Editora: Unesp
ISBN: 978-85-7139-604-3
Tradução,
Apresentação e Notas: Jaimir Conte
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 160
Sinopse: História
natural da religião é uma profunda reflexão sobre os princípios que dão
origem à crença original e como o contexto histórico, cultural e social influencia
e é influenciado pelas disposições morais e filosóficas do ser humano. O
percurso de Hume leva ao entendimento de que “o bem e o mal se misturam e se
confundem universalmente, assim como a felicidade e a miséria, a sabedoria e a
loucura, a virtude e o vício”. Por esse ângulo, a religião estaria associada a
princípios sublimes, ao mesmo tempo que dá ensejo a práticas as mais vis. Uma
conclusão audaz para a sua época e dramaticamente corroborada pelo cenário
contemporâneo.
“Parece certo que, de acordo com o progresso
natural do pensamento humano, a multidão ignorante deve, num primeiro momento,
nutrir uma noção vulgar e familiar dos poderes superiores antes de ampliar sua
concepção para aquele ser perfeito, que conferiu ordem a todo o plano da
natureza. Seria tão razoável imaginar que os homens habitaram palácios antes de
choças e cabanas, ou que estudaram geometria antes de agricultura, como afirmar
que conceberam a divindade sob a forma de puro espírito, onisciente, onipotente
e onipresente, antes de concebê-la como um ser poderoso, ainda que limitado,
dotado de paixões e apetites humanos, de membros e órgãos. O espírito se eleva
gradualmente do inferior para o superior: por abstração, forma, a partir do
imperfeito, uma ideia da perfeição, e lentamente, distinguindo as partes mais
nobres de sua própria constituição das mais grosseiras, aprende a atribuir à
sua divindade somente as primeiras, as mais elevadas e puras. Nada poderia
interromper esse progresso natural do pensamento, exceto um argumento evidente
e invencível, que pudesse conduzir imediatamente o espírito aos genuínos
princípios do monoteísmo, fazendo-o transpor, num salto, o amplo espaço
intermediário que separa a natureza humana da natureza divina. Mas ainda que eu
reconhecesse que a ordem e o plano do universo, quando cuidadosamente examinados,
fornecem tal argumento, nunca poderia pensar, entretanto, que essa consideração
poderia ter uma influência sobre os homens quando estes formavam suas primeiras
noções rudimentares de religião.”
“Adão, levantando-se subitamente no Paraíso e
na plena perfeição de suas faculdades, ficaria naturalmente espantado, como o
representa Milton, com os magníficos fenômenos da natureza, com o céu, com o
ar, com a terra, com seus próprios órgãos e membros; e seria levado a perguntar
de onde nasceu esse maravilhoso espetáculo. Mas um animal selvagem e
necessitado (como é um homem na origem da sociedade), oprimido por tantas
necessidades e paixões, não tem tempo livre para admirar o aspecto regular da
natureza, ou de se perguntar a respeito da causa desses objetos, com os quais
se familiarizou pouco a pouco desde sua infância. Ao contrário, quanto mais
regular e uniforme a natureza se mostra, ou seja, quanto mais perfeita ela é,
mais o homem se familiariza com ela e menos inclinado estará a sondá-la e
examiná-la. Um parto monstruoso desperta sua curiosidade e é considerado um
prodígio. Ele o desperta por causa da sua novidade e imediatamente o leva a
sentir medo, a fazer sacrifícios e a rezar. Mas um animal, com todos os seus
membros e órgãos perfeitos, é, para o homem, um espetáculo ordinário, não
produz nenhuma opinião ou sentimento religioso. Pergunte-lhe por que aquele
animal nasceu e ele lhe dirá que foi em razão da cópula de seus pais. E estes,
por quê? Por causa da cópula dos seus. Alguns graus de parentesco satisfazem
sua curiosidade e colocam os objetos a tal distância que ele os perde
inteiramente de vista. Não pensem que levantará a questão “de onde surgiu o
primeiro animal?”, muito menos qual é a origem de todo o sistema do universo ou
da harmonia de sua estrutura. Ou, se você lhe fizer semelhante pergunta, não
espere que ele ocupe sua mente preocupando-se com um assunto tão remoto,
desprovido de interesse e que ultrapassa em muito os limites de sua capacidade.
Além disso, se ao pensar no plano da natureza
os homens fossem inicialmente levados a acreditar num ser supremo, eles talvez
nunca pudessem abandonar essa crença a fim de abraçar o politeísmo; mas o mesmo
princípio da razão, que inicialmente produziu e difundiu entre os homens uma
opinião tão esplêndida, deve ser capaz, mais facilmente ainda, de preservá-la.
É bem mais difícil inventar e provar pela primeira vez uma doutrina do que
defendê-la e mantê-la.”
“Existe uma grande diferença entre os fatos
históricos e as opiniões especulativas; o conhecimento dos fatos históricos não
se propaga da mesma maneira que as opiniões especulativas. Um fato histórico, à
medida que é transmitido pela tradição oral a partir dos testemunhos oculares e
dos contemporâneos, é alterado em cada narração sucessiva, e pode, no final,
conservar apenas uma fraca semelhança – se conservar alguma – com a verdade
original, sobre a qual estava fundamentado. A frágil memória dos homens, seu
gosto pelo exagero, sua enorme desatenção – todos esses princípios, se não são
corrigidos pelos livros e escritos, deturpam rapidamente os relatos dos
acontecimentos históricos, nos quais os argumentos e raciocínios têm pouco ou
nenhum lugar, nem sequer podem evocar a verdade que um dia escapou a essas
narrativas. E, assim, imagina-se que as fábulas de Hércules, de Teseu e de Baco
foram originalmente fundadas na história verdadeira, corrompida pela tradição.”
“Todas as coisas do universo são
evidentemente uniformes. Todas as coisas estão ajustadas a outras coisas. Um
desígnio predomina inteiramente em tudo. E essa uniformidade leva a mente a
reconhecer um só autor, pois a concepção de diferentes autores, sem qualquer
distinção de atributos ou operações, serve apenas para tornar a imaginação
perplexa, sem dar nenhuma satisfação ao entendimento.”
“De fato, descobrimos que todos os idólatras,
após ter dividido os domínios de suas divindades, recorreram àquele agente
invisível, que os mantém sob sua autoridade imediata e cuja alçada é
supervisionar aquele curso de ações, no qual a qualquer hora eles se empenham. Juno
é invocado nos casamentos; Lucina nos partos. Netuno recebe as preces dos
marinheiros; Marte, as dos guerreiros. Os agricultores cultivam seus campos sob
a proteção de Ceres; e os negociantes reconhecem a autoridade de Mercúrio.
Imagina-se que todo acontecimento natural é governado por algum ser
inteligente; e nada próspero ou adverso pode acontecer no decorrer da vida que
não possa ser assunto de preces particulares ou de ação de graças.
De fato, deve-se necessariamente reconhecer
que, para poder levar suas intenções para além do curso presente das coisas ou
para alguma inferência sobre o poder invisível e inteligente, os homens devem
ser influenciados por uma certa paixão que suscita seus pensamentos e reflexão;
por motivos que provocam sua investigação inicial. Mas a que paixão devemos
aqui recorrer para explicar um efeito de consequências tão importantes? Não é
certamente à curiosidade especulativa ou ao puro amor à verdade. Esse motivo é
demasiado refinado para um entendimento tão grosseiro; e levaria os homens a
investigações sobre o plano da natureza, um tema demasiado amplo e abrangente
para suas estreitas capacidades. As únicas paixões que podemos imaginar capazes
de agir sobre tais homens incultos são as paixões ordinárias da vida humana, a
ansiosa busca da felicidade, o temor de calamidades futuras, o medo da morte, a
sede de vingança, a fome e outras necessidades. Agitados por esperanças e medos
dessa natureza, e sobretudo pelos últimos, os homens examinam com uma trêmula
curiosidade o curso das causas futuras, e analisam os diversos e contraditórios
acontecimentos da vida humana. E nesse cenário desordenado, com os olhos ainda
mais desordenados e maravilhados, eles veem os primeiros sinais obscuros da
divindade.”
“Estamos colocados neste mundo como em um
grande teatro, onde as verdadeiras origens e causas de cada acontecimento nos
estão inteiramente ocultas. Não temos sabedoria suficiente para prever os males
que continuamente nos ameaçam, nem poder para evitá-los. Vivemos suspensos num
perpétuo equilíbrio entre a vida e a morte, a saúde e a doença, a saciedade e o
desejo, coisas que são distribuídas entre a espécie humana por causas secretas
e desconhecidas, e que atuam frequentemente de forma inesperada e, sempre, inexplicável.
Essas causas desconhecidas tornam-se, pois, o objeto constante de nossa
esperança e medo; e, enquanto nossas paixões são continuamente excitadas pela
ansiosa expectativa dos acontecimentos, empregamos também a imaginação, a fim
de formar uma ideia sobre esses poderes, dos quais dependemos totalmente. Se os
homens pudessem dissecar a natureza de acordo com a filosofia mais provável ou,
pelo menos, com a mais inteligível, descobririam que tais causas consistem
apenas na peculiar constituição e estrutura das partes diminutas de seus
próprios corpos e dos objetos exteriores, e que, por um mecanismo regular e
constante, produz todos os acontecimentos que tanto os inquietam. Mas essa
filosofia ultrapassa a compreensão da multidão ignorante, que pode apenas
conceber essas causas desconhecidas de uma maneira geral e confusa, embora sua
imaginação, que gira perpetuamente sobre o mesmo assunto, deva esforçar-se para
formar uma ideia particular e distinta acerca dessas causas. Quanto mais os
homens examinam essas causas desconhecidas e a incerteza de sua operação, menos
satisfação alcançam em suas investigações; e por mais relutantes, teriam
necessariamente abandonado um esforço tão árduo se não houvesse na natureza
humana uma inclinação que os levasse a um sistema capaz de lhes proporcionar
alguma satisfação.
Os homens têm uma tendência geral para
conceber todos os seres segundo sua própria imagem, e para transferir a todos
os objetos as qualidades com as quais estão mais familiarizados – e das quais
têm consciência mais íntima. Descobrimos formas de faces humanas na lua, e de
membros nas nuvens, e por uma inclinação natural, se não for corrigida pela
experiência ou pela reflexão, atribuímos maldade ou bondade a tudo o que nos
faz mal ou nos agrada. Daí o frequente emprego das prosopopeias na poesia, e a
sua beleza: árvores, montanhas e rios são personificados e atribui-se
sentimentos e paixões aos elementos inanimados da natureza. E embora essas
figuras e expressões poéticas não nos inspirem fé, podem servir, pelo menos,
para mostrar uma certa tendência da imaginação, sem a qual não poderiam ser nem
belas nem naturais. Nem sempre os deuses dos rios ou as hamadríadas* são
tomados por seres puramente poéticos e imaginários; eles podem, às vezes, fazer
parte das crenças autênticas do vulgo ignorante, ao mesmo tempo que cada bosque
ou campo é representado sob o domínio de um gênio particular ou de um poder
invisível que o habita e o protege. Nem mesmo os filósofos podem eximir-se
inteiramente dessa fraqueza natural, ao contrário, têm frequentemente atribuído
à matéria inanimada o horror ao vazio, simpatias, antipatias e outros
sentimentos de natureza humana. O absurdo não é menor quando levantamos os
olhos para o céu e, transferindo – como é bastante comum – as paixões e as
fraquezas humanas para a divindade, a representamos como invejosa e vingativa,
caprichosa e parcial, em suma, idêntica em todos os aspectos a um homem
perverso e insensato, exceto quanto ao seu poder e autoridade superiores. Não é
surpreendente, então, que o homem, absolutamente ignorante das causas, e ao
mesmo tempo tomado por tamanha ansiedade quanto ao seu futuro destino,
reconheça imediatamente que depende de poderes invisíveis, dotados de
sentimentos e de inteligência. As causas desconhecidas que ocupam sem cessar
seu pensamento, ao se apresentarem sempre sob o mesmo aspecto, são todas
consideradas do mesmo tipo ou espécie. E pouco falta para que atribuamos à
divindade pensamentos, raciocínio, paixões e, às vezes, até membros e formas
humanas, a fim de aproximá-la mais da nossa própria imagem.”
*: Ninfa dos bosques que nascia e morria com
a árvore de cuja guarda estava incumbida e da qual se julgava prisioneira.
“Qualquer um dos sentimentos humanos pode nos
levar à noção de um poder invisível e inteligente: a esperança, assim como o
medo; a gratidão, assim como a aflição. Mas se examinarmos nosso próprio
coração, ou se observarmos o que se passa ao nosso redor, descobriremos que os
homens ajoelham-se bem mais frequentemente por causa da melancolia do que por
causa de paixões agradáveis. Aceitamos facilmente a prosperidade como nosso
dever, e quase não nos perguntamos sobre sua causa ou sobre seu autor. Ela
produz a alegria, a atividade, o entusiasmo e um vívido gozo de todos os
prazeres sociais e sensuais. Enquanto permanecemos nesse estado de espírito,
temos pouco tempo ou inclinação para pensar em regiões desconhecidas e
invisíveis. Porém, todo acidente funesto nos desperta e nos incita a
investigações sobre os princípios de sua origem. Surgem apreensões em relação
ao futuro, e o espírito, em virtude da desconfiança, do terror e da melancolia,
recorre a todos os métodos suscetíveis de satisfazer os poderes secretos e
inteligentes, dos quais, pensamos nós, nosso destino depende inteiramente.
Não existe prática mais comum em todas as
teologias populares do que exibir as vantagens da aflição, levando os homens a
um verdadeiro sentimento religioso, reduzindo sua confiança e sua sensualidade,
que, nos tempos de prosperidade, fazem com que esqueçam a providência divina. E
essa prática não se limita apenas às religiões modernas. Os antigos também a
empregaram. “A fortuna”, diz um historiador grego*, “nunca foi generosa, sem
inveja, nunca concedeu liberalmente nem sem mistura uma felicidade perfeita aos
homens; mas a todas as suas dádivas sempre uniu algumas circunstâncias
desastrosas, a fim de castigar os homens e levá-los a venerar os deuses; pois
os homens, em meio a uma prosperidade contínua, tendem a negligenciá-los e
esquecê-los”. Que idade ou período da vida é o mais inclinado à superstição? O
mais fraco e o mais tímido. Que sexo? É preciso dar a mesma resposta. “As
mulheres”, diz Estrabão**, “são as líderes e modelos de todos os tipos de
superstições. Elas incitam os homens à devoção, às súplicas e à observância dos
dias religiosos. É raro encontrar um homem que viva afastado das mulheres, e
que, no entanto, seja dado a tais práticas”.”
*: Diodoro Siculus, livro III, cap.47, séc. I.
**: Lib. VII. 297 [Estrabão, Geografia, livro
VII, cap.3].
“Se considerarmos devidamente o assunto,
tornar-se-á evidente que os deuses de todos os politeístas não valem mais que
os duendes e as fadas de nossos ancestrais, e merecem bem pouca devoção ou
veneração.
Esses pretensos religiosos são, na realidade,
uma espécie de ateus supersticiosos que não reconhecem ser algum que
corresponda à nossa ideia da divindade. Nenhum primeiro princípio espiritual ou
intelectual; nenhum governo ou administração supremos; nenhum plano ou intenção
divinos na constituição do mundo.
Os chineses batem em seus ídolos quando suas
preces não são ouvidas. As divindades dos lapônios são todas as pedras enormes,
de formato extraordinário, que eles encontram. Os mitólogos egípcios, a fim de
explicar o culto aos animais, diziam que os deuses, perseguidos pela violência
dos homens mortais, seus inimigos, tinham sido outrora obrigados a disfarçar-se
sob a forma de bestas. Os caunis, um povo da Ásia Menor, decidiram não admitir
entre eles qualquer deus estrangeiro; eles reuniam-se e armavam-se
completamente em certos períodos regulares e, dando golpes no ar com suas
lanças, avançavam até suas fronteiras, a fim de, diziam eles, expulsar as
divindades estrangeiras. “Nem mesmo os deuses imortais”, diziam algumas nações
germânicas a César, “estão à altura dos suecos”.
Em Homero, Dione diz a Vênus ferida por
Diomedes: “Muitos males, muitos males, minha filha, os deuses têm infligido aos
homens; e, em troca, muitos males os homens têm infligido aos deuses”. Não
precisamos mais que abrir um autor clássico para encontrar essas representações
grosseiras das divindades. E Longino observa, com razão, que tais ideias da
natureza divina, se tomadas literalmente, encerram um verdadeiro ateísmo. (...)
Os lacedemônios, diz Xenofonte, sempre faziam
seus pedidos, durante a guerra, logo de manhã cedo, a fim de se anteciparem aos
seus inimigos e, ao ser os primeiros a rezar, engajar antecipadamente os deuses
a seu favor. Podemos concluir, a partir de Sêneca, que era comum nos templos
que os devotos usassem sua influência com o bedel ou sacristão de maneira que
arrumassem um lugar para sentar próximo à imagem da divindade, a fim de ser mais
bem ouvidos por esta em suas preces e pedidos. Os tírios, quando sitiados por
Alexandre, lançaram algemas sobre a estátua de Hércules com o intuito de
impedir que este deus passasse para o lado inimigo. Augusto, após ter perdido
sua frota duas vezes por causa das tempestades, proibiu que Netuno fosse
carregado em procissão com os outros deuses; e imaginou que se tinha vingado
suficientemente através de tal expediente. Após a morte de Germânico, as
pessoas ficaram tão enfurecidas contra seus deuses que os apedrejaram nos
templos e renunciaram abertamente a toda devoção a eles.
Nunca entra na imaginação de um politeísta ou
idólatra atribuir a esses seres imperfeitos a origem e a constituição do
universo. Hesíodo, cujos escritos, ao lado dos de Homero, contêm o sistema
canônico dos céus; Hesíodo, eu dizia, supõe que os deuses e os homens foram
engendrados uns e outros pelos poderes desconhecidos da natureza. E do início
ao fim de toda a teogonia desse autor, Pandora é o único exemplo de uma criação
ou de uma produção voluntária – e ela também foi criada pelos deuses por
simples despeito a Prometeu, que tinha dado aos homens o fogo roubado das
regiões celestiais. Na verdade, os antigos mitólogos parecem, do começo ao fim,
ter antes abraçado a ideia da geração que a da criação ou formação e, a partir
disso, explicado a origem deste universo.”
“Esses são, pois, os princípios gerais do
politeísmo, fundamentados na natureza humana e que não dependem em nada – ou em
quase nada – do capricho ou do acaso. Como as causas que provocam felicidade ou
desgraça são, em geral, muito pouco conhecidas e bastante incertas, nossos
ansiosos esforços tentam alcançar delas uma ideia determinada, e não encontram
melhor meio do que representá-las como agentes dotados de inteligência e de
vontade semelhantes às nossas, salvo pelo seu poder e sabedoria um pouco
superiores. A influência limitada desses agentes, e sua fraqueza muito próxima
da fraqueza humana, introduz várias repartições e divisões de sua autoridade,
e, desse modo, dá nascimento à alegoria. Os mesmos princípios divinizam, como é
natural, aqueles mortais que são superiores em força, coragem ou sabedoria, e
originam a veneração dos heróis, com as fabulosas histórias e as tradições
mitológicas, em todas as suas formas caóticas e extravagantes. E como uma
inteligência espiritual e invisível é um objeto muito sutil para a compreensão
comum, os homens naturalmente a vinculam a certas representações sensíveis, bem
como a partes mais visíveis da natureza ou a estátuas, imagens e pinturas que
uma época mais refinada forja de suas divindades.”
““Pouca filosofia”, diz lorde Bacon, “torna
os homens ateus; muita, reconcilia-os com a religião”. Pois o homem, tendo
aprendido através de preconceitos supersticiosos a dar importância a algo
falso, quando isso lhe falta e ele descobre, ao refletir um pouco, que o curso
da natureza é regular e uniforme, toda sua fé cambaleia e desmorona. Mas quando
chega a aprender, por meio de uma reflexão mais profunda, que precisamente tal
regularidade e uniformidade constitui a prova mais clara da existência de um
desígnio e de uma inteligência suprema, volta àquela crença que tinha
abandonado e pode, agora, estabelecê-la sobre fundamentos mais firmes e
duráveis.”
“O assassinato ilegítimo de um homem por um
tirano é mais pernicioso que a morte de mil pela peste, pela fome ou por
qualquer outra calamidade.”
“A comparação entre o monoteísmo e a
idolatria nos permite fazer outras observações que também confirmarão a
observação comum de que a corrupção das melhores coisas engendra as piores.
A crença em um deus representado como
infinitamente superior aos homens, ainda que seja completamente justa, é
suscetível, quando acompanhada de terrores supersticiosos, de afundar o
espírito humano na submissão e na humilhação mais vil, e de representar as
virtudes monásticas da mortificação, da penitência, da humildade e do
sofrimento passivo como as únicas qualidades que são agradáveis a deus. Mas
quando concebemos os deuses como seres só um pouco superiores aos homens, e
tendo visto que muitos deles se elevaram dessa classe inferior, sentimo-nos
mais tranquilos em nosso trato com eles e até podemos, às vezes, sem impiedade,
aspirar a competir com os deuses e imitá-los. Originam-se assim a atividade, a
vitalidade, a coragem, a magnanimidade, o amor à liberdade e todas as virtudes
que engrandecem um povo.
Os heróis no paganismo correspondem
exatamente aos santos no catolicismo romano e aos santos dervixes na religião maometana.
O lugar de Hércules, Teseu, Heitor e Rômulo está agora ocupado por São
Domingos, São Francisco, Santo Antônio e São Benedito. Em vez da destruição dos
monstros, da luta contra os tiranos e da defesa da pátria, flagelos e jejuns,
covardia e humildade, submissão abjeta e obediência servil tornaram-se, entre
os homens, os meios para obter as honras celestiais.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário