Editora: Anita Garibaldi
ISBN: 978-85-7277-069-9
Tradução: Bernardo Joffily e Soraya Barbosa da Silva
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 160
Sinopse: Domenico
Losurdo, um dos mais notáveis pensadores marxistas contemporâneos, tem se
dedicado, em uma obra já considerável, à análise crítica dos ideólogos do
liberalismo. Ele mostra como o elitismo daquele pensamento olhava o mundo com
um metro de classe rígido, segundo o qual toda a cultura e a civilização são
apanágios legítimos dos proprietários, cabendo aos demais as durezas do
trabalho, das carências, da miséria. Losurdo reconstrói cuidadosamente esta
tradição e seus desastres. Mostra como ela é o biombo da exploração dos
trabalhadores na Europa e também da hierarquização do mundo em raças inferiores
e superiores, cujo topo é ocupado pelas elites brancas europeias.
“Mas precisamente enquanto fatos
macroscópicos confirmam a validade da análise leninista do imperialismo, este
sistema de relações internacionais celebra os seus maiores triunfos mesmo no
plano ideológico, rodeado como está por uma aura que consagra o seu caráter
benéfico para o presente, o passado e o futuro. “Finalmente o colonialismo está
de volta Já era hora!”, anunciou triunfalmente, há algum tempo, o The New York
Times, dando a palavra ao historiador Paul Johnson. E Popper: “Libertarmos
estes Estados (as ex-colônias) depressa demais e de maneira demasiado
simplista” é como “deixar um orfanato entregue a ele mesmo”. Retoma-se assim um
tema clássico da tradição colonial: tal como nos tempos de Kipling, os povos do
Terceiro Mundo continuam a ser considerados meio crianças e meio diabos; e, na
medida em que se revelam rebeldes e diabos, é justo que sejam severamente
punidos pelos que são os únicos realmente capazes de entendimento e vontade,
pelos adultos titulares do patria
potestas, os países e as classes dirigentes do civilizado mundo
capitalista. É esta a opinião expressa ainda nos nossos dias, em letras
redondas e com linguagem retumbante, pelo teórico da sociedade aberta e profeta
do “racionalismo crítico” que, no entanto, considera supérfluo interrogar-se
quanto às razões de por que a renovada solicitude das grandes potências pelas
crianças dos “orfanatos” se concentra nas regiões mais ricas de petróleo e
estrategicamente decisivas.”
“Em Lênin a crítica do colonialismo e do
imperialismo desempenha um papel central, bem para além da imediatez política.
O que é a democracia? Vejamos de que modo a definem os clássicos da tradição
liberal.
Tocqueville descreve com lucidez e sem
indulgências o tratamento desumano reservado aos peles-vermelhas e aos negros
nos EUA: através de deportações sucessivas, e sofrendo os “males terríveis” que
estas implicam, os primeiros estão já claramente destinados a serem eliminados
da face da Terra; quanto aos segundos, são submetidos no sul a uma escravatura
mais inflexível que na antiguidade clássica ou na América Latina. No norte, na
teoria são livres, mas na realidade continuam a ser vítimas de um “preconceito
racial” que precisamente aqui se encarniça de modo particularmente cruel, pelo
que o negro fica privado não só dos direitos políticos, mas também dos civis,
dado que a sociedade o entrega de fato inerme à violência racista. “Oprimido,
pode queixar-se, mas só encontra brancos entre os seus juízes”. Contudo, isto
não impede Tocqueville de celebrar a América como o único país no mundo em que
vigora a democracia “viva, ativa, triunfante”. Um país e um regime político são
definidos democráticos independentemente da sorte dos excluídos, por mais amplo
que possa ser o seu número e mais cruel a sua sorte. (...)
Em relação a este mundo, Lênin representa uma
ruptura não só no plano político, mas também epistemológico: a democracia não
pode ser definida independentemente dos excluídos; “o despotismo” exercido
sobre “bárbaros”, obrigados à “obediência absoluta” própria dos escravos e às
infâmias da expansão e do domínio colonial, lança uma luz inquietante sobre os
Estados liberais, e não só no que respeita à sua política internacional. Esta
não é um elemento estranho da estrutura político-social interna. É elucidativo
o exemplo dos Estados Unidos; aqui, é no próprio território nacional que
residem as raças “na menoridade”, de cuja condição porém não se pode prescindir
nem sequer quando se trata de analisar países como a Inglaterra ou a França ou
a Itália. Na tradição liberal a teorização ou celebração da liberdade avança a
par e passo com a enunciação de cláusulas de exclusão, pelo que a liberdade em
última análise acaba por se configurar como privilégio.”
“Os políticos mais liberais e radicais da
livre Grã-Bretanha (...), quando se tornam governadores da Índia,
transformam-se em verdadeiros Gengis Khan.” (Lênin)
“Stálin sintetizou com eficácia o ponto de
vista de Lênin:
Nas condições da opressão capitalista, o
caráter revolucionário do movimento nacional de modo nenhum implica
obrigatoriamente a existência de elementos proletários no movimento, a
existência de um programa revolucionário ou republicano no movimento, ou a existência
de uma base democrática do movimento. A luta do emir afegão pela independência
do Afeganistão é objetivamente uma luta revolucionária, apesar do caráter
monárquico das concepções do emir e dos seus seguidores (...). A luta dos
mercadores e dos intelectuais burgueses egípcios pela independência do Egito,
pelas mesmas razões, é uma luta objetivamente revolucionária, por mais que os
chefes do movimento nacional egípcio sejam burgueses por origem e pertença
social e por mais que sejam contra o socialismo, enquanto a luta do governo
operário inglês para manter a situação de dependência do Egito, pelas mesmas
razões, é uma luta reacionária, por mais que os membros deste governo sejam
proletários por origem e pertença social e por mais que sejam pelo socialismo.
Ou seja, os conflitos entre países com um
diferente estágio de desenvolvimento político-social têm de ser avaliados não
em função do caráter mais ou menos avançado do regime vigente em cada um deles,
mas sim a partir da natureza objetiva da contradição que entre eles se
desenvolver: é por isso que, embora guiados por camadas feudais, os países e
povos atrasados podem ser protagonistas de uma justa e progressiva luta ou
guerra de libertação nacional, cujo alvo poderá eventualmente ser constituído
por um governo “operário” e trabalhista!
Por fim – na opinião de Lênin, mas não
infelizmente, na de Stálin –, o caráter não unilinear do processo histórico
continua também a manifestar-se posteriormente ao advento do socialismo em
alguns países. O próprio proletariado vitorioso pode exprimir tendências
chauvinistas ou hegemônicas, pode cultivar a tentação de “se sentar às costas
dos outros” e, portanto, “são possíveis quer revoluções – contra o Estado
socialista – quer guerras”.
Pode acontecer até de um país socialista não
exprimir a causa do progresso. Teorizar a exportação do socialismo a partir
dele significa estar prisioneiro da filosofia burguesa da história: só se
configuram de maneira diferente o campo da civilização e da modernidade, por um
lado, e o da barbárie e do atraso, por outro, mas quanto ao resto o progresso
continua a ser visto como a extensão unilinear do primeiro em prejuízo do
segundo, independentemente de toda e qualquer análise concreta da situação
concreta.”
“Os índios e os negros continuam a ser uma quantié negligeable, cuja sorte não
intervém em nenhum momento para ofuscar o quadro luminoso da democracia
americana. Esta — prossegue o “democrata” presidente dos EUA Bill Clinton —
“tem de continuar a guiar o mundo”: “a nossa missão é sem prazo”. O silêncio
sobre o genocídio das populações indígenas e sobre o tráfico e escravatura dos
negros (que no momento da fundação dos EUA constituem 20% da população total) é
o silêncio típico dos mitos de fundação dos impérios. (...)
Estes últimos dão sinais de crescente
impaciência, se não no plano mais imediatamente político, pelo menos no
cultural. Por ocasião da inauguração do mausoléu dedicado ao Holocausto, os
sobreviventes das tribos índias interrogaram-se por que motivo não se erigia um
mausoléu análogo nos EUA em recordação do genocídio que lá de fato se consumou.
Por sua vez, os militantes negros sublinham, em polêmica contra a ideologia
dominante, o papel central que na história americana tem o que eles definem
como Black Holocaust. O fato –
observam – é que a “escravidão física” foi substituída pela “escravidão
psicológica”, mas sem dela eliminar a relação de dominação que continua a
manifestar-se no plano cultural. Trata-se de um protesto perfeitamente justo
contra a permanente hipocrisia da historiografia e da cultura ocidental no seu
conjunto.”
“O pensamento de Lênin distingue-se por esta
sua atenção aos excluídos e pela sua implacável denúncia dos estereótipos e dos
processos de desqualificação racista, pela sua recusa de contrapor um
estereótipo a outro, pelo esforço constante de recompor a unidade da história
mundial e do gênero humano. O universal a construir – sublinha o revolucionário
russo, citando e subscrevendo a “fórmula magnífica” da Lógica de Hegel – deve ser tal que abranja em si “a riqueza do
particular”.”
“Mais que de choque entre civilização e
barbárie, um autor americano que agora se tornou célebre, Samuel P. Huntington,
prefere falar de “choque de civilizações” (clash
of civilisations), mas o significado é substancialmente o mesmo, dado que
só a civilização ocidental representa a causa do “individualismo”, dos “direitos
humanos, igualdade, liberdade”, tolerância etc.
Contudo, é o próprio autor quem reconhece que o “fundamentalismo” não é
de modo nenhum um fenômeno exclusivamente islâmico, e admite igualmente a
hipocrisia e a brutalidade do Ocidente nas suas relações com o Islã. A “comunidade
internacional”, chamada a conferir legitimidade à cruzada anti-iraquiana e a
outras análogas, na realidade não passa de um sinônimo eufemístico do “mundo
livre” dos tempos da Guerra Fria, ou seja, do Ocidente. O comportamento deste
ultimo é assim descrito:
“Depois
de ter derrotado o mais forte exército árabe (o iraquiano), o Ocidente não
hesita em fazer sentir o seu peso sobre o mundo árabe (e sobre a Líbia em
particular). O Ocidente, com efeito, está usando instituições internacionais,
poderio militar e recursos econômicos para impor um governo do mundo que
mantenha o predomínio ocidental, defenda os interesses ocidentais e promova os
valores políticos e econômicos ocidentais”. (...)
Huntington, de qualquer modo, reconhece tudo
isto e, no entanto, continua a considerar o Ocidente como o intérprete
exclusivo dos “direitos humanos” e inclusive do ideal da “igualdade”. Mais uma
vez a democracia não tem validade para as relações internacionais, e da
igualdade continuam a ser excluídos os bárbaros. Não é por acaso que o ensaio
conclui com um apelo ao Ocidente para “manter o poder econômico e militar
necessário para proteger os seus interesses” (nesta altura os valores já não
parecem desempenhar um papel significativo).
A tese do “choque de civilizações” oculta os
reais conteúdos da contradição entre o Ocidente e o mundo árabe, acabando por
transfigurar ideologicamente a tradicional política colonial e imperial das
grandes potências que se autoproclamam representantes únicas se não da
civilização enquanto tal pelo menos da civilização autêntica. A Oeste nada de
novo, poder-se-ia então concluir. Agora já devia tornar-se claro para todos: a
expedição anti-iraquiana (de 1991) representou uma “autêntica fratura
geopolítica” na relação entre o Ocidente e o mundo árabe, reforçando os
movimentos islamitas e fundamentalistas. “Até os intelectuais francófonos do
Magrebe, durante muito tempo considerados por seus compatriotas como a “quinta
coluna da França”, têm assumido posições antiocidentais”*. Reconhece-o também
Huntington: bastante cedo os intelectuais e as massas do mundo árabe se
aperceberam do engano que o extraordinário poder multimidiático das grandes
potências tentava fazer passar. A guerra do Golfo viu não “o mundo contra o
Iraque”, mas sim “o Ocidente contra o Islã”. Até a consciência nas vítimas da
arrogância branca ou ocidental da real identidade dos sujeitos em conflito não
é propriamente um fato novo. A trágica novidade, na sequência da falta de um
movimento anti-imperialista capaz de fazer frutificar a lição leninista, reside
antes no fato de o mundo árabe começar a interpretar o confronto com as mesmas
categorias dos seus inimigos. Tal como Huntington, também alguns intelectuais
árabes já teorizam atualmente as “guerras de civilizações”, de que a do Golfo
constituiria o primeiro exemplo.
O enfraquecer ou o desagregar de uma posição capaz
de combinar a crítica do Ocidente com o reconhecimento dos seus pontos altos e
da validade universal da sua herança explica o fato de os movimentos de
resistência à política hegemônica e imperial das grandes potências e dos EUA
terem tendência de assumir cada vez mais a forma de guerra religiosa e de
civilizações. Quebrado o equilíbrio entre crítica do Ocidente e herança dos
seus pontos altos, a guerra santa do Ocidente corresponde à guerra santa do
Islã. A situação aí delineada é extremamente prenhe de perigos. Quem a
evidenciou, embora numa situação profundamente diferente da atual, foi uma
grande personalidade política claramente influenciada pela lição de Lênin. Em
1954, Togliatti põe assim em guarda a Europa e os EUA empenhados em conter os
movimentos de emancipação anticolonial, em impetuoso crescimento naqueles anos:
“Mesmo
se devesse continuar, entre o mundo “ocidental” e os povos asiáticos, o atual
estado de guerra fria e semibeligerância, a catástrofe delineia-se, porque está
situada na ruptura que esta guerra fria implica, entre duas partes do mundo
cuja tarefa histórica atual, pelo contrário, é a de se compreenderem e
aproximarem (...). Mesmo que não se chegue agora a uma guerra aberta, em tudo
isto está já em germinação uma catástrofe histórica de dimensões enormes”.
A catástrofe do “choque de civilizações” e
das guerras religiosas delineia-se mais claramente nos nossos dias. Em vez de
proceder a uma reflexão autocrítica, o Ocidente parece querer apelar a uma cruzada
contra o fundamentalismo por ele mesmo evocado e alimentado com sua arrogância
imperial que em certos casos não hesita em condenar à inanição povos inteiros.
O ensaio de Huntington é expressão desta situação e desta política.
Há contradição entre a tese do “choque de
civilizações” e a do “fim da história” que Fukuyama exprimiu? A intervenção deste
filósofo-funcionário do Departamento de Estado americano tem sido com
frequência interpretada como o prenúncio do fim dos conflitos e das guerras.
Mas trata-se de leituras superficiais: na realidade, a tese do “fim da história”
constitui uma plataforma ideológica das cruzadas do Ocidente que, tendo agora
atingido a fase final do processo histórico (representado pela sociedade
capitalista e liberal), é chamado a edificar também o Terceiro Mundo, por meio
de oportunas expedições militar-pedagógicas, ao nível dos países mais
avançados, de maneira a edificar o “Estado universal homogêneo”. O que, para
Fukuyama, é o choque entre o Ocidente liberal (e individualista) que atingiu o
fim da história, e bárbaros ou semicivilizados ainda aquém dessa fase, para
Huntington, é o choque entre a civilização ocidental (a única autêntica por ser
a única que respeita o “individualismo” e os “direitos do homem”) e
civilizações ainda aquém da tolerância liberal. A diferença relevante está só
no maior realismo e na maior franqueza do segundo autor que tem poucas ilusões
quanto à realização do “Estado universal homogêneo” e acaba por reconhecer que
o “choque de civilizações” tem tendência para se configurar como confronto
cujos sujeitos são kin countries,
quer dizer, estirpes diferentes e contrapostas.”
*: cf. A. Benantar, Gli Arabi e L’Ovest: mettete in soffitta le
crociate, cit. P. 23.
“Em conclusão, nos nossos dias acabam por
reemergir todos os estereótipos (quer os que presidem as cruzadas e as
expedições coloniais, quer os que sempre têm acompanhado os conflitos
interimperialistas) contra os quais Lênin desenvolveu a sua implacável e lúcida
polêmica.”
“Mas Hayek insiste na sua hagiografia: “o
liberalismo clássico apoiara as reivindicações de ‘liberdade de associação’” Na
realidade, a polêmica antissindical, ora mais explícita e virulenta, ora em
surdina e pouco perceptível, acompanha constantemente a história do pensamento
liberal. Por outro lado, para desmentir o patriarca do neoliberalismo, basta
citar seus autores prediletos. Mandeville, por exemplo, escreveu surpreso e
indignado sobre as primeiras tentativas dos miseráveis do seu tempo de se
organizarem de modo a melhorar suas condições de vida:
“estou informado por pessoas dignas de fé que alguns destes servos
chegaram a tal ponto de insolência de se reunir em associação e fizeram leis
que estabelecem como obrigação não prestar serviço por uma quantia inferior à
estabelecida por eles, não carregar pacotes ou cargas que superem um certo
peso, fixado em duas ou três libras, e se impuseram uma série de outras regras
diretamente opostas ao interesse daqueles para quem prestam serviço e, ao mesmo
tempo, contrárias ao objetivo pelo qual foram contratados”. (...)
Mandeville escreve: “para tornar a sociedade
feliz é necessário que a grande maioria permaneça ignorante e pobre”. Ou então:
“a riqueza mais segura consiste em uma massa de pobres trabalhadores” Não é tão
importante que o autor mais querido de Hayek considere como um fato natural,
inevitável, e ao mesmo tempo benéfico, a miséria e a ignorância dos
trabalhadores assalariados. O que mais importa é examinar a estrutura epistemológica
do discurso de Mandeville. Ao exigir o sacrifício de uma numerosa massa de
indivíduos, é a “sociedade” — ou melhor, a “riqueza” — um monstro universal que
engole a grande maioria da população. Ou então, se nos lembrarmos de Destutt de
Tracy, ele também na mira de Marx: “as nações pobres são aquelas em que o povo
vive em condições de riqueza, enquanto as nações ricas são aquelas em que este
é ordinariamente pobre”. A “riqueza das nações” — para usar uma expressão de
Adam Smith — é o novo nome deste Moloch devorador. Este último pode inclusive
se chamar “liberdade”: a carga antiestatal e liberal de Mandeville é fortemente
destacada e celebrada por Hayek, o qual, porém, transita com desenvoltura na
outra face da moeda, “the working slaving
people”, “a parte mais mesquinha e pobre da nação”, que, segundo
Mandeville, trabalha e é justo e inevitável que trabalhe precisamente à maneira
dos escravos. E como antes a “riqueza das nações” exigia a miséria da maioria
da população, agora aquela que podemos chamar de “liberdade das nações” exige
sempre a substancial escravidão da maioria da população.
É preciso analisar um pouco mais a estrutura
do discurso criticado por O Capital:
a felicidade, ou melhor, a riqueza, ou melhor, a liberdade da “sociedade” ou da
“nação” exigem a infelicidade, a miséria, a escravidão da maioria de seus
membros. Por que esta proposição não é vista como logicamente contraditória? É
claro: porque os trabalhadores assalariados não são contratados propriamente,
ou a título pleno, sob a categoria de “sociedade” e “nação”, um universal que a
eles faz apelo só porque funciona como vítimas de sacrifício.”
Neoliberalismo e Nova Direita
Se hoje, quando se fala de direitos do homem,
se entende – ao menos por parte da cultura política mais avançada – o homem na
sua universalidade, o homem como tal, não se pode ignorar a grande
contribuição, para este resultado, da tradição política que vai de Robespierre
(foi o primeiro que contestou as limitações censitárias do direito de voto e
aboliu a escravidão nas colônias) a Lênin (a revolução de Outubro deu um
impulso decisivo ao processo de descolonizar e reconhecer o direito de
autodeterminação também aos povos em certo tempo considerados bárbaros). É
claro que a constatação deste fato histórico não deve ser um obstáculo para um
balanço crítico, sem indulgências, desta tradição revolucionária. No que se
refere mais especificamente ao marxismo, a ilusão que o penetra profundamente,
quanto à breve fase de transição para um comunismo utopicamente transfigurado,
produziu consequências claramente nefastas: esta ilusão levou a negligenciar,
ou pior, a considerar puramente “formal”, o problema das garantias
democráticas, ou o velho problema liberal dos limites de poder, qualquer que
seja.
Seria, porém, errado pensar que este tema
seja totalmente ausente em Marx e Engels. Existe inclusive uma celebração
apaixonada da tradição liberal anglo-saxônica: “o direito inglês” — escreve
Engels em 1892 — é “o único que manteve conservada intacta, e transmitida para
a América e para as colônias, a melhor parte daquela liberdade pessoal, daquela
autonomia local e daquela independência frente a toda intervenção estrangeira,
com exceção da justiça”. Tudo isso que, com a monarquia absoluta, se perdeu na
Europa continental e nunca mais foi reconquistado completamente.
Não é o tema da liberdade do indivíduo que
faz a diferença entre Marx e Engels, por um lado, e, por outro, a tradição
liberal. É, ao contrário, o reconhecimento da dignidade de indivíduo e de homem
em cada ser humano, e também o conhecimento de que sem a “liberdade da
necessidade” correm o risco de resultarem formais a liberdade civil e política
e o próprio reconhecimento da dignidade do homem. É certo que profundas
transformações políticas e sociais se desenvolveram de modos muito diferentes
dos previstos e desejados por Marx e Engels. Todavia, Hayek tem razão quando
reconhece em Roosevelt e nos documentos da ONU, na atual configuração da
sociedade “liberal-democrática”, uma influência do movimento
democrático-socialista e do marxismo. É importante traçar um balanço histórico
correto do mundo no qual vivemos para compreender os termos reais do atual
debate político. Ao que se assiste hoje é uma gigantesca tentativa de purificar
a sociedade “liberal-democrática” dos elementos (ou do maior número possível de
elementos) de democracia, daquilo que inseriram as lutas prolongadas do
movimento democrático-socialista. Dahrendorf identifica corretamente no neoconservadorismo
a tentativa de reverter a “ideia de direitos civis e sociais”, de privar a ideia
de direito daquela “substância social” que é o resultado da “resposta que a
sociedade aberta apresenta aos desafios da luta de classes”. E então, apesar de
todas as diferenças, o neoconservadorismo e o neoliberalismo acabam,
inevitavelmente, se encontrando com a velha e a Nova Direita na liquidação, não
apenas do movimento socialista, mas da herança da Revolução Francesa e da ideia
de igualdade, do “Estado-Providência” etc. Por vezes a Nova Direita reivindica
explicitamente a tradição liberal para contrapô-la à massificação do mundo
moderno. Tocqueville foi “um dos primeiros a descobrir a contradição escondida
no slogan que, a partir de 1789, associa igualdade a liberdade”.
Assim, o anti-igualitarismo dos
neoconservadores não parece suficientemente radical e consequente para a Nova
Direita. E, todavia, existe um tema de fundo que aproxima as duas consentes.
Benoist não se cansa de denunciar no conceito universal de homem a versão
superficialmente laicizada do monoteísmo hebraico-cristão, a gênese do “totalitarismo
igualitário”. Com referência à Declaração Universal dos Direitos do Homem,
Hayek ironiza por sua vez o conceito de ‘direito universal’ que assegura ao
camponês, ao esquimó e talvez também ao abominável homem das neves ‘férias
periódicas remuneradas’”.
A destruição da herança do movimento
democrático-socialista não pode deixar de colidir com o conceito de homem e de
direito do homem como tal, e é apenas neste quadro que se pode compreender a
tese desenvolvida por Hayek em relação ao problema da fome do Terceiro Mundo: “Contra
a superpopulação existe apenas um freio, ou seja, que se mantenham e que
cresçam apenas aqueles povos que são capazes de se alimentarem sozinhos”. É
natural que o regresso à concepção liberal clássica, vista e cuidada na sua “pureza”
e autenticidade comporte – também em nível internacional – a rejeição de
qualquer redistribuição de recursos que não derive da caridade individual.
Mesmo quando alcança dimensões trágicas, até levar à morte de milhões de
pessoas, a fome continua a ser um fato privado, daqueles que a sofrem ou dos
eventuais benfeitores que fazem caridades. Desta forma, os povos aprenderão a
“se alimentar sozinhos”.
É certo que milhões de crianças não terão
sequer o tempo de aprender. Mas a resposta para uma eventual objeção já está
contida num clássico da tradição liberal. Segundo Malthus, é intrínseco ao
“governo moral deste universo que os pecados dos pais sejam punidos nos seus
filhos”; “pelas leis da natureza, uma criança é confiada direta e
exclusivamente aos cuidados de seus pais” e não tem nenhum direito de
reivindicar à sociedade.
É desta desconfiança em relação à categoria
dos direitos universais do homem e desta indiferença para com a sorte de
milhões de indivíduos concretos que emerge mais uma vez o caráter ideológico e
mistificador da profissão de fé que o liberalismo clássico e o neoliberalismo
fazem do “individualismo”.”
“Em dezembro de 1952, o ministro da Justiça
estadunidense enviou uma carta à Corte Suprema, empenhado em discutir a questão
da integração nas escolas públicas: “A discriminação racial fortalece a
propaganda comunista e gera dúvida mesmo entre as nações amigas sobre a
intensidade de nossa devoção à fé democrática”. Washington corre perigo –
observa o historiador americano que relata essa declaração – de afastar-se das “raças
de cor” não só no Terceiro Mundo e no Oriente, mas no coração mesmo dos EUA:
aqui também a propaganda comunista tem obtido um sucesso considerável na sua
tentativa de “ganhar os negros para sua causa revolucionária”, fazendo desabar
neles a “fé na instituição americana”. A decisão da Corte Suprema a favor da
não segregação só começa a ser aplicada nos Estados do Sul após a intervenção
do exército federal. Em última análise, uma revolução planetária vinda de baixo
constrangeu os dirigentes estadunidenses a uma limitada revolução pelo alto, e
a liquidarem ao menos os aspectos mais visíveis e revoltantes do regime da white supremacy. Nesse mesmo contexto
podemos incluir o episódio da África do Sul, onde, em 1994, estimulada por
décadas de lutas de baixo, uma revolução do alto e de fora põe fim, também
nesse país, ao monopólio branco sobre os direitos políticos e o poder.”
“A ideologia neoliberal hoje dominante
pretendia liquidar o movimento que partiu de Marx, ou que se inspirou nele,
como se fosse uma gigantesca e ruinosa derrapagem antidemocrática. Na
realidade, o advento da democracia contemporânea pressupõe a superação das três
grandes discriminações: censitária, racial e sexual, que por tanto tempo
excluíram do gozo dos direitos políticos os não proprietários, as “raças
inferiores” e as mulheres. Nesses três casos, o movimento comunista desenvolveu
um papel relevante. O primeiro grande país a estender o sufrágio as mulheres
foi a Rússia oriunda da revolução de fevereiro, na qual já eram bastante ativos
os “bolchevistas” que, mais tarde, seriam os protagonistas da Revolução de
Outubro. É verdade que a discriminação censitária já estava em crise desde o
final do século 19, mas nem por isso tinha sido suprimida. Tomemos por exemplo
o caso da Inglaterra. Aqui – denuncia Lênin em 1917 –, o direito eleitoral “é
ainda bastante limitado e exclui o estrato inferior propriamente proletário”.
Ainda se poderia acrescentar que a Câmara Alta, completamente hereditária, é
privilégio da aristocracia; para não falar do fato de que o “voto plural” – de que
gozam alguns privilegiados, obviamente representantes das classes proprietárias
– somente seria extinto em 1948. Vale dizer: também no Ocidente, o fim da
revolução burguesa não pode ser pensado sem a contribuição de um movimento
iniciado com uma revolução que agita a bandeira do socialismo e da luta contra
a burguesia.”
“Todo o terrorismo francês não foi nada mais
do que um modo plebeu de livrar-se dos inimigos da burguesia: o absolutismo, o
feudalismo e o filisteísmo”; “o proletariado e as frações burguesas não
pertencentes à burguesia”, embora se tenham “oposto à burguesia, como a exemplo
da França de 1793 a 1794, só lutaram pela realização dos interesses da
burguesia, ainda que não ao modo da burguesia”.” (Karl Marx)
“Há boas razões a favor da tese de uma única
“época de ‘revolução social”. Graças à supressão de seu significado político
imediato — já sublinhava o jovem Marx —, a propriedade pôde empreender sua
marcha triunfal e conquistar a sociedade inteira e o mundo inteiro. Desfeitos
os vínculos “políticos” que ainda atrapalhavam a liberdade de movimento do
capital, a humanidade no seu conjunto constitui-se agora de “indivíduos”
fechados na esfera de suas próprias vidas e de seus interesses privados, cujo “único
objetivo” é “a necessidade natural, a necessidade e o interesse privado, a
conservação da propriedade e da própria egoística pessoa”. A observação que os Manuscritos econômico-filosóficos fazem
a respeito do objeto da produção capitalista — que, por ter como fim a
realização da mais-valia, perde “toda a determinação natural e social” – é
válida também para a figura do sujeito.
Assim, então desenvolve-se uma globalização
capitalista que, junto a outros vínculos políticos, está agora empenhada em
transformar o mundo inteiro, no plano econômico, em um “livre mercado” e, no
plano político, em um “livre mercado político”, segundo a definição de
democracia cara a Schumpeter e que hoje faz escola nos EUA e no mundo inteiro.
Generaliza-se a figura do indivíduo-consumidor que, já desprovido de “toda
determinação social e natural”, resulta indefeso perante a superpotência
financeira do grande capital.”
“Podemos surpreender o reconhecimento desse
segundo aspecto num autor inesperado. Criticando a teorização dos “direitos
sociais e econômicos” que encontram sua expressão na Declaração Universal dos
Direitos do Homem, adotada pela ONU em 1948, Hayek observou: “Este documento é
uma clara tentativa de fundir direitos da tradição liberal ocidental com a
concepção completamente diferente da revolução marxista russa”. Portanto, com o
explícito reconhecimento do patriarca do neoliberalismo, o Estado social
desenvolvido no Ocidente – isto é, a tentativa de impor limites ao pleno
desdobramento do poder econômico-social da riqueza – não pode ser pensado sem o
impulso e o desafio provenientes da Revolução de Outubro. Não por acaso, ao
desabamento ocorrido no Leste correspondeu o desmantelamento do Estado social
no Oeste, e até mesmo a eliminação dos direitos sociais e econômicos do
catálogo dos direitos.
Além do proletariado do Ocidente, a Revolução
de Outubro também chamou à luta os “escravos das colónias”. Desencadeou, como
vimos, um enorme processo de emancipação que liquidou o domínio colonial e
suprimiu o significado político imediato da cor da pele e da qualificação
étnica. Mas, ainda a esse respeito, percebemos, se não uma inversão de
tendência, uma clara paralisia, Além de caracterizar-se pela polarização da
riqueza e da pobreza, a atual sociedade capitalista caracteriza-se também por
sua polarização política, além de econômica, nas relações internacionais. Se os
povos coloniais conquistaram os direitos políticos mediante a construção do
Estado nacional independente (do qual eram considerados indignos e para o qual
eram considerados incapazes), o esgotamento da soberania nacional, no Terceiro
Mundo e nas zonas periféricas, é o modo concreto pelo qual se desenvolve hoje o
processo de desemancipação, isto é, de liquidação dos direitos políticos que
aqueles povos já haviam conquistado.
Nesse sentido, não há dúvidas: estamos diante
de uma dupla derrota do projeto originado da Revolução de Outubro. Mas essa
derrota já não representa a solução do problema e, sim, sua agudização. A
precariedade e a miséria de considerável massa das metrópoles capitalistas, de
regiões inteiras ou de continentes no Terceiro Mundo, resultam tão mais
intoleráveis quanto mais prodigioso revela-se o desenvolvimento das forças
produtivas; a desigualdade política nas relações internacionais é também
dificilmente aceitável, com a insegurança e os perigos de guerra que dela
derivam, em um momento em que as armas de destruição em massa (outra face do desenvolvimento
das forças produtivas) fazem pesar terríveis perigos para a humanidade inteira.
São dois aspectos diferentes da contradição entre as novas forças produtivas e
relações de produção burguesas. São exatamente aquela dupla derrota e os
problemas que ela deixa sem solução que comprovam o fato de que, com a
Revolução de Outubro, iniciou-se uma nova “época de revolução social” com
processos revolucionários sempre determinados peculiarmente, com os ziguezagues
e os percursos tortuosos e muitas vezes insuspeitados que caracterizam cada
“época de revolução social”.”
“A história dos Estados Unidos é trespassada
em profundidade por transformações tendenciais da tradição judaico-cristã como
tal, em uma espécie de religião nacional que consagra o exceptionalism do povo americano e a missão salvadora a ele
confiada.
Mas essa mistura de religião e política não é
sinônimo de fundamentalismo? Não é por acaso que o termo fundamentalismo aparece pela primeira vez em âmbito norte-americano
e protestante — e como designação positiva e orgulhosa de si.
Podemos agora entender as ressalvas de Freud
e Keynes. Obviamente, nos governos que se sucedem nos Estados Unidos, não
faltam os hipócritas, os calculistas, os cínicos; mas não há motivo para
duvidar da sinceridade de Wilson ontem, ou de Bush Jr. hoje. Não se deve perder
de vista que estamos em presença de uma sociedade com baixa escolarização, na
qual 70% dos habitantes acreditam no diabo, e mais de um terço dos adultos
creem que Deus fala diretamente com eles.
Mas este é um fator de força e não de
fraqueza. A tranquila certeza de representar uma causa santa e divina facilita
tanto a mobilização coletiva em momentos de crise, como também a remoção ou
banalização das páginas mais tenebrosas da história dos EUA. Sim, no decorrer
da Guerra Fria, Washington encenou na América Latina sanguinários golpes de
Estado e impôs ferozes ditaduras militares; na Indonésia de 1965, promoveu o
massacre de duas centenas de milhares de comunistas e filo-comunistas, porém,
por mais desagradáveis que sejam, esses detalhes não chegam a ofuscar a
santidade da causa encarnada pelo “Império do Bem”.
Weber está mais próximo da realidade quando,
no decurso da Primeira Guerra Mundial, denuncia o “cant”. O “cant” não é a
mentira e nem é propriamente a hipocrisia consciente, é a hipocrisia de quem
consegue mentir até para si próprio; é um pouco a falsa consciência de que fala
Engels. Tanto em Keynes quanto em Freud, manifestam-se a um só tempo a força e
a fraqueza do Iluminismo. Largamente imunizada face à ideologia
imperial-religiosa que faz furor do outro lado do Atlântico, a Europa, ainda
assim, mostra-se incapaz de compreender adequadamente aquela mistura de fervor
moral, fervor religioso e lúcida e inescrupulosa perseguição da hegemonia política,
econômica e militar em nível mundial.
Mas é essa mistura, essa mescla explosiva,
esse fundamentalismo peculiar que constitui hoje o principal perigo para a paz
mundial. O fundamentalismo islâmico refere-se, mais que a uma determinada
nação, a uma comunidade de povos, os quais, não sem razão, veem-se postos como
alvo de uma política de agressão e ocupação militar. O fundamentalismo
norte-americano, por sua vez, transfigura e inebria um país bem determinado, o
qual, amparado na consagração divina, considera irrelevante a ordem
internacional vigente: as leis apenas humanas. É neste quadro que se promove a
deslegitimação da ONU, o substancial descarte da Convenção de Genebra, as
ameaças dirigidas não só aos inimigos, mas também aos “aliados” da Otan.”
“Retomemos ao jovem indochinês que vimos
denunciar, em 1924, enquanto vivia nos EUA, o horror dos linchamentos de
negros. Dez anos mais tarde, ele retorna à terra natal para assumir o nome,
mais tarde celebrizado no mundo inteiro, de Ho Chi Minh. No momento dos ferozes
bombardeios desfechados por Washington, terá o dirigente vietnamita pensado no
honor da violência antinegros promovida pelos campeões da white supremacy?
Em outras palavras, a emancipação dos
afro-americanos e a conquista por eles de direitos civis e políticos realmente
significaram uma virada? Ou os Estados Unidos continuam a ser em essência uma Herrenvolk democracy1, ainda
que se procurem desculpas já não no território metropolitano, mas fora dele,
como tantas vezes aconteceu no âmbito da história da “democracia” europeia?
Podemos examinar o problema de maneira
prospectiva, a partir de uma reflexão de Kant: “O que é um monarca absoluto? É
aquele que, quando ordena – faça-se a guerra –, a guerra se faz”. Tem-se em
mente aqui não os Estados do Antigo Regime, mas a Inglaterra, que, no entanto,
tinha atrás de si mais de um século de desenvolvimento liberal.
Do ponto de vista do grande filósofo, o
presidente dos Estados Unidos devia ser considerado duplamente despótico.
Primeiro, dada a emergência nas últimas décadas de uma "imperial presidency”, que, ao empreender
a ação militar, com frequência coloca o Congresso diante de um fato consumado.
Porém, interessa-nos sobretudo o segundo aspecto: a Casa Branca decide a
ocupação militar desses países de modo soberano, quando as decisões da ONU são
vinculantes ou quando não o são; decide soberanamente quem são os rogue States2, contra os quais é lícito impor um embargo,
esfaimando um povo inteiro, ou quando é lícito despejar um inferno de chamas,
inclusive mísseis com urânio empobrecido e cluster
bombs3, que continuam a atingir a população civil bem depois de
terminado o conflito. Sempre de modo soberano, a Casa Branca decide a ocupação
militar desses países por todo tempo que considere necessário, condenando à
forca ou encarcerando seus dirigentes e os “cúmplices” destes. Contra eles, e
os “terroristas”, é lícito recorrer até ao “targed
killing”4, ou mesmo a um “killing”
que nada tem de “targed”, por exemplo
o bombardeio de um restaurante qualquer onde se suspeite que Saddam Hussein
possa estar...
É claro que as garantias jurídicas não têm
validade para os “bárbaros”. Mas, reparando bem, como demonstra o Patriot Act5, o rufe of law6, não se aplica
tampouco aos que, mesmo não sendo “bárbaros” no sentido estrito do termo, podem
ser suspeitos de fazer o jogo destes.
É interessante acompanhar a história da
expressão “rogue States”. Por longo
tempo, na Virgínia dos séculos 17 e 18, os semiescravos – escravos temporários,
brancos – que eram capturados depois de tentativa de fuga, que amiúde
empreendiam, eram marcados com ferro em brasa, com a letra R, de “rogue”; e, assim identificados, não
tinham mais escapatória. Mais tarde, o problema da identificação foi resolvido
definitivamente com a substituição dos semiescravos brancos por escravos
negros: a cor da pele tornava supérflua a marca do ferro; um negro era
intrinsecamente sinônimo de rogue.
Agora, Estados inteiros são marcados com o
ferrete de ”rogue”. A Herrenvolk democracy é dura de matar...
Esta é uma velha história. Mas é nova,
entretanto, a intolerância crescente de Washington em relação aos “aliados”.
Também estes são chamados a inclinar-se, sem muitas tergiversações, à vontade
da nação eleita por Deus. São compreensíveis as perplexidades e reações
negativas provocadas pelo comportamento de um presidente dos Estados Unidos que
se comporta como soberano planetário não vinculado, nem limitado, a nenhum
organismo internacional. E eis que os ideólogos da guerra bradam escandalizados
quando se dissemina esta moléstia horrível que é, como sabemos, o
antiamericanismo.”
1: “Democracia” onde apenas os etnicamente
dominantes detêm o poder.
2: Estados fora da lei.
3: Bombas de fragmentação.
4: Assassinato seletivo.
5: Act patrioct,
decreto de George W. Bush após os ataques das torres gêmeas que hipertrofiava
as prerrogativas dos órgãos de defesa estadunidenses, permitindo inclusive
interceptação de ligações telefônicas e e-mails sem autorização judicial.
Posteriormente ele foi prorrogado no mandato de Barack Obama e, mais adiante,
foi substituído pelo USA Freedom Act,
que alterou algumas destas prerrogativas.
6: Império da lei.