Editora: Loyola
ISBN: 978-85-1502-093-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 480
Sinopse: Como
alguém, situado no movimento da subjetividade moderna em seu contínuo processo
de transformação, levando em conta a situação peculiar de nosso continente,
pode crer honestamente na revelação de Jesus Cristo? Esse curso procura ser uma
teologia fundamental em que os tradicionais tratados sobre a Revelação e a Fé
são estudados em sua íntima relação, sem esquecer de abordar os temas clássicos
necessário a um curso de teologia.
“1. A fé pede teologia. É, em primeiro lugar,
a própria fé que, por sua dinâmica interna, busca compreender o que crê. Todo ‘crente’
verdadeiro é também, e a seu modo, um ‘teólogo’. Pois a teologia é precisamente
‘a fé que deseja entender’, como a definiu magistralmente Sto. Anselmo. Sem o
estudo, a fé facilmente cai na cegueira do irracionalismo e da superstição, ou
na miopia da superficialidade e do sincretismo.”
“A mentalidade moderna e pós-moderna prima
por ser tolerante, relativista, pluralista, de um ecumenismo religioso
espiritual amplo, e por isso refuga altamente as pretensões exclusivistas da
verdade por particulares, quaisquer que sejam eles: Estado, partido, classe,
raça, cultura ou religião. Nesse sentido, a Revelação cristã conflita altamente
com essa mentalidade.”
“É claro que, de todos os discursos, o
religioso é aquele que, por excelência, pretendeu responder à questão do
sentido da vida: não apenas ele nos promete a imortalidade como atribui a
nossas condutas uma referência moral absoluta, a nossa história um termo último
e, no melhor dos casos, salvador. Mas aqui também a dificuldade com que se
chocam as grandes religiões não poderia ser subestimada: elas se tornaram, nas
sociedades laicas, simples problema de opinião privada. Cada um pode escolher
sua fé à la carte, temperar seu
cristianismo com um pouco de budismo, construir sob medida para si um islã duro
ou moderado, ser ateu e talmudista, distinguir nas palavras das autoridades o
que melhor convém à sua ‘sensibilidade’ e rejeitar todo o resto... Assim, é o
próprio princípio da verdade revelada que é questionado pela exigência moderna
de sempre pensar se possível por si mesmo... e não por Deus ou por Seus
representantes. A exigência de autonomia entra em conflito com o que o discurso
religioso tem de mais específico: o momento da Revelação, isto é, da humildade
que a consciência da dependência radical em relação ao Outro implica...” (L.
Ferry)
“A primeira causa do mal-estar da modernidade
é o individualismo”. (Charles Taylor)
“Vive-se
no cotidiano uma batalha violenta de condicionamentos que pautam os
comportamentos humanos. Chame-se de moda, de estar atualizado, de seguir a
propaganda, de deixar-se conduzir pelos meios de comunicação social e pelas
colunas sociais, de etiquetas, de costumes estabelecidos etc. Os
condicionamentos avultam exatamente num mundo em que se fala tanto de
liberdade. Até nesse ato de liberdade há muito de condicionamento, trabalhado e
conduzido por grupos interessados. Além da psicologia, a sociologia tem também
desmascarado a gigantesca força das estruturas condicionantes.”
Espírito pós-moderno
A pós-modernidade afirma-se em contraposição
à modernidade. A modernidade é racionalista, burocrática, cientificista com uma
razão monótona, enquanto a pós-modernidade alegra-se com uma irracionalidade
leve. A modernidade defende a objetividade coisal, a ciência, a coação do
método, o sistema, enquanto a pós-modernidade instila uma nova sensibilidade,
afaga o mito, desposa o prazer criativo, prega a liberdade anárquica. Isso não
impede que essa pós-modernidade, para suprimir a repressão onipresente
organizada pelo Estado, acabe gerando uma instituição anárquica do terror
individual. Ironicamente pode-se dizer que a grande novidade a que acena tal
movimento seja a confissão de que nenhuma vanguarda se constrói sem viver “a
graça do passado contra o qual se levanta” e termina muitas vezes enriquecendo
a história do pensamento sim, mas não necessariamente conduzindo-a a um ponto
mais alto, melhor, mais racional. Sua novidade pode transformar-se
paradoxalmente na “repetição do diferente”.
O único meta-relato que a pós-modernidade
propõe é o relato do declínio dos grandes relatos. Se Hegel se propôs pensar a
totalidade do real, desvendando-lhe as irracionalidades, se Freud vasculhou o
inconsciente escuro em busca de racionalidade, se Marx se entregou à dura
tarefa de orientar suas análises para transformar a realidade, o espírito
pós-moderno renuncia pensar, vasculhar, transformar o real. Basta-lhe viver.
“Já é muito saber que vivemos!””
“Fé é crer “ser verdadeiro o que Deus
revelou”.” (DS 3008)
Inexistência do a-priori
religioso
Estamos em plena modernidade. Dois sinais
intrigam. De um lado, uma secularização radical crescente parece demonstrar não
existir nenhum a-priori religioso no
ser humano — tese advogada pelos filósofos e depois defendida pelos teólogos da
secularização. A carta de D. Bonhüffer foi, de certa maneira, sua cédula de
identidade. Escrita nos cárceres nazistas em 30 de abril de 1944, será
publicada dez anos depois.
“O tempo em que se podia dizer tudo ao homem
com simples palavras — quer sejam teológicas ou piedosas — já passou. Assim
também já passou o tempo da interioridade e da consciência, o que podemos
resumir nas palavras, passou o tempo da religião. Marchamos para uma época sem
religião alguma. Os homens, assim como hoje são, não conseguem ser religiosos.
Mesmo os que ainda honestamente se consideram ‘religiosos’ já não praticam.
Evidentemente eles têm uma ideia completamente diferente sobre o que chamam de
‘religioso’. Toda a nossa proclamação do Evangelho e nossa teologia de 1.900
anos de cristianismo baseiam-se sobre um ‘a-priori
religioso’ do homem. O cristianismo sempre foi uma forma (talvez a autêntica
forma) da ‘religião’. Caso, entretanto, um dia se venha a descobrir que esse ‘a-priori’ nem sequer existe, mas apenas
foi uma forma de expressão do homem, historicamente condicionada e temporária,
os homens voltarão a ser radicalmente a-religiosos — e eu acredito que isto já
está acontecendo (qual a razão, por exemplo, de esta guerra, diferentemente de
todas as anteriores, já não provocar qualquer reação religiosa?). Que
significará isto então para o cristianismo?” (D. Bonhöfer, Resistência e submissão)
“Outra face da autonomia da razão é a
liberdade. É mais ampla. Refere-se à própria autodeterminação em todos os
campos. Na peça As moscas, J.-P.
Sartre retratou de modo genial esse anseio moderno pela liberdade:
“Quando a liberdade explode na alma dum
homem, os deuses perdem todo o poder sobre ele. Passa então a ser uma coisa
puramente humana, e só os outros homens podem matá-lo ou deixá-lo viver.
E em outro lugar acrescenta:
“Não sou senhor nem escravo, Júpiter. Sou
minha liberdade! Mal me criaste, deixei de te pertencer”.
A luta da psicanálise é arrancar os últimos e
profundos empecilhos à liberdade, ancorados no inconsciente humano.”
Subjetividade pós-moderna
É paradoxal. A subjetividade nunca foi tão
filha da alta tecnologia. Tudo passa por ela. Nunca foi também tão intimista,
individualista, egocêntrica, afetiva. Abre-se até o infinito pela telemática.
Fecha-se em seus interesses, gozos e prazeres até o extremo. É uma
subjetividade extremamente tecnológica e fruitiva.
Sofre também de falta de sentido. O ceticismo
a ronda por todos os lados. Reina um clima de tédio, de insatisfação. A
insegurança do futuro faz que ela se concentre no presente. Esquece-se do
passado. Prefere não pensar no futuro. Só vive o presente. “Carpe diem”, colhe
o gozo do cotidiano! Com isso, isenta-se dos compromissos que sempre implicam
uma dimensão de fidelidade, de futuro.
A experiência da fragmentação marca as
pessoas. Vem de todos os lados. Dentro de si, fragmenta-se o eu em camadas
inconscientes e conscientes. O saber especializa-se fragmentariamente ao
máximo. Os valores desfazem-se em pedaços. As religiões tradicionais veem
surgir diante de si infinitas expressões e denominações religiosas. Enfim, tudo
é plural. A subjetividade percebe-se dividida por dentro e ameaçada por fora.
A ética pesa. A estética liberta. Volta-se
então para a estética em detrimento da ética. No entanto, surge ao mesmo tempo
uma preocupação crescente com a ética, tendo em vista as consequências sociais
terríveis de sua ausência. A onda de corrupção, a proliferação das drogas, o
surgimento de máfias ameaçam a estabilidade social e produzem na subjetividade
pós-moderna um arrepio contraditório.
O retrato pode-se ampliar grandemente. Esses
poucos traços da subjetividade pós-moderna já nos indicam como a vivência da fé
cristã deve modificar-se diante de tal subjetividade. “Eu creio” se exprime
nessa perspectiva fortemente subjetivizada.”
Subjetividade e os pobres
A construção da subjetividade a partir da
experiência existencial em nosso continente sofre o impacto dos pobres que
estão por todas as partes. Ela reage a tal situação de várias maneiras.
Há uma elite satisfeita, cuja subjetividade
se constrói à margem do pobre. Desconhece-o. Mais: despreza-o. J. Freire Costa,
quando do assassinato do índio pataxó Galdino por jovens de classe média de
Brasília, alude a esse tipo de subjetividade. Os pobres são moscas que se
espantam. E por brincadeira podem ser assassinados, como disseram aqueles
jovens. É a subjetividade absolutamente alienada do próprio país, onde existem
pobres. Vive como se estivesse em outro mundo. Em algum cantão suíço.
Há, porém, a subjetividade da má consciência.
Sua maneira de expressar-se pode variar. Desde ajudas esporádicas para
apaziguar a consciência até uma busca contínua de autoconvencimento
desculpabilizante fazendo calar a angústia. Termina-se assim na figura anterior
de desconhecimento.
Mais longe vai a compaixão. O pobre entra na
própria constituição da subjetividade como alguém que merece uma presença de
atenção. Exprime-se também de muitos modos.
A compaixão pode evoluir para uma
subjetividade que aceita não poder existir na América Latina sem uma relação
construtiva, sadia e comprometida com o pobre. A opção pelos pobres é-lhe
estruturante.”
“A tendência da pós-modernidade é exacerbar a
subjetividade até as raias do puro subjetivismo, relativismo. Dessa maneira,
tanto um compromisso com a história e com a realidade social quanto autêntica
vivência da fé cristã tomam-se impossíveis.
Esse encurtamento da subjetividade humana é
prejudicial ao ser humano. Só há uma verdadeira subjetividade em construção
dialética com a história e com a sociedade.”
“O crescimento da fé tende a uma união com
Deus. Pela fé informada pela caridade, unimo-nos a Deus. O nível de união
cresce à medida que Ele se entrega, em sua infinita autodoação, a cada um de
nós e nós lhe respondemos com amor. Os místicos são abundantes em traduzir tal
experiência mística de fé. Alguns tocaram os píncaros de alturas vertiginosas.
A fé, nesse grau elevado, se aproxima muito da visão, que será a realidade de
nossa vida para além da morte na beatitude eterna.”
“Em sua estrutura teológica última, a fé é
uma atração misteriosa e gratuita de Deus a que nosso “eu” responde.”
“O ser humano é um ser-liberdade. Sua
condição de liberdade abre-lhe uma existência a ser construída por meio de
escolhas que, ao mesmo tempo, realizam e limitam sua liberdade. Ela só é real,
decidindo. Mas as decisões quanto mais importantes e carregadas de
consequências mais impedem retrocessos. O último motor de sua liberdade é a
busca do bem, da felicidade, de sentido. Como o ser humano não pode conhecer
nem medir de antemão o êxito de suas decisões, ele arisca. Não o faz na total
escuridão. Pois não habita um mundo vazio. Vive com outros seres humanos e
espelha-se neles para ir construindo seu percurso. Há pessoas mais
significativas. (...)
De certo modo, acreditamos em sua vida e
orientamos a nossa numa mesma direção.
Talvez uma das crises atuais consista na
falta dessas pessoas que Brecht chama de “imprescindíveis”. Os santos cumpriram
muito essa função de ser figuras significativas que levavam muitos a arriscar
sua vida apostando neles.”
“O sujeito que crê estabelece uma relação
dialética com as realidades históricas. “Eu e minhas circunstâncias”, diria
Ortega y Gasset. Existimos envolvidos pelos acontecimentos históricos que são,
ao mesmo tempo, produzidos por ações humanas e conformadores do próprio ser
humano. Fazemos a história e somos feitos por ela.”
Função de reprodução da religião
Não se pode esquecer, porém, que a religião
cumpre, embora em grau menor e subsidiário, uma função de reprodução da
sociedade juntamente com a educação, família, mídia. Assim, as práticas de fé
que reproduzem mais e melhor a sociedade são mais estimuladas, enquanto as
opostas são reprimidas, ora pela força policial, ora pela pressão dos
interesses dominantes, sobretudo por meio da mídia. Por isso, a fé profética é
menos estimulada que a fé religiosa em consonância ou, ao menos, sem conflito
com a ordem vigente.
Grito dos pobres
Dois gritos de protesto resumem o lado
obscuro dessa relação entre subjetividade e cosmos na modernidade: grito dos
pobres, grito da terra. Os pobres desmascaram os avanços da tecnologia quando
ainda moram em tugúrios, em barracas de lona velha, debaixo dos viadutos, sobre
as calçadas, enquanto a engenharia e arquitetura constroem edifícios de mais de
cem andares. Os pobres negam os progressos da medicina e da indústria
farmacêutica quando voltam a sofrer de doenças endêmicas, consideradas
erradicadas. Desmentem o avanço na culinária com comida abundante e requintada,
ao alimentar-se de ratos do lixo. Desacreditam as indústrias automotoras com
carros e aviões poderosos, luxuosos, ao ter de andar sempre a pé por não poder
pagar nem sequer o bilhete de um ônibus.
O maior desmentido da tecnociência vem do
fato de estar crescendo a maioria de pobres e miseráveis no mundo enquanto uma
camada cada vez menor se apossa dos recursos, usufruindo suas regalias. Os
pobres revelam que essa consciência, que rompeu a harmonia contemplativa em
vista da melhoria das condições de vida, perdeu o pássaro na mão e não apanhou
os dois que voavam. O grito dos pobres ameaça toda a humanidade a longo prazo,
embora já existam sinais de perigo iminente. Enquanto a riqueza consegue manter
bem firmes os diques que a separa da miséria, o risco ainda é controlável. E
tais diques custam cada vez mais caro: repressão policial, armas, blindagem, apartheids, políticas populistas,
migalhas de consolo, alienação religiosa, circo abundante nas praças e nas
telas da TV etc.
“Vale a pena deter-se um momento em santo
Agostinho, como um caso prototípico. Numa homilia maravilhosa, ele articula de
maneira genial a fé e a razão.
Depois de situar o ser humano na escala da
existência, da vida, da sensação e da inteligência, o santo levanta o problema
da fé. “Todos os homens querem entender, não há ninguém que não o queira, mas
nem todos querem crer. Se alguém me diz: ‘Que eu entenda para que creia’,
respondo: ‘Crê para que entendas’.”
Fé entre os extremos: racional e afetivo
A fé oscila entre os dois extremos: puro
racional e puro afetivo. Sempre a espreitam os exageros, tanto do fideísmo como
do racionalismo. Exatamente como a experiência da fé humana, do amor humano.
Alguns querem ter a absoluta certeza racional da amizade, do amor. São
racionalistas, pragmáticos e calculistas no amor. No fundo, não creem nem amam.
Se assim procedem em relação à fé, em última análise, não têm fé. Acreditam em
sua razão e não em Deus.
Outros se entregam a um amor cego, emocional,
sem juízo, que, em última análise, significa um nível de racionalidade
infantil. Amam, mas se enganam frequentemente no amor. Não se trata de um amor
humano maduro. No caso da fé, ela seria imatura.
Na história da fé cristã, estão presentes sempre
os dois elementos, mas não em igual proporção. Há momentos em que se salienta
mais um aspecto que outro.”
“A modernidade combatera a religião em nome
da razão. Destronara-a de sua função de reguladora da cultura e da sociedade.
Reduzira-a ao rincão da privacidade individual ou de esferas especializadas.
Para muitos, ela fora confinada às regiões do mito, do mágico, da infância da
razão. Os mestres da suspeita consideraram-na definitivamente superada.
Resquícios permaneciam por causa dos atrasos culturais, das contradições
econômicas, das alienações primitivas. Era questão de tempo.
A pós-modernidade insurge-se contra essa
racionalização violenta da modernidade. A razão instrumental triunfante
devastou regiões naturais maravilhosas. Gerou verdadeiro ecocídio. Mais:
produziu um exército interminável de pobres. Tem criado um coração humano
egoísta, individualista, fechado, condenado à solidão, consumista, sôfrego de
prazeres que não o fazem feliz.
Ameaça o homem pós-moderno o niilismo de
valores, de bem, de verdade. E acompanha-o a melancolia cinzenta. Num movimento
de reação e de ressurreição diante de tanta morte simbólica, ecológica e
humana, abrem-se espaços para a dimensão estética, lúdica, gratuita, festiva,
religiosa da existência. Os pobres constituem-se em instância terrivelmente
crítica da razão moderna. Que fez ela por eles?”
Catequese pós-moderna
É por esse veio que passa hoje a catequese da
nova geração: a fé como racionalidade-sentido e não tanto
racionalidade-explicação. Esquecera-se talvez que a fé se situa antes no nível
do sentido que no da explicação dos fenômenos. Ela se desgastara muito ao
enveredar por discussões restritas ao espaço das explicações causais dos
fenômenos humanos. O homem moderno nunca teve tanta explicação e de tão fácil
acesso, de tudo o que acontece. Mas também nunca esteve tão desprovido de
sentido para sua vida. A fé tem nesse campo enormes possibilidades, já que ela
se propõe precisamente oferecer o sentido radical da existência. Nisso consiste
fundamentalmente sua racionalidade.
Fides et ratio
Esse problema assumiu ultimamente importância
maior no cenário da Igreja e para além dela por causa da encíclica de João
Paulo II Fides et ratio. H. Vaz
distingue muito bem a relevância permanente e a conjuntural desse tema. A
encíclica veio conjunturalmente acentuar uma questão de valor permanente. Pois
há uma “presença constitutiva de um entrelaçamento entre Fé e Razão [...] na
estrutura simbólica de nossa civilização, tal como vem sendo transmitida há
pelo menos dezenove séculos, ou seja, desde as primeiras gerações cristãs”.
Nesse documento, o papa, antes de tudo, mostra como a causa profunda das
contradições de nosso tempo está na ruptura entre fé e razão. Segue as pegadas
de Paulo VI, que afirma que “a ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida
o drama de nossa época, como o foi também de outras épocas”. Essa ruptura
provocou uma perda de sentido. No entanto, a fé e a razão se reclamam
mutuamente e têm necessidade uma da outra. Esse encontro se dá sobretudo na
cultura e na história.
“Quem te criou sem ti, não te salvará sem
ti.” (Santo Agostinho)
“A liberdade humana não se realiza na
singularidade solipsista, mas em comunhão com os irmãos. O ato de liberdade
humana situa-se necessariamente em face de outras liberdades, de Deus e dos
irmãos. É nesse jogo complexo de liberdades que a fé se realiza, cresce,
amadurece e dá frutos de salvação.”
“Há interessante paradoxo na liberdade da fé.
De um lado, o ser humano é criado livre e responsável. Todas as respostas
humanas pessoais passam pela liberdade. E suas respostas a Deus também. Por
isso, todo ato de fé é livre. Por outro lado, essa liberdade está orientada
para relacionar-se com Deus de tal modo que rejeitar tal relação é frustrar a
liberdade.
Liberdade: dom recebido
Esse dom não é imposto em sua concretização
histórica. É dado no início. A dimensão de absoluto, de autonomia da liberdade
humana consiste em que ela pode ou não se realizar na linha do dom recebido.
Por isso, a negação do dom não é um ato da mesma natureza que a aceitação. A aceitação
do dom situa-se na linha da realização da liberdade. A negação da finalidade
criativa da liberdade para uma comunhão com Deus é, ao mesmo tempo, a negação
de sua própria realização. É, em última instância, frustração da própria
liberdade que admite graus na história e se radicaliza no momento da morte. A
essa radicalização da frustração da liberdade chama-se inferno.”
“O desafio para a “liberdade de” no mundo de
hoje situa-se diante da ideologia burguesa capitalista com sua enorme força
envolvente. A fé cristã estabelece exigências claras nesse setor. Não casa com
uma ideologia consumista, hedonista, individualista, que se impõe de tal
maneira a ponto de nos tolher a liberdade verdadeira. Mais: passa-se a falsa
ideia de liberdade como se ela se realizasse no simples fato de poder escolher.
Nesse sentido, a sociedade moderna consumista a favoreceria, já que nos oferece
muito mais oportunidades de escolha.
Pelo contrário, a pressão consumista e o
individualismo exacerbado limitam a liberdade profunda. Só um trabalho interior
de desapego, de indiferença interior, permite manter a “liberdade de”. Pe.
Pedro Arrupe, que foi geral dos jesuítas, com certa ironia dizia ao entrar
nesses colossais shoppings: “De
quanta coisa não necessito!””
“Ao criar a liberdade humana, Deus
aventurou-se por um caminho diferente. Ei-lo diante de um parceiro que não
seguiria sem mais o império de sua vontade, nem traçaria o desenho com que
sonhara. Deixou a caneta na mão de sua liberdade, e iniciou-se uma aventura de
surpresas e de sofrimento para Deus. Calou-se sofrido diante da rebelião desse
homem. Sofreu e sofre inúmeros “nãos” dessa liberdade. (...)
Extremo da morte do Filho
E no auge do risco e da dor viu seu próprio
Filho crucificado. A liberdade humana não é algo simples nem mesmo para Deus.
Ele que é o mistério dos mistérios encontra-se doravante em frente ao pequeno
mas real mistério de nossa liberdade. Quando seu Filho, o amor encarnado,
entrou na história para anunciar aos homens o amor infinito de Deus Pai, terminou
a vida numa cruz. A paixão de Deus é terrível no momento em que surge a
liberdade humana. Terminou a relação idílica entre Deus e a natureza, para
começar a apaixonada relação histórica, em que Deus e os homens vão viver
momentos sublimes de amor, de beleza, de ternura, mas também dolorosas
experiências de traição, distância, rejeição até o extremo.”
Miséria como ameaça à fé
A mais grave ameaça à fé em nosso continente
é a extrema miséria. Se nos países ricos a abundância material, o consumismo, o
conforto, a riqueza, o comodismo, a acomodação, o egocentrismo terminam por
destruir a fé cristã, em nossos países a extrema miséria empurra as pessoas
para situações desumanas de violência, de degradação humana, de impossibilidade
de viver os valores cristãos, de exprimir sua fé em Deus. Ela dilapida o
coração do que crê, arranca-lhe as energias vitais, impõe-lhe situações
impossíveis de uma vida humana e digna, degrada-lhe os sentimentos,
corrompe-lhe os valores, impossibilita-lhe a fé.
A luta contra a miséria é uma exigência da
justiça e da fé. É um passo primeiro para que o projeto de Deus possa armar sua
tenda entre os homens. Na miséria, ele é deturpado, inviabilizado. Pois a
miséria revela uma dupla face de contradição. Antes de tudo, ela faz mal ao
pobre, que se encontra em situações que dificultam viver sua fé. Pertence à
experiência comum perceber que é quase impossível praticar certas virtudes,
levar determinada vida moral e religiosa quando as circunstâncias e condições
existenciais são extremamente adversas. A miséria é uma das piores. Lutar
contra ela é criar condições para as pessoas viverem sua vida religiosa. O que
é exigência de vida para quem vive na miséria é obrigação moral para os outros.
O direito do outro a uma vida digna, e portanto toda situação em que ela esteja
ameaçada, impõe-nos uma obrigação moral de ajuda. Nesse caso, a opção pela
vítima, pelo necessitado é um dever moral universal. O cristianismo sanciona e
eleva essa obrigação ao nível teologal.
“A fé vive entre as fronteiras da certeza do
Deus que chama, que atrai, que é maior que todas as nossas certezas, e a
maneira dessa percepção que não se faz na evidência, na empiria constatável,
mas na aceitação do mistério.
A certeza da fé só se entende a partir da
conaturalidade do amor. Deus é amor (1Jo 4,8.16). Só quem ama sabe quão firme é
a segurança que o amor oferece. Amor e verdade identificam-se. Firmar-se no
amor é firmar-se na verdade e vice-versa. A fé descansa na verdade que é amor
ou no amor que é verdade.”
“O tema da idolatria tem sido perseguido
especialmente pela teologia latino-americana, alertando-nos para o fato de que
nos assalta mais o risco da idolatria que o do ateísmo. Com efeito, as
estatísticas brasileiras apontavam para uma porcentagem até mesmo inferior a 1%
de ateus. Já não podemos dizer o mesmo do culto a ídolos. O discurso dos ídolos
vem de dois lados: ou, no fundo, ele é estritamente econômico e joga com o
imaginário religioso; ou é estritamente religioso e contamina-se com a presença
de ídolos.
“A idolatria aparece como uma relação
falsificada na medida em que dela desaparece o gratuito, isto é, o pessoal e
livre. (...)
E consequentemente a América Latina, na luta
por sua libertação, não enfrenta a ‘morte de Deus’, mas a tarefa da ‘morte dos
ídolos’ que a escravizam e com os quais se confunde amiúde a Deus.” (J. L.
segundo)
A
conferência episcopal de Puebla adverte-nos para os ídolos de nossa cultura.
“[A Igreja] estabelece uma crítica das
culturas, uma vez que o reverso do anúncio do Reino de Deus é a crítica da
idolatria, isto é, a crítica dos valores erigidos em ídolos que uma cultura
assume como absolutos sem que o sejam.”1
“Nada é divino e adorável fora de Deus. O
homem cai na escravidão quando diviniza ou absolutiza a riqueza, o poder, o
Estado, o sexo, o prazer ou qualquer criatura de Deus, inclusive seu próprio
ser ou sua razão humana. O próprio Deus é a fonte de libertação radical de
todas as formas de idolatria, porque a adoração do não-adorável e a absolutização
do relativo levam à violação do que há de mais íntimo na pessoa humana: sua
relação com Deus e sua realização pessoal. A queda dos ídolos restitui ao homem
seu campo essencial de liberdade.”2
“Os bens da terra se convertem em ídolo e em
sério obstáculo para o Reino de Deus, quando o homem concentra toda sua atenção
em tê-los ou em cobiçá-los. Então eles se tomam absolutos. ‘Não podeis servir a
Deus e ao dinheiro’ (Lc 16,13).3
“Diviniza-se o poder político quando na
prática ele é tido como absoluto. Por isso, o uso totalitário do poder é uma
forma de idolatria, e como tal a Igreja o rejeita inteiramente (DS 75)”4.”
Os ídolos não vêm só de fora, da situação
social, do sistema social e cultural dominante. Muitos se infiltram em nossas
devoções. Criamos um deus a nossa imagem e semelhança que cai sob nosso
domínio. Domesticamo-lo, manipulamo-lo. Dispomos dele como algo nosso.
Criamos um deus para resolver todos os nossos
problemas. Um “deus ex machina”, um
“tapa-buracos”. Ele serve para solucionar tanto os problemas teóricos como os
práticos. Dessa maneira transformamos o mistério em problema e encontramos
solução para os problemas.
Ele é um deus que nos protege, mesmo à custa
da derrota dos outros. “Deus é brasileiro”, ouve-se não raramente. Esse deus é
um ídolo. Está aí, às vezes, até mesmo para acobertar nossa covardia, preguiça,
falta de empenho e compromisso.”
1, 2, 3, 4: Conclusões de Puebla,
respectivamente n. 405, 491, 493 e 500.
“Ao buscar o incompreensível, sempre se
encontra algo.
“Para que buscar, pergunta santo Agostinho,
se se compreende que é incompreensível o que se busca a não ser porque se sabe
que não se deve cessar sem empenho à medida que avança na busca do
incompreensível, pois cada dia se faz melhor aquele que busca tão grande bem, encontrando
o que busca e buscando o que encontra? Com efeito, busca-se para que seja mais
doce a descoberta; e encontra-se para que ela seja buscada ainda mais
avidamente10”.”
10. S. Agostinho, De Trinitate, XV, 2,2.
“A fé salva a caridade e vice-versa. Ela a
salva ao apresentar-lhe o modelo normativo do amor na maneira como Deus ama a
humanidade — entregando-lhe gratuitamente seu Filho — e no modo como Jesus
historicamente vivenciou o amor. Ele o fez amando os inimigos e dando sua vida
por eles e por todos. Com efeito, o ser humano pode facilmente pensar que seja
amor, caridade, o que são expressões larvadas de egoísmo. A fé diz-nos que o
verdadeiro amor existe na oblação de si, no perdão e amor aos inimigos.
Caridade salva a fé
A caridade salva a fé no sentido de que não a
deixa perder-se na ortodoxia, no dogmatismo, nas discussões sobre as verdades a
respeito de Deus e de Jesus, sem verificá-las na realidade. A caridade é a
verificação da fé. Viver na caridade é ter uma orientação de vida para o outro,
para o irmão e, em última instância, para Deus. Só há caridade no sentido
teologal onde há liberdade. Atos bons que são reflexos instintivos de bondade
ou fruto unicamente de condicionamentos sociais ainda não pertencem ao mundo da
caridade. No momento em que a pessoa os assume em sua liberdade e consciência,
eles se revelam salvíficos.
Amor é sempre relação pessoal. Toda relação
pessoal passa pela liberdade e consciência. O trabalho da vida em caridade é
tornar reflexo, livre o que em nós existe de bom, adquirido por muitas vias. E
combater o que pelas mesmas vias se implantou de ruim em nós.
A caridade é constituída de atos que nos
arrancam do egoísmo, da orientação exclusiva para nós à custa dos outros. A
linha resultante desses atos, que descreve nossa trajetória central,
caracteriza a orientação fundamental. Alguns a chamam de opção fundamental.
Toda reflexão sobre a verdadeira natureza do
amor que salva se faz na fé. Ela nos diz que a caridade que salva é o amor que
redimensiona toda nossa vida. Essa caridade iluminada pela fé recebe na
tradição inaciana do discernimento o nome de charitas discreta, uma “caridade discernida” à luz da fé.
Enquanto conhecimento, a fé não salva, pois o
conhecimento não salva. Não somos gnósticos. O conhecimento responsabiliza a
ação para o bem e para o mal. Nesse sentido, a tradição espiritual valorizou
sempre o exercício da fé iluminadora das ações por meio do exame de
consciência, da oração para que com maior claridade e liberdade pudéssemos viver
melhor a caridade.
Tanto mais importante é esse papel de
iluminação da fé quanto mais sabemos que vivemos muitas vezes num nível
puramente de reflexos pavlovianos ou skinnerianos. Os atos mecânicos não são
humanos no sentido pleno, embora feitos por seres humanos. A fé penetra tais
atos para que eles subam ao nível humano da consciência e da liberdade e ao
nível da graça. E porque tais ações são feitas no nível da liberdade, da
consciência e pela graça, elas salvam. A caridade salva a fé.”
“A fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo,
isto é, na Trindade, vem ao encontro dessas indagações. Na experiência do
Mistério há sim a diversidade (o Pai, o Filho e o Espírito Santo) e ao mesmo
tempo a união dessa diversidade, mediante a comunhão dos Diversos pela qual
Eles estão uns nos outros, com os outros, pelos outros e para os outros. A
Trindade não é excogitada para responder à problemática humana. Ela é revelação
de Deus assim como é, como Pai, Filho e Espírito Santo em eterna correlação,
interpenetração, amor e comunhão, com o que são um só Deus. Porque ‘Deus é
trino’ significa a união da diversidade.
Se Deus fosse um só, haveria a solidão e a
concentração na unidade e na unicidade. Se Deus fosse dois, uma díade (Pai e
Filho somente), haveria a separação (um é distinto do outro) e a exclusão (um
não é o outro). Mas Deus é três, uma Trindade. O três evita a solidão, supera a
separação e ultrapassa a exclusão. A Trindade permite a identidade (o Pai), a
diferença da identidade (o Filho) e a diferença da diferença (o Espírito
Santo). A Trindade impede um frente-a-frente do Pai e do Filho, numa
contemplação ‘narcisista’. A terceira figura é o diferente, o aberto, a
comunhão. A Trindade é inclusiva pois une o que separava e excluía (Pai e
Filho). O uno e o múltiplo, a unidade e a diversidade se encontram na Trindade
como que circunscritos e reunidos. O três aqui significa menos o número
matemático do que a afirmação de que sob o nome de Deus se verificam diferenças
que não se excluem, mas incluem, que não se opõem, mas se põem em comunhão; a
distinção é para a união. Por ser uma realidade aberta, este Deus trino inclui
também outras diferenças; assim o universo criado entra na comunhão divina.”
(Leonardo Boff)
“Vale aqui a frase que Leonardo Boff repete
em seus escritos cristológicos, ao falar de Jesus: “Tão humano assim, só pode
ser Deus mesmo”. Em Jesus se manifesta o excesso do humano, em cada ser humano
se revela algo de Jesus. Jesus realizou todas as possibilidades da humanidade,
enquanto nós realizamos algumas das possibilidades realizadas por Cristo.
Portanto, essa relação Jesus Cristo e a realidade humana se dá tanto no nível
do conhecimento como no da realização ontológica.”
“A face nova da secularização não se
manifestou no desaparecimento do sentimento religioso, mas antes num reforço. O
impacto negativo deu-se em relação ao lado institucional da religião. Em outras
palavras, modificou-se a função social da religião. Em vez de ser normativa da
vida social, é resposta a problemas, necessidades, anseios pessoais.
Privatizou-se.”
“O ensinamento oficial da Igreja, no concílio
Vaticano II, de modo especial na constituição pastoral Gaudium et spes, em vários sínodos, particularmente de 1971 e 1974,
em sua Doutrina Social e ainda nas Assembleias do Episcopado Latino-americano
desde Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007)
vem assumindo uma posição crítica no campo social, em nome da fé. A Igreja
denuncia as situações de injustiça e julga que sua missão implica a defesa e
promoção da dignidade e dos direitos fundamentais da pessoa humana. É
ministério seu promover os Direitos Humanos. Essa maneira genérica de falar, ao
ser concretizada, necessariamente acarreta consequências políticas. Pois a
violação dos Direitos Humanos está intimamente ligada aos modelos econômicos e
políticos, propostos pelos Estados. A Igreja não compreende hoje sua missão a
não ser em relação a esse novo tipo de ação. Envolve atitudes políticas, que
podem, a seu contragosto, ser usadas até por movimentos que se opõem a muitos
de seus ideais. Isso não impede que ela assuma essas atitudes. Não é porque
outros possam abusar de uma constatação justa, que esta não deve ser feita. A
culpa não está no contestatário, mas naquele que gerou a situação de injustiça
que se contesta. É ele que propicia a existência de movimentos que poderão
aproveitar da presença e ação da Igreja. Nisso não se podem ter ilusões.
Papel incontornável da Igreja
Se a Igreja se subtraísse à tarefa da defesa
dos direitos humanos, da liberdade, da libertação do homem oprimido, ela
omitiria seu papel fundamental hoje na América Latina. Se aceitasse a tese da
ideologia liberal de que seu lugar é refugiar-se no mundo da interioridade, da
“sacristia”, ela manteria somente a casca de gestos e palavras cristãs. Pois só
há verdadeiro cristianismo e verdadeira Igreja onde há liberdade, justiça,
caridade.”
“Por sua pregação da mensagem evangélica, por
seus sacramentos, pela caridade de seus membros, a Igreja anuncia e acolhe o
dom do reino de Deus no coração da história humana. ‘A comunidade cristã
professa uma fé que opera pela caridade.’ Ela é e deve ser caridade eficaz,
ação, compromisso a serviço dos homens. A teologia é reflexão, atitude crítica.
Primeiro é o compromisso de caridade, de serviço. A teologia vem depois, é ato
segundo. Pode dizer-se da teologia o que da filosofia afirmava Hegel: só se
levanta ao crepúsculo.” (Gustavo Gutiérrez)
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