Editora: Verus
ISBN: 978-85-8779-529-8
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 168
Sinopse: O
interesse de Leonardo Boff, através deste livro, reside em criar espaço para
que cada um possa fazer sua própria experiência de Deus. Afirma que “para
encontrarmos o Deus vivo e verdadeiro a quem podemos entregar o coração,
precisamos negar aquele Deus construído pelo imaginário religioso e aprisionado
nas malhas das doutrinas.”
Procura atingir, nesse sentido, a situação do homem
contemporâneo – manipulado pela sociedade de consumo e produção, informação e
entretenimento, que vê-se, muitas vezes, perdido no emaranhado das solicitações
aos sentidos que lhe advêm por todos os lados, embora sinta que dentro de sua
vida se anuncia uma exigência mais alta do que aquela de apenas produzir,
trabalhar e consumir: existe a necessidade da celebração, da alegria de viver e
da experiência do Divino e do Mistério.
Assim, neste livro, o teólogo Leonardo Boff nos oferece
um texto libertador sobre como podemos experimentar Deus com a totalidade de
nosso ser. Segundo Boff, “Deus perpassa toda a realidade, pode ser percebido e
experimentado nas mais diferentes situações da vida e em cada detalhe da vida
pessoal e do universo”.
Para ele, a experiência de Deus não constitui um luxo só
de alguns. Estamos todos aptos a sentir Deus a partir do coração puro e da
mente sincera. Experimentar Deus é tirar o mistério do universo do anonimato e
conferir-lhe um nome, o da nossa reverência e de nosso afeto.
“O ser humano se descobre numa situação
histórica, datada, pessoal, social e ecologicamente definida, sempre junto com
outros no mundo, situação face à qual se sente desafiado a tomar posição e a
assumir decisões e destarte a constituir-se como pessoa. Ele é o único ser da
criação que não nasce pronto. Tem que se construir e plasmar seu destino
interferindo no mundo e se relacionando com os outros. Ao assumir radicalmente
essa situação concreta, experimenta de fato quem ele é: um ser mergulhado no
mundo e nas várias estruturas e conjunturas, mas também um ser capaz de
elevar-se permanentemente acima delas, de rebelar-se contra elas, de
questioná-las, de elaborar alternativas a elas e de fazer opções que o definem
definitivamente. Ele pode ser uma galinha que cisca o chão de seu cercado como
pode ser uma águia que ergue voo e ganha as alturas. Essa sua decisão significa
existencialmente realização ou frustração, felicidade ou desgraça, salvação ou
perdição. A imanência é a situação dada. A transcendência é a ultrapassagem
dela. Elas se encontram unidas no mesmo ser humano concreto. A imanência que aí
emerge e a transcendência que aí se anuncia não são entidades existentes em si
mesmas, como coisas que estão aí. Absolutamente. Imanência e transcendência são
dimensões da realidade humana concreta e histórica. A esse processo unitário e
complexo chamamos de historicidade.
Deus só possui um significado real se Ele
emergir de dentro dessa situação histórica concreta do ser humano; se Ele se
manifestar como o Sentido radical de sua vida e a Luz pela qual vê a luz.
O Deus do qual testemunham as Escrituras
judaico-cristãs é o Deus que irrompe dentro da história humana, com as
características delineadas acima. Não podemos, a rigor, fazer sobre Ele uma
ciência, como se Ele fosse um objeto fixo, cujo comportamento podemos
descrever. A função mais importante da ciência é prever o comportamento futuro
dos objetos que são estudados. Se as previsões não se cumprem consoante a
teoria científica, é sinal de que a teoria estava equivocada e assim não havia
ciência certa.
Não podemos prever a intervenção de Deus. Daí
não podermos enquadrar Deus nos moldes de nosso paradigma científico. A rigor
não se poderia fazer nenhuma teologia. Se ainda assim ousamos fazer teologia,
que pretende ser o logos sobre Deus, é porque nos sentimos empurrados pela
nossa sede de saber que não exclui nada e ninguém de nossa curiosidade. Mas o
fazemos na consciência de que nossas palavras são simbólicas e metafóricas.
Mais negamos do que afirmamos, quando tentamos balbuciar algo consistente
acerca de Deus. Ademais, nos damos conta – e isso o mostra a história da
humanidade desde os seus primórdios há milhões de anos – de que um mistério
cerca a nossa existência. Esse mistério que se dá na história foi chamado por
mil nomes e resumido no nome Deus. O Deus testemunhado, por exemplo, pelas
Escrituras do Primeiro e do Segundo Testamento, é apresentado como um Deus
histórico. Ele acompanhava as vicissitudes do povo, em pátria ou no exílio. E
aí surgia como a Presença concretíssima (é o que significa em hebraico Javé), o
Caminho, a Pedra, a Luz, a Força, o Companheiro de caminhada, o Santo, o Futuro
absoluto, etc. À luz dessa leitura de Deus como revelação na história, podemos
compreender os velhos textos da fé, escritos durante mais de dois mil anos por
aquele povo que tentou sempre descobrir a Deus escondido sob todos os eventos
que vivia: o povo de Israel. Só assim a vida e a história se tornam para ele
transparentes.”
“Podemos dizer que experiência é o modo como
interiorizamos a realidade e a forma que encontramos para nos situar no mundo
junto com os outros. Assim entendida, a experiência deve, pois, ser distinguida
da vivência. A vivência é a situação psicológica, as disposições dos
sentimentos que a experiência produz na subjetividade humana. São as emoções e
valorações que antecedem, acompanham ou se seguem à experiência dos objetos que
se fazem presentes no interior da psique humana. Vivência não é sinônimo de
experiência. É consequência e resultado da experiência na psique humana. Ela
pertence ao fenômeno total da experiência, mas este é mais amplo e profundo do
que aquele, a vivência.
Se experiência é o modo como nos situamos no
mundo e o mundo em nós, então ela possui o caráter de um horizonte. Horizonte é
uma ótica que nos permite ver os objetos, um foco que ilumina a realidade e nos
permite descobrir os distintos objetos dentro dela, nomeá-los, ordená-los no
rigor de uma sistematização. Por exemplo, atualmente na América Latina, estamos
nos habituando a ver tudo sob a ótica da libertação ou da opressão, da inclusão
ou da exclusão dos processos globais: a pedagogia, a teologia, a pregação, os
sacramentos, os sistemas políticos e os projetos econômicos. Perguntamo-nos
quase instintivamente: Até que ponto essa doutrina liberta ou mantém o cidadão
marginalizado e excluído? Até que ponto essa opção econômica reforça a inserção
no processo de globalização de forma subalterna e assim aprofunda o regime de
dependência ou até que ponto rompe com ele e liberta historicamente? A
libertação é um horizonte, uma ótica, uma experiência que nos faz descobrir os
objetos na sua dimensão de libertação ou de opressão, de inclusão ou de
exclusão.”
“Como dizia com acerto um dos homens mais
atentos aos propósitos da ciência, Ludwig Wittgestein: “Mesmo quando tivermos
respondido a todas as possíveis questões científicas, perceberemos que nossos
problemas vitais nem sequer foram tocados”.”
“Já aqui se anuncia uma pergunta incômoda
para o espírito científico: De onde vem o vigor e a força do saber, do
conquistar e do dominar? O ser humano se surpreende tomado por esse instinto de
saber e de poder. Responder que isso vem da natureza é dar uma resposta
científica, mas que não sacia a pergunta. Porque podemos perguntar adiante: E
de onde o tem a natureza? Das energias cósmicas que atuam a partir do vácuo
quântico, sempre saturado de energia? E essas energias provêm de onde?
Poderemos levar ao infinito as perguntas e as respostas evasivas. No final o
ser humano deverá, humildemente, reconhecer: “Não sei!” Ao responder assim,
pode se considerar absolutamente honesto. É o máximo que a perspectiva
científica permitirá dizer, mantendo-se dentro de seus limites científicos.
Todo o saber e todo o poder estão
sustentados, portanto, por um Não-Saber e por um Não-Poder. Que é esse
Não-Saber e esse Não-Poder? Não é aquilo que chamamos de Mistério? A ciência
emerge, portanto, de um Mistério. Ela está à mercê de uma força e de um vigor
que a levam a caminhar cada vez mais célere, exacerbando sua vontade de tudo
conhecer e tudo domesticar. Mas não pode domesticar e apreender dentro das
malhas de suas ciências e de suas técnicas o De Onde e a Origem de seu poder e
de seu saber.
Como dizia a sabedoria da antiga índia: “A
força pela qual o pensamento pensa, não pode ser pensada.” A língua pode falar
sobre todas as coisas, mas não pode falar a força pela qual fala. O olho pode
ver todas as coisas, mas não consegue ver a si mesmo. O espelho apenas nos dá
uma imagem do olho, não o olho mesmo. Se quebro o espelho que espelha meu olho,
não quebrei com isso o meu olho. Que é esse olho que tudo permite ver e não se
deixa ver? Que é esse Mistério sem nome? Que é esse Não-Saber?
Não chamaram todas as religiões e todos os
místicos ao Inefável que se dá e se retrai em nossa existência, de Deus? Deus
não é a palavra para dizer o Não-Palavra? Não diz o salmo: “Em tua luz, Senhor,
vejo a luz”? Por isso dizia o Sábio: “Nomear o Tao é nomear a Não-Coisa... O
Tao é um nome que indica sem definir. O Tao está para além das palavras e para
além das coisas. Não se exprime nem por palavras nem pelo silêncio. Onde não
existem nem mais palavras nem o silêncio, o Tao é apreendido.”
“Um dos campos de conhecimento que mais se
desenvolveram a partir dos meados do século XX é seguramente o da moderna
cosmologia. A cosmologia narra a história do nascimento e do desenvolvimento do
universo, a partir dos muitos conhecimentos que acumulamos da astrofísica, da
física quântica, das ciências do caos e da complexidade, da ecologia, da
psicologia, da moderna antropologia. Esses conhecimentos vêm articulados com o
passado da humanidade, com as grandes tradições espirituais e religiosas e com
os vários saberes elaborados pelas várias culturas. Tudo isso vem enquadrado
dentro de uma visão evolucionista do universo. Daí surge uma nova imagem do
universo, que mudou profundamente nossa percepção das coisas, do ser humano e
também nossa experiência de Deus. Somos seres históricos, que um dia começamos
e ainda não estamos prontos. Estamos todos em gênese, abertos para o futuro.
Deus emerge de dentro dessa experiência cosmológica como o Futuro do mundo,
como a Grande Promessa para o coração humano, como o Grande Atrator que nos
chama lá na frente.
A nova cosmologia parte de um fato, talvez o
mais significativo da história das ciências: a identificação da data de nosso
nascimento. Foi captada, vinda de todas as partes do universo, uma radiação
cósmica de fundo (-3 graus Kelvin). Trata-se de um raio fraquíssimo, uma
espécie de ruído derradeiro, eco da grande explosão primordial, de onde se
originaram todas as coisas. É o famoso big-bang. Analisando-se a radiação das
galáxias mais distantes, calculou-se que essa incomensurável explosão tenha
ocorrido há 15 bilhões de anos. É a nossa idade, pessoal e de todo o universo.
Sem entrar em detalhes e dispensando a fundamentação teórica, coisa que fizemos
em nosso livro Ecologia: grito da Terra,
grito dos pobres, podemos sumariar, da seguinte forma, os passos do teatro
cósmico:
Inicialmente havia um pontozinho quase imperceptível,
impregnado de energia originária. Nada existia, nem espaço, nem tempo, nem
matéria organizada. Num determinado momento, sem que saibamos o porquê, aquela
quietude primordial se quebrou. Ocorreu uma inimaginável explosão. Tudo foi
lançado em todas as direções, sob calor de bilhões de graus e em incontrolável
velocidade. Fótons se irradiaram, inaugurando o processo de expansão que ainda
está em curso. A energia originária se desdobrou nas quatro forças que
sustentam tudo: a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear fraca e a forte.
Surgiram os primeiros seres, os seis tipos de quarks que se estabilizaram e formaram os prótons e nêutrons. Três
minutos após a grande explosão (big-bang),
formaram-se os primeiros núcleos de átomos. Surgiu a primeira síntese, o
hidrogênio e o hélio, encontráveis em todo o espaço cósmico. Após esses três
minutos, formaram-se grandes nuvens de gases. Após dois a três bilhões de anos,
elas se condensaram e se resfriaram, dando origem às grandes estrelas
vermelhas. Em seu interior ocorreram formidáveis interações, permitindo o
surgimento de elementos químicos mais pesados que o hidrogênio e o hélio,
imprescindíveis para a formação da matéria do universo e da vida, como o
carbono, o silício, o magnésio, o oxigênio, o níquel, o ferro e outros. Essas
gigantes vermelhas explodiram e se transformaram em supernovas. Elementos
pesados foram ejetados ao espaço interestelar e deram origem às estrelas de
segunda geração, como o nosso Sol, os planetas, os satélites e os corpos
materiais. Esses elementos formaram as galáxias, as moléculas, as células, as
águas, os dinossauros, os papagaios, os cavalos e os seres humanos. Todos somos
inter-retro-conectados, formando o grande sistema do universo, construído por
aqueles elementos (cerca de cem) que se formaram em bilhões de anos de trabalho
cósmico. O universo é mais que o conjunto de todos os seres e energias
existentes; é o conjunto das relações que envolvem todos os seres e os fazem
interdependentes uns dos outros.
Um dia estivemos todos juntos, como
virtualidade, naquele núcleo primordial; em nossos elementos básicos, fomos
forjados nas estrelas, depois na Via-Láctea, no sistema solar e na Terra. Somos
todos parentes e irmãos. Temos a mesma origem e, seguramente, o mesmo destino.
Os cosmólogos referem-se não apenas ao big-bang, mas também ao vácuo quântico.
Vácuo não seja talvez a palavra mais adequada, pois ela sugere o vazio e o
nada. Mas a intenção é constatar que, com o irromper do big-bang, se manifestou uma fonte abissal de energia, o vácuo
quântico. Efetivamente, alguns preferem chamá-lo de abismo alimentador de tudo (all-nounshing
abyss) porque se trata de um vácuo saturado de energia ilimitada. Dele tudo
sai – ondas de energia, partículas elementares – e a ele tudo retorna. Algumas
energias se estabilizam e aparecem como matéria, outras formam campos
energéticos ou mórficos e então são chamadas de função de onda. Mas em todo
esse processo se verifica uma minuciosa calibragem de medidas, sem as quais o
universo e nós mesmos não estaríamos aqui para falar disso tudo. Quer dizer,
para que existisse o céu sobre nossa cabeça e nós pudéssemos estar aqui, foi
necessário que todos os fatores cósmicos, ao largo dos 15 bilhões de anos,
tivessem se conectado, se equilibrado e convergido. Sem essa sinfonia, jamais
teria surgido a complexidade, a vida, a consciência e a nossa própria
existência. Tal compreensão supõe que o universo seja carregado de propósito e
intencionalidade, implica num Agente infinitamente inteligente por detrás da
ordem universal, apesar de todo o caos e das dizimações que estigmatizaram o
universo e a Terra.
Essa ordem fascinou cientistas como Einstein,
Bohm, Hawking, Swimme e outros. A consciência de Deus quer expressar essa ordem
suprema e dinâmica, sempre feita a partir do caos. Deus estava primeiro no
universo, em nossa galáxia, em nosso sistema solar, em nosso planeta, formando
ordens a partir da desordem. E, porque estava lá, pôde, num dado momento da
evolução, emergir na consciência dos seres humanos.
A hipótese do big-bang e do abismo alimentador de tudo supõe que o mundo teve
início e que uma Energia poderosa o mantenha continuamente no ser. Quem deu o
impulso inicial? Quem sustenta o universo como tudo e cada coisa para
continuarem a existir e a se expandir? O que havia antes do big-bang? O nada? Se havia o nada, como
surgiu algo? Do nada não vem nunca nada. Se, apesar do nada, apareceram seres,
é sinal de que Alguém os chamou à existência e os alimenta permanentemente em
seu ser.
Talvez com modéstia e precaução, em respeito
ao rigor científico, possamos responder: antes do big-bang não havia nada do que agora existe. Porque, se existisse,
deveríamos perguntar: De onde veio? O que podemos sensatamente dizer é: Existia
o Incognoscível, vigorava o Mistério. Sobre o Mistério e o Incognoscível, por
definição, não se pode dizer literalmente nada. Ora, ocorre que o Mistério e o
Incognoscível são os nomes pelos quais as religiões chamaram a Deus. Deus é
sempre Mistério e Incognoscível. Mas Ele pode ser intuído pela razão devota e
pode ser sentido pelo coração. Então, Deus foi Aquele que colocou tudo em
marcha e tudo alimenta. Portanto, Deus emerge não fora do processo cosmogênico,
mas como uma exigência dele.
Mas não basta dizer que Deus está na raiz da
existência de todas as coisas. Outra questão importante é: Por que exatamente
nós e o universo existimos? Que Deus quer expressar com a criação? Responder a
isso não é preocupação apenas da consciência religiosa, mas da própria ciência.
Stephen Hawking, em seu famoso livro Uma
breve história do tempo, revela a intenção de sua pesquisa cosmológica, que
é conhecer o que Deus tinha em mente ao criar o inteiro universo. Sucintamente
podemos dizer que o sentido do universo e de nossa própria existência
consciente é sermos um espelho no qual Deus vê a si mesmo. Cria o universo como
desbordamento de sua plenitude de ser, de bondade e de inteligência. Cria para
se auto-entregar a algo distinto dele. Cria para fazer outros participarem de
sua superabundância. Cria o ser humano com consciência para que ele possa ouvir
as histórias do universo, possa captar as mensagens dos seres da criação, dos
céus, dos mares, das florestas, dos animais e do próprio processo humano e religar
tudo à Fonte originária de onde procedem.”
“Há que considerar a imagem de Deus vinculada
ideologicamente pelo sistema. Justifica a situação. O sistema capitalista
apresenta a Deus como aquele Ser Supremo que naturalmente estabelece as
classes, onde haverá sempre ricos e pobres. Prega um Deus que manda observar as
leis da natureza, entendendo-se a fome pela vantagem pessoal, a concorrência e
a livre empresa como decorrentes da lei natural. Anuncia um Deus que manda
obedecer à ordem estabelecida, não se perguntando se essa ordem não poderá ser,
como efetivamente está sendo, ordem na desordem e fruto do egoísmo de grupos de
interesse. Trágica para a fé se torna a situação quando nos damos conta de que
os próprios conceitos fundamentais do cristianismo foram assimilados como
suporte justificador do sistema de opressão, como humildade, obediência,
honestidade, paciência, carregar a cruz de Cristo, pobreza, renúncia, amor
incondicional, etc. Freud dizia que os cristãos estavam mal batizados.
“Estão mal batizados”, comenta Marcuse,
“enquanto aceitam e obedecem ao evangelho libertador somente numa forma
altamente sublimada – que deixa a realidade sem liberdade como estava antes.”
J. L. Segundo, teólogo uruguaio e um dos
críticos mais lúcidos do caminho da evangelização na América Latina, fazia uma
constatação também dolorosa: Ao revelar o sistema capitalista – no decurso de
seu desenvolvimento – toda a sua dimensão de dominação inumana, o cristão não
encontra na experiência de sua vida social nenhum elemento que lhe sirva para
pensar o Deus que se revelou em Jesus Cristo. Mais ainda, seu ajuizamento do
sistema social o leva necessariamente à crítica de uma noção de Deus em que se
projeta a falsa imagem criada por uma ideologia de dominação. Nesse sentido
podemos dizer que nunca como hoje tem sido tão difícil conceber
existencialmente o Deus cristão.
Não obstante isso, observamos: quem é o Deus
cristão não o sabemos a priori, senão
assumindo os desafios dessa situação de captividade. Dentro dela se revelará um
rosto novo do Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Deus se faz presente na América Latina por
uma dupla ausência extremamente angustiante. A dependência opressora, a
marginalidade de milhões, a miséria humilhante, a ganância insaciável de uns
poucos, a violência dos traficantes de drogas e armas despertam em nós sede de
justiça, fome de participação, ânsia de fraternidade e desejo imenso de criação
de estruturas sociais que impeçam para sempre a exploração do homem pelo homem.
Porque entrevemos a justiça, sofremos com a injustiça estrutural. Porque
vivemos na ânsia da solidariedade, penamos sob o regime de discriminações.
Porque estamos banhados pelo amor, nós nos debatemos com a desumanização das
relações sociais. A justiça, a solidariedade, o amor estão presentes na
ausência deles como fato histórico. Não é porventura Deus o símbolo linguístico
para dizermos a justiça, o amor, a participação, a comunhão, a solidariedade?
Deus só possui sentido existencial se for o polo de referência da justiça, do
amor, da fraternidade humanos. Admiravelmente o exprimiu o francês H. de Lubac,
um dos maiores teólogos do mundo: “Se eu falto ao amor ou se falto à justiça,
afasto-me infalivelmente de vós e meu culto não é mais que idolatria. Para crer
em vós, devo crer no amor e crer na justiça, e vale mil vezes mais crer nessas
coisas que pronunciar vosso nome. Fora delas é impossível que eu alguma vez vos
encontre e aqueles que as tomam por guia estão sobre o caminho que os conduz a
vós”.
O Deus que assim aparece é o Deus inversus. Ele emerge do contraste.
Quanto maiores forem as trevas, maior será o resplendor da Luz. Mas essa Luz
nos julga e nos condena. Não permite que fiquemos inativos face às injustiças
que clamam ao céu e face à miséria que Deus não ama e por isso não quer.
O termo se designa cristianismo. Na verdade
este último, na práxis concreta da experiência da fé, se nega a si mesmo,
embora continue a servir-se de toda a linguagem e temática cristã. Aquele que
nega o cristianismo sociológico na América Latina, porque foi usurpado pelo
poder estabelecido como sua legitimação ideológica, mas busca a justiça, a
participação e a libertação, está mais próximo do cristianismo teológico e do
Deus vivo e verdadeiro do que aquele outro que professa a Deus e Jesus Cristo e
assume toda a ortodoxia católica, mas fechou os olhos e endureceu o coração à
dolorosa marginalidade de milhões, à exploração instituída em sistema e à
repressão aceita como legal.
Estas afirmações, escandalosas para o status quo religioso e social, não nos
devem causar estranheza. Estão na melhor tradição jesuânica e profética. Quando
Cristo quis explicar quem era o próximo, quando se admirou da fé de um seu
ouvinte e quando quis explanar o que é a prontidão obediente, não tomou
exemplos dentre as pessoas piedosas ou dentre as de sua religião revelada, mas
tomou pessoas fora desses quadros oficiais. Citou o herege samaritano, a mulher
pagã siro-fenícia e o estrangeiro centurião romano. Há uma negação do cristão que é uma forma de resgatar o
sentido originário e divino do cristão. Estas reflexões, parece-nos, se fazem
urgentes e necessárias no contexto latino-americano, dada a manipulação
ideológica a que está sujeito o cristianismo pelas elites dominantes.”
“Deus só se torna real e vivo se emergir da
radicalidade da experiência do mundo, como sentido, como mistério que suporta o
mundo, como força libertadora dentro de nosso engajamento por mais justiça e
humanidade. Nem a experiência de Deus consiste em ter visões, audições e
enlevos místicos. Tudo isso pode existir, mas fica no nível das vivências
subjetivas do mistério de Deus. Deus não é “visível”, nem “audível” nem
“acessível” só na experiência mística. Se assim fora, Deus seria o privilégio e
o luxo de alguns iniciados e não o sentido que pervade toda a existência, por
mais cotidiana que se apresente. Daí poder-se experimentar Deus sempre e em
qualquer situação, a partir do momento em que atingirmos a profundidade da
vida, lá onde ela mostra uma abertura absoluta que ultrapassa todos os limites
e que, por isso, comparece como o Transcendente em nós.”
“Já há muito que biólogos renomados como
Humberto Maturana e Fritjof Capra vêm afirmando a base biológica do amor. Ele
se encontra na estrutura de toda realidade, que é sempre urdida de relações, de
cooperação, de comunhão e de inclusão. O amor é aquela força que tudo liga e
religa e que permite que as coisas formem um cosmos e não permaneçam no caos.
Portanto, o amor possui um fundamento ontológico: sua inclusão na estrutura da
própria realidade objetiva. No ser humano, esse dado objetivo se transforma num
projeto assumido com consciência e em plena liberdade. Através do amor, Deus
mesmo continua se auto-doando e fazendo história dentro da história humana,
pessoal e coletiva. Amando o outro, na radicalidade, estamos amando a Deus. “Se
viste a teu irmão, então viste a Deus”, disse um dos primeiros teólogos
cristãos, Clemente de Alexandria (Stromateis
1,19), ainda no século segundo.”
“No cristianismo articulou-se a experiência
do Mistério como história do Mistério. O Sentido não ficou difuso, profuso e
confuso dentro da realidade. Ele armou tenda entre nós e se chamou Jesus Cristo
(cf. Jo 1,14). O Mistério é tão radicalmente Mistério que pode, sem perder sua
identidade, fazer-se carne e história. Ele pode subsistir totalmente num Outro
diferente dele. Se assim não fora, não mostraria sua onipotência nem seu
caráter de Mistério. Então, sendo vida, ele pode morrer. Fazendo-se morte, ele
pode viver. Ele pode, sendo impalpável, fazer-se palpável; sendo invisível,
fazer-se visível; sendo Criador, fazer-se criatura.”
“A verdadeira opressão, contudo, não residia
na presença do poder romano, mas na interpretação legalista da religião e da
vontade de Deus corroborada especialmente pelos fariseus. A lei, que devia
auxiliar a encontrar o caminho para Deus, degenerara com o peso das tradições,
das interpretações rabulísticas e das minúcias mesquinhas, numa terrível
escravidão imposta em nome de Deus (cf. Mt 23,4; Lc 11,46). Cristo chega a
desabafar: “Fico bobo de ver como vocês conseguem esvaziar o mandamento de
Deus, para fazer valer a tradição de vocês” (Mc 7,9)! Tudo era medido em termos
de lei – quem é próximo e quem não o é, quem é puro e quem não o é, quais são
as profissões mal-afamadas – gerando discriminações sociais. Os fariseus
observavam tudo ao pé da letra e aterrorizavam o povo, obrigando-o a também
observar tudo estritamente. Diziam: “Maldito o zé-povinho que não conhece a
lei” (Jo 7,49). Embora perfeitíssimos, possuíam uma distorção fundamental,
denunciada por Jesus: “Não se preocupam com a justiça, com a misericórdia e com
a boa fé” (Mt 23,23). A lei, ao invés de auxílio, se tornou uma prisão dourada,
mas sempre prisão. Querendo se auto-assegurar da salvação, o ser humano se
fechou sobre si mesmo contra os outros e, por fim, contra o Deus vivo. Para o
fariseu, viva é a Lei e não Deus. Transmitia um conceito fúnebre de Deus, pois
Ele não se fazia presente, era como se estivesse morto e tivesse deixado como
testamento um amontoado de leis e normas a garantirem a além-vida no seio de
Abraão. Os que viviam à margem dessa compreensão legalística se consideravam
perdidos, desesperados e abandonados por Deus e, ainda, socialmente difamados.
Os doentes eram instruídos a interpretar suas doenças como pecados pessoais ou
de seus antepassados. Triste e verdadeiramente oprimida era a condição humana
quando Jesus começou sua atividade pública.”
“Os evangelhos mostram duas dimensões de
Jesus totalmente paradoxais: uma extremamente rigorista e outra liberal. Por um
lado, apresentam Jesus que em nome de Deus faz exigências mais duras do que
aquelas dos fariseus. Ele é um rigorista: não apenas o matar, mas já o
irritar-se faz alguém ser réu de juízo (cf. Mt 5,21-22); não apenas o adultério
consumado, mas já o olhar cobiçoso faz alguém adúltero (cf. Mt 5,27-28); “se o
olho direito for ocasião de escândalo, arranca-o e joga-o para longe; se a mão
direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti” (Mt 5,29-30). Todo
o teor do sermão da montanha radicaliza as exigências da Lei, levando a
observância ao nível do impossível para o pobre homem mortal. Por outro lado,
os evangelhos mostram um Jesus soberano face à lei a ponto de ser considerado
laxista pelos piedosos do tempo que se escandalizavam (cf. Mt 13,53-58). Não se
incomodava com a observância rigorosa do sábado; mais importante que o sábado é
a pessoa humana (cf. Mc 2,23-26; Lc 6,6-10; 13,10-17; 14,1-6; Mc 2,27). Ele e
seus discípulos não eram ascetas como os discípulos de João (Cf. Mc 2,18);
acusavam-no de glutão e beberrão (cf. Lc 7,34; Mt 11,19); critica a distinção
de próximo e não-próximo (cf. Lc 10,29), porque “próximo é todo aquele de quem
eu me aproximo, tanto faz se judeu ou pagão, santo ou pecador”; fulmina,
sobranceiro, as leis de purificação: não é o que entra, mas o que sai do ser
humano que o faz impuro. O que entra não passa pelo coração, mas passa para o
estômago e acaba parando na privada (cf. Mc 7,19). Acolhe todo o mundo,
especialmente os que eram considerados pecadores públicos, como os exatores de
impostos, com quem come (cf. Lc 15,2; Mt 9,10-11), doentes e leprosos (cf. Mc
1,41), uma herege samaritana (cf. Jo 4,7). Prefere os publicanos, as
prostitutas e os pecadores aos piedosos e teólogos (cf. Mt 21,31). No Evangelho
de João encontramos esta frase libertadora de Jesus: “Se alguém vem a mim, eu
não o mandarei embora” (Jo 6,37).
Como se há de entender este paradoxo: por um
lado rigorista e por outro liberal? Se tomarmos a Lei como medida de
julgamento, não conseguiremos entender o paradoxo, porque um elemento exclui o
outro. Esses dois aspectos opostos só são compreensíveis e revelam sua unidade
interior se considerarmos a experiência típica que Jesus fez de Deus. O
rigorismo, na verdade, não é rigorismo da Lei; é um rigorismo que ajuda a
abandonar a absolutização da Lei e confiar-se a um Deus que está acima e para
além da Lei. Jesus fez a experiência de Deus não como juiz vigilante da Lei,
mas de Deus como Pai de infinita bondade. Abba
é a ipsissima vox jesu (palavra que
vem diretamente da boca de Jesus) e quer dizer “Papaizinho”, linguagem familiar
e íntima, exprimindo toda a intensidade afetiva da experiência de Jesus. “Jesus
falou com Deus como uma criança fala com seu pai, cheia de confiança e segura
e, ao mesmo tempo, respeitosa e disposta à obediência.” Com esse Deus Pai nos
relacionamos com incondicional amor e total entrega. Não basta cumprir a Lei. O
amor não conhece limites; alcança para além das leis; torna estas até absurdas,
porque o amor não é objeto de legislação. Daí nunca podermos estar satisfeitos
no nosso amor para com Deus e para com o próximo. Somos sempre devedores. Jesus
eliminou de vez a consciência satisfeita de quem presume ter cumprido todo o
dever para com Deus; a consciência de estar em dia com Deus e de poder cobrar
dele a promessa que fez ao seu povo e aos que o amam. Jesus dizia: “Depois de
terem feito tudo o que está prescrito, vocês devem dizer: ‘Somos simples
empregados; fizemos apenas o que era o nosso dever’” (Lc 17,10). Eliminou
qualquer título de glória e de mérito perante Deus, quando desclassificou o
fariseu que se gabava de suas boas obras e deu razão ao publicano que batia no
peito e apenas dizia: “Meu Deus, tenha compaixão de mim que sou um pobre
pecador” (Lc 18,13).” Por mais que façamos, somos sempre devedores diante de
Deus. O rigorismo de Jesus se entende não a partir da observância da Lei, mas a
partir das exigências do amor que não suporta, sem morrer, limites de qualquer
natureza.
O fariseu é rejeitado porque, fazendo obras
boas, dando esmolas e jejuando, se julga justo. Ninguém deve se reputar justo e
bom. Só Deus (cf. Lc 18,19). Diante de Deus, somos todos publicamos, isto é,
pobres pecadores. Reconhecermo-nos pecadores, nos faz justos; reconhecermo-nos
justos, nos faz pecadores. E o que nos ensina a parábola do publicano e do
fariseu (cf. Lc 18,9-14). O rigorismo não é, portanto, da lei, mas do amor.
À luz de Deus como Pai amoroso se entende o
liberalismo de Jesus. Não se trata de desobediência à lei e anarquia moral. É a
forma do amor que superou as divisões que a Lei havia introduzido entre puros e
impuros, próximos e não-próximos, bons e maus. O amor é irrestrito: ama tudo e
todos. Pois é assim que Deus ama: “Ele é bondoso para com os ingratos e maus”
(Lc 6,35). Ele ama indistintamente a todos, pois “faz nascer o sol sobre os
maus e bons e faz chover sobre os justos e injustos” (Mt 5,45). Para o amor não
há mais puros e impuros, não há mais próximos e não-próximos, não há mais bons
e maus. Todos são dignos de amor, porque Deus fê-los dignos de seu amor. Daí se
entende o apelo de Jesus: “Sede misericordiosos como vosso Pai é
misericordioso” (Lc 6,36). Um dos traços mais característicos da experiência do
Deus de Jesus consiste no fato de ele ser misericordioso. Ser misericordioso
significa ter entranhas e um coração sensível como tem uma mãe. Por pior que
seja seu filho, ela sempre o acolherá e abraçará em seu perdão. O que saiu de
suas entranhas, jamais será esquecido e negado. Por isso, as características do
Abba, de Deus-Pai, são femininas.
Deus-Pai é somente e plenamente Pai quando também é Mãe de infinita
misericórdia e bondade. Isso nos permite que falemos de Deus-Pai-e-Mãe ao nos
referirmos ao Deus da experiência de Jesus.
Jesus não é liberal e laxista porque come com
os pecadores, deixa que os impuros se aproximem dele e porque se detém a
conversar com uma pecadora conhecida na cidade (cf. Lc 7,36ss). Com essa
atitude consciente Jesus quer mostrar o amor que Deus tem a todos esses
mal-afamados. Ele está amando como o Pai ama, pois ele faz a experiência de
amor e bondade do Pai. Seu Deus é o Deus do filho pródigo (cf. Lc 15,11-32), o
Deus que corre atrás da ovelha tresmalhada (cf. Lc 15,4-7), o Deus que perdoa
os dois devedores que não tinham com que pagar (cf. Lc 7,41-43), o Deus do
patrão bom que paga bem tanto os que trabalharam mais quanto os que trabalharam
menos (cf. Mt 20,1-15). Para Jesus, pobres não são apenas os economicamente
pobres, mas todos os que sofrem alguma opressão, como as prostitutas e os
doentes crônicos, os que não podem defender-se por si mesmos, os
desesperançados, os que acham que não têm mais salvação. Todos esses devem
sentir Deus como Pai bondoso e Mãe misericordiosa que perdoa a culpa e convida
para a comunhão com Ele.
Jesus não transmitiu uma doutrina sobre a
bondade infinita de Deus-Pai-e-Mãe. Ele mostrou essa bondade sendo ele mesmo
bondoso, circulando com os pecadores e dando confiança aos desamparados social
e religiosamente. Não faz isso por puro humanitarismo, mas como tradução
concreta de sua experiência de Deus como Pai e amor, como graça e perdão.
Porque se sente totalmente amado e aceito pelo Pai, ele também aceita e ama a
todos: “Se alguém vem a mim, eu não o mandarei embora” (Jo 6,37).”
“Aqui reside novamente um traço
característico da experiência de Deus feita por Jesus. Ele não usa a palavra
Deus sem vinculá-la concretamente ao ser humano. Os judeus usavam a palavra
Deus justificando com ela o ódio ao inimigo (cf. Mt 5,43), as divisões entre
puros e impuros, assim como nos tempos atuais os fundamentalistas muçulmanos
usam Deus-Alá para legitimar seu terrorismo contra o Ocidente. Deus era usado
como instância superior em si, a partir da qual julgavam a existência. Deus
para Jesus emerge exatamente dentro da vida e no relacionamento com os outros.
Cada pessoa vale mais do que tudo (cf. Mt 6,26); é mais importante que a
observância do sábado pela qual o povo eleito acreditava participar da
celebração do Sábado que Deus mesmo com seus anjos celebrava nos céus (cf. Mc
2,27); cada pessoa é mais importante que o culto (cf. Lc 10,30-37), que o
sacrifício (cf. Mt 5,23-24; Mc 12,33); vale mais do que espetaculares objetivos
revolucionários (cf. Mt 11,12), mais do que ser piedoso e observante das sagradas
leis e tradições (cf. Mt 23,23).
Deus quer ser servido nos outros e não tanto
em si mesmo. Sempre que se fala do amor a Deus, fala-se também do amor ao
próximo (cf. Mc 12,31-33; Mt 22,36-39). É no amor ao próximo que se decide a
salvação. Quando alguém pergunta a Jesus o que se deve fazer para lograr a
salvação, ele responde citando os mandamentos da segunda tábua, todos
referentes ao próximo (cf. Mc 10,17-22). Jesus increpa os fariseus porque não
se preocuparam “com o mais grave da Lei: justiça, misericórdia e boa fé” (Mt
23,23). Isso não é simplesmente humanismo secular, como poderia parecer à
primeira vista. É o único e verdadeiro humanismo, de transfundo divino, porque
Deus mesmo se identificou com os mais necessitados (cf. Mt 25,31-45), com as
criaturas mais marginalizadas e desprezadas (cf. Mt 25,35-40). Elas são a
epifania de Deus, o lugar onde ele marcou o encontro que significa salvação
eterna.
São João irá traduzir maravilhosamente a
unidade do amor ao próximo com o amor a Deus, presente na pregação de Jesus:
“Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia seu irmão, mente. Pois quem não ama
seu irmão, a quem vê, não é possível que ame a Deus, a quem não vê. E nós temos
dele este preceito, que quem ama a Deus também ame o irmão” (I Jo 4,20-21). O
fundamento da identidade do amor de Deus com o amor ao próximo não reside no
voluntarismo divino. É assim porque simplesmente Deus quis. Existe uma razão
mais profunda, na ordem mesma do ser: Deus está presente de tal maneira no
mistério do homem que amar o outro já inclui amar a Deus. Desde que Deus mesmo
se fez um próximo, o amor ao próximo é também amor a Deus. A luz disso,
entende-se que o amor se estenda também ao inimigo. Por pior que seja uma
pessoa, ela não consegue ofuscar a beleza que encerra, pelo fato de Deus estar
sempre presente dentro dela. É essa presença divina que faz amável até o
inimigo, o ingrato e o pecador (cf. Lc 6,35).”
“A experiência cristã de Deus, como já
consideramos, é inseparável da experiência do irmão. Quem experimenta Deus como
Pai, experimenta o outro como próximo e o próximo como irmão.”
“O homem contemporâneo, manipulado pela
sociedade de consumo e produção, informação e entretenimento, vê-se, muitas
vezes, perdido no emaranhado das solicitações aos sentidos que lhe advêm por
todos os lados. Sente que dentro de sua vida se anuncia uma exigência mais alta
do que aquela de apenas produzir, trabalhar e consumir. Não temos apenas fome
de pão, que é saciável, como dizia um poeta, mas temos também fome de beleza,
que é insaciável. A vida não é apenas luta contra a morte. Nela se desvela
também a dimensão de sentido, de gratuidade, de celebração e de alegria de
viver. Ora, nesse espaço se torna significativa a linguagem do Divino e do
Mistério. O homem moderno é racionalista e profanizado no âmbito de suas
relações com o mundo. Mas se mostra sensível para o Mistério do Amor, para o
sentido radical do viver, e pode acolher o inacessível à discursividade da
razão. O religioso e a religiosa, no meio do mundo, deveriam ser um sinal profético
e um sacramento desta dimensão na qual Deus emerge como Sentido e como a
Esperança em plenitude. Constatamos frequentemente que, quando um religioso ou
uma religiosa realmente se tornam seres de Deus, a eles acorrem as pessoas como
a uma fonte de onde jorra uma água vivificadora. O religioso e a religiosa
valem não tanto por aquilo que eles fazem, mas muito mais por aquilo que são:
um sinal de Deus e do Sentido buscado, consciente ou inconscientemente, por
todos.”
“A experiência de Deus não constitui um luxo
só de alguns. É a condição indispensável para toda a vida de fé. Toda religião
assenta sobre uma experiência de Deus. Sem ela os dogmas são andaimes rígidos;
a moral, uma couraça opressora; a ascese, um rio seco; a prática religiosa, um
desfiar monótono de gestos estereotipados; a devoção, um estratagema para
combater o medo; e as celebrações, uma ostentação vazia, sem a graça da vida
interior.
Aquele que experimentou Deus penetrou no
reino da mística. A mística não assenta sobre o extraordinário, mas é a
transfiguração do ordinário. O místico é aquele que se faz sensível ao outro
lado da realidade. É aquele que capta o mistério (de mistério vem mística) que
se revela e vela em cada ser e em cada evento da história pessoal e coletiva. E
o capta porque aprendeu a ser sensível ao invisível aos olhos, mas sensível ao
coração atento. Por isso, o místico autêntico não tem segredos a contar ou
confidências a fazer. Ele vê Deus em todas as coisas enquanto está sempre em
busca de um Deus sempre maior do que Aquele que ele já encontrou. Porque Deus
perpassa toda a realidade, pode, por isso, ser percebido e experimentado nas
mais diferentes situações da vida e em cada detalhe da vida pessoal e do
universo.
Experimentar Deus não é pensar sobre Deus. É
sentir Deus a partir do coração puro e da mente sincera. Experimentar Deus é
tirar o mistério do universo do anonimato e conferir-lhe um nome, o de nossa
reverência e de nosso afeto. Experimentar Deus é desenvolver a percepção
bem-aventurada de que, na radicalidade de todas as coisas, Deus, universo,
pessoa humana são um só mistério de enternecimento e de amorosidade que
irrompeu em nossa consciência, fez história, ganhou sua linguagem e culminou na
alegre celebração da vida.”
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