Editora: Clube de Literatura Clássica
ISBN: 978-65-8703-620-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 690
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Sinopse: Ver Parte
I
“POPULAÇÃO
MULTIFORME. POLÍCIA DE BANDIDOS. O TEMPLO. ESTRADA PARA O CÉU.
Lá se
firmou logo um regímen modelado pela religiosidade do apóstolo extravagante.
Jugulada
pelo seu prestígio, a população tinha, engravecidas, todas as condições do
estádio social inferior. Na falta da irmandade do sangue, a consanguinidade
moral dera-lhe a forma exata de um clã, em que as leis eram o arbítrio do chefe
e a justiça as suas decisões irrevogáveis. Canudos estereotipava o facies dúbio
dos primeiros agrupamentos bárbaros.
O
sertanejo simples transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso e
bruto. Absorvia-o a psicose coletiva. E adotava, ao cabo, o nome até então
consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões das refregas eleitorais e
saqueadores de cidades — jagunço.
De
sorte que ao fim de algum tempo a população constituída dos mais dispares
elementos, do crente fervoroso abdicando de si todas as comodidades da vida
noutras paragens, ao bandido solto, que lá chegava de clavinote ao ombro em
busca de novo campo de façanhas, se fez a comunidade homogênea e uniforme,
massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções
especializadas, pela só justaposição mecânica de levas sucessivas à maneira de
um polipeiro719 humano. É natural que absorvesse, intactas, todas as
tendências do homem extraordinário do qual a aparência proteica720 —
de santo exilado na terra, de fetiche de carne e osso, e de bonzo721
claudicante —estava adrede talhada para reviver os estigmas degenerativos de
três raças.
Aceitando,
às cegas, tudo quanto lhe ensinara aquele; imersa de todo no sonho religioso;
vivendo sob a preocupação doentia da outra vida, resumia o mundo na linha de
serranias que a cingiam. Não cogitava de instituições garantidoras de um
destino na terra.
Eram-lhe
inúteis. Canudos era o cosmos.
E
este mesmo transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala terminal, de
onde decampariam722 sem demora; o último pouso na travessia de um
deserto — a Terra. Os jagunços errantes ali armavam pela derradeira vez as
tendas, na romaria miraculosa para os céus...
Nada
queriam desta vida. Por isto a propriedade tornou-se-lhes uma forma exagerada
do coletivismo tribal dos beduínos: a apropriação pessoal apenas de objetos
móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e
dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota-parte,
revertendo o resto para a companhia. Os recém-vindos entregavam ao
Conselheiro noventa e nove por cento do que traziam, incluindo os santos
destinados ao santuário comum. Reputavam-se felizes com a migalha restante.
Bastava-lhes de sobra. O profeta ensinara-lhes a temer o pecado mortal do
bem-estar mais breve. Voluntários da miséria e da dor, eram venturosos na
medida das provações sofridas. Viam-se bem, vendo-se em andrajos. Este
desprendimento levado às últimas consequências chegava a despi-los das belas
qualidades morais, longamente apuradas na existência patriarcal dos sertões.
Para Antônio Conselheiro — e neste ponto ele ainda copia velhos modelos
históricos — a virtude era como que o reflexo superior da vaidade. Uma quase
impiedade. A tentativa de enobrecer a existência na terra implicava de certo
modo a indiferença pela felicidade sobrenatural iminente, o olvido do além
maravilhoso anelado.
O seu
senso moral deprimido só compreendia a posse deste pelo contraste das agruras
suportadas.
De
todas as páginas de catecismo que soletrara ficara-lhe preceito único:
Bem-aventurados
os que sofrem...723
A
extrema dor era a extrema-unção.724 O sofrimento duro a absolvição
plenária;725 e teriaga726 infalível para a peçonha dos
maiores vícios.
Que
os homens se desmandassem ou agissem virtuosamente — era questão de somenos.727
Consentia de boa feição que errassem, mas que todas as impurezas e todas as
escorralhas728 de uma vida infame caíssem, afinal, gota a gota, nas
lágrimas vertidas.
Ao
saber de caso escandaloso em que a lubricidade729 de um devasso
maculara incauto donzela teve, certa vez, uma frase ferozmente cínica, que os
sertanejos repetiam depois sem lhe aquilatarem a torpeza:
“Seguiu o destino de todas; passou por baixo da
árvore do bem e do mal!”
Não é
para admirar que se esboçasse logo, em Canudos, a promiscuidade de um
hetairismo730 infrene.731 Os filhos espúrios não tinham à
fronte o labéu732 indelével da origem, a situação infamante dos bäncklings733
entre os germanos. Eram legião.
Porque
o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre. Nos conselhos
diários não cogitava da vida conjugal, traçando normas aos casais ingênuos. E
era lógico. Contados os últimos dias do mundo, fora malbaratá-los734
agitando preceitos vãos, quando o cataclismo iminente viria, em breve, apagar
para sempre as uniões mais íntimas, dispersar os lares e confundir no mesmo
vórtice todas as virtudes e todas as abominações. O que urgia era antecipá-lo
pelas provações e pelo martírio. Pregava, então, os jejuns prolongados, as
agonias da fome, a lenta exaustão da vida. Dava o exemplo fazendo constar,
pelos fiéis mais íntimos, que atravessava os dias alimentando-se com um pires
de farinha. Conta-se que em certo dia foi visitado por um crente abastado das
cercanias. Repartiu com ele a refeição escassa; e este — milagre que abalou o
arraial inteiro! — saiu, do banquete minúsculo, repleto, empanzinado, como se
volvesse de festim soberbo.
Este
regímen severo tinha efeito duplo: tornava, pela própria debilidade, mais
vibrátil a enervação enferma dos crentes e preparava-os para as aperturas dos
assédios, talvez previstos. Era, talvez, intenção recôndita de Antônio
Conselheiro. Nem de outro modo se compreende que permitisse assistissem no
arraial indivíduos cuja índole se contrapunha à sua placabilidade humilde.
Canudos
era o homizio735 de famigerados736 facínoras. Ali
chegavam, de permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros
heróis da faca e da garrucha. E estes foram logo os mais quistos daquele homem
singular, os seus ajudantes de ordens prediletos, garantindo-lhe a autoridade
inviolável. Eram, por um contraste natural, os seus melhores discípulos. A
seita esdrúxula — caso de simbiose moral em que o belo ideal cristão surgia monstruoso
dentre aberrações fetichistas — tinha os seus naturais representantes nos
Batistas truculentos, capazes de carregar os bacamartes homicidas com as contas
dos rosários...
Graças
a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava o arraial, corrigindo os que
saíam das trilhas demarcadas. Na cadeia ali paradoxalmente instituída — a poeira,
no dizer dos jagunços — viam-se diariamente, presos pelos que haviam cometido a
leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de
faltar às rezas.
Inexorável
para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados, a justiça era,
como tudo o mais, antinômica,737 no clã policiado por facínoras.
Visava uma delinquência especial, traduzindo-se na inversão completa do
conceito do crime. Exercitava-se, não raro duramente, cominando738
penas severíssimas sobre leves faltas.
O uso
da aguardente, por exemplo, era delito sério. Ai! dipsomaníaco739
incorrigível que rompesse o interdito imposto!
Conta-se
que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos do Juazeiro, foram ter a
Canudos, levando alguns barris do líquido inconcesso.740 Atraía-os o
engodo de lucro inevitável. Levavam a eterna cúmplice das horas ociosas dos
matutos. Ao chegarem, porém, tiveram, depois de descarregarem na praça a carga
valiosa, desagradável surpresa. Viram, ali mesmo, abertos os barris, a machado,
e inutilizado o contrabando sacrílego. E volveram rápidos, desapontados, tendo
às mãos, ao invés do ganho apetecido, o ardor de muitas dúzias de palmatoadas,741
amargos bolos742 com que os presenteara aquela gente ingrata.
Este
caso é expressivo. Sólida experiência ensinara ao Conselheiro todos os perigos
que adviriam deste haxixe nacional. Interdizia-o menos por debelar um vício que
para prevenir desordens. Mas, fora do povoado, estas podiam espalhar-se à
larga. Dali partiam bandos turbulentos arremetendo com os arredores. Toda a sorte
de tropelias eram permitidas, desde que aumentassem o patrimônio da grei. Em
1894, as algaras,743 chefiadas por valentões de nota, tornaram-se
alarmantes. Foram em um crescendo tal, de depredações e desacatos, que
despertaram a atenção dos poderes constituídos, originando mesmo calorosa e
inútil discussão na Assembleia Estadual da Bahia.
Em
dilatado raio em torno de Canudos, talavam-se744 fazendas,
saqueavam-se lugarejos, conquistavam-se cidades! No Bom Conselho, uma horda
atrevida, depois de se apossar da Vila, pô-la em estado de sítio, dispersou as
autoridades, a começar pelo juiz da comarca e, como entreato hilariante na razzia
escandalosa, torturou o escrivão dos casamentos que se viu em palpos de aranhas745
para impedir que os crentes sarcásticos lhe abrissem, tosquiando-o, uma coroa
larga, que lhe justificasse o invadir as atribuições sagradas do vigário.746
Os
desordeiros volviam cheios de despojos para o arraial, onde ninguém lhes tomava
conta dos desmandos.
Muitas
vezes, diz o testemunho unânime da população sertaneja, tais expedições eram
sugeridas por intuito diverso. Alguns fiéis abastados tinham veleidades
políticas. Sobrevinha a quadra eleitoral. Os grandes conquistadores de urnas
que, a exemplo de milhares de comparsas disseminados neste país, transformam a
fantasia do sufrágio universal na clava de Hércules da nossa dignidade,
apelavam para o Conselheiro.
Canudos
fazia-se, então, provisoriamente, o quartel das guardas pretorianas dos
capangas, que de lá partiam, trilhando rumos prefixos, para reforçarem, a pau e
a tiro, a soberania popular, expressa na imbecilidade triunfante de um régulo747
qualquer; e para o estraçoamento748 das atas; e para as mazorcas749
periódicas que a lei marca, denominando-as “eleições”, eufemismo que é entre
nós o mais vivo traço das ousadias da linguagem. A nossa civilização de
empréstimo arregimentava, como sempre o fez, o banditismo sertanejo.
Ora, estas
arrancadas750 eram um ensinamento. Eram úteis. Eram exercícios
práticos indispensáveis ao preparo para recontros mais valentes.
Compreendera-as, talvez, assim, o Conselheiro. Tolerava-as. No arraial, porém ,
exigia, digamos em falta de outro termo — porque os léxicos não o têm para
exprimir um tumulto disciplinado — ordem inalterável. Ali permaneciam,
inofensivos porque eram inválidos, os seus melhores crentes: mulheres,
crianças, velhos alquebrados, doentes inúteis. Viviam parasitariamente da
solicitude do chefe, que lhes era o Santo protetor, ao qual saudavam entoando
versos há vinte e tantos anos correntes nos sertões:
Do céu veio uma luz
Que Jesus Cristo
mandou
Santo Antônio
Aparecido
Dos castigos nos
livrou!
***
Quem ouvir e não
aprender
Quem souber e não
ensinar
No dia do Juízo
A sua alma penará!751
Estas
velhas quadras, que a tradição guardara, lembravam ao infeliz os primeiros dias
da vida atormentada e avivam-lhe, porventura, os últimos tragos da vaidade, no
confronto vantajoso com o santo milagreiro por excelência.
O
certo é que abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos
do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, na aparência inútil, era o
cerne vigoroso do arraial. Formavam-na os eleitos, felizes por terem aos ombros
os frangalhos imundos, esfiapados sambenitos752 de uma penitência,
que lhes fora a própria vida; bem-aventurados porque o passo trôpego,753
remorado754 pelas muletas e pelas anquiloses,755 lhes era
a celeridade máxima, no avançar para a felicidade eterna.
Além
disto ali os aguardava, no termo da jornada, a última penitência: a construção
do templo.
A
antiga capela não bastava. Era frágil e pequena. Mal sobranceava os colmos
achatados. Retratava por demais, no aspecto modestíssimo, a pureza principal da
religião antiga.
Era
necessário que se lhe contrapusesse a arx756 monstruosa,
erigida como se fosse o molde monumental da seita combatente.
Começou
a erigir-se a igreja nova. Desde antemanhã757 enquanto uns se
entregavam às culturas ou tangiam os rebanhos de cabras, ou abalavam para fazer
o saco758 nas vilas próximas, e outros, dispersando-se em
piquetes759 vigilantes, estacionavam nas cercanias, bombeando760
quem chegava, o resto do povo moirejava761 na missão sagrada.
Defrontando
o antigo, o novo templo erguia-se no outro extremo da praça. Era retangular, e
vasto, e pesado. As paredes mestras, espessas, recordavam muralhas de reduto.762
Durante muito tempo teria esta feição anômala, antes que as duas torres muito
altas, com ousadias de um gótico rude e imperfeito, o transfigurassem.
É que
a catedral admirável dos jagunços tinha essa eloqüência silenciosa dos
edifícios, de que nos fala Bossuet...763
Devia
ser como foi. Devia surgir, mole764 formidável e bruta, da extrema
fraqueza humana, alteada pelos músculos gastos dos velhos, pelos braços débeis
das mulheres e das crianças. Cabia-lhes a forma dúbia de santuário e de antro,
de fortaleza e de templo, irmanando no mesmo âmbito, onde ressoariam mais tarde
as ladainhas e as balas, a suprema piedade e os supremos rancores...
Delineara-a
o próprio Conselheiro. Velho arquiteto de igrejas, requintara no monumento que
lhe cerraria a carreira. Levantava, volvida para o levante, aquela fachada
estupenda, sem módulos,765 sem proporções, sem regras; de estilo
indecifrável, mascarada de frisos grosseiros e volutas766
impossíveis, cabriolando767 num delírio de curvas incorretas;
rasgada de ogivas768 horrorosas, esburacada de troneiras;769
informe e brutal, feito a testada de um hipogeu770 desenterrado;
como se tentasse objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito
delirante.
Era a
sua obra-prima. Ali passava os dias, sobre os andaimes altos e bailéus771
bamboantes772. O povo enxameando embaixo, na azáfama do transporte
dos materiais, estremecia muita vez ao vê-lo passar, lentamente, sobre as
tábuas flexuosas e oscilantes, impassível, sem um tremor no rosto bronzeado e
rígido, feito uma cariátide773 errante sobre o edifício monstruoso.
Não
faltavam braços para a tarefa. Não cessavam reforços e recursos à sociedade
acampada no deserto. Metade, por assim dizer, das gentes de Tucano e de
Itapicuru para lá abalou. De Alagoinhas, Feira de Santana e Santa Luzia, iam
toda a sorte de auxílios. De Jeremoabo, Bom Conselho e Simão Dias, grandes
fornecimentos de gados.
Não
assombravam aos recém-vindos os quadros que se lhes antolhavam. Tinham-nos como
obrigatória a prova desafiando-lhes a fé inabalável.
Os
ingênuos contos sertanejos desde muito lhes haviam revelado as estradas
facinadoramente traiçoeiras que levam ao inferno. Canudos, imunda antessala do
paraíso, pobre peristilo774 dos céus, devia ser assim mesmo —
repugnante, aterrador, horrendo...
Entretanto,
lá tinham ido, muitos, alimentando esperanças singulares. “Os aliciadores da
seita se ocupam em persuadir o povo de que todo aquele que se quiser salvar
precisa vir para Canudos, porque nos outros lugares tudo está contaminado e
perdido pela República. Ali, porém, nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão,
onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas.”
Chegavam.
Deparavam
o Vaza-Barris seco, ou empanzinado, volvendo apenas águas barrentas das
enchentes, entre os flancos entorroados das colinas...
Tinham
esvaecida a miragem feliz; mas não se despeavam no misticismo lamentável...”
*: “Face” em latim, também grafada “fácies”;
designa o conjunto de características ou configuração de determinado campo,
aqui, geográfico. 719. Colônia de
pólipos; seus mais conhecidos representantes são os corais, anêmonas e medusas.
720. Multiforme (relativo a Proteu).
721. Monge budista; por extensão:
pessoa preguiçosa, ou sonsa. 722.
Levantariam acampamento. 723. Mateus
5, 10: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque
deles é o Reino dos céus”. 724.
Sacramento dos moribundos, em que o sacerdote os unge com os óleos santos. “Extrema”
tem o sentido de “última”. 725.
Absolvição de todos os pecados. 726.
Composto químico antigo com mais de 60 substâncias, usado como preventivo e
contra o veneno de animais; teria sido criado por Andrômaco de Creta, médico de
Nero. 727. Nota do autor: Montanus
ne prenait même pas la peine d'interdire un acte devenu absolument insignifiant,
du moment que l'humanité en était à son dernier soir. La porte se trouvait
ainsi ouverte à la débauche. — Renan, Marc-Aurèle, p. 215. Tradução
do editor: “Montano nem mesmo se dava ao trabalho de proibir um ato que se
tornara absolutamente insignificante a partir do momento em que a humanidade
estava em seu último crepúsculo. A porta se encontrava assim aberta à
devassidão.” 728. Literalmente,
resíduo líquido que fica no fundo das vasilhas. 729. Sensualidade. 730.
Sistema de prostituição na Grécia antiga; na antropologia, designa um modelo
primitivo de sociedade e que as relações sexuais são praticadas livremente, em
comunidade. 731. Desenfreado. 732. Mancha, desonra. 733. Bastardos. 734. Desperdiçá-los (os conselhos). 735. Esconderijo. 736. Famosos
(em sentido pejorativo). 737.
Contraditória, incoerente. 738.
Impondo. 739. Beberrão. 740. Proibido. 741. Literalmente, pancadas de palmatória. 742. Golpes. 743.
Incursões a cavalo em terras inimigas. 744.
Devastavam-se, arrasavam-se. 745.
Apêndices bucais da aranha; a expressão significa “estar em apuros, em situação
difícil”. 746. A “coroa” refere-se à
tonsura sacerdotal. Trata-se de uma revolta contra o casamento civil: o
escrivão teria usurpado as funções do sacerdote, por isso o castigo de lhe tosquiarem
a cabeça. 747. Tiranete. O latim regulus
é o diminutivo de rex; portanto: “reizinho”. 748. Espedaçamento. 749.
Tumultos, badernas. 750. Investidas.
751. Nota do autor: Sílvio
Romero, Estudos sobre a poesia popular no Brasil. O escritor transcrevia
aquelas quadras em 1879, precedendo-as com o seguinte comentário: “Era um
missionário a seu jeito. Com tão poucos recursos fanatizou as povoações que
visitou, que o tinham por Santo Antônio Aparecido”. Já em 1879!... 752. Hábito reles, usado pelos
penitentes acusados pela Inquisição. 753.
Arrastado, dificultoso. 754.
Retardado, demorado. 755.
Imobilidade ou inflexibilidade das articulações. 756. Em latim, cidadela, fortaleza. 757. Madrugada, logo antes de amanhecer. 758. Bernucci cita a definição do próprio Euclides: “ganhar o que
dê para alguns dias, uma semana”. 759.
Corpos de guarda. 760. Vigiando,
espionando. 761. Labutava,
trabalhava duro (como mouros). 762.
Fortificação no interior de outra, para servir à última resistência. 763. Jacques-Bénigne Bossuet
(1627-1704) foi um bispo francês, considerado o maior orador sacro da língua
francesa. 764. Construção de vastas
proporções. 765. Unidades de medida
que regulam as proporções e dimensões de uma construção.
“POR
QUE NÃO PREGAR CONTRA A REPÚBLICA?
Pregava
contra a República; é certo.
O
antagonismo era inevitável. Era um derivativo à exacerbação mística; uma
variante forçada ao delírio religioso.
Mas
não traduzia o mais pálido intuito político; o jagunço é tão inapto para
apreender a forma republicana como a monárquico-constitucional.
Ambas
lhe são abstrações inacessíveis. É espontaneamente adversário de ambas. Está na
fase evolutiva em que só é conceptível o império de um chefe sacerdotal ou
guerreiro.
Insistamos
sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história.
Tivemos, inopinadamente,823 ressurrecta e em armas em nossa frente,
uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido. Não a
conhecemos. Não podíamos conhecê-la. Os aventureiros do século XVII, porém,
nela topariam relações antigas, da mesma sorte que os iluminados da Idade Média
se sentiriam à vontade, neste século, entre os demonopatas824 de
Verzegnis ou entre os stundistas da Rússia.825 Porque essas
psicoses epidêmicas despontam em todos os tempos e em todos os lugares como
anacronismos palmares, contrastes inevitáveis na evolução desigual dos povos,
patentes sobretudo quando um largo movimento civilizador lhes impele
vigorosamente as camadas superiores.
Os perfectionistas826
exagerados rompem, então, lógicos, dentre o industrialismo triunfante da
América do Norte, e a sombria Stürmisch, inexplicavelmente inspirada
pelo gênio de Klopstock, comparte o berço da renascença alemã...827
Entre
nós o fenômeno foi porventura ainda mais explicável.
Vivendo
quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam828 reflexos
da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República.
Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na
penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente.
Iludidos por uma civilização de empréstimo; respigando,829 em faina
cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras
nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as
exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso
modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que
os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três
séculos...
E
quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se formasse um
núcleo de maníacos, não vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o
espírito ao conceito estreito de uma preocupação partidária. Tivemos um espanto
comprometedor ante aquelas aberrações monstruosas; e, com arrojo digno de
melhores causas, batemo-los a cargas de baionetas. reeditando por nossa vez o
passado, numa entrada inglória, reabrindo nas paragens infelizes as
trilhas apagadas das bandeiras...
Vimos
no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia
contra a ordem natural, adversário sério, estrênuo paladino do extinto regímen,
capaz de derruir as instituições nascentes.
E
Canudos era a Vendeia...830
Entretanto,
quando nos últimos dias do arraial foi permitido o ingresso nos casebres
estraçoados, salteou o ânimo dos triunfadores decepção dolorosa. A vitória
duramente alcançada dera-lhes direito à devassa dos lares em ruínas. Nada se
eximiu à curiosidade insaciável.
Ora,
no mais pobre dos saques que registra a História, onde foram despojos opimos831
imagens mutiladas e rosários de coco, o que mais acirrava a cobiça dos
vitoriosos eram as cartas, quaisquer escritos e, principalmente os desgraciosos
versos encontrados. Pobres papéis, em que a ortografia bárbara corria parelhas
com os mais ingênuos absurdos e a escrita irregular e feia parecia fotografar o
pensamento torturado, eles resumiam a psicologia da luta. Valiam tudo porque
nada valiam. Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; e, lendo-as,
põe-se de manifesto quanto eram elas afinal inócuas, refletindo o turvamento
intelectual de um infeliz. Porque o que nelas vibra em todas as linhas é a
mesma religiosidade difusa e incongruente, bem pouca significação política,
permitindo emprestar-se às tendências messiânicas expostas. O rebelado
arremetia com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o reino de
delícias prometido. Prenunciava-o a República — pecado mortal de um povo —heresia
suprema indicadora do triunfo efêmero do Anticristo. Os rudes poetas,
rimando-lhe os desvairos em quadras incolores, sem a espontaneidade forte dos
improvisos sertanejos, deixaram bem vivos documentos nos versos disparatados,
que deletreamos pensando, como Renan, que há, rude e eloquente, a segunda
Bíblia do gênero humano, nesse gaguejar do povo.832
Copiemos
ao acaso alguns:
“Saiu D. Pedro
segundo
Para o reino de
Lisboa
Acabosse a monarquia
O Brasil ficou à toa!”
A República era a
impiedade:
“Garantidos pela lei
Aqueles malvados
estão
Nós temos a lei de
Deus
Eles têm a lei do cão!”
***
“Bem desgraçados são
elles
Pra fazerem a eleição
Abatendo a lei de
Deus
Suspendendo a lei do cão!”
“Casamento vão
fazendo
Só para o povo iludir
Vão casar o povo todo
No casamento civil!”
O
governo demoníaco, porém, desaparecerá em breve:
“D. Sebastião já
chegou
E traz muito
regimento
Acabando com o civil
E fazendo o
casamento!”
“O Anticristo nasceu
Para o Brasil
governar
Mas aí está o Conselheiro
Para delle nos
livrar!”
***
“Visita nos vem fazer
“Nosso rei D.
Sebastião.
“Coitado daquelle
pobre
“Que estiver na lei
do cão!
A lei
do cão...
Este
era o apotegma834 mais elevado da seita. Resumia-lhe o programa.
Dispensa todos os comentários.
Eram,
realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados...
Requeriam
outra reação. Obrigavam-nos a outra luta.
Entretanto
enviamos-lhes o legislador Comblain;835 e esse argumento único,
incisivo, supremo e moralizador — a bala.”
825. Os stundistas são um grupo
evangélico que se original entre os ucranianos do Império Russo. Seu nome
deriva do alemão Stunde (“hora”), e professam uma moral rígida. 826. Grupo religioso fundado em Oneida, NY, em 1848. Os perfectionists
criam que Jesus já havia retornado, e que era possível eles mesmos construírem
o milênio e serem perfeitos, aqui mesmo na Terra. John Humphrey Noyes, o líder
da seita, disse, após a comunidade ter alcançado 200 adeptos, que eles haviam
atingido a santidade, sendo por isso impossível que pecassem: toda a
propriedade privada foi abolida, e o sexo era livre. A comunidade durou até
1881, quando se converteu numa empresa de cutelaria, a Oneida Limited, até hoje
ativa. 827. Friedrich Gottlieb
Klopstock (1724-1803) foi um poeta alemão, autor de Der Messias e um dos
maiores nomes da renovação literária no domínio da língua alemã. O adjetivo stürmisch
refere-se aqui ao movimento Sturm und Drang, que colocou a literatura
alemã no patamar das grandes literaturas europeias. 828. Aqui, aparecem palidamente. 829. Catando. 830. Departamento
francês, na fronteira com a Espanha. Ficou conhecida pelas Guerras da Vendeia,
durante a Revolução, por ter oferecido uma resistência monarquista e católica
aos revolucionários republicanos e laicistas. Até hoje o departamento tem o
Sagrado Coração de Jesus em seus símbolos cívicos. 831. Ricos, abundantes. 832.
No capítulo 28 de seu já referido livro, Renan faz um balanço dos grandes
personagens do Cristianismo do segundo século, classificando-os de grosseiros.
Analisa também os seus escritos: (p. 513): “A mesma reflexão pode ser aplicada aos escritos que nos deixaram essas
eras antigas. Eles são superficiais, simples, grosseiros, ingênuos, análogos às
cartas sem ortografia que escrevem hoje em dia os sectários comunistas mais
desprezíveis. Tiago e Judas lembram Cabet ou Babick, tal fanático de 1848 ou de
1871, convencido, mas não sabendo a sua língua, se exprimindo a esmo, de modo
tocante, sua aspiração ingênua à consciência. E, contudo, é esse gaguejar do
povo que se tornou a segunda Bíblia do gênero humano. O tapeceiro Paulo
escrevia em grego tão mal quanto Babick em francês.” Tradução e grifos nossos. 833. Nota do autor: Conservamos
os originais destas quadras cuja ortografia alteramos em parte. Complemento
do editor: Preferimos atualizar a ortografia. O original mantido por
Euclides é basicamente a ortografia vigente na época. 834. Máxima, aforismo. 835.
Rifle belga muito usado, na América do Sul, pelos exércitos brasileiro e
chileno.
“Antônio
Conselheiro há vinte e dois anos, desde 1874, era famoso em todo o interior do
Norte e mesmo nas cidades do litoral até onde chegavam, entretecidos de
exageros e quase lendários, os episódios mais interessantes de sua vida
romanesca; dia a dia ampliara o domínio sobre as gentes sertanejas; vinha de
uma peregrinação incomparável, de um quarto de século, por todos os recantos do
sertão, onde deixara como enormes marcos, demarcando-lhe a passagem, as torres
de dezenas de igrejas que construíra; fundara o arraial de Bom Jesus, quase uma
cidade; de Chorrochó à Vila do Conde, de Itapicuru a Jeremoabo, não havia uma
só vila, ou lugarejo obscuro, em que não contasse adeptos fervorosos, e não lhe
devesse a reconstrução de um cemitério, a posse de um templo ou a dádiva
providencial de um açude; insurgira-se desde muito, atrevidamente, contra a
nova ordem política e pisara, impune, sobre as cinzas dos editais das câmaras
de cidades que invadira; destroçara completamente, em 1893, forte diligencia
policial, em Macete, e fizera voltar outra, de oitenta praças de linha, que
seguira até Serrinha; em 1894, fora, nu Congresso Estadual da Bahia, assunto de
calorosa discussão na qual, impugnando a proposta de um deputado, chamando a
atenção dos poderes públicos para a “parte dos sertões perturbada pelo
indivíduo Antônio Conselheiro”, outros eleitos do povo, e entre eles um
sacerdote, apresentaram-no como benemérito do qual os conselhos se modelavam
pela ortodoxia a cristã mais rígida; fizera voltar, abortícia, em 1895, a
missão apostólica planeada pelo arcebispo baiano, e no relatório alarmante a
propósito escrito por frei João Evangelista afirmara o missionário a
existência, em Canudos — excluídas as mulheres, as crianças, os velhos e os
enfermos — de mil homens, mil homens robustos e destemerosos “armados até aos
dentes”; por fim, sabia-se que ele imperava sobre extensa zona dificultando o
acesso à cidadela em que se entocara, porque a dedicação dos seus sequazes era
incondicional, e fora do círculo dos fiéis que o rodeavam havia, em toda a
parte, a cumplicidade obrigatória dos que o temiam...”