Editora: Nova
Fronteira
ISBN: 978-85-209-4368-7
Tradução: Martha
Calderaro
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 288
Sinopse: Memórias de Adriano é uma das mais
fascinantes obras de ficção do século XX.
Nesta espécie de
autobiografia imaginária, Marguerite Yourcenar recria a notável vida do
imperador Adriano, com seus triunfos e reveses, e o reordenamento gradual que
impôs a um mundo dilacerado pela guerra.
Adriano configura-se aqui
num exemplo dos melhores atributos do humanismo antigo.
Nesta que é considerada sua
obra-prima, a “grande dama da literatura francesa” segue um rigoroso processo
de reconstituição histórica, mas traz também uma verve poética e filosófica,
numa prosa tanto elegante quanto precisa.
Iniciado em 1924 e
concluído em 1951, o livro teve muitos manuscritos destruídos, desaparecidos,
abandonados, em um intenso processo de pesquisa, escrita e reescrita. Após a
publicação, a obra obteve enorme sucesso e converteu-se de imediato em um
clássico da literatura moderna, consolidando definitivamente o nome de
Marguerite Yourcenar na cena literária.
“É difícil permanecer
imperador na presença do médico, e mais difícil permanecer homem.”
“Ainda não atingi a
idade em que a vida para cada homem é uma derrota consumada. Dizer que meus
dias estão contados nada significa! Assim foi sempre. E assim sempre será, para
todos nós.”
“Acreditei, e nos meus bons momentos ainda acredito,
que seria possível partilhar da existência de todos os homens, e que essa
simpatia seria uma das formas irrevogáveis da imortalidade.”
“Comer um fruto é fazer entrar em si mesmo um belo
objeto vivo, estranho, nutrido e favorecido, como nós, pela terra. É consumar um
sacrifício no qual nós nos preferimos ao objeto. Jamais mastiguei a crosta do
pão das casernas sem maravilhar-me de que essa massa pesada e grosseira pudesse
transformar-se em sangue, calor e, talvez, em coragem.”
“Falta ao príncipe a latitude de que goza o filósofo:
não pode permitir-se discordar dos demais ao mesmo tempo. E os deuses sabem que
meus pontos de discordância eram numerosos, embora estivesse persuadido de que
muitos deles eram invisíveis.”
“Os cínicos e os
moralistas concordam em colocar a volúpia do amor entre os prazeres ditos
grosseiros, como o prazer de comer e de beber, declarando-a, contudo, menos
indispensável do que aqueles, visto que podem perfeitamente prescindir dela. Do
moralista tudo se espera, mas espanta-me que o cínico se tenha enganado.
Admitamos que uns e outros receiem seus próprios demônios, seja porque lhes
resistam, seja porque se lhes entreguem, esforçando-se por aviltar o prazer a
fim de lhe tirar o poder quase terrível sob o qual sucumbem, e diminuir o estranho
mistério no qual se sentem perdidos. Eu acreditaria nessa associação do amor às
alegrias puramente físicas (supondo-se que tais alegrias existam) no dia em que
visse um gastrônomo soluçar de prazer diante do seu prato favorito, tal como o
amante sobre um ombro amado. De todos os jogos, o do amor é o único capaz de
transtornar a alma e, ao mesmo tempo, o único no qual o jogador se abandona
necessariamente ao delírio do corpo. Não é indispensável que aquele que bebe
abdique da razão, mas o amante que conserva a sua não obedece inteiramente ao
deus do amor. Tanto a abstinência quanto o excesso engajam apenas o homem só.
Salvo no caso de Diógenes, cujas limitações e caráter racional e pessimista
definem-se por si mesmos, toda experiência sensual nos coloca em face do Outro,
acarretando-nos as exigências e as servidões da escolha. Não conheço, fora do
amor, outra situação em que o homem deva decidir-se por motivos mais simples e
mais inelutáveis. No amor, o objeto escolhido deve valer exatamente seu peso
bruto em prazer, e é ainda no amor que o amante da verdade tem maiores
probabilidades de julgar a nudez da criatura. A partir do desnudamento total,
comparável ao da morte, de uma humildade que ultrapassa a da derrota e a da
prece, maravilho-me ao ver renovar-se, cada vez, a complexidade das recusas,
das responsabilidades, das promessas, das pobres confissões, das frágeis
mentiras, dos compromissos apaixonados entre nosso prazer e o prazer do Outro,
tantos laços impossíveis de romper e tão depressa rompidos! Esse jogo cheio de
mistérios, que vai do amor de um corpo ao amor de uma pessoa, pareceu-me belo o
bastante para consagrar-lhe uma parte de minha vida. As palavras enganam,
especialmente as do prazer, que comportam as mais contraditórias realidades,
desde as noções de aconchego, doçura e intimidade dos corpos, até as da
violência, da agonia e do grito. (...)
Aqui, como nas revelações dos Mistérios, tudo se passa
além do alcance da lógica humana. A tradição popular não se enganou ao ver no
amor uma forma de iniciação e um dos pontos onde o secreto e o sagrado se
tocam. A experiência sensual equipara-se ainda aos Mistérios quando a primeira
aproximação provoca nos não-iniciados o efeito de um rito mais ou menos
assustador, escandalosamente desligado de todas as funções até então
familiares, como comer, beber e dormir, parecendo antes motivo de gracejo,
vergonha, ou terror. Da mesma maneira que a dança das mênades ou o delírio dos
coribantes, nosso amor arrasta-nos para um universo diferente, onde, em
situação normal, nos é vedada a entrada e onde cessamos de nos orientar, uma
vez apagado o ardor e extinto o prazer. Cravado no corpo amado como um
crucificado à sua cruz, penetrei em certos segredos da vida que começam a
desvanecer-se da minha lembrança por efeito da mesma lei que faz com que o
convalescente, depois de curado, cesse de encontrar-se nas misteriosas verdades
do seu mal, que o prisioneiro posto em liberdade esqueça a tortura, e o
triunfador, a embriaguez da glória.”
“Nada
mais sórdido do que um cúmplice.”
“A
própria solicitude pode ser fatigante, ainda quando sincera.”
“Como toda gente, só
disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de si mesmo,
o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação
dos homens, que tratam frequentemente de ocultar-nos seus segredos ou de nos
fazer crer que os têm; os livros, com os erros peculiares de perspectiva que
surgem entre suas linhas.”
“Quase tudo o que sabemos de outrem é de segunda mão.
Quando um homem se confessa, ele defende sua causa. Se o observarmos, veremos
que não está só: sua apologia está antecipadamente preparada.”
“Quanto à observação de mim mesmo, a ela me obrigo não
só para entrar num acordo com o indivíduo junto do qual serei obrigado a viver
até o final, como também porque uma intimidade de quase sessenta anos comporta
não poucas probabilidades de erro. No fundo, meu conhecimento de mim mesmo é
obscuro, interior, informulado e secreto como uma cumplicidade. São noções
quase tão frias e tão impessoais quanto as teorias que posso elaborar a
respeito dos números. Emprego toda a minha inteligência para observar minha
vida de tão longe e de tão alto, que ela me aparece como a vida de um outro e
não a minha própria. Mas esses processos de conhecimento são difíceis e
requerem um mergulho dentro de nós mesmos e uma saída totalmente para fora de
nós. Por comodismo, inclino-me, como todo mundo, a substituir esses processos
por um sistema de pura rotina, uma concepção de minha vida parcialmente
modificada pela imagem que o público tem dela através de julgamentos
pré-fabricados, isto é, malfeitos. Uma espécie de modelo pronto, ao qual o
alfaiate inábil adapta laboriosamente o tecido que é nosso. Trata-se de um
equipamento de valor desigual, com instrumentos mais ou menos embotados. Mas
não possuo outros: é com esses que devo compor, bem ou mal, uma ideia do meu
destino de homem.”
“Não sou daqueles que
dizem que suas ações não se parecem com eles. Pelo contrário. É imprescindível
que elas se pareçam comigo, porque são minha única medida e o único meio de me
delinear na memória dos homens, ou na minha própria, pois que a impossibilidade
de continuar a exprimir-se e a modificar-se pela ação é talvez a única
diferença entre os mortos e os vivos. Mas entre mim e esses atos de que sou
feito, existe um hiato indefinível. A prova disso é que experimento
continuamente a necessidade de pesá-los, explicá-los e deles prestar contas a
mim mesmo. Alguns trabalhos que duraram pouco são certamente insignificantes,
mas as ocupações que se estenderam por toda a vida não significam muito mais.
Por exemplo, no momento em que escrevo isto, o fato de ter sido imperador a
custo parece-me essencial.
Três quartos da minha vida escapam, aliás, a essa
definição pelos atos: a soma das minhas veleidades, dos meus desejos e até dos
meus próprios projetos permanece tão nebulosa e fugidia quanto um fantasma. O
resto, a parte palpável, mais ou menos autenticada pelos fatos, é apenas um
pouco mais distinta, e a sequência dos acontecimentos é tão confusa como a dos
sonhos.”
“Nada me define: meus vícios e minhas virtudes são
insuficientes para tanto; minha felicidade talvez o faça melhor, embora por
intervalos, sem continuidade e, sobretudo, sem motivo aceitável. O espírito
humano, porém, reluta em se aceitar como obra do acaso, em ser apenas o produto
fortuito do imprevisto ao qual nenhum deus preside, nem mesmo ele próprio. Uma
parte de cada vida, e mesmo das vidas pouco dignas de atenção, passa-se à
procura das razões de ser, dos pontos de partida, das origens. Minha incapacidade
de descobri-los foi o que me fez, por vezes, inclinar-me às explicações
sobrenaturais, procurando nas alucinações do ocultismo o que o senso comum não
me proporcionava. Quando todos os cálculos complicados se evidenciam falsos,
quando os próprios filósofos não têm nada mais a nos dizer, é desculpável que
nos voltemos para o gorjeio fortuito dos pássaros, ou para o longínquo
contrapeso dos astros.”
“O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que
lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas
primeiras pátrias foram os livros. Em menor escala, as escolas.”
“Serei, até o final,
reconhecido a Escauro por me haver iniciado desde jovem no estudo do grego. Era
menino ainda quando ensaiei pela primeira vez traçar com o uso do estilete os
caracteres de um alfabeto desconhecido: começavam então minha grande emigração,
e minhas longas viagens, e o sentimento de uma escolha tão deliberada e tão
involuntária como a do amor. Amei essa língua por sua flexibilidade, sua
elasticidade, sua riqueza de vocabulário, no qual se atesta, em cada palavra, o
contato direto e variado com a realidade. Amei-a também porque quase tudo o que
os homens disseram de melhor o foi em grego. Existem, eu o sei, outras línguas,
mas estão petrificadas ou ainda por nascer. Os sacerdotes egípcios mostraram-me
seus antigos símbolos, antes sinais do que propriamente palavras, esforços
muito antigos para classificar o mundo e as coisas, linguagem sepulcral de uma
raça extinta. Durante a guerra judaica, o rabino Joshua explicou-me
literalmente certos textos dessa língua de sectários, tão obcecados pelo seu
Deus a ponto de negligenciarem o lado humano. Familiarizei-me no exército com a
linguagem dos auxiliares celtas; lembro-me especialmente de certos cantos. . .
Mas os jargões bárbaros valem, no máximo, pelas reservas de palavras que
acrescentam à linguagem humana e por tudo o que, sem dúvida, exprimirão no
futuro. O grego, ao contrário, tem atrás de si tesouros de experiência, que
abrangem a sabedoria do homem e a sabedoria do Estado. Dos tiranos jônicos aos
demagogos de Atenas, da pura austeridade de um Agésilas aos excessos de um
Dênis ou de um Demétrio, da traição de Demarato à fidelidade de Filopêmen, tudo
o que cada um de nós pode tentar para prejudicar os seus semelhantes ou para
servi-los já foi feito, pelo menos uma vez, por um grego. Sucede o mesmo com as
nossas escolhas pessoais: do cinismo ao idealismo, do ceticismo de Pirro aos
sonhos sagrados de Pitágoras, nossas recusas ou nossos consentimentos já
existiram, nossos vícios e nossas virtudes têm modelos gregos. Nada se compara
à beleza de uma inscrição latina votiva ou funerária: umas poucas palavras
gravadas sobre a pedra resumem com majestade impessoal tudo o que o mundo
necessita saber de nós. Foi em latim que administrei o império; meu epitáfio
será talhado em latim sobre a parede do meu mausoléu, às margens do Tibre, mas
em grego terei vivido e pensado.”
“Não desprezo os
homens. Se o fizesse, não teria o mínimo direito, nem a mínima razão para
tentar governá-los. Eu os reconheço vãos, ignorantes, ávidos, inquietos,
capazes de quase tudo para triunfarem, para se fazerem valer mesmo aos seus
próprios olhos, ou, muito simplesmente, para evitarem o sofrimento. Sei muito
bem: sou como eles, pelo menos momentaneamente, ou poderia ter sido. Entre
outrem e mim, as diferenças que percebo são por demais insignificantes para
contarem na edição final. Esforço-me, portanto, para que minha atitude se
afaste tanto da fria superioridade do filósofo quanto da arrogância de um
César. O homem mais tenebroso tem seus momentos iluminados: tal assassino toca
corretamente a flauta; tal feitor, que dilacera a chicotadas o dorso dos escravos,
é talvez um bom filho; tal idiota partilharia comigo seu último pedaço de pão.
Existem poucos a quem não se possa ensinar convenientemente alguma coisa. Nosso
grande erro é tentar encontrar em cada um, em particular, as virtudes que ele
não tem, negligenciando o cultivo daquelas que ele possui. Aplicarei aqui, na
busca dessas virtudes fragmentárias, o que disse acima sobre a procura da
beleza. Conheci seres infinitamente mais nobres, mais perfeitos do que eu
próprio, como teu pai Antonino. Convivi com bom número de heróis e mesmo com
alguns sábios. Encontrei na maioria dos homens pouca consistência no bem, mas
não maior no mal; sua desconfiança, sua indiferença mais ou menos hostil, cedia
quase depressa demais, quase vergonhosamente demais, transformando-se com
excessiva facilidade em gratidão, em respeito, aliás pouco duráveis,
evidentemente. Seu próprio egoísmo poderia ser aproveitado para fins úteis.
Admiro-me sempre de que tão poucos me tenham odiado; não tive senão dois ou
três inimigos encarniçados, por cuja inimizade, como sempre acontece, fui em
parte responsável. Fui amado por alguns; estes me deram muito mais do que eu
tinha direito de exigir ou mesmo de esperar deles: algumas vezes, sua vida;
outras, sua morte. E o deus que eles trazem em si mesmos revela-se
frequentemente quando morrem.
Só existe um ponto no qual me sinto superior ao comum
dos homens: sou, ao mesmo tempo, mais livre e mais submisso do que eles ousam
ser. Quase todos desconhecem igualmente sua exata liberdade e sua verdadeira
servidão. Amaldiçoam seus grilhões, embora, às vezes, deles se vangloriem. Por
outro lado, seu tempo escoa-se em pequenos e inúteis desregramentos; não sabem
tecer para si próprios o mais leve jugo. Por mim, aspirei mais à liberdade do
que ao poder e, se o procurei, só o fiz porque ele a favorece. O que me
interessava não era uma filosofia de homem livre (todos aqueles que abordam
esse tema causaram-me imenso tédio), mas uma técnica através da qual pretendia
alcançar o ponto em que nossa vontade se articula com o destino e onde a
disciplina secunda a natureza, em lugar de contê-la.”
“Falamos muito nos sonhos da juventude. Esquecemos,
talvez demasiado, os cálculos. Cálculos são também sonhos, e não menos loucos
do que estes.”
“É um erro ter razão cedo demais.”
“Mas cada hora de acalmia era uma vitória, embora
precária como o são todas; cada disputa arbitrada representava um precedente,
um empenho para o futuro. Importava-me muito pouco que o acordo obtido fosse
aparente, imposto de fora, provavelmente temporário. Sabia que tanto o bem como
o mal são uma questão de rotina, que o temporário se prolonga, que o exterior
se infiltra no interior, e que, com o decorrer do tempo, a máscara se
transforma na própria face. Já que o ódio, a estupidez e a loucura surtem
efeitos duradouros, não vejo” por que a lucidez, a justiça e a benevolência não
surtam também os seus.”
“Eu era o mesmo homem de antes, mas tudo o que haviam
menosprezado em mim passava a ser sublime; uma extrema polidez, que os
espíritos grosseiros haviam interpretado como forma de fraqueza, talvez de
covardia, parecia-lhes agora a bainha polida e lustrada da força. Elevaram às
nuvens minha paciência para com os solicitantes, minhas frequentes visitas aos
enfermos dos hospitais militares, minha familiaridade amistosa com os veteranos
que retornavam à pátria. Nada disso diferia da maneira como eu havia, durante
toda a minha vida, tratado meus servidores e os colonos das minhas terras. Cada
um de nós possui mais virtudes do que os outros supõem, mas só o sucesso as
coloca em evidência, talvez porque se espere que deixemos de praticá-las. Os
seres humanos confessam publicamente suas piores fraquezas quando se espantam
de que os poderosos não sejam totalmente indolentes, presunçosos, ou cruéis.”
“Considero a maior objeção a todo e qualquer esforço
para melhorar a condição humana o fato de os homens serem, talvez, indignos
dele. Afasto-a, porém, sem dificuldade: enquanto o sonho de Calígula permanecer
irrealizável e o gênero humano não for todo ele reduzido a uma única cabeça
oferecida ao cutelo, teremos de tolerá-lo, contê-lo e utilizá-lo para nossos
próprios fins. Nosso interesse, é claro, será o de bem servi-lo. Meu processo
baseava-se numa série de observações feitas havia muito tempo em mim próprio:
toda explicação lúcida sempre me convenceu, toda polidez me conquistou, toda
felicidade quase invariavelmente me tornou mais moderado. Jamais dei muito
crédito às pessoas bem-intencionadas que afirmam que a felicidade excita, que a
liberdade enfraquece, que a clemência corrompe aqueles sobre quem se exerce. É
possível: na situação normal do mundo, seria o mesmo que recusar o alimento
necessário a um homem magro por receio de que, dentro de alguns anos, ele
viesse a sofrer de pletora. Quando tivermos reduzido o máximo possível as
servidões inúteis, evitado as desgraças desnecessárias, restará sempre, para
manter vivas as virtudes heroicas do homem, a longa série de males verdadeiros:
a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não partilhado, a amizade
rejeitada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta do que nossos
projetos e mais enevoada do que nossos sonhos. Enfim, todas as desventuras
causadas pela divina natureza das coisas.”
“Devo confessar que acredito pouco nas leis. Quando
demasiado duras, são transgredidas com razão. Quando muito complicadas, o
engenho humano encontra facilmente o meio de escapar por entre as malhas dessa
rede frágil e escorregadia. O respeito pelas leis antigas corresponde ao que a
piedade humana tem de mais profundo; serve também de travesseiro à inércia dos
juízes. As leis mais antigas participam da selvageria que elas mesmas pretendem
corrigir; as mais veneráveis são ainda um produto da força. A maioria das
nossas leis penais só atingem, talvez felizmente, uma pequena parte dos
culpados; nossas leis civis jamais serão bastante flexíveis para se adaptar à
fluida variedade dos fatos. Mudam menos rapidamente do que os costumes;
perigosas quando estes as ultrapassam, o são ainda mais quando pretendem
precedê-los. Contudo, desse amontoado de inovações perigosas que oferecem
tantos riscos, ou de rotinas obsoletas, surgem aqui e ali, como na medicina,
algumas fórmulas aproveitáveis. Os filósofos gregos ensinaram-nos a conhecer um
pouco melhor a natureza humana: nossos melhores juristas vêm trabalhando há
algumas gerações visando ao bom senso. Eu mesmo efetuei algumas dessas reformas
parciais, que são as únicas duradouras. Toda lei muitas vezes transgredida é
má: cabe ao legislador revogá-la ou substituí-la antes que o desprezo por uma
disposição insensata se estenda a outras leis mais justas. Propus-me como meta
uma anulação prudente de leis supérfluas e a promulgação, com firmeza, de um
pequeno grupo de decisões sábias.”
“Uma noite, no pavilhão imperial, durante uma festa
dada em minha honra por Osroés, notei, entre as mulheres e os pajens de longos
cílios, um homem nu, descarnado, completamente imóvel, cujos olhos muito
abertos pareciam ignorar a confusão de pratos carregados de carnes, os
acrobatas e dançarinas. Falei-lhe por intermédio do meu intérprete: não se
dignou responder. Era um sábio. Mas seus discípulos eram mais loquazes: os
piedosos vagabundos vinham da índia, e seu mestre pertencia à poderosa casta dos
brâmanes. Compreendi que suas meditações induziam-no a crer que o universo
inteiro não é mais que um encadeamento de ilusões e erros. A austeridade, a
renúncia e a morte eram, para ele, o único meio de escapar a esse encadeamento
das coisas. Era o oposto do nosso Heráclito, que procurou alcançar através do
mundo dos sentidos a esfera do puro divino, o firmamento fixo e vazio com o
qual sonhou Platão. Através da inabilidade dos meus intérpretes, pressenti
certas ideias que não foram completamente estranhas a alguns dos nossos sábios,
mas que o indiano exprimia de maneira mais nua e mais definitiva. Aquele
brâmane já atingira o estado no qual, salvo o corpo, nada mais o separava do
deus intangível, sem substância e sem forma, ao qual desejava unir-se. Decidira
queimar-se vivo no dia seguinte. Osroés convidou-me para essa solenidade. Uma
fogueira de madeiras odoríferas foi preparada; o homem lançou-se nela e
desapareceu sem um grito. Os discípulos não manifestaram nenhum sinal de pesar:
para eles, aquilo não era uma cerimônia fúnebre.”
“A morte é hedionda, e a vida, também.”
“A memória da maior parte dos homens é um cemitério
abandonado, onde jazem, sem honras, os mortos que eles deixaram de amar. Toda
dor prolongada é um insulto ao seu esquecimento.”
“Sim,
Atenas continuava bela, e eu não lamentava ter imposto as disciplinas gregas à
minha vida. Tudo o que em nós é humano, ordenado e lúcido provém delas. Mas
acontecia-me dizer a mim mesmo que a seriedade um tanto pesada de Roma, seu
sentido de continuidade, seu gosto pelo concreto, haviam sido necessários para
transformar em realidade o que permanecia na Grécia um admirável conceito do
espírito, um belo impulso da alma. Platão escreveu A República e glorificou a ideia
de Justo; nós, porém, instruídos por nossos próprios erros, nos esforçávamos
penosamente por fazer do Estado uma máquina apta a servir os homens, correndo o
menor risco de esmagá-los. A palavra filantropia é grega, mas nós, o legista
Sálvio Juliano e eu, somos os que trabalham para modificar a miserável condição
do escravo. A assiduidade, a previdência, a atenção ao pormenor para corrigir a
audácia da visão de conjunto, foram para mim virtudes aprendidas em Roma.”
“Em todo
combate entre o fanatismo e o senso comum, este último raramente é o vencedor.”
“Dizia a mim mesmo que
era totalmente vão esperar, para Roma e para Atenas, a eternidade que não é
concedida nem aos homens, nem às coisas, e que os mais sábios dentre nós negam
aos próprios deuses. As formas sábias e complicadas da vida, as civilizações
perfeitamente à vontade nos seus requintes de arte e felicidade, essas
liberdades do espírito que se informa e julga, dependiam de probabilidades
inumeráveis e raras, de condições quase impossíveis de reunir e que não
devíamos esperar que durassem. Destruiríamos Simão; Arriano saberia proteger a
Armênia das invasões álanas. Mas outras hordas viriam, outros falsos profetas.
Nossos frágeis esforços por melhorar a condição humana seriam apenas
distraidamente continuados pelos nossos sucessores; pelo contrário, a semente
do erro e da ruína contida no próprio bem cresceria monstruosamente ao longo
dos séculos. O mundo, cansado de nós, procuraria outros senhores; o que
parecera sábio pareceria insípido, e abominável o que nos tinha parecido belo.
Como o iniciado mitríaco, a raça humana tem talvez necessidade do banho de
sangue e da passagem periódica pelos poços fúnebres. Via o retorno dos códigos
selvagens, dos deuses implacáveis, do despotismo incontestado dos príncipes
bárbaros e do mundo fragmentado em Estados inimigos, eternamente vítima da
insegurança. Outras sentinelas ameaçadas pelas flechas iriam e viriam na ronda
das cidadelas futuras; o jogo estúpido, obsceno e cruel continuaria, e a
espécie, ao envelhecer, acrescentar-lhe-ia novos requintes de horror. Nossa
época, cujas deficiências e taras conheço melhor que ninguém, seria talvez um
dia considerada, por contraste, como uma das idades de ouro da humanidade.
Natura déficit,
fortuna mutatur, deus omnia cernit. “A natureza nos trai, a sorte
muda, um deus vê do alto todas as coisas”. Atormentava com o dedo o engaste de
um anel no qual, num dia de amargura, mandei gravar essas palavras tristes; ia
mais longe no desengano, talvez na blasfêmia; acabava por achar natural, se não
justo, que devêssemos perecer. Nossas letras esgotam-se; nossas artes
adormecem; Pancrates não é Homero; Arriano não é Xenofonte; quando tentei
imortalizar na pedra a forma de Antínoo, não encontrei Praxíteles. Depois de
Aristóteles e Arquimedes, nossas ciências estacionaram; nossos progressos
técnicos não resistiriam ao desgaste de uma guerra prolongada; nossos próprios
gozadores desgostam-se da felicidade. O abrandamento dos costumes, o avanço das
ideias no decorrer do último século são obra de uma minoria de bons espíritos;
a massa continua ignara, feroz quando pode, em todo caso egoísta e limitada, e
há razões para apostar que permanecerá sempre assim. Excesso de procuradores e
de publicanos ávidos, excesso de senadores desconfiados, excesso de centuriões
brutais comprometeram antecipadamente nossa obra. Nem aos impérios nem aos
homens será dado o tempo necessário para que aprendam à custa de seus próprios
erros. Onde quer que um tecelão remende seu pano, onde quer que o artista
retoque sua obra-prima ainda imperfeita ou apenas danificada, a natureza
prefere repartir sem intermediários a argila e o caos, e esse mesmo
esbanjamento é o que denominamos a ordem das coisas.”
“Não tenho filhos, e não o lamento. Por certo, nos
momentos de lassidão e fraqueza quando renegamos a nós próprios, acusei-me às
vezes de não ter procriado um filho que seria minha continuação. Mas esse pesar
tão vão baseia-se em duas hipóteses igualmente duvidosas: a de que um filho
seria necessariamente nosso prolongamento, e a de que essa estranha combinação
do bem e do mal, esse conjunto de particularidades ínfimas e bizarras que
constitui uma pessoa, mereceria ser prolongado. Utilizei o melhor que pude
minhas virtudes; tirei partido dos meus vícios; não alimento, porém, especial
empenho em legar-me a alguém. Não é, aliás, pelo sangue que se estabelece a
verdadeira continuidade humana: César é o herdeiro direto de Alexandre, e não o
débil filho nascido de uma princesa persa numa cidadela da Ásia; e Epaminondas,
morrendo sem posteridade, orgulhava-se, com justa razão, de ter por filhos suas
vitórias. A maior parte dos homens que tomaram parte importante na história têm
rebentos medíocres, ou piores do que isso: parecem esgotar em si os dotes de
uma raça. A ternura do pai está quase sempre em conflito com os interesses do
chefe. E ainda que assim não fosse, esse filho de imperador seria além disso
obrigado a sofrer as desvantagens de uma educação principesca, a pior de todas
para um futuro príncipe. Felizmente, na medida em que nosso Estado soube
instituir uma regra de sucessão imperial, a adoção é essa regra: reconheço aí a
sabedoria de Roma. Conheço os perigos da escolha e seus possíveis erros; não
ignoro que a cegueira não é exclusiva da afeição paterna; mas essa decisão a
que a inteligência preside, ou da qual pelo menos toma parte, me parecerá
sempre infinitamente superior aos obscuros desígnios do acaso e da grosseira
natureza. O império para o mais digno: é belo que um homem, que deu provas da
sua competência na administração dos negócios do mundo, escolha seu substituto,
e que essa decisão de tão pesadas consequências seja, ao mesmo tempo, seu
verdadeiro privilégio e seu último serviço prestado ao Estado.”
“(...) Como outrora, também, uma dose de clemência
mitigou depressa a dose de rigor; nenhum partidário de Serviano foi perturbado.
A única exceção a essa regra foi o eminente Apolodoro, rancoroso depositário
dos segredos do meu cunhado, e que com ele morreu. Esse homem de talento fora o
arquiteto favorito do meu predecessor; removera com arte os grandes blocos de
mármore da Coluna de Trajano. Não gostávamos um do outro; em outros tempos,
ridicularizara meus desajeitados trabalhos de amador, minhas conscienciosas
naturezas-mortas de abóboras; por minha vez, critiquei suas obras com uma
presunção de jovem. Mais tarde, ele denegriu as minhas; ignorava tudo dos belos
tempos da arte grega; voltado para uma logística insípida, censurava-me por ter
povoado nossos templos com estátuas colossais que, se se levantassem,
quebrariam com a cabeça as abóbadas dos seus santuários: crítica estúpida, que
mais fere Fídias que a mim. Os deuses, porém, não se levantavam; não se
levantam nem para nos advertir, nem para nos proteger, nem para nos
recompensar, nem para nos punir. E não se levantaram naquela noite para salvar
Apolodoro.”
“Preocupei-me com a educação do menino
excepcionalmente ajuizado, ajudei teu pai a escolher para ti os melhores
mestres. Vero, o Veríssimo: brincava com teu nome; tu és talvez o único ser que
jamais me mentiu. Eu te vi lendo com paixão os escritos dos filósofos,
vestindo-te de lã grosseira, dormindo sobre o leito duro, submetendo teu corpo
um pouco franzino a todas as mortificações dos estoicos. Há excesso em tudo
isso, mas o excesso é virtude aos dezessete anos.”
“A passagem do tempo não faz senão adicionar uma
vertigem a mais à desgraça.”
“O futuro do mundo já
não me inquieta; já não me esforço por calcular, com angústia, a duração mais
ou menos longa da paz romana; entrego-a aos deuses. Não que tenha adquirido
maior confiança na justiça, que não é a nossa; nem mais fé na sabedoria do homem;
a verdade é justamente o contrário. A vida é atroz, nós o sabemos. Mas
precisamente porque espero pouca coisa da condição humana, os períodos de
felicidade, os progressos parciais, os esforços para recomeçar e para continuar
parecem-me tão prodigiosos que chegam a compensar a massa imensa de males,
fracassos, incúria e erros. As catástrofes e as ruínas virão; a desordem
triunfará; de tempos em tempos, no entanto, a ordem voltará a reinar. A paz
instalar-se-á de novo entre dois períodos de guerra; as palavras liberdade,
humanidade e justiça recuperarão aqui e ali o sentido que temos tentado
dar-lhes. Nossos livros não serão todos destruídos; nossas estátuas quebradas
serão restauradas; outras cúpulas e outros frontões nascerão dos nossos
frontões e das nossas cúpulas; alguns homens pensarão, trabalharão e sentirão
como nós: ouso contar com esses continuadores colocados, com intervalos
irregulares, ao longo dos séculos, nessa intermitente imortalidade. Se os
bárbaros se apoderarem alguma vez do império do mundo, serão forçados a adotar
alguns dos nossos métodos; acabarão por se parecer conosco. Chábrias
preocupa-se com a ideia de ver um dia o pastóforo de Mitra ou o bispo de Cristo
instalarem-se em Roma, e aí substituírem o sumo pontífice. Se por desgraça esse
dia chegar, meu sucessor na colina Vaticana terá deixado de ser o chefe de um
círculo de adeptos ou de um bando de sectários para se tornar, por sua vez, uma
das figuras representativas da autoridade universal. Herdará nossos palácios e
nossos arquivos; diferirá de nós menos do que poderá parecer. Aceito com calma
essas vicissitudes da Roma eterna.”
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Caderno de notas das Memórias de Adriano
“Impossibilitada
também de tomar como personagem central uma figura feminina, de dar, por
exemplo, como eixo à minha narrativa Plotina em lugar de Adriano. A vida das
mulheres é demasiado limitada, ou demasiado secreta. Basta que uma mulher narre
sua história e a primeira censura que lhe será feita é a de deixar de ser
mulher. Já é bastante difícil colocar qualquer verdade na boca de um homem.”
“Tudo
nos escapa, e todos, e nós mesmos. A vida de meu pai é-me mais desconhecida que
a de Adriano. Minha própria existência, se eu quisesse escrevê-la, seria
reconstituída por mim pelo exterior, penosamente, como a de outra pessoa; teria
de recorrer a cartas, a lembranças de outrem, para fixar essas memórias
flutuantes. Não passam nunca de paredes desmoronadas, cortinas de sombra.
Conseguir que as lacunas de nossos textos, no que se refere à vida de Adriano,
coincidam com o que teriam sido os seus próprios esquecimentos.”
“As
regras do jogo: tudo aprender, tudo ler, informar-se de tudo e,
simultaneamente, adaptar ao objetivo a ser atingido os Exercícios de Inácio de Loyola ou o método do asceta hindu que se
esgota, durante anos, para visualizar um pouco mais exatamente a imagem que ele
criou sob suas pálpebras fechadas. Perseguir, através de milhares de registros,
a atualidade dos fatos; tentar restituir a mobilidade, a leveza do ser vivo a
essas faces de pedra. Quando dois textos, duas afirmativas, duas ideias se
opõem, procurar conciliá-los de preferência a anular um pelo outro; ver neles
duas facetas diferentes, dois estados sucessivos do mesmo fato, uma realidade
convincente porque complexa, humana porque múltipla. Trabalhar lendo um texto
do século II com olhos, alma e sentidos do século II; deixar-se mergulhar nessa
água-mãe que são os fatos contemporâneos; afastar, se possível, todas as
ideias, todos os sentimentos acumulados por camadas sucessivas entre essas
pessoas e nós. Servir-se, entretanto, mas prudentemente, e unicamente a título
de estudos preparatórios, das possibilidades de aproximação e de reconstituição
das novas perspectivas elaboradas pouco a pouco por tantos séculos, ou dos
acontecimentos que nos separam desse texto, desse fato, desse homem;
utilizá-los de certo modo, como outras tantas balizas no caminho de regresso a
um ponto especial do tempo. Interditar a si mesmo as sombras projetadas; não
permitir que o bafo de um hálito se espalhe sobre o aço do espelho; aproveitar
somente o que há de mais duradouro, de mais essencial em nós, nas emoções dos
sentidos ou nas operações do espírito, como ponto de contato com aqueles homens
que, como nós, comeram azeitonas, beberam vinho, besuntaram os dedos com mel,
lutaram contra o vento agreste e a chuva que cega, ou procuraram no verão a
sombra de um plátano, e gozaram, e pensaram, e envelheceram, e morreram.”
“Ignorância
daqueles que dizem: “Adriano é você”. Ignorância talvez tão grande como a
daqueles que se espantam de que tenha sido escolhido um assunto tão remoto e
tão estranho. O feiticeiro que golpeia a si mesmo no momento de evocar as
sombras sabe que elas só obedecerão a seu apelo porque lhe sorvem o sangue.
Sabe também, ou deveria saber, que as vozes que lhe falam são mais sábias e
mais dignas de atenção do que seus próprios gritos.”
“Em
certo sentido, toda vida, quando narrada, é exemplar; escrevemos para atacar ou
para defender um sistema do mundo, para definir um método que nos é próprio. E
não é menos verdade que é pela idealização ou pela crítica mordaz a todo custo,
pelo detalhe fortemente exagerado ou prudentemente omitido, que se desqualificam
quase todos os biógrafos: o homem construído substitui o homem compreendido.
Nunca perder de vista o gráfico de uma vida humana, que não se compõe, digam o
que disserem, de uma horizontal e de duas perpendiculares, mas de três linhas
sinuosas, prolongadas até o infinito, incessantemente reaproximadas e
divergindo sem cessar: o que o homem julgou ser, o que ele quis ser, e o que
ele foi.”
“Todo
ser que viveu a aventura humana sou eu.”
“Fazer o
melhor possível. Refazer. Retocar, ainda imperceptivelmente, esse retoque. “É a
mim mesmo que corrijo ao retocar minhas obras”, dizia Yeats.”