Editora: Penguin – Companhia das letras
ISBN: 978-85-63560-06-3
Tradução: Rosa Freire D’aguiar
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 616
“Os homens são tão
ligados à sua existência miserável que não há condição tão dura que não aceitem
para conservá-la. (...)
Tamerlão encobria
com uma tola humanidade a fantástica crueldade que exercia contra os leprosos,
mandando matar tantos quantos chegavam a seu conhecimento, para (dizia)
livrá-los da vida tão penosa que viviam. Pois não havia nenhum deles que não
preferisse ser três vezes leproso a não existir. E Antístenes, o estoico,
estando muito doente, exclamava: “Quem me livrará desses males?”. E Diógenes,
que fora vê-lo, ao apresentar-lhe uma faca dizendo: “Esta, se quiseres, e bem
depressa”, o outro replicou: “Não falo da vida, falo dos males”.”
“Não temas teu
último dia nem o desejes.” (Marcial, X, XLVII, 13).
“Todas as
tendências que nascem em nós sem razão são viciosas: é uma espécie de doença
que se deve combater.”
“Perguntava-se a
um lacedemônio quem o fizera viver saudável por tanto tempo: “a ignorância da
medicina”, respondeu. E o imperador Adriano gritava sem parar, ao morrer, que a
profusão de médicos o matara. Um mau lutador se tornou médico: “Coragem”,
disse-lhe Diógenes, “tens razão, agora jogarás à terra os que te jogaram
outrora”. Mas eles têm essa sorte, segundo Nícocles, de que o sol ilumina seus
êxitos e a terra esconde seus erros. E além disso têm um modo bem vantajoso de
se servirem de todo tipo de acontecimentos, pois o que a sorte, o que a
natureza ou qualquer outra causa alheia (cujo número é infinito) produz em nós
de bom e salutar é privilégio da medicina atribuir a si. Todos os felizes
êxitos que ocorrem com o paciente que está sob seu controle sempre se deve a
ela. As circunstâncias que me curaram, a mim, e que curam mil outros que não
chamam os médicos em seu socorro, são, em seus pacientes, por eles usurpadas.
(...)
Platão dizia bem a
propósito que só aos médicos cabia mentir em absoluta liberdade, já que nossa
salvação depende da vanidade e da falsidade de suas promessas. Esopo, autor de
raríssima excelência, e de quem poucas pessoas descobrem todas as belezas, é
engraçado ao representar-nos essa autoridade tirânica que os médicos usurpam
das pobres almas enfraquecidas e combalidas pela doença e pelo temor; pois
conta que um doente, sendo interrogado por seu médico sobre que efeito sentia
dos medicamentos que lhe dera, respondeu: “Suei muito”. “Isso é bom”, disse o
médico. Outra vez lhe perguntou como passara desde então: “Senti um frio
extremo”, disse, “e tremi muito”. “Isso é bom”, prosseguiu o médico. Na
terceira vez, perguntou-lhe de novo como se sentia: “Sinto-me”, disse, “inchar
e intumescer, como se fosse hidropisia”. “Isso é muito bom”, acrescentou o
médico. A um de seus domésticos que foi depois perguntar-lhe sobre seu estado,
respondeu: “Na verdade, meu amigo, de tanto ir bem estou morrendo”. (...)
Um médico se
vangloriava com Nícocles de que sua arte tinha grande poder: “De fato, sem a
menor dúvida, pois pode matar impunemente tantas pessoas”.
“Foi, parece-me,
Péricles que, tendo sido indagado como estava passando, disse: “Podeis julgar
por isto”, e mostrou os amuletos que prendera no pescoço e no braço. Queria
indicar que estava bastante doente já que chegara ao ponto de recorrer a coisas
tão vãs e deixar-se guarnecer daquele jeito. Não digo que um dia eu não possa
ser levado a essa ideia ridícula de confiar minha vida e minha saúde à mercê e
à orientação dos médicos; poderei cair nessa loucura, não posso responder por
minha firmeza futura; mas, então, se alguém indagar de mim como estou passando,
também poderei dizer, como Péricles: “Podeis julgar por isto”, mostrando minha
mão carregada de seis dracmas de opiato: será um sinal bastante evidente de uma
doença violenta e estarei com meu juízo completamente deteriorado. Se o pavor e
a intolerância com a dor ganharem isso de mim poderá se concluir por uma febre
bem violenta em minha alma.”
“Não detesto as
opiniões contrárias às minhas. Estou muito longe de me assustar ao ver a
discordância entre meus julgamentos e os dos outros e não me torno incompatível
com a sociedade dos homens por terem outra opinião e partido que não o meu. Ao
contrário, acho bem mais raro ver concordarem nossos temperamentos e nossos
desígnios. E nunca houve no mundo duas opiniões parecidas, como tampouco dois
pelos ou dois grãos. Sua qualidade mais universal é a diversidade.”
“Cada homem traz a
forma inteira da condição humana.”
“Nós,
principalmente, que vivemos uma vida interior que só está à mostra para nós,
devemos ter estabelecido um modelo interior que seja a pedra de toque de nossos
atos, pelo qual ora nos lisonjeamos, ora nos castigamos. Tenho minhas leis e
meu tribunal para julgar a mim mesmo, e a eles me dirijo mais que a outro
lugar. Restrinjo minhas ações em função dos outros, mas só as estendo em função
de mim. Só vós é que sabeis se sois covarde e cruel, ou leal e devotado: os
outros não vos veem, adivinham-vos por conjecturas incertas; veem não tanto
vossa natureza como vossa arte. Por isso, não confiais em sua sentença,
confiais na vossa.”
“Um homem pode ter
sido extraordinário no mundo e sua mulher e seu criado nele nada enxergarem de,
pelo menos, digno de nota. Poucos homens foram admirados por seus domésticos.
Ninguém foi profeta não só em sua casa mas em seu país, diz a experiência das
histórias.”
“O valor da alma
não consiste em ir alto, mas ir ordenadamente. Sua grandeza não se exerce na
grandeza mas na mediocridade. Assim como os que nos julgam e nos avaliam
internamente não fazem muito caso do brilho de nossas ações públicas e veem que
são apenas filetes e pingos de água limpa brotados de um fundo, afinal, lodoso
e pesado, assim também os que nos julgam por essa bela aparência externa
concluem o mesmo de nossa constituição interna, e não conseguem acoplar
faculdades ordinárias e semelhantes às suas com essas outras faculdades que os
espantam, tão distantes de seu alcance. Por isso damos aos demônios formas
selvagens.”
“Todo saber que
não se adapta à insipiência comum é insípido.”
“De resto,
impus-me dizer tudo o que ouso fazer, e até me desagrada ter pensamentos
impublicáveis. A pior de minhas ações ou qualidades não me parece tão feia como
acho feio e covarde não poder confessá-la. Todo mundo é discreto na confissão,
na ação é que deveríamos ser. A ousadia de cometer um erro é de certa forma
compensada e refreada pela ousadia de confessá-lo. Quem se obrigasse a tudo
dizer obrigar-se-ia a nada fazer do que é forçado a calar.”
“Quando Arquelau,
rei da Macedônia, passou por uma rua, alguém despejou-lhe água: os que
assistiam disseram que ele devia puni-lo. “É possível”, disse, “mas ele não
jogou água em mim, e sim naquele que pensava ser eu.” Sócrates disse a quem lhe
avisou que falavam mal dele: “De jeito nenhum. Não há nada de mim no que
dizem”. Quanto a mim, a quem me elogiasse por ser bom navegador, por ser tão
modesto ou tão casto, eu não deveria dizer muito obrigado. E da mesma forma, se
me chamassem de traidor, ladrão ou bêbado, eu me estimaria muito pouco
ofendido. Os que não se conhecem bem podem repastar-se de falsos elogios: não
eu, que me vejo e me procuro até nas entranhas, que bem sei o que me pertence.
Agrada-me ser menos elogiado, contanto que seja mais conhecido. Poderiam me ter
como um sábio, mas me atribuindo uma sabedoria que considero uma tolice.”
“Indagado sobre o
que era mais conveniente, tomar ou não tomar mulher, Sócrates respondeu:
“Qualquer dos dois que façamos nos arrependeremos”.”
“Não é por odiar a
superstição que me jogo incontinente na irreligião.”
“Os deuses, diz
Platão, forneceram-nos um membro desobediente e tirânico: que, como um animal
furioso, empreende, pela violência de seu apetite, tudo submeter a si. Da mesma
forma, proveram as mulheres de um animal glutão e ávido que, se lhe recusamos
alimentos no momento adequado, enlouquece, impaciente com a demora; e soprando
sua fúria nos corpos delas, entope-lhes os condutos e interrompe a respiração,
causando mil tipos de males: até que, tendo provado o fruto da sede comum, lhes
haja largamente regado e semeado o fundo do útero.”
“Admitamos a
verdade, não há entre nós quem não receie mais a vergonha que sente pelos
vícios de sua mulher que pelos seus; quem não se preocupe mais (admirável
caridade!) com a consciência de sua boa esposa que com a sua própria; que não
preferisse ser ladrão e sacrílego, e que sua mulher fosse assassina e herege, a
saber que ela não era mais casta que o marido. Iníqua avaliação dos vícios. Nós
e elas somos capazes de mil corrupções mais prejudiciais e desnaturadas do que
a lascívia. Mas praticamos e avaliamos os vícios, não segundo sua natureza e
sim segundo nosso interesse.”
“Parece-me que foi
um entendido quem disse que um bom casamento era feito entre uma mulher cega e
um marido surdo.”
“Nosso mundo acaba
de descobrir um outro (e quem nos responde se é o último de seus irmãos, já que
até agora os Demônios, as Sibilas e nós ignoramos este?), não menos vasto,
pleno e bem-dotado do que ele [a América]; todavia, tão novo e tão criança que
ainda lhe ensinam o seu á-bê-cê. Não faz cinquenta anos ele não conhecia as
letras, nem os pesos, nem as medidas, nem as roupas, nem o trigo, nem as
vinhas. Ainda estava todo nu, no colo, e só vivia dos recursos de sua mãe
nutriz. Se inferimos corretamente nosso fim, assim como aquele poeta inferiu a
juventude de seu século, este outro mundo apenas estará vindo à luz quando o
nosso sair dela. O universo cairá em paralisia: um de seus membros ficará
entrevado, o outro, vigoroso. Receio que tenhamos apressado muito fortemente
seu declínio e sua ruína por nosso contágio, e que lhe tenhamos vendido muito
caro nossas opiniões e nossas artes. Era um mundo criança: porém, não o
açoitamos nem o submetemos à nossa disciplina apenas pela virtude de nosso
valor e de nossas forças naturais, nem o conquistamos por nossa justiça e
bondade, nem o subjugamos por nossa magnanimidade. A maioria das respostas
deles e das negociações feitas com eles atestam que nada nos devem em natural
clareza de espírito e em pertinência. A espantosa magnificência das cidades de
Cuzco e México, e entre muitas coisas semelhantes o jardim daquele rei onde
todas as árvores, as frutas e todas as plantas, segundo a ordem e a grandeza
que ocupam num jardim, eram excelentemente figuradas em ouro, assim como o eram
em seu gabinete todos os animais que nasciam em seu Estado e em seus mares; e a
beleza de seus trabalhos em pedraria, plumas, algodão e em pintura mostram que
na indústria eles também não eram inferiores a nós. Mas quanto a devoção,
observância das leis, bondade, liberalidade, lealdade, franqueza, muito nos
valeu não termos tanto quanto eles: pois perderam-se por essa vantagem e
venderam-se e traíram a si mesmos. Quanto à audácia e à coragem, quanto à
firmeza, à constância, à resolução contra as dores e a fome e a morte, eu não
recearia em contrapor os exemplos que encontrasse entre eles e os mais famosos
exemplos dos antigos que guardamos nos anais de nosso mundo de cá. Pois quanto
aos que os subjugaram, que retirem os ardis e as artimanhas de que se serviram
para enganá-los, e o justo espanto que provocava naquelas nações ver chegar tão
inopinadamente pessoas barbudas, diferentes na língua, religião, na forma e na
aparência, de um lugar do mundo tão afastado e onde eles não sabiam que
houvesse qualquer habitação, montados sobre grandes monstros desconhecidos
confrontando aqueles que nunca tinham visto não só um cavalo mas nenhum animal
adestrado para carregar e transportar homem ou outra carga; homens guarnecidos
de uma pele reluzente e dura, de uma arma cortante e resplandecente;
confrontando os que pelo milagre do reflexo de um espelho ou de uma faca iam
trocando uma grande riqueza em ouro e em pérolas e que não tinham conhecimento
nem material com que, com todo o vagar, soubessem furar nosso aço;
acrescentem-se a isso os raios e trovões de nossos canhões e arcabuzes, capazes
de desorientar o próprio César, se hoje o surpreendessem tão inexperiente a
esse respeito, e opondo-se a povos nus, salvo ali onde havia chegado a invenção
de algum tecido de algodão; sem, na maioria, outras armas além de arcos,
pedras, porretes e escudos de madeira; povos surpreendidos por aquela aparência
de amizade e boa-fé, e com curiosidade de ver coisas estrangeiras e
desconhecidas: retire-se, digo, dos conquistadores essa disparidade e tirada
lhes será qualquer ocasião de tantas vitórias. Quando olho para esse ardor
indomável com que tantos milhares de homens, mulheres e crianças apresentam-se
e atiram-se tantas vezes aos perigos inevitáveis, para a defesa de seus deuses
e de sua liberdade: essa generosa obstinação em sofrer todos os extremos e as
dificuldades, e a morte, com mais gosto do que em se submeterem à dominação
daqueles por quem foram tão vergonhosamente iludidos: e alguns, ao serem pegos,
preferindo se deixar matar de fome e de jejum a aceitar víveres das mãos de
seus inimigos tão vilmente vitoriosas, prevejo que se os tivessem atacado de
igual para igual, tanto em armas como em experiência e em número, teria sido um
conflito tão perigoso, ou mais, que outra guerra que conhecemos. Por que não
caiu nas mãos de Alexandre, ou nas dos antigos gregos e romanos, uma tão nobre
conquista? E uma tão grande mutação e alteração de tantos impérios e povos, em
mãos que tivessem suavemente polido e desbravado o que ali havia de selvagem, e
tivessem fortalecido e fomentado as boas sementes que a natureza ali produzira,
mesclando não só ao cultivo das terras e ao ornamento das cidades as artes de
cá, conforme fossem necessárias, mas também mesclando as virtudes gregas e
romanas às originais do país? Que conserto teria sido, e que aperfeiçoamento
para toda a máquina deste mundo se os primeiros exemplos e comportamentos
nossos que se apresentaram no lado de lá tivessem convidado aqueles povos à
admiração e à imitação da virtude, e tivessem construído entre eles e nós uma
fraternal aliança e compreensão? Como teria sido fácil tirar proveito de almas
tão novas, tão famintas de aprendizado, tendo na maioria tão belas disposições
naturais? Ao contrário, nós nos servimos da ignorância e da inexperiência deles
para dobrá-los mais facilmente à traição, à luxúria, à avareza, e a todo tipo
de desumanidade e de crueldade, seguindo o exemplo e modelo de nossos costumes.
Quem jamais fixou em tal preço o serviço da mercancia e do tráfico? Tantas
cidades arrasadas, tantas nações exterminadas, tantos milhões de indivíduos
passados pelo fio da espada, e a mais rica e bela parte do mundo tumultuada
pela negociação das pérolas e da pimenta: ignóbeis vitórias! Nunca a ambição,
nunca as inimizades públicas impeliram os homens, uns contra os outros, a tão
horríveis hostilidades e calamidades tão miseráveis. Costeando o mar em busca
de suas minas, alguns espanhóis pisaram terra numa região fértil e amena, muito
habitada, e fizeram àquele povo suas advertências costumeiras: que eram pessoas
pacíficas, vindas em longuíssimas viagens, enviadas pelo rei de Castela, o
maior príncipe da terra habitável, a quem o papa, representando Deus na Terra,
dera o principado de todas as Índias. Que se eles quisessem lhe ser tributários
seriam muito bondosamente tratados: pediam-lhes víveres para sua alimentação e
ouro para a necessidade de algum remédio. Anunciavam-lhes, de resto, a crença
em um só Deus e a verdade de nossa religião, que os aconselhavam a aceitar, e a
isso acrescentando certas ameaças. A resposta foi esta: que quanto a serem
pacíficos, eles não tinham essa aparência, se é que o eram. Quanto ao rei
deles, já que estava pedindo devia ser indigente e necessitado; e aquele que
lhe fizera essa distribuição de terras era homem amante da dissensão, por ir
dar a um terceiro coisa que não era sua e metê-lo em contenda contra os antigos
possuidores. Quanto aos víveres, que lhes forneceriam; ouro, tinham pouco, e
que era coisa pela qual não tinham nenhuma estima, visto que era inútil para o
serviço de sua vida, a qual só se preocupavam em passar de modo feliz e
agradável: portanto, o que eles conseguissem encontrar, salvo o que era
empregado no serviço de seus deuses, que o tomassem sem medo. Quanto a um só
Deus, o discurso lhes agradara mas não queriam mudar de religião, tendo dela se
servido tão utilmente e por tanto tempo: e que só estavam acostumados a receber
conselho de seus amigos e conhecidos. Quanto às ameaças, era sinal de falta de
juízo ir ameaçando aqueles cuja natureza e recursos eram desconhecidos. Assim,
que se apressassem prontamente em sair de sua terra pois não estavam acostumados
a ver com bons olhos as cortesias e advertências de gente armada e estrangeira:
do contrário, fariam com eles o mesmo que com aqueles outros, e mostraram-lhes
as cabeças de uns homens justiçados em volta da cidade. Eis um exemplo do
balbucio dessa infância. Mas o certo é que os espanhóis nem se detiveram nem
fizeram ataques naquele lugar nem em vários outros onde não encontraram as
mercadorias que procuravam, quaisquer que fossem as outras vantagens que lá
houvesse: como provam meus Canibais.
Os dois mais poderosos monarcas daquele mundo de lá e talvez deste aqui, reis
de tantos reis, foram os últimos que eles expulsaram. O do Peru foi preso numa
batalha e posto a um resgate tão excessivo que ultrapassa tudo o que é crível,
mas que ele fielmente pagou: e tendo dado por sua conversação sinal de uma
coragem franca, livre e constante e de um entendimento claro e tranquilo, os
vencedores, depois de terem tirado 1 325 500 onças (37.577 quilos) de ouro,
além da prata e outras coisas que não montaram a menos (tanto assim que os
cavalos deles só andavam ferrados de ouro maciço), tiveram vontade de ver
também, à custa de qualquer traição que fosse, qual podia ser o resto dos
tesouros daquele rei e aproveitar-se livremente do que ele preservara.
Assacaram-lhe uma falsa acusação e uma falsa prova: que ele tramava fazer suas
províncias se sublevarem para reconquistar a liberdade. Com isso, por um belo
julgamento feito por aqueles mesmos que lhe tinham imputado essa traição,
condenaram-no a ser enforcado e estrangulado publicamente, tendo-o feito
remir-se do tormento de ser queimado vivo pelo batismo que lhe deram durante o
próprio suplício. Acontecimento horrível e inaudito, que ele suportou, porém,
sem se desmentir, nem por atitude nem por palavra, de forma e gravidade
verdadeiramente régias. E depois, para aplacar os povos espantados e
estarrecidos com coisa tão estranha, simularam um grande luto por sua morte e
ordenaram para ele suntuosos funerais. O outro, rei do México, tendo por muito
tempo defendido sua cidade sitiada e mostrado nesse cerco tudo o que podem
tanto a resistência como a perseverança, se algum dia príncipe e povo as
demonstraram; e tendo seu infortúnio o entregado vivo nas mãos dos inimigos,
com o compromisso de ser tratado como rei, de modo que na prisão ele nada
demonstrou de indigno desse título; e não encontrando eles, em seguida a essa
vitória, todo o ouro que tinham prometido a si mesmos, depois de tudo remexer e
revistar, começaram a buscar informações infligindo aos prisioneiros que mantinham
as mais acerbas torturas que conseguiram imaginar. Mas, nada tendo obtido, pois
encontraram coragens mais fortes que seus tormentos, chegaram no final a
tamanha raiva que, contra sua fé e contra qualquer direito das gentes,
condenaram à tortura o próprio rei e um dos principais senhores de sua corte,
em presença um do outro. Esse senhor, achando-se dominado pela dor, cercado de
braseiros ardentes, voltou no final os olhos lamentosos para seu amo, como para
lhe pedir perdão por não aguentar mais: o rei, cravando altiva e severamente os
olhos nele, como crítica à sua covardia e pusilanimidade, disse-lhe somente
estas palavras, com uma voz dura e firme: “E eu, estou no banho? Estarei mais à
vontade que tu?”. O outro, logo em seguida, sucumbiu às dores e morreu no
local. O rei, semiassado, foi levado dali, não tanto por piedade (pois que
piedade jamais tocou almas tão bárbaras que, pela duvidosa informação de alguma
botija de ouro a pilhar, faziam grelhar diante dos próprios olhos um homem, e
ainda mais um rei tão grande em fortuna e em mérito?), mas sim porque sua
constância tornava mais e mais vergonhosa a crueldade deles. Depois,
enforcaram-no, tendo ele corajosamente tentado se livrar, armado, de tão longo
cativeiro e sujeição: no que tornou seu fim digno de um príncipe magnânimo. Em
outra ocasião, puseram para queimar de uma só vez, na mesma fogueira, 460
homens vivos, quatrocentos do povo, sessenta entre os principais senhores de
uma província, que eram simplesmente prisioneiros de guerra. Deles mesmos é que
nos vêm essas narrativas: pois não só as confessam como delas se vangloriam e
as publicam. Seria como prova de sua justiça, ou zelo por sua religião?
Certamente, são vias muito diversas e muito hostis para um objetivo tão
sagrado. Se tivessem se proposto propagar nossa fé, teriam considerado que não
é com a possessão de terras que ela se amplia, mas com a possessão de homens, e
teriam se contentado o suficiente com as mortes que as necessidades da guerra
impõem, sem a isso acrescentar indiscriminadamente uma carnificina universal,
como se fossem animais selvagens, de tantos quantos o ferro e o fogo
conseguiram atingir, e só conservando, voluntariamente, os que quiseram
transformar em miseráveis escravos para o trabalho e o serviço em suas minas. E
vários chefes foram punidos com a morte no próprio local de sua conquista, por
decreto dos reis de Castela, com justa razão ofendidos pelo horror de seu
comportamento, e quase todos desestimados e detestados. Deus permitiu
merecidamente que essas grandes pilhagens fossem tragadas pelo mar ao ser
transportadas, ou pelas guerras intestinas com que eles se devoraram entre si:
e a maior parte foi enterrada ali mesmo, sem nenhum fruto de sua vitória.
Quanto ao fato de a receita, mesmo colocada nas mãos de um príncipe econômico e
prudente, corresponder tão pouco à esperança dada a seus predecessores e àquela
primeira abundância de riquezas que se encontrou ao abordarem as novas terras
(pois mesmo que retirem muito, vemos que não é nada em comparação com o que era
de esperar), foi porque o uso da moeda era lá inteiramente desconhecido e, por
conseguinte, o ouro deles estava todo acumulado, não tendo outro uso além da
ostentação e da pompa, como um móvel preservado de pai para filho por vários
reis poderosos, que sempre esgotavam suas minas para fazer aquele grande
amontoado de vasos e estátuas que ornam seus palácios e templos, ao passo que
nosso ouro está todo empregado ou no comércio. Nós o fragmentamos e alteramos
de mil formas, o espalhamos e dispersamos. Imaginemos se nossos reis
acumulassem assim todo o ouro que conseguissem encontrar em vários séculos e o
guardassem inativo! Os do reino do México eram de certo modo mais civilizados e
mais artistas do que as outras nações de lá. Assim, julgavam, como nós, que o
universo estivesse próximo do fim, e interpretaram como sinal a devastação que
lhes levamos. Acreditavam que a existência do mundo se reparte em cinco idades,
cada uma tão longa como a vida de cinco sóis consecutivos, dos quais quatro já
tinham esgotado seu tempo, e aquele que os iluminava era o quinto. O primeiro
morreu junto com todas as outras criaturas por uma inundação universal das
águas. O segundo, pela queda do céu sobre nós, que sufocou todas as coisas
vivas: atribuíam a essa idade os gigantes cujas ossadas mostraram aos
espanhóis, em tal proporção que a estatura deles vinha a ser vinte palmos de
altura. O terceiro, pelo fogo que incendiou e consumiu tudo. O quarto, por uma
fúria de ar e vento que abateu até mesmo várias montanhas: os homens não morreram
mas foram transformados em macacos (a que imaginações não se sujeita a
frouxidão da credulidade humana!). Depois da morte desse quarto sol, o mundo
ficou por 25 anos em perpétuas trevas, sendo que no 15º foram criados um homem
e uma mulher que refizeram a raça humana. Dez anos depois, em determinado dia
que observaram, o sol apareceu, tendo sido recriado, e desde então começa a
contagem de seus anos, a partir daquele dia. No terceiro dia da criação
morreram os deuses antigos: os novos foram nascendo depois, de vez em quando.
De como eles consideram o modo como este último sol perecerá, meu autor nada
soube.”
“Comete-se muito
abuso no mundo: ou, para dizer mais ousadamente, todos os abusos do mundo são
gerados pelo fato de que nos ensinam a temer confessarmos nossa ignorância; e
somos obrigados a aceitar tudo o que não conseguimos refutar. Falamos de todas
as coisas por preceitos e formas categóricas. O estilo jurídico em Roma rezava
que até mesmo o depoimento de uma testemunha que viu com os próprios olhos e a
sentença de um juiz baseada em seu mais seguro saber fossem expressos com esta
forma de falar: “parece-me”. Fazem-me odiar as coisas verossímeis quando as
apresentam como infalíveis. Gosto destas palavras que amolecem e moderam a
temeridade de nossas proposições: “talvez”, “de certa forma”, “algum”, “dizem”,
“penso”, e semelhantes. E se tivesse de educar crianças, tanto lhes teria posto
na boca esse modo de responder inquiridor e não decisivo: “o que quer dizer?”,
“não estou entendendo”, “poderia ser”, “é verdade?”, que elas mais teriam
conservado o jeito de aprendizes aos sessenta anos do que se apresentado como
doutores aos dez anos, como fazem. Quem quer curar a ignorância deve
confessá-la. Íris é filha de Taumante. O assombro é o fundamento de toda
filosofia; a inquirição é como ela avança; a ignorância, seu final.”
“Os homens creem
mais no que não compreendem. A propensão do espírito humano faz que se atribua
mais facilmente fé aos mistérios”. (Tácito, Histórias,
I, XXII, 4)
“Sigo a opinião de
Santo Agostinho: mais vale tender para a dúvida do que para a certeza nas
coisas de difícil comprovação e perigosa crença.”
“Tenho tamanha
queda pela liberdade que se alguém me proibisse o acesso a algum canto das
Índias eu viveria de certa forma menos à vontade.”
“As leis mantêm-se
em vigor não porque são justas mas porque são leis. É o fundamento místico de
sua autoridade: não têm outro. O que muito lhes serve. É frequente que sejam
feitas pelos tolos. Mais frequentemente por pessoas que, em seu ódio à
igualdade, têm falta de equidade. Mas sempre por homens, autores vãos e
incertos. Não há nada tão grosseira e amplamente, nem tão correntemente falível
como as leis. Quem lhes obedece porque são justas não lhes obedece justamente pelo
que deveria. As nossas francesas, por sua imperfeição e deformidade, auxiliam
de certa forma a desordem que vemos em sua aplicação e a corrupção que vemos em
sua execução. A autoridade delas é tão confusa e inconsistente que, de certo
modo, desculpa tanto a desobediência como o vício de interpretação, de
administração e de observância.”
“Oh! como a
ignorância e a despreocupação são um suave, macio e saudável travesseiro para
repousar uma cabeça bem formada. Eu preferiria compreender bem a mim mesmo a
compreender Cícero.”
“A vida de César
não é mais exemplo para nós do que a nossa.”
“Nós nos dizemos
tudo de que mais precisamos: basta escutarmos.”
“Quando vejo que
me convenci, pela razão de outro, de uma ideia falsa, o que aprendo não é tanto
o que ele me disse de novo, nem é de grande proveito a minha ignorância
especial, mas em geral aprendo minha debilidade e a traição de meu
entendimento, e com isso posso melhorar todo o conjunto. Com todos os meus
outros erros faço o mesmo: e sinto nessa regra grande utilidade para a vida.
Não olho para a espécie de erro nem para o erro individual como uma pedra em
que tropecei. Aprendo a temer meu comportamento em qualquer lugar e trato de
melhorá-lo. Saber que dissemos ou fizemos uma tolice é apenas isso; precisamos
aprender que não passamos de um tolo, ensinamento bem mais amplo e importante.
Os passos em falso que minha memória me causou tão amiúde, quando justamente me
parecia mais segura de si, não foram perdidos em vão. Por mais que agora ela me
jure e me garanta, eu balanço a cabeça: a primeira objeção que fizerem a seu
testemunho deixa-me em suspenso. E nela não ousaria me fiar em coisa de peso,
nem avalizá-la a respeito de outrem. E se não fosse porque o que faço por falta
de memória os outros o fazem ainda mais frequentemente por falta de
sinceridade, eu sempre consideraria como coisa de fato a verdade na boca de
outro, mais que na minha.”
““Nada é mais
vergonhoso do que colocar a asserção e a decisão antes do conhecimento e da
percepção.” (Cícero, Academica posteriora,
I, XII, 45) Aristarco dizia que na Antiguidade mal se encontravam sete sábios
no mundo, e que em sua época mal se encontravam sete ignorantes. Não teríamos
mais razão que ele de dizer isso em nossa época? A afirmação e a obstinação são
sinais manifestos de tolice. Este homem aqui deu com o nariz no chão cem vezes
num só dia: ei-lo levantando a crista, tão decidido e inteiro como antes.”
“Assim como
afirmam que a virtude não é maior por ser mais duradoura, assim considero que a
verdade não é mais sábia por ser mais velha. Costumo dizer que é pura tolice
que nos faz correr atrás dos exemplos estrangeiros e dos ensinados na escola. A
fertilidade deles é a mesma neste momento como era no tempo de Homero e Platão.
Mas não será porque procuramos mais a honra da citação do que a verdade do
discurso?”
“Quem teme sofrer
já sofre porque teme.”
“Se eu tivesse
filhos homens, lhes desejaria com gosto a minha sorte. O bom pai que Deus me
deu (que de mim só tem o reconhecimento por sua bondade, mas certamente muito
vigoroso) enviou-me desde o berço para ser criado num vilarejo pobre de sua
senhoria, e ali me manteve enquanto eu estava sendo amamentado e mesmo mais
tarde, habituando-me assim ao mais modesto e ordinário modo de viver: Magna pars libertatis est bene moratus
venter¹. Um ventre sóbrio garante uma boa parte de liberdade.] Jamais
deveis assumir, e menos ainda vossas mulheres, o encargo de educá-los: deixai
os garotos formarem-se pela fortuna, segundo leis populares e naturais, deixai
aos costumes criá-los na frugalidade e na austeridade; que tenham de descer de
uma vida rude em vez de subir a ela. A conduta de meu pai ainda visava à outra
finalidade: ligar-me ao povo e àquele gênero de homens que precisam de nossa
ajuda, e considerava que eu devia olhar mais para quem me estende os braços do
que para quem me vira as costas. E foi também essa a razão pela qual me
entregou na pia batismal a pessoas de fortuna mais modesta, para me obrigar e ligar-me
a elas. Seu objetivo não foi malsucedido: dedico-me com gosto aos humildes;
seja porque há mais glória nisso, seja por compaixão inata, que em mim é
infinitamente poderosa.”
1: Sêneca, Cartas a Lucílio, CXXIII, 3.
“Não se viu coisa
mais notável em Sócrates do que o fato de que, bem velho, encontrasse tempo
para aprender a dançar e tocar instrumentos, e o considerasse bem empregado.
Foi visto em êxtase, de pé, um dia e uma noite inteiros, em presença de todo o
exército grego, surpreendido e capturado por algum pensamento profundo. Foi o
primeiro entre tantos homens valentes do exército a correr em socorro de
Alcibíades, prostrado pelos inimigos; cobriu-o com seu corpo e livrou-o da
multidão à viva força e com armas. E na batalha de Delos, levantou e salvou
Xenofonte, derrubado de seu cavalo. E de todo o povo de Atenas, revoltado da
mesma forma que ele com tão indigno espetáculo, foi o primeiro a apresentar-se
para libertar Terâmenes, que os trinta tiranos mandavam os esbirros conduzir à
morte; e, conquanto apenas dois homens no total o tivessem seguido, só desistiu
dessa ousada iniciativa diante da admoestação do próprio Terâmenes. Foi visto,
procurado por uma beldade por quem estava apaixonado, manter quando necessário
uma severa abstinência. Foi visto continuamente marchando na guerra e pisando
no gelo de pés descalços, usando a mesma roupa no inverno e no verão, superando
todos os companheiros em resistência ao cansaço, não comendo no banquete de
outra forma que não a habitual. Foi visto durante 27 anos, com o mesmo
semblante, suportar a fome, a pobreza, a indocilidade dos filhos, as garras da
mulher. E no fim, a calúnia, a tirania, a prisão, as correntes e o veneno. Mas
esse homem, que por dever de cortesia aceitou, como convidado, beber de um só
gole¹, era também aquele do exército que teve melhor desempenho. E não se
recusava a brincar de pedrinhas com as crianças nem a correr com elas num
cavalo de madeira, o que fazia de boa vontade, pois todas as ações, diz a
filosofia, caem igualmente bem no sábio e igualmente o honram. Nunca devemos
nos cansar de apresentar a imagem desse personagem para todos os modelos e
formas de perfeição, e temos razões para isso. Há pouquíssimos exemplos de vida
plenos e puros. E prejudicamos nossa educação ao nos propormos todos os dias
exemplos fracos e falhos: bons apenas por um só lado, que mais nos puxam para
trás, corrompendo mais que corrigindo.”
1: Durante uma brincadeira para se ver quem bebia mais.
“Aceito de bom
grado e reconhecido o que a natureza fez por mim, e alegro-me e sinto-me
satisfeito com isso. Somos injustos com esse grande e todo-poderoso Doador ao
recusarmos Seu dom, anulá-lo e desfigurá-lo: tudo é bom, Ele fez tudo bom.
Omnia quae secundum naturam sunt; aestimatione
digna sunt.579
Tudo o que é
conforme à natureza é digno de consideração. (Cícero, De finibus, III, VI, 20)
Abraço com mais
gosto os princípios da filosofia que são os mais sólidos: isto é, os mais
humanos e nossos. Minhas opiniões correspondem ao meu comportamento, humildes e
modestas. A meu ver, a filosofia finge-se de criança quando levanta a crista
para nos pregar que é uma aliança selvagem casar o divino com o terrestre, o
sensato com o insensato, o severo com o indulgente, o honesto com o desonesto.
Que o prazer é qualidade bestial, indigna de ser provada pelo sábio. E que o
único prazer que ele tira da fruição de uma bela jovem esposa é o prazer de sua
consciência por estar praticando uma ação segundo as regras. Como calçar suas
botas para uma cavalgada útil. Possam os sequazes dessa filosofia ter, no
desvirginamento de suas mulheres, tão pouca firmeza, e nervos e suco quanto têm
seus argumentos! Não é o que diz Sócrates, preceptor deles e nosso. Ele aprecia,
como deve ser, o prazer corporal, mas prefere o do espírito, por ter mais
força, constância, facilidade, variedade, dignidade. Este não anda sozinho,
segundo ele (que não é tão fantasioso assim), mas é apenas o primeiro. Para
ele, a temperança é moderadora, não adversária dos prazeres. A natureza é um
guia gentil, mas não mais gentil do que sábio e justo.”