Editoria:
Civilização Brasileira
Opinião:
★★★☆☆
Páginas:
66
“Há,
evidentemente, em todos os tempos, população e povo. Os dois termos designam a
mesma coisa apenas na fase inicial da história humana, a da comunidade
primitiva, quando não existem classes: povo é então toda a população. A divisão
do trabalho assenta em condições naturais e não em condições sociais; assenta
nas condições de sexo e idade: o homem realiza determinado trabalho; a mulher,
outro; o velho, outro. É uma divisão natural: não torna alguns elementos mais
ricos do que os outros, nem mais poderosos. Mas quando a sociedade se
desenvolve, surgem as classes sociais e, com elas, a divisão social do
trabalho: uns trabalham, outros usufruem do trabalho alheio. A partir desse
momento, povo já não é o mesmo que população: os termos começam a designar coisas
diferentes. E não há, a partir de então, critério objetivo para definir o
conceito de povo que não esteja ligado ao conceito da sociedade dividida em
classes.”
“Em
diferentes fases históricas e em diferentes países, portanto, o conceito de
povo corresponde a diferentes agrupamentos de forças sociais. Há uma composição
específica para cada situação concreta; não uma situação eterna e imutável;
povo não é a mesma coisa em diferentes situações históricas. Mas,
evidentemente, encontra-se um traço geral, permanente, que atravessa a história
e se repete em cada lugar, algo que existe em qualquer tempo e em qualquer
lugar, quando se trata de povo e se procura definir o conceito, para
compreender o papel dessa força social na vida política. Esse traço é o
seguinte: em todas as situações, povo é o conjunto das classes, camadas e
grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento
progressista e revolucionário na área em que vive.
As
classes compreendem as parcelas da população que, por sua situação objetiva,
têm interesses comuns a defender, na decorrência do “lugar que ocupam em um
sistema de produção social, historicamente determinado pelas relações em que se
encontram com respeito aos meios de produção (relações que, em grande parte,
ficam estabelecidas e formalizadas nas leis), pelo papel que desempenham na
organização social do trabalho e, consequentemente, pelo modo e pela proporção
em que percebem a parte da riqueza social de que dispõem”. As classes são
produto da história, e o lugar que ocupam é também historicamente condicionado.
A história humana não passa do desenvolvimento das classes, das lutas e das
mudanças nas relações entre elas. Em cada fase histórica, pois, em condições
determinadas, certa classe, ou certas classes, agrupam-se num conjunto que se
conhece como povo, e só é válido para tal fase.
Numa
sociedade dividida em classes, a população se reparte em classes dominantes, exploradoras,
de um lado, e classes dominadas, de outro, aquelas que as primeiras oprimem,
exploram e privam de direitos, inclusive e principalmente dos direitos
políticos. Realizam essa exploração, entretanto, afirmando sempre que
representam o povo. Estão interessadas, pois, em que o conceito de povo seja
vago, arbitrário e confuso. Tão confuso que englobe exploradores e explorados.
A
essa ambiguidade, que impede distinguir entre população e povo, junta-se outra,
que impede distinguir entre nação e povo, conceitos que se referem também a
coisas diferentes. Frequentemente, no que se refere a problemas internos, mas
também no que se refere a problemas externos, ou de política exterior, as
classes dominantes, que se dizem povo, afirmam, ao decidir sobre aqueles
problemas segundo os seus interesses de classe, que o fazem em defesa dos
interesses “nacionais”, na preservação dos direitos “nacionais”, e repetem
amiúde a expressão “tradições nacionais”. Confundem, assim, os seus interesses
com os interesses nacionais e supõem encarnar a vontade nacional, isto é, a
vontade do povo. As classes dominantes, entretanto, inclusive porque
minoritárias, não representam o povo, no geral, e nem sempre representam a
nação, embora detenham o poder, dominem o Estado e proclamem a sua identidade
com o que é nacional. Existe o deliberado propósito de confundir todas as
classes e os seus interesses, como se estes fossem comuns e idênticos em todos
os problemas, e a classe que detém a representação política fosse apenas a intérprete
de todas as classes porque com interesses idênticos aos de todas elas.
É
exato que em alguns casos, — e só o exame de situações concretas permitiria
distinguir bem as características de cada um — as classes dominantes realizam o
que é do interesse da maioria das classes, ou das classes majoritárias, mas
isso não é uma regra e está longe de ser a regra. Acontece sempre, entretanto,
quando o interesse da classe dominante é também defendido, preservado ou
mantido. A Independência do Brasil foi um problema político que uniu as classes
sociais brasileiras: realizando-a, a classe dominante de então representou o
desejo e o interesse das demais, mas também o seu particular desejo e
interesse. Logo em seguida, entretanto, ao empolgar o poder, deixou de representar
o interesse de todas as classes, porque organizou o Estado de acordo com os
seus interesses, exclusivamente. Ninguém pode sustentar que o interesse de um
senhor de engenho da época fosse idêntico ao de seus escravos. Bastaria o fato
de ser, um, proprietário de escravos e os outros, escravos, para tornar claro o
antagonismo de interesses. Ao realizar a Abolição, a classe dominante teve
também o apoio das classes dominadas, no Brasil, mas realizou-a quando lhe
convinha como classe. São casos em que os interesses de um grupo aparecem como
interesses comuns, e a classe dominante representa a nação, ao decidir por ela,
porque representa, eventualmente, a vontade da maioria, embora seja, em número,
minoria, e não tenha a posse do poder por vontade da maioria.
Mas,
na maior parte dos problemas, e nos problemas fundamentais, o interesse das
classes é divergente, quase sempre antagônico, e as decisões tomadas pela
classe dominante e apregoadas como do “interesse nacional” são, na realidade,
única e exclusivamente, do seu interesse de classe, ferindo o interesse das
classes dominadas, inclusive privadas do direito de protestar contra isso ou,
de qualquer maneira, do direito de fazer prevalecer os seus interesses. Há
manifesta ambiguidade, politicamente determinada, no fato de investir-se a
classe dominante do papel nacional, de defensora do “interesse nacional”.”
“Em
política, como em cultura, só é nacional o que é popular. A política da classe
dominante não é nacional, nem a sua cultura. Povo e nação não são a mesma
coisa, na fase atual da vida brasileira, mas esta é uma situação histórica
apenas, diferente de outras, uma situação que se caracteriza pelo fato de que
as classes que determinam, politicamente, os destinos do país e lhe traçam os
rumos, tomam as decisões em nome da “nação”, mas não pertencem ao povo, não
fazem parte do povo.”
“Até
os nossos tempos, todas as revoluções, isto é, todos os grandes movimentos que
alteraram a situação das classes sociais umas em relação às outras, consistiram
em derrocar o domínio de determinada classe, que cumprira a sua missão
histórica, substituindo-a por outra, que vinha em ascensão. Eram revoluções que
substituíam uma minoria por outra minoria, e esta outra assumia o poder,
dominava o Estado e transformava as instituições, amoldando-as aos seus
interesses; era o grupo que se capacitara para o domínio e que exercia o
domínio, tendo sido chamado ao domínio pelas condições de desenvolvimento
econômico. Por isso, e somente por isso, quando da derrocada de uma classe
minoritária historicamente superada, a classe minoritária historicamente nova
conseguia a cooperação das classes majoritárias, ou, pelo menos, a sua
aceitação pacífica. A forma comum dessas revoluções consistia em serem, todas,
revoluções de minorias. A maioria se colocava, consciente ou inconscientemente,
a serviço da minoria ascensional, e o conjunto novo que forçava a mudança
(classe minoritária ascendente mais as classes majoritárias dependentes)
constituía, para efeito daquela transformação histórica, o povo. E isso permitia
à classe minoritária ascendente a norma de falar, no poder, em nome do povo,
como se, realmente, o representasse.
Cada
nova classe que passava a ocupar o poder em lugar de outra, também minoritária,
via-se obrigada, pela necessidade política, para alcançar os fins a que se
propunha, para defender os seus interesses, a apresentar esses interesses não
como seus apenas, mas como os interesses comuns de toda a sociedade, os
interesses do povo. E expressava esses interesses em termos ideais, apresentava
as suas formulações e teorias revestidas do caráter de generalidade, as suas
normas como as únicas racionais e dotadas de vigência absoluta e até do condão
da eternidade. E moldava a vida social de forma conveniente, definindo como
sagrados os seus interesses, fixados como se fossem da totalidade,
protegendo-os com a lei e com a força, e tentando protegê-los ainda pelo
costume; e definindo como crime tudo o que atentasse contra os seus interesses,
punindo e perseguindo os que o cometiam, ou apenas punham em dúvida o seu
caráter sagrado e eterno.
Mas,
na realidade, nada é eterno, e o sagrado de hoje pode ser o sacrílego de
amanhã.”
“Claro
que há sempre um pensamento conservador, alimentado pela classe dominante
minoritária, em afanosa busca de eternidade para a sua dominação e obrigada a
explicá-la e a justificá-la. Isto acontece porque, frequentemente, as ideias se
atrasam em relação à realidade: o conhecimento humano é condicionado pela ordem
social e, portanto, entravado quando existem forças que buscam eternizar-se no
poder. Conservadores são aqueles que não verificam quanto o processo histórico
avançou objetivamente e quanto os seus conhecimentos estacionaram em situações
precedentes.”
“O
Império fora estabelecido como forma de servir a uma classe dominante
homogênea, constituída pelos senhores de terras, que o eram também de escravos
e de servos. Agora, as condições são outras, e ele já não atendia aos
interesses da classe dominante cindida entre latifundiários, senhores de terras
e de servos, e burgueses. Não atendia, com mais forte razão, aos interesses da
pequena burguesia. Nem aos do reduzido proletariado; nem aos do
semiproletariado; muito menos aos dos servos. A tarefa progressista, nas
condições brasileiras dos fins do século XIX, consistia em liquidar o Império,
não no que representava de formal e exterior, mas no que tinha de essencial:
todas as velhas relações econômicas e políticas que entravavam o
desenvolvimento do país. Que classes, camadas e grupos estavam interessadas,
pelas suas condições objetivas, em liquidar as velhas instituições, tão
profundamente ancoradas no período colonial e transferidas ao período autônomo?
Se a Independência reunira o apoio de todas elas, com uma participação
proporcional à força de cada uma e ao grau de consciência política de seus
elementos, já a República não provocaria a unanimidade. As classes interessadas
na implantação do novo regime compunham uma ampla frente, encabeçada pela
burguesia nascente, a que se somavam a pequena burguesia, o proletariado, o
semiproletariado e os servos. Como acontecera com a Independência, a burguesia
nascente se mostrava vacilante; a pequena burguesia, que esposara muito antes o
ideal republicano, era mais enérgica em suas manifestações; o reduzido
proletariado e particularmente o semiproletariado não haviam alcançado ainda o
grau de consciência política necessário a uma participação eficiente; e a
servidão permanecia estática, isolada no vasto mundo rural. Quem constituía o
povo, então? Estas classes, evidentemente, as que estavam interessadas na
tarefa progressista, historicamente necessária, de criar a República. A classe
latifundiária não fazia parte do povo. Seu último serviço fora a Independência.
Gerada
a circunstância em que se consumaria a derrocada do velho regime, a classe
média, representada particularmente pelo grupo militar, assumiu a direção dos
acontecimentos. Mas a burguesia nascente apressou-se em compor as forças com o
latifúndio para poder moldar o novo regime na conformidade com os seus
interesses e os das velhas forças sociais. Como por ocasião da Independência,
assiste-se a um processo claramente repartido em duas fases: a primeira, em que
o povo, representado pelas classes interessadas na realização das tarefas
progressistas, opera unido e consuma os atos concretos relativos à
transformação historicamente necessária; a segunda, em que a classe dirigente,
a que detém a hegemonia na composição que constitui o povo, torna-se a nova
classe dominante, e comanda as alterações à medida dos seus interesses,
preferindo a retomada da aliança com as forças do atraso à manutenção da
aliança com as forças do avanço. A unidade tácita e eventual da primeira fase
se desfaz; as contradições e os antagonismos de classe reaparecem.”
“Povo,
no Brasil, é o conjunto que compreende o campesinato, o semiproletariado, o
proletariado; a pequena burguesia e as partes da alta e da média burguesia que
têm seus interesses confundidos com o interesse nacional e lutam por este. É
uma força majoritária inequívoca. Organizada, é invencível. Para organizá-la,
entretanto, para permitir que seus componentes tomem consciência da realidade,
superando o concentrado bombardeio da propaganda imperialista, arrimada em
poderosos recursos materiais e detentora do aparelho de difusão do pensamento,
faz-se indispensável o regime democrático, de liberdade de pensamento, de
reunião e de associação. Estão excluídos do povo, pois, nesta fase histórica, e
agora para sempre, enquanto classes, os latifundiários, a alta burguesia e a
média comprometidos com o imperialismo, como os elementos da pequena burguesia
que o servem. É o conjunto das classes, camadas e grupos.”
“Não
era sem razão que a Constituição de 1824 consignava que aos parlamentares cabia
o tratamento de “altos e poderosos senhores”. Eles eram, realmente, altos,
poderosos e senhores, — senhores de terras e de escravos ou de servos, altos
pela distância vertical que os separava dos que não eram senhores, poderosos
porque retinham todo o poder, reservavam-se todos os proveitos políticos da
Independência e moldavam o Estado à imagem e semelhança de sua classe, faziam
dele instrumento adequado à defesa de seus interesses.
Os
direitos políticos eram hierárquicos: ficavam excluídos das eleições,
preliminarmente, todos os que se compreendiam na faixa dos “cidadãos ativos”,
isto é, os que trabalhavam, os criados de servir, os que operavam a jornal, os
caixeiros das casas comerciais, todos os que, em suma, auferiam rendimentos
líquidos anuais inferiores ao valor de 150 alqueires de farinha de mandioca. E,
claro, os escravos, que não eram considerados brasileiros, conforme determinava
o artigo 5°, em seu parágrafo primeiro. Mais tarde esse dispositivo foi
emendado: os escravos passaram a ser considerados brasileiros; mas não eram
considerados cidadãos. Os eleitores do primeiro grau deveriam ter rendimento
líquido anual superior ao valor de 150 alqueires de farinha de mandioca; os de
segundo grau, que escolhiam os deputados e senadores, deveriam tê-los
superiores ao valor de 250 alqueires de farinha de mandioca; aos candidatos a
deputados exigia-se rendimento superior ao valor de 500 alqueires de farinha de
mandioca; aos candidatos a senadores, superior a 1.000 alqueires. Era a
hierarquia da mandioca, padrão da moeda política no novo País. Além disso, aos
candidatos a deputados e senadores exigia-se ainda a qualidade de proprietário
foreiro ou rendeiro por longo prazo de bem de raiz no campo, de fábrica ou
estabelecimento industrial. Ficavam excluídos, assim, os que auferissem renda
de atividade mercantil. Eram ou não eram “altos e poderosos senhores”? (...)
Em
1846, reformam a lei eleitoral, tornando-a mais dura do que a anterior e, nela,
a pretexto da desvalorização da moeda, fixam os direitos eleitorais em base
metálica, dobrando, consequentemente, os mínimos antes exigidos. Não se falava
em analfabetos, naquele tempo; não era necessária essa discriminação para afastar
o povo dos direitos políticos; o povo era privado desses direitos pelas
exigências da renda. A lei era clara: só os “altos e poderosos senhores” podiam
ser eleitos.
Mas,
em 1850, o Brasil tinha pouco mais de oito milhões de habitantes, dos quais
mais de dois e meio milhões eram escravos. Isto é: em cada três brasileiros, um
era escravo. Decreto de 5 de julho de 1876 declarou que o País tinha 1.486
paróquias eleitorais e 24.637 eleitores, para uma população de dez milhões de
habitantes. O eleitorado, assim, reduzia-se a 0,25% da população. (...)
“As
eleições primárias — conta um historiador — sempre foram a turbulência e a
pancadaria dentro e fora das igrejas, à pergunta sacramental se alguém tinha
que denunciar suborno ou conluio para que a eleição recaísse em determinadas
pessoas. Nesses conflitos, venciam os grupos mais poderosos ou mais
vantajosamente armados. As eleições secundárias eram a fraude, a assinatura dos
eleitores em folhas de papel em branco remetidas aos presidentes das províncias”.
João Francisco Lisboa, severo observador dos costumes, depõe assim: “A
violência parece ser uma das condições indeclináveis do nosso sistema
eleitoral. Durante a crise, e sobretudo no dia da eleição, o espanto e o terror
reinam nas cidades, vilas e povoações; os soldados e carcereiros percorrem
armados as ruas e praças; há gritos, clamores, tumultos de todo gênero;
dir-se-iam os preparativos de uma batalha, não os de um ato pacífico, e a cena
do feito termina às vezes com espancamentos, tiros e descargas”. O ensaísta
maranhense define adiante as eleições, na época, como “sistema combinado da
trapaça, falsidade, traição, imoralidade, corrupção e violência”. (...)
Joaquim
Nabuco queria que “o direito de voto fosse extensivo a quantos a lei impõe o
dever de morrer pela pátria, de modo que o sistema eleitoral não continuasse a
ser uma comédia cheia de incidentes trágicos, ou uma tragédia cheia de
incidentes cômicos”. (...)
A
eleição direta afetava apenas o formal, porém. Não tocava a essência do
problema da representação. Ainda assim, a tramitação do projeto foi lenta,
agoniada, tempestuosa. O mal não estava na lei, argumentava-se, mas “na massa
ignorante da nação”. Escrevendo ao seu querido Gobineau, o Imperador afirmava,
referindo-se ao problema: “Em todo caso, eu não tenho confiança senão na
educação do povo”. Pedro II achava que o sufrágio universal era uma calamidade
e que novas leis eleitorais “só poderiam ser perfeitamente bem sucedidas quando
a educação política for outra que não a do nosso povo”. Era antiga, e peculiar
a uma sociedade dominada por “altos e poderosos senhores”, a tendência em
atribuir todos os males à “ignorância” do povo, e a admitir que só a “educação”
deste permitiria o avanço político. E estava claro que os “altos e poderosos
senhores não estavam interessados nem na educação do povo nem em seu avanço
político. (...)
Na
primeira escolha de Senadores, em 1826, para só falar nos que foram nomeados, o
Pará elegeu J. J. Nabuco de Araújo com 94 votos; o Rio Grande do Norte elegeu
Afonso de Albuquerque Maranhão com 21 votos; Alagoas elegeu Felisberto Caldeira
Brant Pontes com 67 votos; o Espírito Santo elegeu Francisco dos Santos Pinto
com 31 votos; Santa Catarina elegeu Lourenço Rodrigues de Andrade com 32 votos;
Mato Grosso elegeu Caetano Pinto de Miranda Montenegro com 10 votos; São Paulo
elegeu José Feliciano Fernandes Pinheiro com 108 votos; o candidato que
alcançou maior votação foi Francisco Carneiro de Campos, na Bahia, com 502
votos. Nos meados do século, o Amazonas, em 1852, levou ao Senado Herculano
Ferreira Pena com 45 votos; o Espírito Santo, em 1850, a José Martins da Cruz
Jobim com 64 votos; Mato Grosso, em 1854, a José Antônio de Miranda com 65
votos. Nos fins do regime, era ainda possível a escolha de um senador preferido
por apenas 158 votos, como aconteceu, no Espírito Santo, em 1879, com Cristiano
Benedito Otoni. O senador que alcançou maior votação em todo o período
monárquico foi Evaristo Ferreira da Veiga, em 1887, em Minas Gerais, com 10.572
votos, sendo escolhido em detrimento de Manoel José Soares, que alcançara
10.900 votos. Logo após a adoção da eleição direta, e em um dos maiores
colégios eleitorais do país, na Bahia, Rui Barbosa foi reconduzido à Câmara com
pouco mais de 400 votos. Claro está que o povo não participava dos pleitos
eleitorais e, portanto, na época, da atividade política, e, consequentemente,
do poder. (...)
O
capitalismo brasileiro dava apenas os primeiros passos, e carregava
pesadíssimas heranças, a do passado escravista e a da resistência das relações
feudais peculiares a uma área colonial. Devia, por tudo isso, apresentar uma
fachada que a identificasse com as repúblicas existentes, — com o seu aparato
institucional, — e um fundo em que se escondiam as profundas deficiências políticas
ligadas ao atraso econômico. O capricho na fachada foi levado a extremo rigor,
e adaptou-se, — não houve cópia, como se afirma geralmente, — a mais avançada
lei básica, a dos Estados Unidos, para vestir o corpo desigual do País ainda
recém-egresso do escravismo. Concederam-se ao povo, formalmente, os direitos
democráticos peculiares à revolução burguesa, mas não foram criadas as
condições, — nem estava no poder dos indivíduos criá-las, — que permitissem
tornar concretos aqueles direitos.
No
que diz respeito à representação, e só este aspecto nos interessa aqui,
revogou-se de plano o sistema eleitoral fundado na renda para se estabelecer o
sufrágio universal. E só então surgiu, porque só então se tornou necessário, o
problema do analfabeto. O voto era um direito concedido apenas aos homens
maiores, com as exclusões conhecidas dos incapazes; mas apenas aos homens
maiores que soubessem ler e escrever. Ficava, assim, excluída a mulher, — uma
grande vítima da sociedade burguesa. Ficava excluído também o analfabeto. Se
alfabetizar-se fosse um ato de vontade, apenas, isto é, se o regime tivesse
condições para oferecer a todos o ensino de alfabetização, ainda assim a
discriminação seria discutível. Como não era esse o caso — o Brasil estava
longe de atingir uma etapa de desenvolvimento em que a alfabetização se
constituísse em objetivo da classe dominante — a discriminação tinha um sentido
antidemocrático evidente, e um claro conteúdo de classe. Foi aceita,
entretanto, com naturalidade, por todos os motivos ligados ao meio e à época, e
ainda porque a inteligência conservava, no Brasil, e ainda conserva, um timbre
aristocrático, que classifica o homem culto, ou mesmo aquele rudimentarmente
dotado de meios de entendimento e de expressão. (...)
O
eleitorado brasileiro compreendia, em 1945, quando o Brasil retomou a fachada
democrática, 7.460.000 eleitores. Em 1954, atingiu a 15.105.000. Para as
eleições de 1958, foi exigida rigorosa depuração. Preocupava a determinadas
forças políticas dominantes a crescente participação popular nas eleições. O
objetivo foi excluir os que “mal sabiam assinar o nome” e tinham a ousadia de
pretender competir com os doutores, de participar da escolha política. Em todos
os países, normalmente, o eleitorado cresce com o tempo, quando menos pela
simples força do aumento vegetativo da população adulta. No Brasil, assistiu-se
a esse fato singular: a redução do eleitorado que, dos 15.105.000 de 1954
passou aos 13.780.000 de 1958. Mais de um milhão de brasileiros perdeu o
direito de votar. (...)
É
conhecida a longa história eleitoral de órgãos como o DNOCS e o DNER. Eis um
depoimento, entre muitos outros, de como se processam as eleições: “Cabo
eleitoral de candidato de bolsa bem recheada, conforme fotocópia existente,
escreveu bilhete no verso da chapa de um político cearense, em presença do
candidato a vereador da UDN, sr. Pedro Rodrigues, de Porteiras, propondo
comprar votos de um a vinte a Cr$ 1.500,00; de vinte em diante a Cr$ 2.000,00.
Assinou o proponente com a maior naturalidade do mundo. O original acha-se à
disposição da Justiça Eleitoral. O escândalo não ficou só nisso. Na apuração,
em Milagres, perante a respectiva Junta Eleitoral, estavam vereadores que
tinham vendido votos aos ricaços vindos da Capital, a fim de comprovarem a
saída dos mesmos nas urnas para o direito de recepção da segunda parcela do
contrato. A primeira fora paga à vista...”
Outro
depoimento: “Os negócios de compra e venda de votos, às claras, sem a mínima
reserva, assumiram naquele município proporções nunca vistas no interior do
Estado. Para deputado federal, houve quem gastasse um milhão e meio de
cruzeiros. Para deputado estadual, a despesa de cada um atingiu 350 mil
cruzeiros”. Terceiro depoimento: “Ao chegar em Porteiras, verifiquei que candidatos
procedentes desta Capital e de outras partes do Estado haviam instalado, no
centro da praça principal... seus quartéis-generais e passavam a comprar votos
à razão de Cr$ 1.000,00. O eleitor recebia 50% no momento da transação,
assinava uma promissória e deixava o título com o candidato ou seus agentes até
o momento de votar. Após a votação, recebia o saldo... Mais tarde, porém,
surgiu um problema novo: certos candidatos elevaram a cotação do voto para Cr$
2.000,00. Em face disso, diversos eleitores voltaram à presença daqueles aos
quais já haviam vendido os votos, tentando rescindir os contratos... A fim de
assegurar a votação comprada, houve candidatos que instituíram o “voto de
mochila”. Distribuíam as suas cédulas dentro de minúsculas sacolas de morim,
dotadas de um elástico que o eleitor prendia à perna quando ia votar. Isso
evitava que a chapa viesse a ser trocada pelos candidatos ou chefetes locais”.
(...)
O
quadro aparece em todos os seus traços justamente nos episódios que contrastam
com a rotina, nos casos de dissenção, de discrepância, de oposição: quando
algum candidato não escolhido pelo aparelho oficial tenta o sucesso das urnas,
quando isso ocorre no plano nacional, com a substituição do presidente, quando
das derrubadas de oligarquias, etc. Contra os insubmissos lança-se a força
total do aparelho, desde a polícia até o mecanismo das nomeações, desde o
comando dos “coronéis” até o engenhoso sistema das atas falsas. E tudo culmina
nos reconhecimentos, quando as comissões especiais, no Congresso, depuram
tranquilamente os adversários, nas “degolas” conhecidas, afastando os que
ousaram infringir essa curiosa ortodoxia da obediência. As eleições não merecem
fé, as apurações não merecem fé, os reconhecimentos não merecem fé. E isto
durou até 1930, quando as condições do País impuseram mudança. Foi então que um
dos mais sagazes seguidores dos velhos processos disse a conhecida frase:
“Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Traduzida em linguagem corrente,
poderia ser entendida assim: “Façamos, nós da classe dominante, as modificações
necessárias para que permaneçamos como classe dominante”.”
“Mas
chegou, sem a menor dúvida, a fase em que as tarefas progressistas e
revolucionárias desta etapa histórica, em nosso País, têm de ser cumpridas, em
que o seu cumprimento é inevitável. Se elas se cumprirão por um processo
meramente político ou se serão cumpridas por um processo violento, depende das
classes dominantes superadas e do imperialismo a que servem, sendo certo que o
povo prefere o caminho pacífico. As classes dominantes, no Brasil, assumem cada
vez mais o papel de forças subversivas — elas sim — porque desrespeitam a lei,
sempre que o cumprimento da lei lhes fere ou ameaça os interesses. São elas que
fomentam a agitação no País, pelo uso e abuso da autoridade e da violência,
criando situações de intranquilidade e ferindo todos os direitos. São elas as
minorias insatisfeitas. São elas que servem a interesses estrangeiros, por eles
subvencionadas largamente. São elas a anti-nação, rasgando e negando tudo o que
é nacional, o interesse nacional, a riqueza nacional, a cultura nacional.”
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