa desfeita.
Anos depois do divórcio escandaloso, a esposa rejeitada Ilana emerge das cinzas do tempo, da distância e do rancor para passar a limpo seu casamento com Alex Guideon, professor e escritor mundialmente famoso. Com dinheiro, Alex tenta silenciar o passado que sangra. Mas as coisas mudaram. Entre ele e a ex-mulher, agora há também Boaz, filho dos dois, explodindo de juventude e violência, e Michel Sommo, o novo marido de Ilana, burocrata medíocre e fanático religioso. Todas essas vozes, com suas melodias diversas, matizadas às vezes pelos tons mais sombrios da sexualidade (ninfomania, sadomasoquismo, voyeurismo), são brilhantemente orquestradas pelo autor, que aqui se vale da clássica forma do romance epistolar. As várias primeiras pessoas revelam-se por si mesmas, em secos telegramas, bilhetes mal escritos ou longas cartas.
Ao mesmo tempo, por trás de paixões pessoais tão intensas que beiram a loucura, desenha-se com precisão o complexo panorama social, religioso e político da vida em Israel nos últimos anos. Fortemente erótico, mas também engraçado e poético, A caixa preta só revela aos poucos sua sabedoria mais funda e amarga: somente a proximidade da morte e a consciência da finitude do corpo podem apaziguar as paixões. Aquilo que parecia apenas uma enlameada rede de intrigas, por meio da solidariedade que lentamente une essas personagens desgraçadas, reveste o livro de uma terrível dignidade. Além de ser inesquecível, este romance conquista algo raro – grandeza humana.



“Quando a batalha está no auge, não há mais sentido nas regras iniciais. Em todo caso, o inimigo não conhece as regras e não age de acordo com elas”.


“Seu silêncio é transparente para mim, como as lágrimas.”


“As coisas primordiais das quais você foi banido para sempre, exilado nas estepes da escuridão pelas quais você vaga uivando para uma lua morta, perambulando entre a brancura, procurando nos confins da tundra alguma coisa perdida há muito tempo, mesmo que você já tenha esquecido o que perdeu e quando e por que a perdeu: “A sua vida é a sua prisão, enquanto a sua morte aparece como uma perspectiva de ressurreição paradoxal, como uma promessa de maravilhosa redenção do seu vale de lágrimas”. A citação é tirada do seu livro. O lobo uivando na escuridão para a lua na estepe é a minha contribuição.”


“O diabo infiltra-se em tudo.”


“Por acaso a senhora sabe onde fica a cidade de Simferopol? Houve uma batalha terrível lá. Rapazes foram mortos como moscas. E quem não foi morto perdeu Deus.”


“Uma vez eu também amei uma mulher. Cheguei a obrigá-la a se casar comigo. Embora ela não sentisse desejo por mim. Talvez ela desejasse um poeta? Quanto a mim – como direi? –, do umbigo para cima estava apaixonado, fazendo serenatas, oferecendo lenços e flores, mas do umbigo para baixo, porco da terra de porcos. Levantando saias a torto e a direito pelos campos. E ela, minha bem-amada, minha esposa, ficava o dia todo sentada na janela. Ela cantava uma musiquinha: ‘Lá onde os cedros crescem...’. Por acaso você conhece a música? Permita que eu cante em sua homenagem: ‘Lá onde os cedros crescem...’. Tome cuidado com músicas assim. Foi o anjo da morte que as compôs. E ela, com a intenção de me castigar, morreu. Para me contrariar. Ela me deixou e foi para Deus. Ela não sabia que Ele também é um porco. Ela se deu mal.”


“Os judeus construíram um país. Não é um país correto, mas construíram! Sem Deus – mas construíram! Agora vamos esperar e ver o que Deus diz disso.”


“‘Amarás o próximo como a ti mesmo’ – mas se o ódio por si próprio já o tiver devorado, esta ordem carrega-se de uma ironia mortal.”


“Eu também saí para andar pelas ruas. Subi a colina para ver o pôr-do-sol e fazer perguntas proibidas. A única resposta que recebi foi o sussurro das árvores. Talvez fosse tudo um engano? Talvez o Jardim do Éden, o Dilúvio, o Monte Moriá e a Sarça Ardente nunca tenham existido, foram apenas uma mera alegoria? Talvez os grandes estudiosos tenham errado nas suas identificações, e a antiga Jerusalém não é aqui, a Terra de Israel bíblica, mas em algum lugar totalmente diferente? Para além das colinas de trevas? Não poderia ter ocorrido um erro assim? Os cientistas não erram? Talvez seja por isto que D’us não existe neste lugar?”


“Durante nove anos lutei contra Maquiavel, desmontei Hobbes e Locke, desfiz todas as costuras de Marx, ardendo com o desejo de provar de uma vez por todas que não são o egoísmo, nem a baixeza ou a crueldade da nossa natureza que nos transformam numa espécie que destrói a si própria. Nós aniquilamos a nós próprios (e breve exterminaremos todos os da nossa espécie) justamente devido aos nossos “anseios superiores”, devido à doença religiosa. Por causa da necessidade ardente de “ser redimido”. Devido à obsessão pela “redenção”. O que é a obsessão pela redenção? Apenas uma máscara que esconde a ausência absoluta de talento básico para a vida. É o talento que todo gato possui. Quanto a nós, como as baleias que se atiram contra a praia num impulso coletivo, sofremos de uma avançada degeneração do talento para a vida. Daí a vontade popular de destruir e exterminar o que temos, para abrir caminho até regiões de redenção que jamais existiram e não são sequer possíveis.”


“Eu serei deixada sozinha para velar os tormentos da morte.”


“Diga em suas orações, Michel, que a solidão, o desejo e a saudade são mais do que conseguimos suportar. E sem eles, perecemos. Diga que tentamos receber e dar amor, mas nos perdemos no caminho. Diga que não nos esqueçam e que continuamos a cintilar na escuridão. Tente esclarecer como podemos sair. E onde fica aquela terra prometida.
Ou não. Não reze.”