quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Tratado sobre a Tolerância – Voltaire

Editora: L&PM
ISBN: 978-85-2541-801-2
Tradução: William Lagos
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 128

“Ninguém mais teme na Holanda que as afirmações de um Gomar sobre a predestinação façam decapitar o grande pensionário, o presidente do conselho de ministros. Não se teme mais em Londres que as querelas entre os presbiterianos e os episcopais por causa da liturgia ou de uma sobrepeliz acabem por derramar o sangue de um rei no cadafalso. A Irlanda povoada e enriquecida não verá mais seus cidadãos católicos sacrificarem a Deus durante dois meses seus cidadãos protestantes, enterrá-los vivos, pendurar mães em forcas e amarrar as meninas ao pescoço de suas mães para vê-las morrerem juntas; abrir os ventres das grávidas, arrancar dali os fetos semiformados e lançá-los aos porcos e cães para serem devorados; colocar punhais nas mãos de prisioneiros sufocados no garrote e empurrar seus braços contra o peito de suas esposas, de seus pais, de suas mães, de suas filhas, imaginando que assim os tornariam mutuamente parricidas e os condenariam todos ao inferno ao mesmo tempo em que exterminavam a todos. Esse foi o relato de Rapin-Thoiras, que foi oficial na Irlanda e quase contemporâneo desses fatos; é o que registram todos os anais, todas as histórias da Inglaterra, ações que, sem a menor dúvida, jamais serão imitadas. A filosofia, unicamente a filosofia, irmã da religião, desarmou as mãos que a superstição havia ensanguentado por tanto tempo; e o espírito humano, ao despertar de sua embriaguez, assombrou-se ante os excessos a que o havia lançado o fanatismo.
Nós mesmos temos na França uma província opulenta em que o luteranismo é mais forte do que o catolicismo. A Universidade da Alsácia é controlada por luteranos; eles ocupam parte dos cargos municipais; jamais a menor disputa religiosa perturbou o repouso dessa província desde que ela passou a nos pertencer. Por quê? É porque nela ninguém foi perseguido. Quando não se busca magoar os corações, todos os corações estão a nosso favor.”


“O melhor método de diminuir o número dos maníacos, se é que existe, é o de deixar essa doença do espírito sob o controle da razão, que esclarece aos homens lentamente, mas de maneira infalível. A razão é doce, é humana, inspira a indulgência, abafa a discórdia, fortalece a virtude, torna agradável a obediência às leis, mais ainda que a força pode obrigar a cumpri-las. E não se deverá levar em conta o ridículo que todas as pessoas sensatas atribuem hoje aos excessos religiosos? Esse ridículo é uma poderosa barreira contra as extravagâncias de todos os sectários.”


“Direito natural é aquele que a natureza indica a todos os homens. Você cria um filho, ele lhe deve respeito na qualidade de seu pai e reconhecimento na qualidade de seu benfeitor. Você tem direito aos produtos da terra que cultivou com suas próprias mãos. Você fez ou recebeu uma promessa; ela deve ser cumprida.
O direito humano não pode ser fundamentado em nenhum caso senão sobre esse direito da natureza; e o grande princípio, o princípio universal de um e do outro, é o mesmo em toda a terra: “Não faças aos outros o que não queres que te façam”. Ora, não se percebe como, segundo esse princípio, um homem poderia dizer a outro: “Crê no que eu creio e não no que não podes crer; caso contrário, morrerás”. É isso que se diz em Portugal, na Espanha ou em Goa. Atualmente, em alguns outros países, prefere-se dizer: “Crê, ou te odiarei; crê, ou te farei todo o mal que estiver a meu alcance; monstro, se não tens minha religião, então não tens religião nenhuma; terás de ser um motivo de horror para teus vizinhos, tua cidade e tua província”.
Se fosse o direito humano que nos levasse a nos conduzirmos dessa maneira, seria necessário que os japoneses detestassem os chineses, que, por sua vez, execrariam os siameses; estes perseguiriam os habitantes do Ganges, que se lançariam contra os moradores do Indo; um mongol arrancaria o coração do primeiro malabar que encontrasse; os malabares poderiam matar os persas, que poderiam massacrar os turcos: e todos juntos se lançariam contra os cristãos, se bem que estes vêm de fato devorando uns aos outros há muito tempo.
O direito da intolerância é, portanto, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, sendo bem mais horrível também, porque os tigres dilaceram suas presas para comer, enquanto nós nos exterminamos por causa de alguns parágrafos.”


“Se fosse possível encontrar alguém suficientemente desprovido de boa-fé ou fanático o bastante para me dizer aqui: “Por que você quer revelar nossos erros e nossas faltas? Por que deseja destruir nossos falsos milagres e nossas falsas lendas? Eles servem de alimento para a piedade de muitas pessoas; há erros necessários; não se arranca do corpo uma úlcera crônica, porque isso acarretaria a destruição do próprio corpo”, eis o que eu lhe responderia:
Todos esses falsos milagres com os quais vocês abalam a fé devida aos verdadeiros, todas essas lendas absurdas que acrescentais às verdades do Evangelho só servem para extinguir a religião dentro dos corações; muitas pessoas que desejam se instruir e que não têm tempo para se instruir o suficiente dizem: “Os catequizadores de minha religião me enganaram, portanto a religião não existe; é melhor jogar-se nos braços da natureza que nas garras do erro; prefiro depender da lei natural a depender das invenções dos homens”. Outros têm a infelicidade de ir ainda mais longe: percebem que usaram imposturas para lhes pôr um freio e não querem mais saber sequer do freio da verdade; inclinam-se para o ateísmo; tornam-se depravados porque os outros foram trapaceiros e cruéis.
Essas são certamente as consequências de todas as fraudes pias e de todas as superstições.”


“Quanto mais a religião cristã é divina, tanto menos pertence ao homem dirigi-la: se foi Deus que a fez, Deus a sustentará sem a nossa ajuda.”


“Evitemos procurar descobrir aqui por que Deus substituiu a lei que havia dado a Moisés por uma lei nova, ou por que ele havia mandado Moisés fazer muito mais coisas do que ordenara ao patriarca Abraão e por que Abraão tivera de fazer muito mais do que Noé. Parece que ele se digna a adaptar aos tempos e à população do gênero humano: trata-se de uma gradação paternal, mas esses abismos são profundos demais para nossa débil visão.”


“O espírito perseguidor, que abusa de tudo, busca ainda sua justificação na expulsão dos vendilhões do templo e na legião de demônios que foram expulsos do corpo de um possuído e enviados para os corpos de dois mil animais imundos. Mas será que não se vê que esses dois exemplos não são outra coisa senão uma justiça que Deus se digna a realizar por Si mesmo em castigo a uma contravenção da lei? Era uma falta de respeito para com a casa do Senhor transformar seu recinto em uma loja de comerciantes. Não importa que o sinédrio e os sacerdotes permitissem esse negócio para a comodidade dos sacrifícios: o Deus a quem se sacrificava poderia, sem dúvida, mesmo que disfarçado em figura humana, impedir tal profanação; ele poderia até mesmo punir os que introduziam na região rebanhos inteiros de animais proibidos por uma lei que ele mesmo se dignava a observar. Esses exemplos não têm o menor relacionamento com perseguições motivadas por dogmas. É necessário que o espírito de intolerância seja apoiado sobre razões muito más, uma vez que busca em toda parte os pretextos mais vãos.
Quase todo o restante das palavras e das ações de Jesus Cristo prega a doçura, a paciência e a indulgência. É o pai de família que recebe o filho pródigo; é o operário contratado na última hora que recebe o mesmo que os outros; é o samaritano caridoso; ele mesmo justifica seus discípulos por não jejuar; ele perdoa a pecadora; ele se contenta em recomendar à mulher adúltera que passe a ser fiel; ele se digna mesmo a condescender à alegria inocente dos convivas de Caná que, já estando encharcados de vinho, ainda pedem mais; ele se dispõe a fazer um milagre em seu favor e transforma água em vinho para eles.
Ele não se enfurece sequer contra Judas, que o deve trair; ele ordena a Pedro que jamais se sirva da espada; ele repreende os filhos de Zebedeu que, a exemplo de Elias, queriam fazer descer o fogo dos céus sobre uma aldeia onde lhes haviam recusado alojamento.
Finalmente, ele morre vítima da inveja. Se ousarmos comparar o sagrado com o profano e um Deus com um homem, sua morte, humanamente falando, tem muitos elementos em comum com a de Sócrates. O filósofo grego pereceu pelo ódio dos sofistas, dos sacerdotes e dos principais do povo; o legislador dos cristãos sucumbiu sob o ódio dos escribas, dos fariseus e dos sacerdotes. Sócrates podia ter evitado a morte, mas não o quis; Jesus Cristo ofereceu-se voluntariamente. O filósofo grego não somente perdoou a seus caluniadores e a seus juízes iníquos, mas também lhes pediu que tratassem um dia seus próprios filhos como estavam tratando a si mesmo, se eles alcançassem a felicidade de merecer seu ódio pelos mesmos motivos que ele; o legislador dos cristãos, infinitamente superior, rogou a Seu Pai que perdoasse Seus inimigos.
Se Jesus Cristo pareceu temer a morte, se a angústia que sentiu foi tão extrema que Seu suor se misturou com sangue, o que é um sintoma extremamente violento e muito raro, é porque ele se dignou a se rebaixar à plenitude da fraqueza do corpo humano de que estava revestido. Seu corpo tremia, mas Sua alma permanecia inabalável; ele nos ensinou que a verdadeira força e a verdadeira grandeza consistem em suportar os males sob os quais nossa natureza sucumbe. Existe extrema coragem em correr para a morte quando mais se a teme.
Sócrates havia tratado os sofistas de ignorantes e demonstrado que usavam de má-fé; Jesus, usando de seus direitos divinos, tratou os escribas e fariseus de hipócritas, insensatos, cegos, malfeitores, serpentes, raça de víboras.”


“É a tolerância ou a intolerância que provém do direito divino? Se quereis vos assemelhar a Jesus Cristo, sede mártires, e não carrascos.”


“Para que um governo não tenha o direito de punir os erros dos homens, é necessário que esses erros não sejam crimes; os erros somente são crimes quando perturbam a sociedade; eles perturbam a sociedade desde que inspirem fanatismos: é preciso, portanto, que os homens comecem por deixar de ser fanáticos a fim de merecer a tolerância.”


“Em qualquer lugar em que houver uma sociedade estabelecida, uma religião é necessária; as leis reprimem os crimes conhecidos, enquanto a religião se encarrega dos crimes secretos.”


“A superstição está para a religião na mesma proporção em que a astrologia está para a astronomia; é a filha abobalhada de uma mãe muito sábia. Mas essas duas filhas durante muito tempo subjugaram toda a Terra.”


“Quanto menos dogmas, menos disputas; e quanto menos disputas, menos infelicidades; se isso não é verdade, então o errado sou eu.
A religião foi instituída para nos tornar felizes nesta vida e na outra. O que é necessário para ser feliz na vida que há de vir? Ser justo.
Para ser feliz na vida atual, tanto quanto o permite a miséria de nossa natureza humana, o que é necessário? Ser indulgente.
Seria o cúmulo da loucura pretender levar todos os homens a pensar de maneira uniforme no terreno da metafísica. Será muito mais fácil subjugar o universo inteiro pela força das armas do que dominar todos os espíritos de uma única cidade.”


“Quando a natureza faz ouvir de um lado sua voz doce e benfazeja, o fanatismo, esse inimigo da natureza, se põe a uivar; e tão logo a paz se apresenta aos homens, a intolerância forja suas armas.”


“A natureza diz a todos os homens: “fiz com que todos vocês nascessem fracos e ignorantes para vegetar durante alguns minutos sobre a terra e para fertilizá-la com seus cadáveres. Uma vez que são fracos, busquem socorro; já que são ignorantes, esclareçam-se e busquem apoio. Quando todos vocês tiverem a mesma opinião, coisa que certamente não há de acontecer nunca, caso só haja um único homem com opinião contrária, vocês deverão perdoá-lo: porque sou eu que o faço pensar como pensa. Eu dei a todos vocês braços para cultivarem a terra e uma minúscula luz de razão para conduzi-los; coloquei em seus corações um germe de compaixão para que todos vocês se ajudem mutuamente a suportar a vida. Não sufoquem esse germe, não o corrompam, compreendam que ele é divino e não substituam a voz da natureza pelos miseráveis furores de escolares.
“Sou apenas eu que ainda uno todos vocês, apesar de tudo, por meio de suas necessidades mútuas, mesmo no meio de suas guerras cruéis iniciadas tão levianamente, teatro eterno das maldades, dos riscos e das infelicidades. Sou apenas eu que dentro de uma nação interrompo as consequências funestas das divisões intermináveis entre a nobreza e a magistratura, entre essas duas classes e o sacerdócio, entre o burguês e o camponês. Eles ignoram todos os limites de seus direitos; porém, a despeito de si mesmos, todos escutam a longo prazo a minha voz, que lhes fala ao coração. Sou apenas eu que conservo a equidade nos tribunais em que, sem mim, tudo seria entregue à indecisão e aos caprichos, no meio de um amontoado confuso de leis feitas frequentemente ao acaso, para atender a uma necessidade passageira, diferentes de província para província, de cidade para cidade e quase sempre apresentando contradições entre si até no mesmo local. Sou apenas eu que posso inspirar a justiça, quando as leis apenas inspiram as chicanas. Aquele que me escuta julga sempre bem; aquele que não busca senão conciliar as opiniões que se contradizem é aquele que se desorienta.
“Existe um edifício imenso cujos alicerces eu lancei com minhas próprias mãos; era sólido e simples, todos os homens podiam nele entrar em segurança; contudo, quiseram acrescentar-lhe os ornamentos mais bizarros, mais grosseiros e mais inúteis; agora o edifício cai em ruínas por todos os lados; os homens pegam suas pedras e as jogam nas cabeças uns dos outros; eu lhes grito: Parai, abandonai esses escombros funestos que são o resultado de vossas próprias obras e vinde morar comigo em paz nesse edifício inquebrantável que é o meu”.”




“Existe um outro dever, o da benevolência, que é mais raramente satisfeito pelos tribunais, que parecem acreditar que foram criados para ser somente justos.”

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