Editora: Unesp
ISBN: 978-85-7139-604-3
Tradução,
Apresentação e Notas: Jaimir Conte
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 160
“Os homens não param de se olhar, e não há
meio nenhum de lhes fazer entrar na cabeça que o turbante de um africano não é
uma moda nem melhor nem pior que a do capuz de um europeu. “É um homem
honesto”, dizia o príncipe de Salé, ao falar de Ruyter. “É uma lástima que ele
seja cristão”.
Suponhamos que um professor da Sorbonne
pergunte a um eclesiástico de Saís: “Como podeis adorar alhos e cebolas?”. “Se
nós os adoramos”, responde este último, “pelo menos não os comemos ao mesmo
tempo (como a hóstia). Mas que estranhos objetos de adoração são os gatos e os
macacos!”, diz o erudito doutor. “Eles são pelo menos tão bons quanto as
relíquias ou os ossos podres dos mártires”, responde nosso antagonista, que não
é menos sábio. “Não sois louco”, insiste o católico, “a ponto de preferir
cortar a garganta de alguém em vez de cortar um repolho ou um pepino?” “Sim”,
responde o pagão, “reconheço, se confessásseis que são ainda mais loucos os que
disputam sobre a preferência dentre livros de sofismas, que todos reunidos não
valem um repolho ou um pepino”.
Todo observador imparcial (embora, infelizmente,
existam poucos observadores imparciais) julgará facilmente que, se para
estabelecer um sistema popular bastaria mostrar os absurdos de outros sistemas,
todo adepto de qualquer superstição poderia justificar seu apego cego e
fanático aos princípios nos quais foi educado. Mas na falta de um conhecimento
tão amplo sobre o qual fundar essa confiança (e talvez seja melhor não tê-lo),
não falta zelo religioso e fé suficientes entre os homens. Diodoro De Sicília
oferece a esse respeito um exemplo notável, do qual ele mesmo foi testemunha
ocular. No tempo em que o nome romano inspirava o máximo terror no Egito, todo
o povo levantou-se com a máxima fúria contra um soldado legionário que, sem
querer, se tornou culpado de cometer o sacrilégio ímpio de matar um gato; e
todos os esforços do príncipe foram incapazes de salvá-lo. O senado e o povo de
Roma, estou persuadido, não teriam se mostrado, nessa época, tão suscetíveis em
relação às suas divindades nacionais. Pouco tempo depois, eles votaram
abertamente em Augusto para um lugar nas casas celestiais; e teriam destronado
todas as divindades do céu por sua causa, caso ele tivesse dado a impressão de
querer isso. “Presens divus habebitur
Augustus”, diz Horácio. Isso é muito
importante. E a mesma circunstância não foi considerada completamente
indiferente em outras nações e em outras épocas.
Apesar da santidade de nossa religião
sagrada, diz Cícero, nenhum crime é mais comum entre nós do que o sacrilégio.
Mas nunca se ouviu dizer que um egípcio violou o templo de um gato, de um íbis
ou de um crocodilo? Não existe tortura nenhuma, diz o mesmo autor em outra
parte, à qual um egípcio não se submeteria em vez de ferir um íbis, uma
serpente, um gato, um cão ou um crocodilo. Assim, é estritamente verdadeiro o
que Dryden observa:
Qualquer que seja a descendência de sua
divindade, de um tronco, de uma pedra, ou de outro objeto familiar, seus servos
são tão apaixonados na sua defesa, como se ela tivesse nascido do ouro
fundido.”
“Podemos observar que, apesar do caráter
dogmático e imperioso de toda superstição, a convicção dos homens religiosos é,
em todas as épocas, mais fingida que real, e apenas raramente e em certa medida
se aproxima a firme crença e a firme convicção que nos governa nos assuntos
comuns da vida. Os homens não ousam confessar, nem mesmo no seu íntimo, as
dúvidas que os assaltam sobre essas questões: ostentam uma fé sem reservas e
dissimulam ante si mesmos sua real incredulidade, por meio das mais categóricas
afirmações e do mais absoluto fanatismo. Mas a natureza é mais forte que seus
esforços e não permite que a luz obscura e pálida, surgida nessas sombrias
regiões, iguale-se às impressões vívidas produzidas pelo senso comum e pela
experiência. A habitual conduta dos homens contradiz suas próprias palavras e mostra
que seu assentimento nessas questões é uma operação inexplicável da mente,
situada entre a incredulidade e a convicção, mas que está muito mais próxima da
primeira que da segunda.”
“Mas a fim de mostrar mais claramente que é
possível que uma religião represente a divindade sob aspectos ainda mais
imorais e desagradáveis do que aqueles sob os quais os antigos pintavam seus
deuses, citaremos uma longa passagem* de um autor de gosto e imaginação, que
sem dúvida não foi um inimigo do cristianismo. Trata-se do cavalheiro Ramsay,
escritor que tinha uma tendência bastante louvável para a ortodoxia. Sua razão
não via nenhum problema mesmo nas doutrinas que, segundo os livres pensadores,
mais levantam dificuldades: a trindade, a encarnação, a redenção; somente os
sentimentos de humanidade desse autor, os quais ele parece ter tido de sobra,
revoltavam-se contra as doutrinas da punição eterna e da predestinação. Ele se
exprime assim: “Que estranhas ideias” diz ele, “um filósofo indiano ou chinês
teria de nossa santa religião se julgasse a partir das exposições que dela nos
dão os livres pensadores modernos e os doutores fariseus de todas as seitas!”.
Segundo o sistema odioso e muito vulgar
desses zombadores incrédulos e desses escrevinhadores crédulos, “o Deus dos
judeus é um ser muito cruel, injusto, parcial e extravagante. Ele criou, há
cerca de seis mil anos, um homem e uma mulher, e os colocou num belo jardim da
Ásia, do qual nada resta. Esse jardim era repleto de todas as espécies de
árvores, de fontes e de flores. Ele permitiu que eles comessem todos os tipos
de frutos desse belo jardim, exceto os de uma árvore plantada no meio dele e
que tinha a virtude secreta de mantê-los numa saúde e vigor corporal e
espiritual eternos, de desenvolver seus poderes naturais e de torná-los sábios.
O diabo assumiu a forma de uma serpente e tentou a primeira mulher a comer
desse fruto proibido; ela seduziu seu marido a fazer o mesmo. Para punir essa
pequena curiosidade e esse desejo natural de vida e de conhecimento, Deus não somente
expulsou nossos primeiros pais do paraíso terrestre, mas condenou também toda a
posteridade aos sofrimentos temporais, e a maioria de seus descendentes ao mal
eterno, ainda que as almas dessas crianças inocentes não tenham mais relação
nenhuma com a de Adão do que com as de Nero e de Maomé, já que, segundo os
tolos escolásticos, os autores de fábulas e os mitólogos, todas as almas são
criadas puras e são insufladas imediatamente no corpo mortal a partir do
momento em que o feto é formado. Para aplicar esse decreto bárbaro e parcial da
predestinação e da danação, Deus abandonou todas as nações às trevas, à
idolatria e à superstição, sem qualquer conhecimento redentor ou graças
salutares, exceto uma nação que ele escolheu como sua nação particular. Essa
nação eleita era, entretanto, a mais estúpida, a mais ingrata, rebelde e
pérfida de todas. Após ter guardado, durante mais de quatro mil anos, a maior
parte da espécie num estado de reprovação, Deus mudou de repente de opinião, e
teve afeição por outras nações além da nação judaica. Ele enviou então ao mundo
seu filho único, sob forma humana, para que ele aplacasse sua ira, satisfizesse
sua justiça vingativa e morresse pelo perdão dos pecados. Poucas dessas nações,
entretanto, ouviram falar desse evangelho – e todas as demais, ainda que
colocadas numa insuperável ignorância, são condenadas sem exceção e remissão
possíveis. A maioria dos que ouviram falar a seu respeito mudou apenas algumas
noções especulativas acerca de Deus, bem como algumas formas visíveis de culto,
pois, em outros aspectos, o conjunto dos cristãos continuou tão corrompido
quanto o resto dos homens em seu comportamento moral; sim, muito mais perverso
e criminoso, uma vez que suas luzes eram maiores. À parte um pequeno número
eleito, todos os demais cristãos, como todos os pagãos, serão condenados para
sempre; o grande sacrifício oferecido a sua saúde permanecerá sem objeto e sem
efeito; Deus encontrará sempre suas delícias em seus tormentos e em suas
blasfêmias; e ainda que possa por um fiat
mudar seu coração, jamais, entretanto, eles se converterão nem poderão se
converter, porque nunca poderão apaziguá-lo nem se reconciliar com ele. É
verdade que tudo isso torna Deus odioso, na verdade um ser que detesta as almas
mais que as ama, um tirano cruel, sedento de vingança, um demônio impotente e
colérico, em vez de um pai todo-poderoso e benevolente dos espíritos.
Entretanto, tudo isso é um mistério. Há razões secretas para agir assim, razões
que nos são impenetráveis, e, ainda que pareça injusto e bárbaro, devemos, no
entanto, acreditar no contrário, pois o que para nós é uma injustiça, um crime,
uma crueldade e a maldade mais negra, para Ele é uma justiça, uma misericórdia
e bondade soberanas”. Foi assim que os livres pensadores incrédulos, os cristãos
judaizantes e os doutores fatalistas desfiguraram e desonraram os mistérios
sublimes de nossa santa fé; foi assim que confundiram a natureza do bem e do
mal, transformaram as paixões mais monstruosas em atributos divinos, e
superaram os pagãos em suas blasfêmias, atribuindo à natureza eterna, como
perfeições, o que constitui entre os homens os crimes mais odiosos. Os pagãos,
mais grosseiros, contentaram-se em divinizar a luxúria, o incesto e o
adultério, mas os doutores da predestinação divinizaram a crueldade, a cólera,
o furor, a vingança e todos os vícios mais negros.”
*: Princípios
filosóficos da religião natural e revelada do Cavalheiro Ramsay, Parte II,
p.401.
“Eis aqui uma espécie de contradição entre os
diferentes princípios da natureza humana que intervêm na religião. Nossos
terrores naturais produzem a noção de uma divindade diabólica e maligna, mas
nossa tendência para a adulação nos leva a reconhecer um ser perfeito e divino.
E a influência desses princípios opostos varia de acordo com as diferentes
situações do entendimento humano.
As nações bárbaras e ignorantes, como as
africanas e as indianas, e inclusive a japonesa, são incapazes de formar uma
ideia mais ampla do poder e do conhecimento, por isso cultuam um ser que eles
confessam ser perverso e detestável – ainda que mostrem, talvez, uma prudência
ao pronunciar esse julgamento em público ou no templo, onde, supõem, suas
censuras podem ser ouvidas.
Ideias tão rudes e tão imperfeitas sobre a
divindade são abraçadas por longo tempo por todos os idólatras; e podemos
afirmar, com segurança, que os próprios gregos nunca se libertaram totalmente
delas. Xenofonte observa, para a glória de Sócrates, que este filósofo não
apoiava a opinião vulgar que supunha que os deuses sabiam algumas coisas e
ignoravam outras. Ele sustentava que eles sabiam tudo o que era feito, dito, ou
mesmo pensado. Mas como esse era um ensinamento filosófico muito acima da
capacidade de seus contemporâneos, não devemos nos surpreender quando
Xenofonte, em seus livros e diálogos, censura muito abertamente as divindades
que eles adoravam em seus templos. Podemos observar que Heródoto,
particularmente, não tem nenhum escrúpulo em atribuir, em muitas passagens,
inveja aos deuses, um sentimento, dentre todos, mais adequado a uma natureza
perversa e diabólica. Os hinos pagãos, entretanto, cantados em cultos públicos,
nada mais continham que epítetos de louvor, ainda quando atribuíam aos deuses as
mais bárbaras e detestáveis ações. Quando o poeta Timóteo cantou um hino em
louvor a Diana, no qual enumerou, com os mais altos elogios, todas as ações e
todos os atributos dessa deusa cruel e caprichosa, um ouvinte lhe disse: “Que
tua filha se torne igual à divindade que tu celebras”.
Mas quanto mais os homens exaltam a ideia que
têm da divindade, mais aumenta a noção que eles têm de seu poder e
conhecimento, não a de sua bondade. Ao contrário, à medida que aumenta a
suposta extensão de sua ciência e de sua autoridade, o medo que naturalmente
sentem cresce, enquanto acreditam que nenhum segredo pode escondê-los de seu
exame minucioso, e que mesmo os recônditos mais íntimos de seus corações ficam
expostos à divindade. Eles devem, então, tomar cuidado para não formar
expressamente nenhum sentimento de censura ou de desaprovação. Não deve haver
senão aplausos, arrebatamentos, êxtases. E enquanto suas apreensões sombrias os
fazem atribuir à divindade modelos de conduta que entre as criaturas humanas
seriam vivamente censurados, devem ainda fingir louvar e admirar tal conduta no
objeto de suas orações religiosas. Assim, podemos afirmar com segurança que as
religiões populares são, na realidade, quando se considera as concepções de
seus adeptos mais ordinários, espécies de demonismo, e que, quanto mais ela é
exaltada em poder e conhecimento, menos é, evidentemente, rebaixada em sua
bondade e benevolência, sejam quais forem os epítetos de louvor que possam ser
aplicados à divindade por seus adoradores maravilhados. Entre os idólatras, as
palavras podem ser falsas e desmentir uma opinião secreta, mas, entre os
fanáticos mais exaltados, a própria opinião adquire uma espécie de falsidade e
desmente o sentimento interior. O coração detesta secretamente tais medidas, de
uma vingança cruel e implacável, mas o juízo não ousa senão pronunciá-las
perfeitas e adoráveis. E o sofrimento adicional desse conflito interior aumenta
todos os outros terrores, que assombram eternamente essas vítimas infelizes da
superstição.”
“É certo que, em toda religião, por mais
sublime que seja a definição verbal que ela ofereça de sua divindade, muitos
adeptos, talvez a maioria, procurarão, não obstante, obter o favor divino, não
por suas virtudes nem por seus bons costumes, únicas coisas que podem ser
agradáveis a um ser perfeito, senão por práticas frívolas, por um zelo
imoderado, por êxtases violentos ou pela crença em opiniões misteriosas e
absurdas.”
“Além disso, suponhamos, o que nunca
acontece, que se encontre uma religião popular que declare expressamente que só
a moralidade pode obter o favor divino; suponhamos também que uma ordem de
eclesiásticos seja instituída para inculcar essa opinião nos homens por meio
dos sermões diários, com toda a arte da persuasão; apesar disso, os preconceitos
das pessoas estão tão profundamente arraigados que, por necessidade de alguma
outra superstição, eles tornariam o comparecimento das pessoas a esses sermões
a parte essencial da religião, em vez de colocá-las no caminho da virtude e dos
bens morais.”
“Não é suficiente observar que em todos os
lugares as pessoas rebaixam suas divindades até torná-las semelhantes a si
mesmas, e que as consideram simplesmente uma espécie de criaturas humanas de
algum modo mais poderosas e inteligentes. Isso não eliminará a dificuldade,
pois não existe homem nenhum tão estúpido que não estime, a julgar por sua
razão natural, que a virtude e a honestidade são as qualidades mais valiosas
que uma pessoa pode possuir. Por que não atribuir o mesmo sentimento à
divindade? Por que não fazer com que toda religião, ou sua parte principal,
consista nessa realização?
Não é satisfatório dizer que a prática da
moralidade é mais difícil que a da superstição – e é, portanto, rejeitada.
(...) Toda virtude, quando nos reconciliamos com ela sem muito esforço, é
agradável. Toda superstição é quase sempre odiosa e opressiva.”
“É por isso que o maior dos crimes tem sido
considerado, em muitos casos, compatível com uma piedade e devoção
supersticiosas. É por isso, justamente, que se considera arriscado fazer
qualquer inferência a favor da moralidade de um homem, a partir do fervor ou do
rigor de sua prática religiosa, ainda que ele mesmo acredite na sinceridade
desta. Mais ainda: observou-se que as atrocidades mais negras têm sido mais
apropriadas para produzir terrores supersticiosos e para aumentar a paixão
religiosa. Bomilcar, tendo formado uma conspiração para assassinar de uma só
vez todo o senado de Cartago e violar as liberdades de seu país, perdeu a
oportunidade por causa de uma preocupação contínua com os presságios e com as
profecias. “Os que empreendem as ações mais criminosas e mais perigosas são em
geral os mais supersticiosos”, como oportunamente observa o historiador da
antiguidade Diodoro de Sicília.
A isso podemos acrescentar que, depois da
execução do crime, surgem remorsos e terrores secretos que não deixam nenhum
repouso ao espírito, mas o fazem recorrer a ritos e a cerimônias religiosas
como expiação de suas faltas. Tudo o que enfraquece ou perturba as disposições
interiores do homem favorece os interesses da superstição; e nada os destrói
mais do que uma virtude viril e constante, que nos preserva dos acidentes
desastrosos e melancólicos ou que nos ensina a suportá-los. Quando resplandece
essa serenidade de espírito, a divindade jamais aparece sob falsas aparências.
Porém, quando nos abandonamos às sugestões naturais e indisciplinadas de nossos
corações tímidos e ansiosos, atribuímos ao ser supremo, em virtude dos terrores
que nos agitam, toda espécie de barbárie; e, em razão dos métodos que adotamos
a fim de apaziguá-lo, todas as formas de arbitrariedade. Barbárie e
arbitrariedade: essas são as qualidades, ainda que dissimuladas com outros
nomes, que formam, como podemos observar universalmente, o caráter dominante da
divindade nas religiões populares. E até os sacerdotes, em vez de corrigir
essas ideias perversas dos homens, têm-se mostrado dispostos a alimentá-las e a
encorajá-las. Quanto mais monstruosa é a imagem da divindade, mais os homens se
tornam seus servidores dóceis e submissos, e quanto mais extravagantes são as
provas que ela exige para nos conceder sua graça, mais necessário se faz que
abandonemos nossa razão natural e nos entreguemos à condução e direção
espiritual dos sacerdotes. Pode-se admitir, assim, que os artifícios dos homens
agravam nossas enfermidades naturais e as loucuras desse tipo, mas que na
origem nunca as engendram. Elas se enraízam mais profundamente no espírito e
nascem das propriedades essenciais e universais da natureza humana.”
“Apesar de a estupidez dos homens bárbaros e
incultos ser tão grande que eles não conseguem ver um autor soberano nas mais
evidentes obras da natureza, obras que lhes são muito familiares, parece,
entretanto, que é quase impossível que alguém de bom entendimento rejeite tal
ideia, quando esta lhe é sugerida. Em cada coisa é evidente um propósito, uma
intenção, um desígnio; e quando ampliamos nossa compreensão a ponto de
contemplar os primeiros princípios desse sistema visível, devemos adotar, com a
mais forte convicção, a ideia de uma causa ou autor inteligente. As máximas
uniformes que vigoram em toda a estrutura do universo também nos levam,
naturalmente, se não necessariamente, a conceber essa inteligência como única e
indivisível, quando os preconceitos da educação não se opõem a uma teoria tão
razoável. Até as contradições da natureza, ao se revelarem em toda parte,
tornam-se provas de um plano coerente e estabelecem um projeto ou uma intenção
única, ainda que inexplicável e incompreensível.
O bem e o mal se misturam e se confundem
universalmente, da mesma forma que a felicidade e a miséria, a sabedoria e a
loucura, a virtude e o vício. Nada é puro nem inteiramente uniforme. Todas as
vantagens são acompanhadas de desvantagens. Uma compensação universal se impõe
em todas as condições do ser e da existência. E não nos é possível, por meio de
nossos mais quiméricos desejos, formar a ideia de um estado ou de uma situação
perfeitamente desejável. O elixir da vida, segundo a ficção do poeta, é sempre
uma mistura tirada das jarras que Júpiter tem em suas duas mãos, e, se um
cálice perfeitamente puro nos é apresentado, como nos diz ainda o poeta, ele é
vertido apenas da jarra colocada na mão esquerda.
Quanto mais excelente é um bem, do qual temos
uma pequena amostra, mais agudo é o mal que o acompanha; e encontramos poucas
exceções a essa lei uniforme da natureza. O espírito mais brilhante beira à
loucura; as mais altas efusões de alegria engendram a melancolia mais profunda;
os prazeres mais arrebatadores são seguidos da mais cruel lassidão e de
desgosto; as esperanças mais promissoras abrem caminho para as decepções mais
duras. E, em geral, nenhuma existência oferece tanta segurança (pois não é
preciso sonhar com a felicidade) quanto a existência temperada e moderada que
se atém, tanto quanto possível, a uma mediocridade e a uma espécie de
insensibilidade em todas as coisas.
Como o bem, o grande, o sublime, o encantador
encontram-se no mais alto grau nos princípios puros do monoteísmo, podemos
esperar, por analogia com a natureza, que o baixo, o absurdo, o mesquinho, o
terrificante sejam igualmente explorados nas ficções e quimeras religiosas.
A tendência universal para acreditar num
poder invisível e inteligente, se não é um instinto original, é pelo menos uma
coisa que geralmente acompanha a natureza humana e pode ser considerada uma
espécie de sinal ou marca que o artífice divino colocou sobre sua obra; e nada,
com certeza, pode elevar mais o homem do que ser assim eleito, entre todas as
outras partes da criação, para exibir a imagem ou a impressão do criador
universal. Mas levemos em consideração essa imagem como ela aparece nas
religiões populares do mundo. Como nossas representações desfiguram a
divindade! Como ela é rebaixada a um nível mais baixo do caráter que
naturalmente atribuiríamos na vida comum a um homem de senso e de virtude!
É um nobre privilégio da razão humana
alcançar o conhecimento do ser supremo e poder inferir, a partir das obras
visíveis da natureza, um princípio tão sublime como seu criador supremo. Mas
vejamos o reverso da medalha. Observemos a maioria das nações e épocas.
Examinemos os princípios religiosos que têm, de fato, vigorado no mundo.
Dificilmente nos persuadiremos de que eles são mais do que devaneios dos
homens. Ou talvez os consideraremos mais uma brincadeira de macacos com a forma
humana do que afirmações sérias, positivas e dogmáticas de um ser que se
vangloria com o nome de racional.
Ouçamos os protestos verbais de todos os
homens. Nada é tão certo quanto seus dogmas religiosos. Examinemos suas vidas.
Dificilmente pensaremos que eles têm a menor confiança a seu respeito.
O máximo e mais sincero zelo não nos dá
qualquer garantia contra a hipocrisia. A mais notória impiedade é acompanhada
de um temor e arrependimento secretos.
Não existe um absurdo teológico tão evidente
que não tenha sido adotado, um dia ou outro, por homens dotados do mais vasto e
mais refinado entendimento. Nenhum preceito religioso é tão rigoroso que não
tenha sido adotado pelo mais libidinoso e mais dissoluto dos homens.
A ignorância é a mãe da devoção. Essa é uma
máxima proverbial, confirmada pela experiência geral. Procuremos uma pessoa
inteiramente destituída de religião. Se a encontrarmos estaremos certos de que
ela está a poucos graus de distância dos animais.
O que há de mais puro do que certo grau de
moral incluído em certos sistemas teológicos? O que há de tão corrupto quanto
certas práticas às quais esses sistemas dão origem?
A crença na vida futura abre perspectivas
confortáveis que são arrebatadoras e agradáveis. Mas como esta desaparece
rapidamente quando surge o medo que a acompanha e que possui uma influência
mais firme e duradoura sobre o espírito humano!
É tudo uma incógnita, um enigma, um mistério
inexplicável. O único resultado de nossas investigações mais meticulosas sobre
esse assunto parece ser a dúvida, a incerteza e a suspensão do juízo. Mas tal é
a fraqueza da razão humana e tal é o irresistível contágio da opinião que
dificilmente poderíamos manter essa dúvida deliberada, se não ampliássemos
nossa visão e, opondo uma espécie de superstição à outra, as colocássemos em
disputa, enquanto de nossa parte, durante essa fúria e controvérsia, felizmente
escapássemos para as regiões calmas, ainda que obscuras, da filosofia.”