quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Sinais do mar, de Ana Maria Machado

Editora: CosacNaify

ISBN: 978-85-7503-770-6

Opinião: ★☆☆☆☆

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Páginas: 56

Sinopse: Ao longo de vinte anos, o mar enviou sinais. Ana Maria Machado soube traduzir, num breve conjunto de poemas, suas misteriosas mensagens. A bússola lírica oscila entre pequenos naufrágios cotidianos e a celebração de uma memória pessoal.

Cada verso traz à tona uma discreta música de fundo, uma sutil rede de som e sentido.

Neste primeiro livro de poemas, Ana Maria Machado reencontra a longa tradição de nosso cancioneiro.



Arraia

Adeus, murmúrio!

É só mergulho.

Qualquer marulho

é sem som.

Todo barulho

é visão.

 

O mar balança

em lenta dança.

– o medo vem desde criança –

a sombra passa

à minha frente.

 

Arraia assombra

voa silente

desliza lisa e logo some.

 

Voltando à tona

levo-a comigo

na noite insone.

 

Pipa empinada no azul molhado.

 

 

Primeiro mar

Tantas páginas lidas muito antes

Tantos livros que enchiam as estantes

Tantos heróis a povoar os sonhos

Tantos perigos, monstros tão medonhos

 

Nos tempos sem tevê e sem imagem

Palavras fabricavam paisagem

 

Tesouros, mapas, ilhas tropicais,

Argonautas, recifes de corais,

Perigos na neblina entre rochedos.

Vinte mil léguas cheias de segredos.

 

Histórias de naufrágio e abordagens,

Ulisses, Moby Dick, mil viagens,

Robinson, calmarias, um motim.

Descobertas, veleiros, mar sem fim.

 

Mezena e bujarrona a todo o pano,

Lonjura, escorbuto, quase um ano.

Respingos salpicando a escotilha

Vagalhões se quebrando sobre a quilha.

 

Marujos, capitães, navegadores,

Piratas, marinheiros, pescadores,

Um sextante as estrelas a mirar

No convés, som de gaita ao luar

 

Nuvens de tempestade no horizonte

Um vigia na gávea sonha um monte

A cada onda, cada tábua geme,

O timão firme vai mantendo o leme

 

Cabeça de palavras povoada

Conversas de amplidão imaginada

Mas que leitura tanto poderia?

 

Cheiro salgado a entrar pelas narinas

E a dança leve de algas submarinas

Sal azul, movimento de água fria

 

O que se leu mostrava o infinito

Só não se imaginava tão bonito

Tão pleno de surpresas e imprevistos

 

Mesmo em tantas belezas e celebradas

Por todas as palavras encantadas

Por mares nunca dantes entrevistos

domingo, 3 de dezembro de 2023

Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-209-4368-7

Tradução: Martha Calderaro

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 288

Sinopse: Memórias de Adriano é uma das mais fascinantes obras de ficção do século XX.

Nesta espécie de autobiografia imaginária, Marguerite Yourcenar recria a notável vida do imperador Adriano, com seus triunfos e reveses, e o reordenamento gradual que impôs a um mundo dilacerado pela guerra.

Adriano configura-se aqui num exemplo dos melhores atributos do humanismo antigo.

Nesta que é considerada sua obra-prima, a “grande dama da literatura francesa” segue um rigoroso processo de reconstituição histórica, mas traz também uma verve poética e filosófica, numa prosa tanto elegante quanto precisa.

Iniciado em 1924 e concluído em 1951, o livro teve muitos manuscritos destruídos, desaparecidos, abandonados, em um intenso processo de pesquisa, escrita e reescrita. Após a publicação, a obra obteve enorme sucesso e converteu-se de imediato em um clássico da literatura moderna, consolidando definitivamente o nome de Marguerite Yourcenar na cena literária.



É difícil permanecer imperador na presença do médico, e mais difícil permanecer homem.”

 

 

Ainda não atingi a idade em que a vida para cada homem é uma derrota consumada. Dizer que meus dias estão contados nada significa! Assim foi sempre. E assim sempre será, para todos nós.”

 

 

“Acreditei, e nos meus bons momentos ainda acredito, que seria possível partilhar da existência de todos os homens, e que essa simpatia seria uma das formas irrevogáveis da imortalidade.”

 

 

“Comer um fruto é fazer entrar em si mesmo um belo objeto vivo, estranho, nutrido e favorecido, como nós, pela terra. É consumar um sacrifício no qual nós nos preferimos ao objeto. Jamais mastiguei a crosta do pão das casernas sem maravilhar-me de que essa massa pesada e grosseira pudesse transformar-se em sangue, calor e, talvez, em coragem.”

 

 

“Falta ao príncipe a latitude de que goza o filósofo: não pode permitir-se discordar dos demais ao mesmo tempo. E os deuses sabem que meus pontos de discordância eram numerosos, embora estivesse persuadido de que muitos deles eram invisíveis.”

 

 

Os cínicos e os moralistas concordam em colocar a volúpia do amor entre os prazeres ditos grosseiros, como o prazer de comer e de beber, declarando-a, contudo, menos indispensável do que aqueles, visto que podem perfeitamente prescindir dela. Do moralista tudo se espera, mas espanta-me que o cínico se tenha enganado. Admitamos que uns e outros receiem seus próprios demônios, seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem, esforçando-se por aviltar o prazer a fim de lhe tirar o poder quase terrível sob o qual sucumbem, e diminuir o estranho mistério no qual se sentem perdidos. Eu acreditaria nessa associação do amor às alegrias puramente físicas (supondo-se que tais alegrias existam) no dia em que visse um gastrônomo soluçar de prazer diante do seu prato favorito, tal como o amante sobre um ombro amado. De todos os jogos, o do amor é o único capaz de transtornar a alma e, ao mesmo tempo, o único no qual o jogador se abandona necessariamente ao delírio do corpo. Não é indispensável que aquele que bebe abdique da razão, mas o amante que conserva a sua não obedece inteiramente ao deus do amor. Tanto a abstinência quanto o excesso engajam apenas o homem só. Salvo no caso de Diógenes, cujas limitações e caráter racional e pessimista definem-se por si mesmos, toda experiência sensual nos coloca em face do Outro, acarretando-nos as exigências e as servidões da escolha. Não conheço, fora do amor, outra situação em que o homem deva decidir-se por motivos mais simples e mais inelutáveis. No amor, o objeto escolhido deve valer exatamente seu peso bruto em prazer, e é ainda no amor que o amante da verdade tem maiores probabilidades de julgar a nudez da criatura. A partir do desnudamento total, comparável ao da morte, de uma humildade que ultrapassa a da derrota e a da prece, maravilho-me ao ver renovar-se, cada vez, a complexidade das recusas, das responsabilidades, das promessas, das pobres confissões, das frágeis mentiras, dos compromissos apaixonados entre nosso prazer e o prazer do Outro, tantos laços impossíveis de romper e tão depressa rompidos! Esse jogo cheio de mistérios, que vai do amor de um corpo ao amor de uma pessoa, pareceu-me belo o bastante para consagrar-lhe uma parte de minha vida. As palavras enganam, especialmente as do prazer, que comportam as mais contraditórias realidades, desde as noções de aconchego, doçura e intimidade dos corpos, até as da violência, da agonia e do grito. (...)

Aqui, como nas revelações dos Mistérios, tudo se passa além do alcance da lógica humana. A tradição popular não se enganou ao ver no amor uma forma de iniciação e um dos pontos onde o secreto e o sagrado se tocam. A experiência sensual equipara-se ainda aos Mistérios quando a primeira aproximação provoca nos não-iniciados o efeito de um rito mais ou menos assustador, escandalosamente desligado de todas as funções até então familiares, como comer, beber e dormir, parecendo antes motivo de gracejo, vergonha, ou terror. Da mesma maneira que a dança das mênades ou o delírio dos coribantes, nosso amor arrasta-nos para um universo diferente, onde, em situação normal, nos é vedada a entrada e onde cessamos de nos orientar, uma vez apagado o ardor e extinto o prazer. Cravado no corpo amado como um crucificado à sua cruz, penetrei em certos segredos da vida que começam a desvanecer-se da minha lembrança por efeito da mesma lei que faz com que o convalescente, depois de curado, cesse de encontrar-se nas misteriosas verdades do seu mal, que o prisioneiro posto em liberdade esqueça a tortura, e o triunfador, a embriaguez da glória.”

 

 

“Nada mais sórdido do que um cúmplice.”

 

 

“A própria solicitude pode ser fatigante, ainda quando sincera.”

 

 

Como toda gente, só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de si mesmo, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que tratam frequentemente de ocultar-nos seus segredos ou de nos fazer crer que os têm; os livros, com os erros peculiares de perspectiva que surgem entre suas linhas.”

 

 

“Quase tudo o que sabemos de outrem é de segunda mão. Quando um homem se confessa, ele defende sua causa. Se o observarmos, veremos que não está só: sua apologia está antecipadamente preparada.”

 

 

“Quanto à observação de mim mesmo, a ela me obrigo não só para entrar num acordo com o indivíduo junto do qual serei obrigado a viver até o final, como também porque uma intimidade de quase sessenta anos comporta não poucas probabilidades de erro. No fundo, meu conhecimento de mim mesmo é obscuro, interior, informulado e secreto como uma cumplicidade. São noções quase tão frias e tão impessoais quanto as teorias que posso elaborar a respeito dos números. Emprego toda a minha inteligência para observar minha vida de tão longe e de tão alto, que ela me aparece como a vida de um outro e não a minha própria. Mas esses processos de conhecimento são difíceis e requerem um mergulho dentro de nós mesmos e uma saída totalmente para fora de nós. Por comodismo, inclino-me, como todo mundo, a substituir esses processos por um sistema de pura rotina, uma concepção de minha vida parcialmente modificada pela imagem que o público tem dela através de julgamentos pré-fabricados, isto é, malfeitos. Uma espécie de modelo pronto, ao qual o alfaiate inábil adapta laboriosamente o tecido que é nosso. Trata-se de um equipamento de valor desigual, com instrumentos mais ou menos embotados. Mas não possuo outros: é com esses que devo compor, bem ou mal, uma ideia do meu destino de homem.”

 

 

Não sou daqueles que dizem que suas ações não se parecem com eles. Pelo contrário. É imprescindível que elas se pareçam comigo, porque são minha única medida e o único meio de me delinear na memória dos homens, ou na minha própria, pois que a impossibilidade de continuar a exprimir-se e a modificar-se pela ação é talvez a única diferença entre os mortos e os vivos. Mas entre mim e esses atos de que sou feito, existe um hiato indefinível. A prova disso é que experimento continuamente a necessidade de pesá-los, explicá-los e deles prestar contas a mim mesmo. Alguns trabalhos que duraram pouco são certamente insignificantes, mas as ocupações que se estenderam por toda a vida não significam muito mais. Por exemplo, no momento em que escrevo isto, o fato de ter sido imperador a custo parece-me essencial.

Três quartos da minha vida escapam, aliás, a essa definição pelos atos: a soma das minhas veleidades, dos meus desejos e até dos meus próprios projetos permanece tão nebulosa e fugidia quanto um fantasma. O resto, a parte palpável, mais ou menos autenticada pelos fatos, é apenas um pouco mais distinta, e a sequência dos acontecimentos é tão confusa como a dos sonhos.”

 

 

“Nada me define: meus vícios e minhas virtudes são insuficientes para tanto; minha felicidade talvez o faça melhor, embora por intervalos, sem continuidade e, sobretudo, sem motivo aceitável. O espírito humano, porém, reluta em se aceitar como obra do acaso, em ser apenas o produto fortuito do imprevisto ao qual nenhum deus preside, nem mesmo ele próprio. Uma parte de cada vida, e mesmo das vidas pouco dignas de atenção, passa-se à procura das razões de ser, dos pontos de partida, das origens. Minha incapacidade de descobri-los foi o que me fez, por vezes, inclinar-me às explicações sobrenaturais, procurando nas alucinações do ocultismo o que o senso comum não me proporcionava. Quando todos os cálculos complicados se evidenciam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a nos dizer, é desculpável que nos voltemos para o gorjeio fortuito dos pássaros, ou para o longínquo contrapeso dos astros.”

 

 

“O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros. Em menor escala, as escolas.”

 

 

Serei, até o final, reconhecido a Escauro por me haver iniciado desde jovem no estudo do grego. Era menino ainda quando ensaiei pela primeira vez traçar com o uso do estilete os caracteres de um alfabeto desconhecido: começavam então minha grande emigração, e minhas longas viagens, e o sentimento de uma escolha tão deliberada e tão involuntária como a do amor. Amei essa língua por sua flexibilidade, sua elasticidade, sua riqueza de vocabulário, no qual se atesta, em cada palavra, o contato direto e variado com a realidade. Amei-a também porque quase tudo o que os homens disseram de melhor o foi em grego. Existem, eu o sei, outras línguas, mas estão petrificadas ou ainda por nascer. Os sacerdotes egípcios mostraram-me seus antigos símbolos, antes sinais do que propriamente palavras, esforços muito antigos para classificar o mundo e as coisas, linguagem sepulcral de uma raça extinta. Durante a guerra judaica, o rabino Joshua explicou-me literalmente certos textos dessa língua de sectários, tão obcecados pelo seu Deus a ponto de negligenciarem o lado humano. Familiarizei-me no exército com a linguagem dos auxiliares celtas; lembro-me especialmente de certos cantos. . . Mas os jargões bárbaros valem, no máximo, pelas reservas de palavras que acrescentam à linguagem humana e por tudo o que, sem dúvida, exprimirão no futuro. O grego, ao contrário, tem atrás de si tesouros de experiência, que abrangem a sabedoria do homem e a sabedoria do Estado. Dos tiranos jônicos aos demagogos de Atenas, da pura austeridade de um Agésilas aos excessos de um Dênis ou de um Demétrio, da traição de Demarato à fidelidade de Filopêmen, tudo o que cada um de nós pode tentar para prejudicar os seus semelhantes ou para servi-los já foi feito, pelo menos uma vez, por um grego. Sucede o mesmo com as nossas escolhas pessoais: do cinismo ao idealismo, do ceticismo de Pirro aos sonhos sagrados de Pitágoras, nossas recusas ou nossos consentimentos já existiram, nossos vícios e nossas virtudes têm modelos gregos. Nada se compara à beleza de uma inscrição latina votiva ou funerária: umas poucas palavras gravadas sobre a pedra resumem com majestade impessoal tudo o que o mundo necessita saber de nós. Foi em latim que administrei o império; meu epitáfio será talhado em latim sobre a parede do meu mausoléu, às margens do Tibre, mas em grego terei vivido e pensado.”

 

 

Não desprezo os homens. Se o fizesse, não teria o mínimo direito, nem a mínima razão para tentar governá-los. Eu os reconheço vãos, ignorantes, ávidos, inquietos, capazes de quase tudo para triunfarem, para se fazerem valer mesmo aos seus próprios olhos, ou, muito simplesmente, para evitarem o sofrimento. Sei muito bem: sou como eles, pelo menos momentaneamente, ou poderia ter sido. Entre outrem e mim, as diferenças que percebo são por demais insignificantes para contarem na edição final. Esforço-me, portanto, para que minha atitude se afaste tanto da fria superioridade do filósofo quanto da arrogância de um César. O homem mais tenebroso tem seus momentos iluminados: tal assassino toca corretamente a flauta; tal feitor, que dilacera a chicotadas o dorso dos escravos, é talvez um bom filho; tal idiota partilharia comigo seu último pedaço de pão. Existem poucos a quem não se possa ensinar convenientemente alguma coisa. Nosso grande erro é tentar encontrar em cada um, em particular, as virtudes que ele não tem, negligenciando o cultivo daquelas que ele possui. Aplicarei aqui, na busca dessas virtudes fragmentárias, o que disse acima sobre a procura da beleza. Conheci seres infinitamente mais nobres, mais perfeitos do que eu próprio, como teu pai Antonino. Convivi com bom número de heróis e mesmo com alguns sábios. Encontrei na maioria dos homens pouca consistência no bem, mas não maior no mal; sua desconfiança, sua indiferença mais ou menos hostil, cedia quase depressa demais, quase vergonhosamente demais, transformando-se com excessiva facilidade em gratidão, em respeito, aliás pouco duráveis, evidentemente. Seu próprio egoísmo poderia ser aproveitado para fins úteis. Admiro-me sempre de que tão poucos me tenham odiado; não tive senão dois ou três inimigos encarniçados, por cuja inimizade, como sempre acontece, fui em parte responsável. Fui amado por alguns; estes me deram muito mais do que eu tinha direito de exigir ou mesmo de esperar deles: algumas vezes, sua vida; outras, sua morte. E o deus que eles trazem em si mesmos revela-se frequentemente quando morrem.

Só existe um ponto no qual me sinto superior ao comum dos homens: sou, ao mesmo tempo, mais livre e mais submisso do que eles ousam ser. Quase todos desconhecem igualmente sua exata liberdade e sua verdadeira servidão. Amaldiçoam seus grilhões, embora, às vezes, deles se vangloriem. Por outro lado, seu tempo escoa-se em pequenos e inúteis desregramentos; não sabem tecer para si próprios o mais leve jugo. Por mim, aspirei mais à liberdade do que ao poder e, se o procurei, só o fiz porque ele a favorece. O que me interessava não era uma filosofia de homem livre (todos aqueles que abordam esse tema causaram-me imenso tédio), mas uma técnica através da qual pretendia alcançar o ponto em que nossa vontade se articula com o destino e onde a disciplina secunda a natureza, em lugar de contê-la.”

 

 

“Falamos muito nos sonhos da juventude. Esquecemos, talvez demasiado, os cálculos. Cálculos são também sonhos, e não menos loucos do que estes.”

 

 

“É um erro ter razão cedo demais.”

 

 

“Mas cada hora de acalmia era uma vitória, embora precária como o são todas; cada disputa arbitrada representava um precedente, um empenho para o futuro. Importava-me muito pouco que o acordo obtido fosse aparente, imposto de fora, provavelmente temporário. Sabia que tanto o bem como o mal são uma questão de rotina, que o temporário se prolonga, que o exterior se infiltra no interior, e que, com o decorrer do tempo, a máscara se transforma na própria face. Já que o ódio, a estupidez e a loucura surtem efeitos duradouros, não vejo” por que a lucidez, a justiça e a benevolência não surtam também os seus.”

 

 

“Eu era o mesmo homem de antes, mas tudo o que haviam menosprezado em mim passava a ser sublime; uma extrema polidez, que os espíritos grosseiros haviam interpretado como forma de fraqueza, talvez de covardia, parecia-lhes agora a bainha polida e lustrada da força. Elevaram às nuvens minha paciência para com os solicitantes, minhas frequentes visitas aos enfermos dos hospitais militares, minha familiaridade amistosa com os veteranos que retornavam à pátria. Nada disso diferia da maneira como eu havia, durante toda a minha vida, tratado meus servidores e os colonos das minhas terras. Cada um de nós possui mais virtudes do que os outros supõem, mas só o sucesso as coloca em evidência, talvez porque se espere que deixemos de praticá-las. Os seres humanos confessam publicamente suas piores fraquezas quando se espantam de que os poderosos não sejam totalmente indolentes, presunçosos, ou cruéis.”

 

 

“Considero a maior objeção a todo e qualquer esforço para melhorar a condição humana o fato de os homens serem, talvez, indignos dele. Afasto-a, porém, sem dificuldade: enquanto o sonho de Calígula permanecer irrealizável e o gênero humano não for todo ele reduzido a uma única cabeça oferecida ao cutelo, teremos de tolerá-lo, contê-lo e utilizá-lo para nossos próprios fins. Nosso interesse, é claro, será o de bem servi-lo. Meu processo baseava-se numa série de observações feitas havia muito tempo em mim próprio: toda explicação lúcida sempre me convenceu, toda polidez me conquistou, toda felicidade quase invariavelmente me tornou mais moderado. Jamais dei muito crédito às pessoas bem-intencionadas que afirmam que a felicidade excita, que a liberdade enfraquece, que a clemência corrompe aqueles sobre quem se exerce. É possível: na situação normal do mundo, seria o mesmo que recusar o alimento necessário a um homem magro por receio de que, dentro de alguns anos, ele viesse a sofrer de pletora. Quando tivermos reduzido o máximo possível as servidões inúteis, evitado as desgraças desnecessárias, restará sempre, para manter vivas as virtudes heroicas do homem, a longa série de males verdadeiros: a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não partilhado, a amizade rejeitada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta do que nossos projetos e mais enevoada do que nossos sonhos. Enfim, todas as desventuras causadas pela divina natureza das coisas.”

 

 

“Devo confessar que acredito pouco nas leis. Quando demasiado duras, são transgredidas com razão. Quando muito complicadas, o engenho humano encontra facilmente o meio de escapar por entre as malhas dessa rede frágil e escorregadia. O respeito pelas leis antigas corresponde ao que a piedade humana tem de mais profundo; serve também de travesseiro à inércia dos juízes. As leis mais antigas participam da selvageria que elas mesmas pretendem corrigir; as mais veneráveis são ainda um produto da força. A maioria das nossas leis penais só atingem, talvez felizmente, uma pequena parte dos culpados; nossas leis civis jamais serão bastante flexíveis para se adaptar à fluida variedade dos fatos. Mudam menos rapidamente do que os costumes; perigosas quando estes as ultrapassam, o são ainda mais quando pretendem precedê-los. Contudo, desse amontoado de inovações perigosas que oferecem tantos riscos, ou de rotinas obsoletas, surgem aqui e ali, como na medicina, algumas fórmulas aproveitáveis. Os filósofos gregos ensinaram-nos a conhecer um pouco melhor a natureza humana: nossos melhores juristas vêm trabalhando há algumas gerações visando ao bom senso. Eu mesmo efetuei algumas dessas reformas parciais, que são as únicas duradouras. Toda lei muitas vezes transgredida é má: cabe ao legislador revogá-la ou substituí-la antes que o desprezo por uma disposição insensata se estenda a outras leis mais justas. Propus-me como meta uma anulação prudente de leis supérfluas e a promulgação, com firmeza, de um pequeno grupo de decisões sábias.”

 

 

“Uma noite, no pavilhão imperial, durante uma festa dada em minha honra por Osroés, notei, entre as mulheres e os pajens de longos cílios, um homem nu, descarnado, completamente imóvel, cujos olhos muito abertos pareciam ignorar a confusão de pratos carregados de carnes, os acrobatas e dançarinas. Falei-lhe por intermédio do meu intérprete: não se dignou responder. Era um sábio. Mas seus discípulos eram mais loquazes: os piedosos vagabundos vinham da índia, e seu mestre pertencia à poderosa casta dos brâmanes. Compreendi que suas meditações induziam-no a crer que o universo inteiro não é mais que um encadeamento de ilusões e erros. A austeridade, a renúncia e a morte eram, para ele, o único meio de escapar a esse encadeamento das coisas. Era o oposto do nosso Heráclito, que procurou alcançar através do mundo dos sentidos a esfera do puro divino, o firmamento fixo e vazio com o qual sonhou Platão. Através da inabilidade dos meus intérpretes, pressenti certas ideias que não foram completamente estranhas a alguns dos nossos sábios, mas que o indiano exprimia de maneira mais nua e mais definitiva. Aquele brâmane já atingira o estado no qual, salvo o corpo, nada mais o separava do deus intangível, sem substância e sem forma, ao qual desejava unir-se. Decidira queimar-se vivo no dia seguinte. Osroés convidou-me para essa solenidade. Uma fogueira de madeiras odoríferas foi preparada; o homem lançou-se nela e desapareceu sem um grito. Os discípulos não manifestaram nenhum sinal de pesar: para eles, aquilo não era uma cerimônia fúnebre.”

 

 

“A morte é hedionda, e a vida, também.”

 

 

“A memória da maior parte dos homens é um cemitério abandonado, onde jazem, sem honras, os mortos que eles deixaram de amar. Toda dor prolongada é um insulto ao seu esquecimento.”

 

 

“Sim, Atenas continuava bela, e eu não lamentava ter imposto as disciplinas gregas à minha vida. Tudo o que em nós é humano, ordenado e lúcido provém delas. Mas acontecia-me dizer a mim mesmo que a seriedade um tanto pesada de Roma, seu sentido de continuidade, seu gosto pelo concreto, haviam sido necessários para transformar em realidade o que permanecia na Grécia um admirável conceito do espírito, um belo impulso da alma. Platão escreveu A República e glorificou a ideia de Justo; nós, porém, instruídos por nossos próprios erros, nos esforçávamos penosamente por fazer do Estado uma máquina apta a servir os homens, correndo o menor risco de esmagá-los. A palavra filantropia é grega, mas nós, o legista Sálvio Juliano e eu, somos os que trabalham para modificar a miserável condição do escravo. A assiduidade, a previdência, a atenção ao pormenor para corrigir a audácia da visão de conjunto, foram para mim virtudes aprendidas em Roma.”

 

 

“Em todo combate entre o fanatismo e o senso comum, este último raramente é o vencedor.”

 

 

Dizia a mim mesmo que era totalmente vão esperar, para Roma e para Atenas, a eternidade que não é concedida nem aos homens, nem às coisas, e que os mais sábios dentre nós negam aos próprios deuses. As formas sábias e complicadas da vida, as civilizações perfeitamente à vontade nos seus requintes de arte e felicidade, essas liberdades do espírito que se informa e julga, dependiam de probabilidades inumeráveis e raras, de condições quase impossíveis de reunir e que não devíamos esperar que durassem. Destruiríamos Simão; Arriano saberia proteger a Armênia das invasões álanas. Mas outras hordas viriam, outros falsos profetas. Nossos frágeis esforços por melhorar a condição humana seriam apenas distraidamente continuados pelos nossos sucessores; pelo contrário, a semente do erro e da ruína contida no próprio bem cresceria monstruosamente ao longo dos séculos. O mundo, cansado de nós, procuraria outros senhores; o que parecera sábio pareceria insípido, e abominável o que nos tinha parecido belo. Como o iniciado mitríaco, a raça humana tem talvez necessidade do banho de sangue e da passagem periódica pelos poços fúnebres. Via o retorno dos códigos selvagens, dos deuses implacáveis, do despotismo incontestado dos príncipes bárbaros e do mundo fragmentado em Estados inimigos, eternamente vítima da insegurança. Outras sentinelas ameaçadas pelas flechas iriam e viriam na ronda das cidadelas futuras; o jogo estúpido, obsceno e cruel continuaria, e a espécie, ao envelhecer, acrescentar-lhe-ia novos requintes de horror. Nossa época, cujas deficiências e taras conheço melhor que ninguém, seria talvez um dia considerada, por contraste, como uma das idades de ouro da humanidade.

Natura déficit, fortuna mutatur, deus omnia cernit. “A natureza nos trai, a sorte muda, um deus vê do alto todas as coisas”. Atormentava com o dedo o engaste de um anel no qual, num dia de amargura, mandei gravar essas palavras tristes; ia mais longe no desengano, talvez na blasfêmia; acabava por achar natural, se não justo, que devêssemos perecer. Nossas letras esgotam-se; nossas artes adormecem; Pancrates não é Homero; Arriano não é Xenofonte; quando tentei imortalizar na pedra a forma de Antínoo, não encontrei Praxíteles. Depois de Aristóteles e Arquimedes, nossas ciências estacionaram; nossos progressos técnicos não resistiriam ao desgaste de uma guerra prolongada; nossos próprios gozadores desgostam-se da felicidade. O abrandamento dos costumes, o avanço das ideias no decorrer do último século são obra de uma minoria de bons espíritos; a massa continua ignara, feroz quando pode, em todo caso egoísta e limitada, e há razões para apostar que permanecerá sempre assim. Excesso de procuradores e de publicanos ávidos, excesso de senadores desconfiados, excesso de centuriões brutais comprometeram antecipadamente nossa obra. Nem aos impérios nem aos homens será dado o tempo necessário para que aprendam à custa de seus próprios erros. Onde quer que um tecelão remende seu pano, onde quer que o artista retoque sua obra-prima ainda imperfeita ou apenas danificada, a natureza prefere repartir sem intermediários a argila e o caos, e esse mesmo esbanjamento é o que denominamos a ordem das coisas.”

 

 

“Não tenho filhos, e não o lamento. Por certo, nos momentos de lassidão e fraqueza quando renegamos a nós próprios, acusei-me às vezes de não ter procriado um filho que seria minha continuação. Mas esse pesar tão vão baseia-se em duas hipóteses igualmente duvidosas: a de que um filho seria necessariamente nosso prolongamento, e a de que essa estranha combinação do bem e do mal, esse conjunto de particularidades ínfimas e bizarras que constitui uma pessoa, mereceria ser prolongado. Utilizei o melhor que pude minhas virtudes; tirei partido dos meus vícios; não alimento, porém, especial empenho em legar-me a alguém. Não é, aliás, pelo sangue que se estabelece a verdadeira continuidade humana: César é o herdeiro direto de Alexandre, e não o débil filho nascido de uma princesa persa numa cidadela da Ásia; e Epaminondas, morrendo sem posteridade, orgulhava-se, com justa razão, de ter por filhos suas vitórias. A maior parte dos homens que tomaram parte importante na história têm rebentos medíocres, ou piores do que isso: parecem esgotar em si os dotes de uma raça. A ternura do pai está quase sempre em conflito com os interesses do chefe. E ainda que assim não fosse, esse filho de imperador seria além disso obrigado a sofrer as desvantagens de uma educação principesca, a pior de todas para um futuro príncipe. Felizmente, na medida em que nosso Estado soube instituir uma regra de sucessão imperial, a adoção é essa regra: reconheço aí a sabedoria de Roma. Conheço os perigos da escolha e seus possíveis erros; não ignoro que a cegueira não é exclusiva da afeição paterna; mas essa decisão a que a inteligência preside, ou da qual pelo menos toma parte, me parecerá sempre infinitamente superior aos obscuros desígnios do acaso e da grosseira natureza. O império para o mais digno: é belo que um homem, que deu provas da sua competência na administração dos negócios do mundo, escolha seu substituto, e que essa decisão de tão pesadas consequências seja, ao mesmo tempo, seu verdadeiro privilégio e seu último serviço prestado ao Estado.”

 

 

“(...) Como outrora, também, uma dose de clemência mitigou depressa a dose de rigor; nenhum partidário de Serviano foi perturbado. A única exceção a essa regra foi o eminente Apolodoro, rancoroso depositário dos segredos do meu cunhado, e que com ele morreu. Esse homem de talento fora o arquiteto favorito do meu predecessor; removera com arte os grandes blocos de mármore da Coluna de Trajano. Não gostávamos um do outro; em outros tempos, ridicularizara meus desajeitados trabalhos de amador, minhas conscienciosas naturezas-mortas de abóboras; por minha vez, critiquei suas obras com uma presunção de jovem. Mais tarde, ele denegriu as minhas; ignorava tudo dos belos tempos da arte grega; voltado para uma logística insípida, censurava-me por ter povoado nossos templos com estátuas colossais que, se se levantassem, quebrariam com a cabeça as abóbadas dos seus santuários: crítica estúpida, que mais fere Fídias que a mim. Os deuses, porém, não se levantavam; não se levantam nem para nos advertir, nem para nos proteger, nem para nos recompensar, nem para nos punir. E não se levantaram naquela noite para salvar Apolodoro.”

 

 

“Preocupei-me com a educação do menino excepcionalmente ajuizado, ajudei teu pai a escolher para ti os melhores mestres. Vero, o Veríssimo: brincava com teu nome; tu és talvez o único ser que jamais me mentiu. Eu te vi lendo com paixão os escritos dos filósofos, vestindo-te de lã grosseira, dormindo sobre o leito duro, submetendo teu corpo um pouco franzino a todas as mortificações dos estoicos. Há excesso em tudo isso, mas o excesso é virtude aos dezessete anos.”

 

 

“A passagem do tempo não faz senão adicionar uma vertigem a mais à desgraça.”

 

 

O futuro do mundo já não me inquieta; já não me esforço por calcular, com angústia, a duração mais ou menos longa da paz romana; entrego-a aos deuses. Não que tenha adquirido maior confiança na justiça, que não é a nossa; nem mais fé na sabedoria do homem; a verdade é justamente o contrário. A vida é atroz, nós o sabemos. Mas precisamente porque espero pouca coisa da condição humana, os períodos de felicidade, os progressos parciais, os esforços para recomeçar e para continuar parecem-me tão prodigiosos que chegam a compensar a massa imensa de males, fracassos, incúria e erros. As catástrofes e as ruínas virão; a desordem triunfará; de tempos em tempos, no entanto, a ordem voltará a reinar. A paz instalar-se-á de novo entre dois períodos de guerra; as palavras liberdade, humanidade e justiça recuperarão aqui e ali o sentido que temos tentado dar-lhes. Nossos livros não serão todos destruídos; nossas estátuas quebradas serão restauradas; outras cúpulas e outros frontões nascerão dos nossos frontões e das nossas cúpulas; alguns homens pensarão, trabalharão e sentirão como nós: ouso contar com esses continuadores colocados, com intervalos irregulares, ao longo dos séculos, nessa intermitente imortalidade. Se os bárbaros se apoderarem alguma vez do império do mundo, serão forçados a adotar alguns dos nossos métodos; acabarão por se parecer conosco. Chábrias preocupa-se com a ideia de ver um dia o pastóforo de Mitra ou o bispo de Cristo instalarem-se em Roma, e aí substituírem o sumo pontífice. Se por desgraça esse dia chegar, meu sucessor na colina Vaticana terá deixado de ser o chefe de um círculo de adeptos ou de um bando de sectários para se tornar, por sua vez, uma das figuras representativas da autoridade universal. Herdará nossos palácios e nossos arquivos; diferirá de nós menos do que poderá parecer. Aceito com calma essas vicissitudes da Roma eterna.”

 

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Caderno de notas das Memórias de Adriano

 

“Impossibilitada também de tomar como personagem central uma figura feminina, de dar, por exemplo, como eixo à minha narrativa Plotina em lugar de Adriano. A vida das mulheres é demasiado limitada, ou demasiado secreta. Basta que uma mulher narre sua história e a primeira censura que lhe será feita é a de deixar de ser mulher. Já é bastante difícil colocar qualquer verdade na boca de um homem.”

 

 

“Tudo nos escapa, e todos, e nós mesmos. A vida de meu pai é-me mais desconhecida que a de Adriano. Minha própria existência, se eu quisesse escrevê-la, seria reconstituída por mim pelo exterior, penosamente, como a de outra pessoa; teria de recorrer a cartas, a lembranças de outrem, para fixar essas memórias flutuantes. Não passam nunca de paredes desmoronadas, cortinas de sombra. Conseguir que as lacunas de nossos textos, no que se refere à vida de Adriano, coincidam com o que teriam sido os seus próprios esquecimentos.”

 

 

“As regras do jogo: tudo aprender, tudo ler, informar-se de tudo e, simultaneamente, adaptar ao objetivo a ser atingido os Exercícios de Inácio de Loyola ou o método do asceta hindu que se esgota, durante anos, para visualizar um pouco mais exatamente a imagem que ele criou sob suas pálpebras fechadas. Perseguir, através de milhares de registros, a atualidade dos fatos; tentar restituir a mobilidade, a leveza do ser vivo a essas faces de pedra. Quando dois textos, duas afirmativas, duas ideias se opõem, procurar conciliá-los de preferência a anular um pelo outro; ver neles duas facetas diferentes, dois estados sucessivos do mesmo fato, uma realidade convincente porque complexa, humana porque múltipla. Trabalhar lendo um texto do século II com olhos, alma e sentidos do século II; deixar-se mergulhar nessa água-mãe que são os fatos contemporâneos; afastar, se possível, todas as ideias, todos os sentimentos acumulados por camadas sucessivas entre essas pessoas e nós. Servir-se, entretanto, mas prudentemente, e unicamente a título de estudos preparatórios, das possibilidades de aproximação e de reconstituição das novas perspectivas elaboradas pouco a pouco por tantos séculos, ou dos acontecimentos que nos separam desse texto, desse fato, desse homem; utilizá-los de certo modo, como outras tantas balizas no caminho de regresso a um ponto especial do tempo. Interditar a si mesmo as sombras projetadas; não permitir que o bafo de um hálito se espalhe sobre o aço do espelho; aproveitar somente o que há de mais duradouro, de mais essencial em nós, nas emoções dos sentidos ou nas operações do espírito, como ponto de contato com aqueles homens que, como nós, comeram azeitonas, beberam vinho, besuntaram os dedos com mel, lutaram contra o vento agreste e a chuva que cega, ou procuraram no verão a sombra de um plátano, e gozaram, e pensaram, e envelheceram, e morreram.”

 

 

“Ignorância daqueles que dizem: “Adriano é você”. Ignorância talvez tão grande como a daqueles que se espantam de que tenha sido escolhido um assunto tão remoto e tão estranho. O feiticeiro que golpeia a si mesmo no momento de evocar as sombras sabe que elas só obedecerão a seu apelo porque lhe sorvem o sangue. Sabe também, ou deveria saber, que as vozes que lhe falam são mais sábias e mais dignas de atenção do que seus próprios gritos.”

 

 

“Em certo sentido, toda vida, quando narrada, é exemplar; escrevemos para atacar ou para defender um sistema do mundo, para definir um método que nos é próprio. E não é menos verdade que é pela idealização ou pela crítica mordaz a todo custo, pelo detalhe fortemente exagerado ou prudentemente omitido, que se desqualificam quase todos os biógrafos: o homem construído substitui o homem compreendido. Nunca perder de vista o gráfico de uma vida humana, que não se compõe, digam o que disserem, de uma horizontal e de duas perpendiculares, mas de três linhas sinuosas, prolongadas até o infinito, incessantemente reaproximadas e divergindo sem cessar: o que o homem julgou ser, o que ele quis ser, e o que ele foi.”

 

 

“Todo ser que viveu a aventura humana sou eu.”

 

 

“Fazer o melhor possível. Refazer. Retocar, ainda imperceptivelmente, esse retoque. “É a mim mesmo que corrijo ao retocar minhas obras”, dizia Yeats.”