Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-7164-962-0
Tradução: José Rubens Siqueira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 344
Sinopse: Ver Parte
I
“Aquilo que Eichmann chamou de “turbilhão de
morte”, que se abateu sobre a Alemanha depois das imensas perdas de Stalingrado
— os bombardeios incessantes de cidades alemãs, desculpa usual de Eichmann para
o morticínio de civis, e ainda em curso na Alemanha — tornando corriqueira a
visão de coisas diferentes das atrocidades relatadas em Jerusalém, mas não
menos horríveis, pode bem ter contribuído para abater, ou melhor, extinguir a
consciência, se é que sobrava ainda alguma consciência quando isso aconteceu;
contudo, não era isso o que a evidência empírica indicava. A máquina de
extermínio havia sido planejada e aperfeiçoada em todos os detalhes muitos
antes do horror da guerra atingir a própria Alemanha, e sua intrincada
burocracia funcionou com a mesma impassível precisão tanto nos anos de vitória
fácil como naqueles de derrota previsível. No começo, quando as pessoas podiam
ter ainda alguma consciência, quase não ocorreram deserções entre a elite
governante e os comandantes superiores da SS; essas defecções se fizeram notar só
quando ficou evidente que a Alemanha ia perder a guerra. Além disso, essas
perdas nunca foram sérias a ponto de desequilibrar a máquina; elas consistiam
em atos individuais não de misericórdia, mas de corrupção, inspirados não pela
consciência, mas pelo desejo de guardar algum dinheiro ou alguns contatos para
os dias sombrios que estavam por vir. A ordem de suspender o extermínio e
desmontar as instalações dos pavilhões da morte, dada por Himmler no outono de
1944, brotou de sua absurda, mas sincera convicção de que os poderes aliados
saberiam como apreciar esse gesto de atenção; ele contou a um incrédulo
Eichmann que com isso ele poderia negociar uma Hubertusburger-Frieden —
alusão ao Tratado de Paz de Hubertusburg que encerrou a Guerra dos Sete Anos de
Frederico II da Prússia, em 1763, e permitiu que a Prússia retivesse Silésia
apesar de ter perdido a guerra.
Eichmann contou que o fator mais potente para
acalmar a sua própria consciência foi o simples fato de não ver ninguém,
absolutamente ninguém, efetivamente contrário à Solução Final. Ele encontrou
uma exceção, porém, que mencionou diversas vezes e que deve tê-lo impressionado
muito. Foi na Hungria, quando ele estava negociando com o dr. Kastner a oferta
de Himmler de libertar um milhão de judeus em troca de 10 mil caminhões.
Kastner, aparentemente fortalecido pelo novo rumo das coisas, pediu a Eichmann
que parasse “os moinhos de morte de Auschwitz”, e Eichmann respondeu que o
faria “com o maior prazer” (herzlich gern), mas que infelizmente isso
estava fora de sua alçada e fora da alçada de seus superiores, como de fato
estava. Evidentemente, ele não esperava que os judeus compartilhassem o
entusiasmo geral por sua destruição, mas esperava mais que complacência.
Esperava — e recebeu, a um ponto verdadeiramente extraordinário — a cooperação
deles. Isso era “evidentemente, a pedra angular” de tudo o que fazia, como
havia sido a pedra angular de suas atividades em Viena. Não fosse a ajuda
judaica no trabalho administrativo e policial — o agrupamento dos judeus de
Berlim foi, como já mencionei, feito inteiramente pela polícia judaica —, teria
ocorrido ou o caos absoluto ou uma drenagem extremamente significativa do
potencial humano alemão. (“Não há dúvida de que, sem a cooperação das vítimas,
dificilmente teria sido possível para uns poucos milhares de pessoas, a maioria
das quais, além de tudo, trabalhava em escritórios, liquidar muitas centenas de
milhares de pessoas [...] Ao longo de todo o caminho para as suas mortes, os
judeus poloneses não viam mais que um punhado de alemães.” Assim se expressa R.
Pendorf em Mörder und Ermordete. Isso se aplica em medida ainda
maior aos judeus que foram transportados à Polônia para lá morrer.) Daí que o
estabelecimento de governos de fachada em territórios ocupados fosse sempre
acompanhado pela organização de um escritório judeu central; e nos lugares onde
os nazistas não conseguiram estabelecer um governo marionete, fracassou também
a obtenção da cooperação dos judeus. Mas enquanto os membros dos governos de
fachada eram geralmente escolhidos entre os partidos de oposição, os membros
dos Conselhos Judeus eram, como regra, os líderes judeus regionalmente
reconhecidos, a quem os nazistas davam enormes poderes — até eles também serem
deportados para Theresienstadt ou Bergen-Belsen, se eram da Europa Central ou
Oriental, ou para Auschwitz se eram da comunidade da Europa Ocidental.
Para um judeu, o papel desempenhado pelos
líderes judeus na destruição de seu próprio povo é, sem nenhuma dúvida, o
capítulo mais sombrio de toda uma história de sombras. Isso já era sabido
antes, mas agora foi exposto pela primeira vez em todos os seus patéticos e
sórdidos detalhes por Raul Hilberg na obra The Destruction of the
European Jews. Na questão da cooperação, não havia diferença entre as
comunidades altamente assimiladas da Europa Central e Ocidental e as massas
falantes do iídiche no Leste. Em Amsterdã assim como em Varsóvia, em Berlim
como em Budapeste, os funcionários judeus mereciam toda confiança ao compilar
as listas de pessoas e de suas propriedades, ao reter o dinheiro dos deportados
para abater as despesas de sua deportação e extermínio, ao controlar os
apartamentos vazios, ao suprir forças policiais para ajudar a prender os judeus
e conduzi-los aos trens, e até, num último gesto, ao entregar os bens da
comunidade judaica em ordem para o confisco final. Eles distribuíam os emblemas
da Estrela Amarela e, às vezes, como em Varsóvia, “a venda de braçadeiras
tornou-se um negócio normal; havia as faixas comuns de pano e as faixas
especiais de plástico que eram laváveis”. Nos manifestos que publicavam,
inspirados pelos nazistas, mas não ditados pelos nazistas, ainda se pode
perceber o quanto gostavam de seus novos poderes — “O Conselho Judeu Central
foi brindado com o direito de dispor absolutamente de toda riqueza espiritual e
material dos judeus e de toda força de trabalho judaica”, como dizia o primeiro
anúncio do Conselho de Budapeste. Sabemos o que sentiam os funcionários judeus
quando se transformaram em instrumentos de assassinatos: como capitães “cujos
navios estavam a ponto de afundar e que conseguiam levá-lo em segurança até o
porto atirando ao mar parte de sua preciosa carga”; como salvadores que “com
cem vítimas salvam mil pessoas, com mil salvavam 10 mil”. A verdade era ainda
mais terrível. O dr. Kastner, da Hungria, por exemplo, salvou exatamente 1684
pessoas entre cerca de 476 mil vítimas. A fim de não deixar a seleção a cargo
do “destino cego”, eram necessários “princípios realmente sagrados como força
guia para a fraca mão humana que registra no papel o nome de uma pessoa
desconhecidos e com isso decide sua vida ou sua morte”. E quem esses
“princípios sagrados” selecionavam para salvação? Aqueles “que haviam
trabalhado toda a vida pela zibur [comunidade]” — isto é, os
funcionários — e os “judeus mais importantes”, como diz Kastner em seu relato.”
“A questão da cooperação foi mencionada duas
vezes pelos juízes; o juiz Yitzak Raveh arrancou de uma das testemunhas da
resistência a admissão de que a “polícia do gueto” era um “instrumento nas mãos
dos assassinos” e conseguiu também o reconhecimento da “política de cooperação
dos Judenrat com os nazistas”; e no segundo interrogatório, o
juiz Halevi descobriu com Eichmann que os nazistas tinham visto essa cooperação
como a pedra angular de sua política para os judeus. Mas a pergunta que o
promotor fazia regularmente a cada testemunha, exceto aos combatentes, pergunta
que soava tão natural àqueles que nada sabiam dos antecedentes do julgamento, a
pergunta “Por que você não se rebelou?”, serviu na verdade de cortina de fumaça
para a pergunta que não foi feita. E assim ocorreu que todas as respostas à
pergunta irrespondível que o sr. Hausner fez a suas testemunhas eram bem menos
do que “a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade”. A verdade era que
o povo judeu não era um todo organizado, que não possuía território, governo,
nem exército em sua hora de maior precisão, não tinha um governo no exílio para
representá-lo entre os Aliados (a Agência Judaica para a Palestina, presidida
pelo dr. Weizmann, era na melhor das hipóteses um substituto miserável), nem um
esconderijo de armas, nem uma juventude com treinamento militar. Mas a verdade
integral é que existiam organizações comunitárias judaicas e organizações
recreativas e assistenciais tanto em nível local como internacional. Onde quer
que vivessem judeus, havia líderes judeus reconhecidos, e essa liderança, quase
sem exceção, cooperou com os nazistas de uma forma ou de outra, por uma ou
outra razão. A verdade integral era que, se o povo judeu estivesse
desorganizado e sem líderes, teria havido caos e muita miséria, mas o número
total de vítimas dificilmente teria ficado entre 4 milhões e meio e 6 milhões
de pessoas.
Detive-me sobre esse capítulo do caso, que o
tribunal de Jerusalém deixou de apresentar aos olhos do mundo em suas
verdadeiras dimensões, porque ele oferece uma visão notável da totalidade do
colapso moral que os nazistas provocaram na respeitável sociedade europeia —
não apenas na Alemanha, mas em quase todos os países, não só entre os
perseguidores, mas também entre as vítimas.”
“O dr. Servatius pelo menos dessa vez tomou a
iniciativa e fez à testemunha uma pergunta altamente pertinente: “O senhor
tentou influenciá-lo? Tentou, como religioso, apelar para os sentimentos dele,
fazer um sermão para ele, e lhe dizer que sua conduta era contrária à
moralidade?”. Evidentemente o bravo pastor Grüber não tinha feito nada do tipo,
e suas respostas foram altamente embaraçosas. Ele disse que “atos são mais
eficazes que palavras”, e que “palavras teriam sido inúteis”; expressou-se com
clichês que não tinham nada a ver com a realidade da situação, na qual “meras
palavras” teriam sido atos, e onde teria sido talvez dever de um sacerdote
desafiar “a inutilidade das palavras”.
Ainda mais pertinente que a pergunta do dr.
Servatius foi o que Eichmann disse sobre esse episódio em seu último depoimento
“Ninguém veio até mim e me censurou por nada no desempenho de meus deveres, nem
o pastor Grüber disse uma coisa dessas”, ele repetiu. E acrescentou: “Ele veio
até mim e pediu alívio para o sofrimento, mas não objetou de fato ao desempenho
de meus deveres enquanto tais”. Pelo depoimento do pastor Grüber parecia que
ele buscava não tanto o “alívio do sofrimento” quanto a isenção para algumas
categorias bem estabelecidas anteriormente pelos nazistas. Essas categorias
haviam sido aceitas sem protestos pelo judaísmo alemão desde o começo. E a
aceitação de categorias privilegiadas — judeus alemães acima de judeus poloneses,
judeus veteranos de guerra e condecorados acima de judeus comuns, famílias
cujos ancestrais eram nascidos na Alemanha acima de cidadãos naturalizados
recentemente etc. — fora o começo do colapso moral da respeitável sociedade
judaica. (Hoje em dia, quando há uma tendência a relegar esses temas como se
houvesse uma lei da natureza humana que levasse todo mundo a perder a dignidade
em face do desastre, podemos relembrar a atitude dos veteranos de guerra judeus
franceses, a quem seu governo ofereceu os mesmos privilégios e que responderam:
“Declaramos solenemente que recusamos todo benefício excepcional que possamos
gozar por nossa condição de ex-combatentes” [American Jewish Yearbook,
1945].) Nem é preciso dizer que os próprios nazistas nunca levaram a sério
essas distinções. Para eles um judeu era um judeu, mas as categorias
desempenharam certo papel até o final, uma vez que ajudaram a acalmar certa
inquietação entre a população alemã: só os judeus poloneses foram deportados,
só as pessoas que haviam fugido do serviço militar, e assim por diante. Para
aqueles que não queriam fechar os olhos, deve ter ficado claro desde o começo
que “era prática geral permitir certas exceções a fim de conseguir manter a
regra geral com maior facilidade” (nas palavras de Louis de Jong num
esclarecedor artigo sobre “Jews and Non-Jews in Nazi-Occupied Holland”).
Moralmente, o mais desastroso na aceitação
dessas categorias privilegiadas era que todos os que pediam uma “exceção” para
o seu caso reconheciam implicitamente a regra, mas esse ponto aparentemente
nunca foi percebido por esses “bons homens”, judeus e gentios, que se ocupavam
com esses “casos especiais” para os quais pediam tratamento preferencial. Mas
se os solicitantes judeus e gentios de “casos especiais” não tinham consciência
de sua involuntária cumplicidade, esse reconhecimento implícito da regra, que
significava morte para todos os casos não especiais, deve ter sido muito óbvio
para aqueles que estavam envolvidos no negócio do assassinato. Eles devem ter
sentido, pelo menos, que ao receber pedidos de exceções e ao atender alguns
ocasionalmente, conquistando assim gratidão, estavam convencendo seus oponentes
da legalidade do que faziam.”
“E assim como a lei de países civilizados
pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita “Não matarás”, mesmo que
o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei
da terra de Hitler ditava à consciência de todos: “Matarás”, embora os
organizadores dos massacres soubessem muito bem que o assassinato era contra os
desejos e os pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro Reich, o Mal
perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem — a
qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a
esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a
não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os
judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos
possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de
todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham
aprendido a resistir à tentação.”
“Foi na Dinamarca, porém, que os alemães
descobriram o quanto eram justificadas as apreensões do Ministério das Relações
Exteriores. A história dos judeus dinamarqueses é sui generis, e o
comportamento do povo dinamarquês e de seu governo foi único entre todos os
países da Europa — ocupada, associada ao Eixo, neutra ou verdadeiramente
independente. É forte a tentação de recomendar a leitura obrigatória desse
episódio da ciência política para todos os estudantes que queiram aprender
alguma coisa sobre o enorme potencial de poder inerente à ação não violenta e à
resistência a um oponente detentor de meios de violência vastamente superiores.
Sem dúvida alguns outros países na Europa eram desprovidos de um adequado
“conhecimento da questão judaica”, e na verdade a maioria deles se opôs às
soluções “radical” e “final”. Assim como a Dinamarca, a Suécia, a Itália e a
Bulgária provaram ser quase imunes ao antissemitismo, mas dos três países na
esfera de influência alemã, só os dinamarqueses ousaram falar do assunto com
seus senhores alemães. A Itália e a Bulgária sabotavam as ordens alemãs e se
permitiam um complicado jogo de negociação e trapaça, salvando seus judeus
graças a um tour de force de pura criatividade, mas jamais
contestaram a política enquanto tal. Os dinamarqueses fizeram uma coisa
completamente diferente. Quando os alemães os abordaram, bastante
cautelosamente, quanto à introdução do emblema amarelo, eles simplesmente
disseram que o rei seria o primeiro a usá-la, e os funcionários governamentais
dinamarqueses tiveram o cuidado de esclarecer que medidas antijudaicas de
qualquer ordem provocariam sua imediata renúncia. Muito decisivo na questão
toda foi o fato de os alemães não conseguirem determinar nem mesmo — o que era
vitalmente importante para eles — quem eram os dinamarqueses nativos de origem
judaica (cerca de 6400) e quem eram os 1400 judeus alemães refugiados que
haviam encontrado asilo no país antes da guerra, agora declarados apátridas
pelo governo alemão. Essa recusa deve ter sido uma infinita surpresa para os
alemães, visto que parecia “ilógico” um governo proteger pessoas a quem havia
recusado categoricamente naturalização e mesmo permissão de trabalho. Os
dinamarqueses, porém, explicaram aos funcionários alemães que uma vez que os
refugiados apátridas não eram mais cidadãos alemães, os nazistas não podiam
mais requisitá-los sem o consentimento dinamarquês. Esse foi um dos poucos
casos em que a falta de pátria acabou sendo um privilégio, embora,
evidentemente, não tenha sido a falta de Estado per se que
salvou os judeus, mas, ao contrário, o fato de o governo dinamarquês decidir
protegê-los. Dessa forma, nenhum dos movimentos preparatórios, tão importantes
para a burocracia do assassinato, pôde ser levado a cabo, e as operações foram
adiadas até depois do outono de 1943.
O que aconteceu então foi realmente
surpreendente; comparado ao que aconteceu em outros países europeus, tudo
resultou numa grande trapalhada. Em agosto de 1943 — depois do fracasso da
ofensiva alemã na Rússia, da rendição do Afrika Korps na Tunísia e da invasão
aliada na Itália — o governo sueco cancelou o acordo de 1940 com a Alemanha,
permitindo que as tropas alemãs atravessassem seu território. Diante disso, os
trabalhadores dinamarqueses decidiram que podiam ajudar um pouco a acelerar as
coisas; irromperam tumultos nos estaleiros dinamarqueses e os trabalhadores das
docas se recusaram a consertar navios alemães, entrando em greve em seguida. O
comandante militar alemão decretou estado de emergência e impôs a lei marcial,
e Himmler achou que aquele era o momento adequado para tocar na questão
judaica, cuja “solução” estava muito atrasada. O que não estava em seus
cálculos — sem contar a resistência dinamarquesa — foi que os funcionários
alemães que viviam havia anos no país não eram mais os mesmos. Não só o general
von Hannecken, comandante militar, recusou-se a pôr tropas à disposição do
plenipotenciário do Reich, dr. Werner Best, como também as unidades especiais
da SS (Einsatzkommandos) alocadas na Dinamarca muitas vezes objetaram às
medidas que os organismos centrais ordenavam que fossem tomadas — segundo o
testemunho de Best em Nuremberg. E o próprio Best, um velho homem da Gestapo e
antigo conselheiro legal de Heydrich, autor de um livro famoso sobre a polícia
e que trabalhara para o governo militar em Paris satisfazendo plenamente a seus
superiores, já não merecia confiança, embora não se saiba ao certo se Berlim
chegou a tomar conhecimento disso. De toda forma, desde o princípio ficou claro
que as coisas não estavam indo bem, e o departamento de Eichmann mandou um de
seus melhores homens à Dinamarca — Rolf Günther, que ninguém jamais acusara de
não ter a necessária “dureza impiedosa”. Günther não impressionou seus colegas
de Copenhague e Hannecken se recusou até mesmo a baixar um decreto exigindo que
todos os judeus se apresentassem para trabalhar.
Best foi para Berlim e conseguiu uma promessa
de que os judeus da Dinamarca seriam mandados para Theresienstadt fosse qual
fosse sua categoria — concessão muito importante do ponto de vista nazista. Foi
escolhida a noite de 10 de outubro para sua captura e partida imediata — os
navios já estavam prontos no porto —, e como não se podia confiar nem nos
dinamarqueses, nem nos judeus, nem nas tropas alemãs estacionadas na Dinamarca,
chegaram da Alemanha unidades da polícia para realizar uma busca de porta em
porta. No último momento, Best lhes disse que não podiam invadir apartamentos,
porque nesse caso a polícia dinamarquesa poderia interferir, e que não deviam
entrar em choque com os dinamarqueses. Em decorrência, só conseguiram capturar
os judeus que abriram suas portas voluntariamente. De um total de mais de 7800
pessoas, encontraram exatamente 477 que estavam em casa e dispostas a deixá-los
entrar. Poucos dias antes da data fatídica, um agente de transporte alemão,
Georg F. Duckwitz, provavelmente a partir de informações fornecidas pelo
próprio Best, revelou todo o plano aos funcionários governamentais
dinamarqueses, que por sua vez informaram rapidamente os cabeças da comunidade
judaica. Estes, em marcante contraste com líderes judeus de outros países,
deram a notícia abertamente nas sinagogas, por ocasião dos serviços de
Ano-Novo. Os judeus tiveram tempo suficiente para sair de seus apartamentos e
esconder-se, o que era muito fácil na Dinamarca porque, nas palavras da
sentença, “todos os setores do povo dinamarquês, desde o rei até os simples
cidadãos”, estavam prontos para recebê-los.
Talvez fosse necessário que ficassem na
clandestinidade até o final da guerra se os dinamarqueses não tivessem a sorte
de ter a Suécia como vizinha. Pareceu razoável embarcar os judeus para a
Suécia, e isso foi feito com a ajuda da frota pesqueira dinamarquesa. O custo
do transporte para as pessoas sem meios — cerca de cem dólares por pessoa — foi
pago em grande parte por cidadãos dinamarqueses ricos, e talvez seja esse o
fato mais assombroso, uma vez que na época a praxe era os judeus pagarem sua
própria deportação, com os ricos gastando fortunas em permissões de saída (na
Holanda, na Eslováquia e depois na Hungria), fosse subornando as autoridades
locais, fosse negociando “legalmente” com a SS, que só aceitava moedas fortes e
vendia permissões de saída da Holanda ao preço de 5 ou 10 mil dólares por
pessoa. Mesmo em lugares onde os judeus encontravam simpatia e sincera
disposição para ajudar, tinham de pagar por isso, e a probabilidade de os
pobres conseguirem fugir eram nulas.
Levou-se a maior parte do mês de outubro para
transportar os judeus ao longo das cinco a quinze milhas marítimas que separam
a Dinamarca da Suécia. Os suecos receberam 5919 refugiados, dos quais pelo
menos mil eram de origem alemã, 1310 eram meio-judeus, e 686 não-judeus casados
com judeus. (Quase metade dos judeus dinamarqueses parece ter ficado no país,
sobrevivendo à guerra na clandestinidade.) Os judeus não dinamarqueses ficaram
melhor do que antes, e todos receberam permissão de trabalho. As poucas
centenas de judeus que a polícia alemã conseguiu prender foram mandadas para
Theresienstadt. Eram velhos ou pobres que não haviam recebido a notícia a tempo
ou que não conseguiram entender seu significado. No gueto, gozavam de
privilégios maiores do que os de qualquer outro grupo, devido ao “espalhafato”
infinito que faziam instituições e indivíduos dinamarqueses. Quarenta e oito
pessoas morreram, número não particularmente alto, em vista da média de idade
do grupo. Quando tudo terminou, na opinião abalizada de Eichmann, “por várias
razões a ação contra os judeus na Dinamarca foi um fracasso”, enquanto o
curioso dr. Best declarou que “o objetivo da operação não era capturar um
número grande de judeus, mas limpar a Dinamarca dos judeus, e esse objetivo foi
alcançado”.
Política e psicologicamente, o aspecto mais
interessante desse incidente é talvez o papel desempenhado pelas autoridades
alemãs na Dinamarca, sua evidente sabotagem das ordens de Berlim. É o único
caso que conhecemos em que os nazistas encontraram resistência nativa declarada,
e o resultado parece ter sido que os que foram expostos a ela mudaram de ideia.
Aparentemente eles mesmos haviam deixado de ver com naturalidade o extermínio
de todo um povo. Quando encontraram resistência baseada em princípios, sua
“dureza” se derreteu como manteiga ao sol, e eles foram capazes até mesmo de
demonstrar um tímido começo de coragem genuína. O ideal de “dureza”, exceto
talvez para uns poucos brutos semiloucos, não passava de um mito de autoengano,
escondendo um desejo feroz de conformidade a qualquer preço, e isso foi
claramente revelado nos julgamentos de Nuremberg, onde os réus se acusavam e
traíam mutuamente e juravam ao mundo que sempre “haviam sido contra aquilo”, ou
diziam, como faria Eichmann, que seus superiores haviam feito mau uso de suas
melhores qualidades. (Em Jerusalém, ele acusou “os poderosos” de ter feito mau
uso de sua “obediência”. “O cidadão de um bom governo tem sorte, o cidadão de
um mau governo é azarado. Eu não tive sorte.”) A atmosfera mudara, e embora a
maior parte deles deva ter percebido que estava condenada, nem um único teve a
coragem de defender a ideologia nazista.”
“A mesma história que se repete: os que
escaparam dos julgamentos de Nuremberg e não foram extraditados para os países
onde cometeram seus crimes nunca foram levados à justiça ou encontraram nas
cortes alemãs a maior “compreensão” possível. Vem à lembrança a infeliz
República de Weimar, cuja especialidade era endossar o assassinato político se
o assassino pertencia a um dos grupos violentamente antirrepublicanos da
direita.”
“(Devido ao apoio da população da
Bulgária e do seu parlamento, a despeito da forte pressão alemã,) o resultado
foi que nem um único judeu búlgaro havia sido deportado ou tinha morrido de
causa não natural quando, em agosto de 1944, com a aproximação do Exército
Vermelho, as leis antijudaicas foram revogadas.
Não conheço nenhuma tentativa de explicar a conduta do povo búlgaro, que é única no cinturão de populações mistas. Mas vem à mente Georgi Dimitrov, o comunista búlgaro que estava por acaso na Alemanha quando os nazistas subiram ao poder e que eles resolveram acusar pelo Reichstagsbrand, o incêndio misterioso do Parlamento de Berlim em 27 de fevereiro de 1933. Ele foi julgado pela Suprema Corte alemã e confrontou-se com Göring, que o interrogou como se estivesse encarregado do julgamento; e foi graças a ele que todos aqueles acusados, exceto van der Lubbe, tiveram de ser absolvidos. Foi tal a sua conduta que ele conquistou a admiração do mundo inteiro, da Alemanha inclusive. “Sobrou um homem na Alemanha”, as pessoas costumavam dizer, “e ele é búlgaro”.”
Não conheço nenhuma tentativa de explicar a conduta do povo búlgaro, que é única no cinturão de populações mistas. Mas vem à mente Georgi Dimitrov, o comunista búlgaro que estava por acaso na Alemanha quando os nazistas subiram ao poder e que eles resolveram acusar pelo Reichstagsbrand, o incêndio misterioso do Parlamento de Berlim em 27 de fevereiro de 1933. Ele foi julgado pela Suprema Corte alemã e confrontou-se com Göring, que o interrogou como se estivesse encarregado do julgamento; e foi graças a ele que todos aqueles acusados, exceto van der Lubbe, tiveram de ser absolvidos. Foi tal a sua conduta que ele conquistou a admiração do mundo inteiro, da Alemanha inclusive. “Sobrou um homem na Alemanha”, as pessoas costumavam dizer, “e ele é búlgaro”.”
“Os buracos de esquecimento não existem.”
“Existem no mundo pessoas demais para que
seja possível o esquecimento. Sempre sobra um homem para contar a história.”
“Ligado de perto a esse fracasso estava o
conspícuo desamparo que os juízes experimentaram quando se viram confrontados
com a tarefa de que menos podiam escapar, a tarefa de entender o criminoso que
tinham vindo julgar. Evidentemente não bastava que não acompanhassem a acusação
em sua descrição obviamente errada do acusado como um “sádico pervertido”, nem
teria bastado que fossem um passo à frente e demonstrassem a incoerência do
argumento da acusação, segundo o qual o sr. Hausner queria julgar o monstro mais
anormal que o mundo já vira e, ao mesmo tempo, julgar nele “muitos outros como
ele”, até mesmo “todo o movimento nazista e o antissemitismo em geral”. Eles
sabiam, é claro, que teria sido realmente muito reconfortante acreditar que
Eichmann era um monstro; se assim fosse, a acusação de Israel contra ele teria
soçobrado ou, no mínimo, perdido todo interesse. Não é possível convocar o
mundo inteiro e reunir correspondentes dos quatro cantos da Terra para expor o
Barba Azul no banco dos réus. O problema com Eichmann era exatamente que muitos
eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda
são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas
instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era
muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que —
como foi dito insistentemente em Nuremberg pelos acusados e seus advogados —
esse era um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humani,
que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível
para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado.”