quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (Parte II) – Hannah Arendt

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-7164-962-0
Tradução: José Rubens Siqueira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 344
Sinopse: Ver Parte I



“Aquilo que Eichmann chamou de “turbilhão de morte”, que se abateu sobre a Alemanha depois das imensas perdas de Stalingrado — os bombardeios incessantes de cidades alemãs, desculpa usual de Eichmann para o morticínio de civis, e ainda em curso na Alemanha — tornando corriqueira a visão de coisas diferentes das atrocidades relatadas em Jerusalém, mas não menos horríveis, pode bem ter contribuído para abater, ou melhor, extinguir a consciência, se é que sobrava ainda alguma consciência quando isso aconteceu; contudo, não era isso o que a evidência empírica indicava. A máquina de extermínio havia sido planejada e aperfeiçoada em todos os detalhes muitos antes do horror da guerra atingir a própria Alemanha, e sua intrincada burocracia funcionou com a mesma impassível precisão tanto nos anos de vitória fácil como naqueles de derrota previsível. No começo, quando as pessoas podiam ter ainda alguma consciência, quase não ocorreram deserções entre a elite governante e os comandantes superiores da SS; essas defecções se fizeram notar só quando ficou evidente que a Alemanha ia perder a guerra. Além disso, essas perdas nunca foram sérias a ponto de desequilibrar a máquina; elas consistiam em atos individuais não de misericórdia, mas de corrupção, inspirados não pela consciência, mas pelo desejo de guardar algum dinheiro ou alguns contatos para os dias sombrios que estavam por vir. A ordem de suspender o extermínio e desmontar as instalações dos pavilhões da morte, dada por Himmler no outono de 1944, brotou de sua absurda, mas sincera convicção de que os poderes aliados saberiam como apreciar esse gesto de atenção; ele contou a um incrédulo Eichmann que com isso ele poderia negociar uma Hubertusburger-Frieden — alusão ao Tratado de Paz de Hubertusburg que encerrou a Guerra dos Sete Anos de Frederico II da Prússia, em 1763, e permitiu que a Prússia retivesse Silésia apesar de ter perdido a guerra.
Eichmann contou que o fator mais potente para acalmar a sua própria consciência foi o simples fato de não ver ninguém, absolutamente ninguém, efetivamente contrário à Solução Final. Ele encontrou uma exceção, porém, que mencionou diversas vezes e que deve tê-lo impressionado muito. Foi na Hungria, quando ele estava negociando com o dr. Kastner a oferta de Himmler de libertar um milhão de judeus em troca de 10 mil caminhões. Kastner, aparentemente fortalecido pelo novo rumo das coisas, pediu a Eichmann que parasse “os moinhos de morte de Auschwitz”, e Eichmann respondeu que o faria “com o maior prazer” (herzlich gern), mas que infelizmente isso estava fora de sua alçada e fora da alçada de seus superiores, como de fato estava. Evidentemente, ele não esperava que os judeus compartilhassem o entusiasmo geral por sua destruição, mas esperava mais que complacência. Esperava — e recebeu, a um ponto verdadeiramente extraordinário — a cooperação deles. Isso era “evidentemente, a pedra angular” de tudo o que fazia, como havia sido a pedra angular de suas atividades em Viena. Não fosse a ajuda judaica no trabalho administrativo e policial — o agrupamento dos judeus de Berlim foi, como já mencionei, feito inteiramente pela polícia judaica —, teria ocorrido ou o caos absoluto ou uma drenagem extremamente significativa do potencial humano alemão. (“Não há dúvida de que, sem a cooperação das vítimas, dificilmente teria sido possível para uns poucos milhares de pessoas, a maioria das quais, além de tudo, trabalhava em escritórios, liquidar muitas centenas de milhares de pessoas [...] Ao longo de todo o caminho para as suas mortes, os judeus poloneses não viam mais que um punhado de alemães.” Assim se expressa R. Pendorf em Mörder und Ermordete. Isso se aplica em medida ainda maior aos judeus que foram transportados à Polônia para lá morrer.) Daí que o estabelecimento de governos de fachada em territórios ocupados fosse sempre acompanhado pela organização de um escritório judeu central; e nos lugares onde os nazistas não conseguiram estabelecer um governo marionete, fracassou também a obtenção da cooperação dos judeus. Mas enquanto os membros dos governos de fachada eram geralmente escolhidos entre os partidos de oposição, os membros dos Conselhos Judeus eram, como regra, os líderes judeus regionalmente reconhecidos, a quem os nazistas davam enormes poderes — até eles também serem deportados para Theresienstadt ou Bergen-Belsen, se eram da Europa Central ou Oriental, ou para Auschwitz se eram da comunidade da Europa Ocidental.
Para um judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus na destruição de seu próprio povo é, sem nenhuma dúvida, o capítulo mais sombrio de toda uma história de sombras. Isso já era sabido antes, mas agora foi exposto pela primeira vez em todos os seus patéticos e sórdidos detalhes por Raul Hilberg na obra The Destruction of the European Jews. Na questão da cooperação, não havia diferença entre as comunidades altamente assimiladas da Europa Central e Ocidental e as massas falantes do iídiche no Leste. Em Amsterdã assim como em Varsóvia, em Berlim como em Budapeste, os funcionários judeus mereciam toda confiança ao compilar as listas de pessoas e de suas propriedades, ao reter o dinheiro dos deportados para abater as despesas de sua deportação e extermínio, ao controlar os apartamentos vazios, ao suprir forças policiais para ajudar a prender os judeus e conduzi-los aos trens, e até, num último gesto, ao entregar os bens da comunidade judaica em ordem para o confisco final. Eles distribuíam os emblemas da Estrela Amarela e, às vezes, como em Varsóvia, “a venda de braçadeiras tornou-se um negócio normal; havia as faixas comuns de pano e as faixas especiais de plástico que eram laváveis”. Nos manifestos que publicavam, inspirados pelos nazistas, mas não ditados pelos nazistas, ainda se pode perceber o quanto gostavam de seus novos poderes — “O Conselho Judeu Central foi brindado com o direito de dispor absolutamente de toda riqueza espiritual e material dos judeus e de toda força de trabalho judaica”, como dizia o primeiro anúncio do Conselho de Budapeste. Sabemos o que sentiam os funcionários judeus quando se transformaram em instrumentos de assassinatos: como capitães “cujos navios estavam a ponto de afundar e que conseguiam levá-lo em segurança até o porto atirando ao mar parte de sua preciosa carga”; como salvadores que “com cem vítimas salvam mil pessoas, com mil salvavam 10 mil”. A verdade era ainda mais terrível. O dr. Kastner, da Hungria, por exemplo, salvou exatamente 1684 pessoas entre cerca de 476 mil vítimas. A fim de não deixar a seleção a cargo do “destino cego”, eram necessários “princípios realmente sagrados como força guia para a fraca mão humana que registra no papel o nome de uma pessoa desconhecidos e com isso decide sua vida ou sua morte”. E quem esses “princípios sagrados” selecionavam para salvação? Aqueles “que haviam trabalhado toda a vida pela zibur [comunidade]” — isto é, os funcionários — e os “judeus mais importantes”, como diz Kastner em seu relato.”


“A questão da cooperação foi mencionada duas vezes pelos juízes; o juiz Yitzak Raveh arrancou de uma das testemunhas da resistência a admissão de que a “polícia do gueto” era um “instrumento nas mãos dos assassinos” e conseguiu também o reconhecimento da “política de cooperação dos Judenrat com os nazistas”; e no segundo interrogatório, o juiz Halevi descobriu com Eichmann que os nazistas tinham visto essa cooperação como a pedra angular de sua política para os judeus. Mas a pergunta que o promotor fazia regularmente a cada testemunha, exceto aos combatentes, pergunta que soava tão natural àqueles que nada sabiam dos antecedentes do julgamento, a pergunta “Por que você não se rebelou?”, serviu na verdade de cortina de fumaça para a pergunta que não foi feita. E assim ocorreu que todas as respostas à pergunta irrespondível que o sr. Hausner fez a suas testemunhas eram bem menos do que “a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade”. A verdade era que o povo judeu não era um todo organizado, que não possuía território, governo, nem exército em sua hora de maior precisão, não tinha um governo no exílio para representá-lo entre os Aliados (a Agência Judaica para a Palestina, presidida pelo dr. Weizmann, era na melhor das hipóteses um substituto miserável), nem um esconderijo de armas, nem uma juventude com treinamento militar. Mas a verdade integral é que existiam organizações comunitárias judaicas e organizações recreativas e assistenciais tanto em nível local como internacional. Onde quer que vivessem judeus, havia líderes judeus reconhecidos, e essa liderança, quase sem exceção, cooperou com os nazistas de uma forma ou de outra, por uma ou outra razão. A verdade integral era que, se o povo judeu estivesse desorganizado e sem líderes, teria havido caos e muita miséria, mas o número total de vítimas dificilmente teria ficado entre 4 milhões e meio e 6 milhões de pessoas.
Detive-me sobre esse capítulo do caso, que o tribunal de Jerusalém deixou de apresentar aos olhos do mundo em suas verdadeiras dimensões, porque ele oferece uma visão notável da totalidade do colapso moral que os nazistas provocaram na respeitável sociedade europeia — não apenas na Alemanha, mas em quase todos os países, não só entre os perseguidores, mas também entre as vítimas.”


“O dr. Servatius pelo menos dessa vez tomou a iniciativa e fez à testemunha uma pergunta altamente pertinente: “O senhor tentou influenciá-lo? Tentou, como religioso, apelar para os sentimentos dele, fazer um sermão para ele, e lhe dizer que sua conduta era contrária à moralidade?”. Evidentemente o bravo pastor Grüber não tinha feito nada do tipo, e suas respostas foram altamente embaraçosas. Ele disse que “atos são mais eficazes que palavras”, e que “palavras teriam sido inúteis”; expressou-se com clichês que não tinham nada a ver com a realidade da situação, na qual “meras palavras” teriam sido atos, e onde teria sido talvez dever de um sacerdote desafiar “a inutilidade das palavras”.
Ainda mais pertinente que a pergunta do dr. Servatius foi o que Eichmann disse sobre esse episódio em seu último depoimento “Ninguém veio até mim e me censurou por nada no desempenho de meus deveres, nem o pastor Grüber disse uma coisa dessas”, ele repetiu. E acrescentou: “Ele veio até mim e pediu alívio para o sofrimento, mas não objetou de fato ao desempenho de meus deveres enquanto tais”. Pelo depoimento do pastor Grüber parecia que ele buscava não tanto o “alívio do sofrimento” quanto a isenção para algumas categorias bem estabelecidas anteriormente pelos nazistas. Essas categorias haviam sido aceitas sem protestos pelo judaísmo alemão desde o começo. E a aceitação de categorias privilegiadas — judeus alemães acima de judeus poloneses, judeus veteranos de guerra e condecorados acima de judeus comuns, famílias cujos ancestrais eram nascidos na Alemanha acima de cidadãos naturalizados recentemente etc. — fora o começo do colapso moral da respeitável sociedade judaica. (Hoje em dia, quando há uma tendência a relegar esses temas como se houvesse uma lei da natureza humana que levasse todo mundo a perder a dignidade em face do desastre, podemos relembrar a atitude dos veteranos de guerra judeus franceses, a quem seu governo ofereceu os mesmos privilégios e que responderam: “Declaramos solenemente que recusamos todo benefício excepcional que possamos gozar por nossa condição de ex-combatentes” [American Jewish Yearbook, 1945].) Nem é preciso dizer que os próprios nazistas nunca levaram a sério essas distinções. Para eles um judeu era um judeu, mas as categorias desempenharam certo papel até o final, uma vez que ajudaram a acalmar certa inquietação entre a população alemã: só os judeus poloneses foram deportados, só as pessoas que haviam fugido do serviço militar, e assim por diante. Para aqueles que não queriam fechar os olhos, deve ter ficado claro desde o começo que “era prática geral permitir certas exceções a fim de conseguir manter a regra geral com maior facilidade” (nas palavras de Louis de Jong num esclarecedor artigo sobre “Jews and Non-Jews in Nazi-Occupied Holland”).
Moralmente, o mais desastroso na aceitação dessas categorias privilegiadas era que todos os que pediam uma “exceção” para o seu caso reconheciam implicitamente a regra, mas esse ponto aparentemente nunca foi percebido por esses “bons homens”, judeus e gentios, que se ocupavam com esses “casos especiais” para os quais pediam tratamento preferencial. Mas se os solicitantes judeus e gentios de “casos especiais” não tinham consciência de sua involuntária cumplicidade, esse reconhecimento implícito da regra, que significava morte para todos os casos não especiais, deve ter sido muito óbvio para aqueles que estavam envolvidos no negócio do assassinato. Eles devem ter sentido, pelo menos, que ao receber pedidos de exceções e ao atender alguns ocasionalmente, conquistando assim gratidão, estavam convencendo seus oponentes da legalidade do que faziam.”


“E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita “Não matarás”, mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: “Matarás”, embora os organizadores dos massacres soubessem muito bem que o assassinato era contra os desejos e os pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem — a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação.”


“Foi na Dinamarca, porém, que os alemães descobriram o quanto eram justificadas as apreensões do Ministério das Relações Exteriores. A história dos judeus dinamarqueses é sui generis, e o comportamento do povo dinamarquês e de seu governo foi único entre todos os países da Europa — ocupada, associada ao Eixo, neutra ou verdadeiramente independente. É forte a tentação de recomendar a leitura obrigatória desse episódio da ciência política para todos os estudantes que queiram aprender alguma coisa sobre o enorme potencial de poder inerente à ação não violenta e à resistência a um oponente detentor de meios de violência vastamente superiores. Sem dúvida alguns outros países na Europa eram desprovidos de um adequado “conhecimento da questão judaica”, e na verdade a maioria deles se opôs às soluções “radical” e “final”. Assim como a Dinamarca, a Suécia, a Itália e a Bulgária provaram ser quase imunes ao antissemitismo, mas dos três países na esfera de influência alemã, só os dinamarqueses ousaram falar do assunto com seus senhores alemães. A Itália e a Bulgária sabotavam as ordens alemãs e se permitiam um complicado jogo de negociação e trapaça, salvando seus judeus graças a um tour de force de pura criatividade, mas jamais contestaram a política enquanto tal. Os dinamarqueses fizeram uma coisa completamente diferente. Quando os alemães os abordaram, bastante cautelosamente, quanto à introdução do emblema amarelo, eles simplesmente disseram que o rei seria o primeiro a usá-la, e os funcionários governamentais dinamarqueses tiveram o cuidado de esclarecer que medidas antijudaicas de qualquer ordem provocariam sua imediata renúncia. Muito decisivo na questão toda foi o fato de os alemães não conseguirem determinar nem mesmo — o que era vitalmente importante para eles — quem eram os dinamarqueses nativos de origem judaica (cerca de 6400) e quem eram os 1400 judeus alemães refugiados que haviam encontrado asilo no país antes da guerra, agora declarados apátridas pelo governo alemão. Essa recusa deve ter sido uma infinita surpresa para os alemães, visto que parecia “ilógico” um governo proteger pessoas a quem havia recusado categoricamente naturalização e mesmo permissão de trabalho. Os dinamarqueses, porém, explicaram aos funcionários alemães que uma vez que os refugiados apátridas não eram mais cidadãos alemães, os nazistas não podiam mais requisitá-los sem o consentimento dinamarquês. Esse foi um dos poucos casos em que a falta de pátria acabou sendo um privilégio, embora, evidentemente, não tenha sido a falta de Estado per se que salvou os judeus, mas, ao contrário, o fato de o governo dinamarquês decidir protegê-los. Dessa forma, nenhum dos movimentos preparatórios, tão importantes para a burocracia do assassinato, pôde ser levado a cabo, e as operações foram adiadas até depois do outono de 1943.
O que aconteceu então foi realmente surpreendente; comparado ao que aconteceu em outros países europeus, tudo resultou numa grande trapalhada. Em agosto de 1943 — depois do fracasso da ofensiva alemã na Rússia, da rendição do Afrika Korps na Tunísia e da invasão aliada na Itália — o governo sueco cancelou o acordo de 1940 com a Alemanha, permitindo que as tropas alemãs atravessassem seu território. Diante disso, os trabalhadores dinamarqueses decidiram que podiam ajudar um pouco a acelerar as coisas; irromperam tumultos nos estaleiros dinamarqueses e os trabalhadores das docas se recusaram a consertar navios alemães, entrando em greve em seguida. O comandante militar alemão decretou estado de emergência e impôs a lei marcial, e Himmler achou que aquele era o momento adequado para tocar na questão judaica, cuja “solução” estava muito atrasada. O que não estava em seus cálculos — sem contar a resistência dinamarquesa — foi que os funcionários alemães que viviam havia anos no país não eram mais os mesmos. Não só o general von Hannecken, comandante militar, recusou-se a pôr tropas à disposição do plenipotenciário do Reich, dr. Werner Best, como também as unidades especiais da SS (Einsatzkommandos) alocadas na Dinamarca muitas vezes objetaram às medidas que os organismos centrais ordenavam que fossem tomadas — segundo o testemunho de Best em Nuremberg. E o próprio Best, um velho homem da Gestapo e antigo conselheiro legal de Heydrich, autor de um livro famoso sobre a polícia e que trabalhara para o governo militar em Paris satisfazendo plenamente a seus superiores, já não merecia confiança, embora não se saiba ao certo se Berlim chegou a tomar conhecimento disso. De toda forma, desde o princípio ficou claro que as coisas não estavam indo bem, e o departamento de Eichmann mandou um de seus melhores homens à Dinamarca — Rolf Günther, que ninguém jamais acusara de não ter a necessária “dureza impiedosa”. Günther não impressionou seus colegas de Copenhague e Hannecken se recusou até mesmo a baixar um decreto exigindo que todos os judeus se apresentassem para trabalhar.
Best foi para Berlim e conseguiu uma promessa de que os judeus da Dinamarca seriam mandados para Theresienstadt fosse qual fosse sua categoria — concessão muito importante do ponto de vista nazista. Foi escolhida a noite de 10 de outubro para sua captura e partida imediata — os navios já estavam prontos no porto —, e como não se podia confiar nem nos dinamarqueses, nem nos judeus, nem nas tropas alemãs estacionadas na Dinamarca, chegaram da Alemanha unidades da polícia para realizar uma busca de porta em porta. No último momento, Best lhes disse que não podiam invadir apartamentos, porque nesse caso a polícia dinamarquesa poderia interferir, e que não deviam entrar em choque com os dinamarqueses. Em decorrência, só conseguiram capturar os judeus que abriram suas portas voluntariamente. De um total de mais de 7800 pessoas, encontraram exatamente 477 que estavam em casa e dispostas a deixá-los entrar. Poucos dias antes da data fatídica, um agente de transporte alemão, Georg F. Duckwitz, provavelmente a partir de informações fornecidas pelo próprio Best, revelou todo o plano aos funcionários governamentais dinamarqueses, que por sua vez informaram rapidamente os cabeças da comunidade judaica. Estes, em marcante contraste com líderes judeus de outros países, deram a notícia abertamente nas sinagogas, por ocasião dos serviços de Ano-Novo. Os judeus tiveram tempo suficiente para sair de seus apartamentos e esconder-se, o que era muito fácil na Dinamarca porque, nas palavras da sentença, “todos os setores do povo dinamarquês, desde o rei até os simples cidadãos”, estavam prontos para recebê-los.
Talvez fosse necessário que ficassem na clandestinidade até o final da guerra se os dinamarqueses não tivessem a sorte de ter a Suécia como vizinha. Pareceu razoável embarcar os judeus para a Suécia, e isso foi feito com a ajuda da frota pesqueira dinamarquesa. O custo do transporte para as pessoas sem meios — cerca de cem dólares por pessoa — foi pago em grande parte por cidadãos dinamarqueses ricos, e talvez seja esse o fato mais assombroso, uma vez que na época a praxe era os judeus pagarem sua própria deportação, com os ricos gastando fortunas em permissões de saída (na Holanda, na Eslováquia e depois na Hungria), fosse subornando as autoridades locais, fosse negociando “legalmente” com a SS, que só aceitava moedas fortes e vendia permissões de saída da Holanda ao preço de 5 ou 10 mil dólares por pessoa. Mesmo em lugares onde os judeus encontravam simpatia e sincera disposição para ajudar, tinham de pagar por isso, e a probabilidade de os pobres conseguirem fugir eram nulas.
Levou-se a maior parte do mês de outubro para transportar os judeus ao longo das cinco a quinze milhas marítimas que separam a Dinamarca da Suécia. Os suecos receberam 5919 refugiados, dos quais pelo menos mil eram de origem alemã, 1310 eram meio-judeus, e 686 não-judeus casados com judeus. (Quase metade dos judeus dinamarqueses parece ter ficado no país, sobrevivendo à guerra na clandestinidade.) Os judeus não dinamarqueses ficaram melhor do que antes, e todos receberam permissão de trabalho. As poucas centenas de judeus que a polícia alemã conseguiu prender foram mandadas para Theresienstadt. Eram velhos ou pobres que não haviam recebido a notícia a tempo ou que não conseguiram entender seu significado. No gueto, gozavam de privilégios maiores do que os de qualquer outro grupo, devido ao “espalhafato” infinito que faziam instituições e indivíduos dinamarqueses. Quarenta e oito pessoas morreram, número não particularmente alto, em vista da média de idade do grupo. Quando tudo terminou, na opinião abalizada de Eichmann, “por várias razões a ação contra os judeus na Dinamarca foi um fracasso”, enquanto o curioso dr. Best declarou que “o objetivo da operação não era capturar um número grande de judeus, mas limpar a Dinamarca dos judeus, e esse objetivo foi alcançado”.
Política e psicologicamente, o aspecto mais interessante desse incidente é talvez o papel desempenhado pelas autoridades alemãs na Dinamarca, sua evidente sabotagem das ordens de Berlim. É o único caso que conhecemos em que os nazistas encontraram resistência nativa declarada, e o resultado parece ter sido que os que foram expostos a ela mudaram de ideia. Aparentemente eles mesmos haviam deixado de ver com naturalidade o extermínio de todo um povo. Quando encontraram resistência baseada em princípios, sua “dureza” se derreteu como manteiga ao sol, e eles foram capazes até mesmo de demonstrar um tímido começo de coragem genuína. O ideal de “dureza”, exceto talvez para uns poucos brutos semiloucos, não passava de um mito de autoengano, escondendo um desejo feroz de conformidade a qualquer preço, e isso foi claramente revelado nos julgamentos de Nuremberg, onde os réus se acusavam e traíam mutuamente e juravam ao mundo que sempre “haviam sido contra aquilo”, ou diziam, como faria Eichmann, que seus superiores haviam feito mau uso de suas melhores qualidades. (Em Jerusalém, ele acusou “os poderosos” de ter feito mau uso de sua “obediência”. “O cidadão de um bom governo tem sorte, o cidadão de um mau governo é azarado. Eu não tive sorte.”) A atmosfera mudara, e embora a maior parte deles deva ter percebido que estava condenada, nem um único teve a coragem de defender a ideologia nazista.”


“A mesma história que se repete: os que escaparam dos julgamentos de Nuremberg e não foram extraditados para os países onde cometeram seus crimes nunca foram levados à justiça ou encontraram nas cortes alemãs a maior “compreensão” possível. Vem à lembrança a infeliz República de Weimar, cuja especialidade era endossar o assassinato político se o assassino pertencia a um dos grupos violentamente antirrepublicanos da direita.”


“(Devido ao apoio da população da Bulgária e do seu parlamento, a despeito da forte pressão alemã,) o resultado foi que nem um único judeu búlgaro havia sido deportado ou tinha morrido de causa não natural quando, em agosto de 1944, com a aproximação do Exército Vermelho, as leis antijudaicas foram revogadas.
          Não conheço nenhuma tentativa de explicar a conduta do povo búlgaro, que é única no cinturão de populações mistas. Mas vem à mente Georgi Dimitrov, o comunista búlgaro que estava por acaso na Alemanha quando os nazistas subiram ao poder e que eles resolveram acusar pelo Reichstagsbrand, o incêndio misterioso do Parlamento de Berlim em 27 de fevereiro de 1933. Ele foi julgado pela Suprema Corte alemã e confrontou-se com Göring, que o interrogou como se estivesse encarregado do julgamento; e foi graças a ele que todos aqueles acusados, exceto van der Lubbe, tiveram de ser absolvidos. Foi tal a sua conduta que ele conquistou a admiração do mundo inteiro, da Alemanha inclusive. “Sobrou um homem na Alemanha”, as pessoas costumavam dizer, “e ele é búlgaro”.”


“Os buracos de esquecimento não existem.”


“Existem no mundo pessoas demais para que seja possível o esquecimento. Sempre sobra um homem para contar a história.”


“Ligado de perto a esse fracasso estava o conspícuo desamparo que os juízes experimentaram quando se viram confrontados com a tarefa de que menos podiam escapar, a tarefa de entender o criminoso que tinham vindo julgar. Evidentemente não bastava que não acompanhassem a acusação em sua descrição obviamente errada do acusado como um “sádico pervertido”, nem teria bastado que fossem um passo à frente e demonstrassem a incoerência do argumento da acusação, segundo o qual o sr. Hausner queria julgar o monstro mais anormal que o mundo já vira e, ao mesmo tempo, julgar nele “muitos outros como ele”, até mesmo “todo o movimento nazista e o antissemitismo em geral”. Eles sabiam, é claro, que teria sido realmente muito reconfortante acreditar que Eichmann era um monstro; se assim fosse, a acusação de Israel contra ele teria soçobrado ou, no mínimo, perdido todo interesse. Não é possível convocar o mundo inteiro e reunir correspondentes dos quatro cantos da Terra para expor o Barba Azul no banco dos réus. O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que — como foi dito insistentemente em Nuremberg pelos acusados e seus advogados — esse era um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado.”

Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (Parte I) – Hannah Arendt

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-7164-962-0
Tradução: José Rubens Siqueira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 344
Sinopse: Em 1960, sequestrado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense, Adolf Eichmann é levado para Jerusalém, para o que deveria ser o maior julgamento de um carrasco nazista depois do tribunal de Nuremberg. Mas, durante o processo, em vez do monstro sanguinário que todos esperavam ver, surge um funcionário medíocre, um arrivista incapaz de refletir sobre seus atos ou de fugir aos clichês burocráticos. É justamente aí que o olhar lúcido de Hannah Arendt descobre a “banalidade do mal”, ameaça maior às sociedades democráticas. Numa mescla brilhante de jornalismo político e reflexão filosófica, Arendt investiga questões sempre atuais, como a capacidade do Estado de transformar o exercício da violência homicida em mero cumprimento de metas e organogramas.



“A lei rabínica governa o status pessoal de cidadãos judeus, proibindo judeus de casar com não-judeus; os casamentos realizados no exterior são reconhecidos, mas os filhos de casamentos mistos são legalmente bastardos (filhos de pais judeus nascidos fora do casamento são legítimos), e se a mãe de alguém por acaso é não-judia essa pessoa não pode nem se casar, nem ser enterrada. (...)
Fossem quais fossem as razões, havia, sem dúvida, algo assombroso na ingenuidade com que a acusação denunciou as infames Leis de Nuremberg de 1935, que proibiu o casamento e as relações sexuais entre judeus e alemães. Os correspondentes melhor informados estavam bem cônscios dessa ironia, mas não fizeram menção a ela em suas reportagens. Não era o momento, pensaram, de apontar aos judeus o que estava errado nas leis e instituições de seu próprio país.”


“O antissemitismo fora desacreditado, graças a Hitler, talvez para sempre e sem dúvida por um bom tempo, e isso não ocorrera porque os judeus tinham ficado mais populares de repente, mas porque, nas palavras do próprio sr. Ben-Gurion, a maioria das pessoas tinha “entendido que em nossos dias o antissemitismo só pode levar à câmara de gás e à fábrica de sabão”. Igualmente dispensável era a lição para os judeus da Diáspora, que não precisavam nem um pouco da grande catástrofe em que morreu um terço de seu povo para se convencer da hostilidade do mundo: sua convicção sobre a natureza eterna e ubíqua do antissemitismo foi não só o fator ideológico mais potente do movimento sionista desde o Caso Dreyfus, como também a causa possível da prontidão demonstrada pela comunidade judaica alemã em negociar com as autoridades nazistas durante os primeiros estágios do regime. (Nem é preciso dizer que havia um abismo separando essas negociações da colaboração posterior dos Judenräte. Ainda não havia nenhuma questão moral envolvida, apenas uma decisão política cujo “realismo” era discutível: a ajuda “concreta”, rezava o argumento, era melhor do que denúncias “abstratas”. Era Realpolitik sem tons maquiavélicos, e seus perigos vieram à luz anos depois, quando eclodiu a guerra, quando esses contatos diários entre as organizações judaicas e a burocracia nazista tornaram tão fácil para os funcionários judeus atravessar o abismo entre ajudar os judeus a escapar ou ajudar os nazistas a deportá-los.) Foi essa convicção que produziu a perigosa incapacidade dos judeus de distinguir entre amigos e inimigos; e os judeus alemães não eram os únicos a subestimar seus inimigos porque de alguma forma consideravam que todos os gentios eram iguais. Se o primeiro-ministro Ben-Gurion, que para todas as finalidades práticas, era o chefe do Estado judeu, pretendia fortalecer esse tipo de “consciência judaica”, ele estava mal orientado; pois uma transformação nessa mentalidade é, de fato, um dos pré-requisitos indispensáveis para o Estado de Israel, que por definição fez dos judeus um povo entre os povos, uma nação entre as nações, um Estado entre os Estados, dependendo agora de uma pluralidade que não mais permite a antiquíssima dicotomia, infelizmente religiosa, entre judeus e gentios.
O contraste entre o heroísmo israelense e a passividade submissa com que os judeus marcharam para a morte — chegando pontualmente nos pontos de transporte, andando sobre os próprios pés para os locais de execução, cavando os próprios túmulos, despindo-se e empilhando caprichosamente as próprias roupas, e deitando-se lado a lado para ser fuzilados — parecia uma questão importante, e o promotor, ao perguntar a testemunha após testemunha “Por que não protestou?”, “Por que embarcou no trem?”, “Havia 15 mil pessoas paradas lá, com centenas de guardas à frente — por que vocês não se revoltaram, não partiram para o ataque?”, elaborava ainda mais essa questão, mesmo que insignificante. Mas a triste verdade é que ela era tomada erroneamente, pois nenhum grupo ou indivíduo não judeu se comportou de outra forma. Dezesseis anos antes, ainda sob o impacto dos acontecimentos, David Rousset, ex-prisioneiro de Buchenwald, descrevia o que sabemos ter acontecido em todos os campos de concentração: “O triunfo da SS exige que a vítima torturada permita ser levada à ratoeira sem protestar, que ela renuncie e se abandone a ponto de deixar de afirmar sua identidade. E não é por nada. Não é gratuitamente, nem por mero sadismo, que os homens da SS desejam sua derrota. Eles sabem que o sistema que consegue destruir suas vítimas antes que elas subam ao cadafalso... é incomparavelmente melhor para manter todo um povo em escravidão. Em submissão. Nada é mais terrível do que essas procissões de seres humanos marchando como fantoches para a morte” (Les Jours de notre mort, 1947). A corte não recebeu nenhuma resposta para essa questão tola e cruel, mas qualquer um poderia facilmente encontrar uma resposta se deixasse sua imaginação deter-se um pouco no destino daqueles judeus holandeses que, em 1941, no velho bairro judeu de Amsterdã, ousaram atacar um destacamento da Polícia de Segurança alemã. Quatrocentos e trinta judeus foram presos em represália e literalmente torturados até a morte, primeiro em Buchenwald, depois no campo austríaco de Mauthausen. Durante meses sem fim, morreram milhares de mortes, e todos eles deviam invejar seus irmãos que estavam em Auschwitz e até em Riga e Minsk. Há muitas coisas consideravelmente piores do que a morte, e a SS cuidava que nenhuma delas jamais ficasse muito distante da mente e da imaginação de suas vítimas. Sob esse aspecto, talvez até mais significativamente do que sob outros, a tentativa deliberada de contar apenas o lado judeu da história no julgamento distorcia a verdade, até mesmo a verdade judaica. A glória do levante do gueto de Varsóvia e o heroísmo dos poucos que reagiram estava precisamente no fato de eles terem recusado a morte comparativamente fácil que os nazistas lhes ofereciam — à frente do pelotão de fuzilamento ou na câmara de gás. E as testemunhas que em Jerusalém depuseram sobre a resistência e a rebelião e sobre o “lugar insignificante que desempenharam na história do holocausto” confirmaram mais uma vez o fato de que só os muito jovens haviam sido capazes de tomar “a decisão de não ir para o sacrifício como carneiros”.”


“Existe um outro lado dessa questão, mais delicado e politicamente mais relevante. Uma coisa é desentocar criminosos e assassinos de seus esconderijos, outra é encontrá-los importantes e prósperos no âmbito público — encontrar nas administrações estadual e federal e, geralmente, em cargos públicos inúmeros homens cujas carreiras floresceram no regime de Hitler. Claro, se a administração Adenauer fosse exigente demais para empregar funcionários com passado nazista comprometedor, talvez não houvesse administradores de nenhuma espécie. Pois a verdade é, evidentemente, o oposto do que disse o dr. Adenauer, para quem só “uma porcentagem relativamente pequena” de alemães foi nazista, ao passo que a “grande maioria [ficava] feliz de ajudar seus concidadãos judeus, sempre que possível”. (Pelo menos um jornal alemão, o Frankfurter Rundschau, fez a pergunta óbvia, pendente há muito tempo — Por que tantas pessoas que deviam conhecer o passado do promotor-chefe, por exemplo, se calaram? — e o próprio jornal deu a resposta ainda mais óbvia: “Porque essas pessoas também se sentiam incriminadas”.) A lógica do julgamento de Eichmann, conforme concebido por Ben-Gurion, com ênfase em questões gerais, em detrimento de sutilezas legais, exigiria a exposição da cumplicidade de todos os funcionários e autoridades alemães na Solução Final — de todos os servidores públicos dos ministérios estatais, das forças armadas regulares, com seu staff geral, do Judiciário e do mundo empresarial. Mas embora a acusação tenha sido conduzida pelo sr. Hausner de forma a pôr no banco testemunha após testemunha para falar sobre coisas que, embora horrendas e verdadeiras, tinham pouca ou nenhuma ligação com os atos do acusado, essa acusação evitava cuidadosamente tocar na questão altamente explosiva: a cumplicidade quase ubíqua, que se estendera muito além das alas dos membros do Partido.
Porque era a história, no que dizia respeito à acusação, que estava no centro do processo. “Não é um indivíduo que está no banco dos réus neste processo histórico, não é apenas o regime nazista, mas o antissemitismo ao longo de toda a história.” Foi esse o tom estabelecido por Ben-Gurion e seguido fielmente pelo sr. Hausner, que começou seu discurso de abertura (que durou três sessões) com o faraó do Egito e com o decreto de Haman de “destruir, matar, e fazê-los perecer”. Em seguida, citou Ezequiel: “E quando eu [o Senhor] passei por ti e te vi imundo de teu próprio sangue, disse-te: Em teu sangue, vive”, explicando que estas últimas palavras deviam ser entendidas como “o imperativo que confronta esta nação desde sua primeira aparição no palco da história”. Mas aquilo era má história e péssima retórica; pior, contrariava diretamente o depoimento de Eichmann em julgamento, sugerindo que talvez ele fosse apenas um inocente executor de algum misterioso destino predeterminado, ou, quem sabe, do próprio antissemitismo, talvez necessário para marcar a trilha da “estrada manchada de sangue que este povo trilhou” para cumprir seu destino.”


“Será que Eichmann se teria declarado culpado se fosse acusado de cumplicidade no assassinato? Talvez, mas teria feito importantes qualificações. O que ele fizera era crime só retrospectivamente, e ele sempre fora um cidadão respeitador das leis, porque as ordens de Hitler, que sem dúvida executou o melhor que pôde, possuíam “força de lei” no Terceiro Reich. (A defesa poderia ter citado, em apoio à tese de Eichmann, o testemunho de um dos mais conhecidos peritos em lei constitucional do Terceiro Reich, Theodor Maunz, então ministro da Educação e Cultura da Baviera, que afirmou, em 1943 [em Gestalt und Recht der Polizei]: “O comando do Führer [...] é o centro absoluto da ordem legal contemporânea”.) Aqueles que hoje diziam que Eichmann podia ter agido de outro modo simplesmente não sabiam, ou haviam esquecido, como eram as coisas. Ele não queria ser um daqueles que agora fingiam que “tinham sempre sido contra”, quando na verdade estavam muito dispostos a fazer o que lhes ordenavam. Porém, o tempo muda, e ele, assim como o professor Maunz, “chegara a conclusões diferentes”. O que fez estava feito, não pretendia negar; ao contrário, propunha “ser enforcado publicamente como exemplo para todos os antissemitas da Terra”. Com isso, não queria dizer que se arrependia de alguma coisa: “Arrependimento é para criancinhas”. (Sic!)
Mesmo sob considerável pressão de seu advogado, ele não mudou essa posição.”


“Ao longo de todo o julgamento, Eichmann tentou esclarecer, quase sempre sem nenhum sucesso que era “inocente no sentido da acusação”. A acusação deixava implícito que ele não só agira conscientemente, coisa que ele não negava, como também agira por motivos baixos e plenamente consciente da natureza criminosa de seus feitos. Quanto aos motivos baixos, ele tinha certeza absoluta de que, no fundo de seu coração, não era aquilo que chamava de innerer Schweinehund, um bastardo imundo; e quanto à sua consciência, ele se lembrava perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam — embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado. Isso era mesmo difícil de engolir. Meia dúzia de psiquiatras haviam atestado a sua “normalidade” — “pelo menos, mais normal do que eu fiquei depois de examiná-lo”, teria exclamado um deles, enquanto outros consideraram seu perfil psicológico, sua atitude quanto a esposa e filhos, mãe e pai, irmãos, irmãs e amigos, “não apenas normal, mas inteiramente desejável” — e, por último, o sacerdote que o visitou regularmente na prisão depois que a Suprema Corte terminou de ouvir seu apelo tranquilizou a todos declarando que Eichmann era “um homem de ideias muito positivas”. Por trás da comédia dos peritos da alma estava o duro fato de que não se tratava, evidentemente, de um caso de sanidade moral e muito menos de sanidade legal.”
Claro, ninguém acreditou nele. O promotor não acreditou, porque não era essa a sua função. O advogado de defesa não lhe prestou atenção porque, ao contrário de Eichmann, ele não estava, aparentemente, interessado em questões de consciência. E os juízes não acreditaram nele, porque eram bons demais e talvez também conscientes demais das bases de sua profissão para chegar a admitir que uma pessoa mediana, “normal”, nem burra, nem doutrinada, nem cínica, pudesse ser inteiramente incapaz de distinguir o certo do errado. Eles preferiram tirar das eventuais mentiras a conclusão de que ele era um mentiroso — e deixaram passar o maior desafio moral e mesmo legal de todo o processo. A acusação tinha por base a premissa de que o acusado, como toda “pessoa normal”, devia ter consciência da natureza de seus atos, e Eichmann era efetivamente normal na medida em que “não era uma exceção dentro do regime nazista”. No entanto, nas condições do Terceiro Reich, só se podia esperar que apenas as “exceções” agissem “normalmente”. O cerne dessa questão, tão simples, criou um dilema para os juízes. Dilema que eles não souberam nem resolver, nem evitar.”


“Eichmann não entrou para o Partido por convicção nem jamais se deixou convencer por ele — sempre que lhe pediam para dar suas razões, repetia os mesmos clichês envergonhados sobre o Tratado de Versalhes e o desemprego; antes, conforme declarou no tribunal, “foi como ser engolido pelo Partido contra todas as expectativas e sem decisão prévia. Aconteceu muito depressa e repentinamente”. Ele não tinha tempo, e muito menos vontade de se informar adequadamente, jamais conheceu o programa do Partido, nunca leu Mein Kampf. Kaltenbrunner disse para ele: Por que não se filia à SS? E ele respondeu: Por que não? Foi assim que aconteceu, e isso parecia ser tudo.
Evidentemente, isso não era tudo. O que Eichmann deixou de dizer ao juiz presidente durante seu interrogatório foi que ele havia sido um jovem ambicioso que não aguentava mais o emprego de vendedor viajante antes mesmo de a Companhia de Óleo a Vácuo não aguentá-lo mais. De uma vida rotineira, sem significado ou consequência, o vento o tinha soprado para a História, pelo que ele entendia, ou seja, para dentro de um Movimento sempre em marcha e no qual alguém como ele — já fracassado aos olhos de sua classe social, de sua família e, portanto, aos seus próprios olhos também — podia começar de novo e ainda construir uma carreira. E se ele nem sempre gostava do que tinha de fazer (por exemplo, despachar multidões que iam de trem para a morte em vez de forçá-las a emigrar), se ele não adivinhou antes que a coisa toda iria acabar mal, com a Alemanha perdendo a guerra, se todos os seus planos mais caros deram em nada (a evacuação dos judeus europeus para Madagascar, o estabelecimento de um território judeu na região de Nisko, na Polônia, o experimento com instalações de defesa cuidadosamente construídas em torno de seu escritório de Berlim para repelir os tanques russos), e se, para sua grande “tristeza e sofrimento”, ele nunca passou do grau de Obersturmbannführer da SS (posto equivalente ao de tenente-coronel) — em resumo, se, com exceção do ano que passou em Viena, sua vida fora marcada por frustrações, ele jamais esqueceu qual seria a alternativa. Não só na Argentina, levando a triste existência de um refugiado, mas também na sala do tribunal de Jerusalém, com sua vida praticamente confiscada, ele ainda preferiria — se alguém lhe perguntasse — ser enforcado como Obersturmbannführer a. D. (da reserva) do que viver a vida discreta e normal de vendedor viajante da Companhia de Óleo a Vácuo.”


“Era o ano de 1935, quando a Alemanha, contrariamente às determinações do Tratado de Versalhes, introduziu a convocação geral e anunciou publicamente planos de rearmamento, inclusive a construção de uma força aérea e uma marinha. Era também o ano em que a Alemanha, tendo deixado a Liga das Nações em 1933, preparava, nem discreta, nem secretamente, a ocupação da zona desmilitarizada do Reno. Era o momento dos discursos de paz de Hitler — “a Alemanha precisa de paz e deseja a paz”, “reconhecemos a Polônia como lar de um grande povo consciente de sua nacionalidade”, “a Alemanha não pretende nem deseja interferir nos negócios internos da Áustria, nem anexar a Áustria, nem concluir um Anchluss” — e, acima de tudo, era o ano em que o regime nazista conquistaria reconhecimento generalizado e infelizmente genuíno na Alemanha e no exterior, em que Hitler seria admirado por toda parte como um grande estadista. Na própria Alemanha, aquela era uma época de transição. Devido ao enorme programa de rearmamento, o desemprego havia sido eliminado, a resistência inicial da classe trabalhadora fora quebrada, e a hostilidade do regime, que de início voltara-se primordialmente contra “antifascistas” — comunistas, socialistas, intelectuais de esquerda e judeus em posições importantes —, ainda não se voltara inteiramente para a perseguição de judeus enquanto judeus.”


“Quando perguntaram a Eichmann como ele conseguia conciliar seus sentimentos pessoais sobre os judeus com o antissemitismo aberto e violento do Partido a que se filiara, ele respondeu com o provérbio: “Nada é tão quente para se comer, como era ao se cozer” — provérbio que andava na boca de muitos judeus também. Eles viviam num paraíso ilusório, no qual, durante alguns anos, até mesmo Streicher falava de uma “solução legal” para o problema judeu. Para tirá-los desse engano, foi preciso levar a cabo os pogroms organizados de novembro de 1938, a Kristallnacht ou Noite dos Cristais, em que 7500 vitrinas de lojas judaicas foram quebradas, todas as sinagogas foram incendiadas e 20 mil judeus foram levados para campos de concentração.”


“Seus primeiros contatos pessoais com funcionários judeus, todos eles bem conhecidos sionistas de longa data, foram inteiramente satisfatórios. A razão de tanto fascínio pela “questão judaica”, conforme ele próprio explicou, era seu “idealismo”; esses judeus, ao contrário dos assimilacionistas, que sempre desprezou, e ao contrário dos judeus ortodoxos, que achava tediosos, eram “idealistas” como ele próprio. Um “idealista”, segundo as noções de Eichmann, não era simplesmente um homem que acreditava numa “ideia” ou alguém que não roubava nem aceitava subornos, embora essas qualificações fossem indispensáveis. Um “idealista” era um homem que vivia para a sua ideia — portanto não podia ser um homem de negócios — e que por essa ideia estaria disposto a sacrificar tudo e, principalmente, todos. Quando ele disse no interrogatório da polícia que teria mandado seu próprio pai para a morte se isso tivesse sido exigido, não queria simplesmente frisar até que ponto se achava cumprindo ordens e pronto para executá-las; queria também mostrar o “idealista” que sempre fora. O “idealista” perfeito, como todo mundo, tinha evidentemente seus sentimentos e emoções pessoais, mas jamais permitia que interferissem em suas ações se entrassem em conflito com sua “ideia”. O maior “idealista” que Eichmann encontrou entre os judeus foi o dr. Rudolf Kastner, com quem negociou durante as deportações judaicas da Hungria e com quem firmou um acordo: Eichmann permitiria a partida “legal” de alguns milhares de judeus para a Palestina (os trens eram, de fato, guardados pela polícia alemã) em troca de “ordem e tranquilidade” nos campos de onde centenas de milhares eram enviados para Auschwitz. Os poucos milhares salvos por esse acordo, judeus importantes e membros das associações jovens de sionistas, eram, nas palavras de Eichmann, “o melhor material biológico”. O dr. Kastner, no entender de Eichmann, sacrificara seus irmãos judeus a sua “ideia”, e assim devia ser. O juiz Benjamin Halevi, um dos três juízes do julgamento de Eichmann, foi o encarregado do julgamento de Kastner em Israel, no qual Kastner teve de se defender da acusação de cooperação com Eichmann e outros nazistas de alto escalão; na opinião de Halevi, Kastner tinha “vendido a alma ao diabo”. Agora que o próprio diabo estava no banco dos réus, ele se revelava um “idealista”, e embora possa ser difícil de acreditar, é bem possível que alguém que vendeu sua alma ao diabo também seja um “idealista”.”


“Mas vangloriar-se é um vício comum, e uma falha mais específica, e também mais decisiva, no caráter de Eichmann era sua quase total incapacidade de olhar qualquer coisa do ponto de vista do outro. Em nenhum ponto essa falha foi mais notável do que em seu relato do episódio de Viena. Ele, seus homens e os judeus estavam todos “se esforçando juntos” e cada vez que havia alguma dificuldade os funcionários judeus vinham correndo até ele para “desabafar seus corações”, contar-lhe todo “seu sofrimento e dor”, e pedir sua ajuda. Os judeus “desejavam” emigrar, e ele, Eichmann, estava ali para ajudá-los, porque aconteceu de, ao mesmo tempo, as autoridades nazistas terem expressado o desejo de ver o Reich judenrein. Os dois desejos coincidiam, e ele, Eichmann, podia “fazer justiça a ambas as partes”. No julgamento, ele jamais cedeu um milímetro quando chegava nessa parte da história, embora concordasse que hoje, quando “os tempos mudaram tanto”, os judeus podem não gostar mais de se lembrar desse “esforço conjunto” e ele não queria “ferir seus sentimentos”.”

“Eichmann sempre foi genuinamente incapaz de pronunciar uma única frase que não fosse um clichê. (Será que foram esses clichês que os psiquiatras acharam tão “normais” e “desejáveis”? Serão essas as “ideias positivas” que um clérigo espera encontrar nas almas para as quais ministra? A melhor oportunidade para Eichmann demonstrar esse lado positivo de seu caráter em Jerusalém surgiu quando o jovem oficial de polícia encarregado de seu bem-estar mental e psicológico deu-lhe um exemplar de Lolita para relaxar. Dois dias mais tarde, Eichmann devolveu o livro, visivelmente indignado; “Um livro nada saudável” — “Das ist aber ein sehr unerfreuliches Buch” — disse ele a seu guarda.) Sem dúvida, os juízes tinham razão quando disseram ao acusado que tudo o que dissera era “conversa vazia” — só que eles pensaram que o vazio era fingido, e que o acusado queria encobrir outros pensamentos que, embora hediondos, não seriam vazios. Essa ideia parece ter sido refutada pela incrível coerência com que Eichmann, apesar de sua má memória, repetia palavra por palavra as mesmas frases feitas e clichês semi-inventados (quando conseguia fazer uma frase própria, ele a repetia até transformá-la em clichê) toda vez que se referia a um incidente ou acontecimento que achava importante. Quer estivesse escrevendo suas memórias na Argentina ou em Jerusalém, quer falando com o interrogador policial ou com a corte, o que ele dizia era sempre a mesma coisa, expressa com as mesmas palavras. Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa. Não era possível nenhuma comunicação com ele, não porque mentia, mas porque se cercava do mais confiável de todos os guarda-costas contra as palavras e a presença de outros, e portanto contra a realidade enquanto tal.”


“Trata-se de um caso exemplar de má-fé, de autoengano misturado a ultrajante burrice? Ou é simplesmente o caso do criminoso que nunca se arrepende (Dostoiévski conta em seu diário que na Sibéria, em meio a multidões de assassinos, estupradores e ladrões, nunca encontrou um único homem que admitisse ter agido mal), que não pode se permitir olhar de frente a realidade porque seu crime passou a fazer parte dele mesmo? No entanto, o caso de Eichmann é diferente do criminoso comum, que só pode se proteger com eficácia da realidade do mundo não criminoso dentro dos estreitos limites de sua gangue. Bastava a Eichmann relembrar o seu passado para se sentir seguro de não estar mentindo e de não estar se enganando, pois ele e o mundo em que viveu marcharam um dia em perfeita harmonia. E a sociedade alemã de 80 milhões de pessoas se protegeu contra a realidade e os fatos exatamente da mesma maneira, com os mesmos autoengano, mentira e estupidez que agora se viam impregnados na mentalidade de Eichmann. Essas mentiras mudavam de ano para ano, e frequentemente se contradiziam; além disso, não eram necessariamente as mesmas para todos os diversos níveis da hierarquia do Partido e para as pessoas em geral. Mas a prática do autoengano tinha se tornado tão comum, quase um pré-requisito moral para a sobrevivência, que mesmo agora, dezoito anos depois do colapso do regime nazista, quando a maior parte do conteúdo específico de suas mentiras já foi esquecido, ainda é difícil às vezes não acreditar que a hipocrisia passou a ser parte integrante do caráter nacional alemão. Durante a guerra, a mentira que mais funcionou com a totalidade do povo alemão foi o slogan “a batalha pelo destino do povo alemão” [der Schicksalskampf des deutschen Volkes], cunhado por Hitler ou por Goebbels, e que tornou mais fácil o autoengano sob três aspectos: sugeria, em primeiro lugar, que a guerra não era guerra; em segundo, que fora iniciada pelo destino e não pela Alemanha; e, em terceiro, que era questão de vida ou morte para os alemães, que tinham de aniquilar seus inimigos ou ser aniquilados.”


“Fazia parte da natureza do movimento nazista estar sempre mudando, radicalizando-se a cada mês que passava, mas uma das características mais notáveis de seus membros era, psicologicamente, tender a estar sempre um passo atrás do movimento — eles tinham dificuldade em acompanhar essas mudanças ou, como Hitler costumava dizer, não eram capazes de “saltar a própria sombra”.”


(...) “Em Nuremberg, vários acusados apresentaram um espetáculo enojante, um acusando o outro — embora nenhum pusesse a culpa em Hitler!”


“Existe mesmo boas razões para se concordar com o amargo julgamento desses homens feito pelo romancista alemão Friedrich P. Reck-Malleczewen, morto num campo de concentração na noite do colapso e que não participou da conspiração anti-Hitler. Em seu quase desconhecido Diário de um homem desesperado, Reck-Malleczewen escreveu o seguinte, depois de saber do fracasso do atentado contra a vida de Hitler, que ele evidentemente lamentou: “Um pouco tarde demais, senhores, vocês que construíram esse arquidestruidor da Alemanha e correram atrás dele, enquanto tudo parecia estar bem; vocês que [...] sem comoção fizeram todos os juramentos exigidos de vocês e se reduziram a desprezíveis lacaios desse criminoso, culpado pelo assassinato de centenas de milhares, que despertou o lamento e a maldição do mundo inteiro; agora vocês o traíram [...] Agora, quando o desastre não pode mais ser escondido, eles traem a casa que ruiu, a fim de estabelecer um álibi político para si próprios — os mesmos homens que traíram tudo o que estava no caminho de seu desejo de poder”.”

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Confissões / De Magistro (Parte II) – Santo Agostinho

Editora: Nova Cultural
ISBN: 85-13-00848-6
Tradução: J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina (Confissões) e Ângelo Ricci (De Magistro)
Consultor da Introdução: José Américo Motta Pessanha
Opinião: Confissões: ★★★★☆ / De Magistro: ★☆☆☆☆
Páginas: 416
Sinopse: Confissões – ver Parte I / De magistro: Este diálogo didático entre o autor e seu filho, Adeodato, foi escrito depois de seu batismo, em 389. Utilizando o método de Sócrates, Agostinho demonstra a seu filho, que morrerá dois anos mais tarde, que não são as palavras do mestre que nos conduzem à verdade: estas podem ser mal interpretadas e não passam de um meio para expressar a verdade que está dentro de nós. Para julgar sobre a veracidade das palavras do mestre é preciso envolver-se na verdade interior inspirada por Deus. Cada homem está assim envolvido por esta palavra divina, na qual deve reconhecer seu único mestre.



“Assim como as adulações dos amigos nos pervertem, do mesmo modo as censuras dos inimigos nos reformam.”


“Próximo já do dia em que minha mãe, Mônica, ia sair desta vida — dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos —, sucedeu, segundo creio, por disposição de vossos secretos desígnios, que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o jardim interior da casa onde morávamos. Era em Óstia, na foz do Tibre, onde, apartados da multidão, após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para embarcarmos.
Falávamos a sós, muito docemente, “esquecendo o passado e ocupando-nos do futuro¹”. Na presença da Verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, “que nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou²”. Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste “da Vossa fonte, a fonte da Vida³”, que está em Vós, para que, aspergidos segundo a nossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.
Encaminhamos a conversa até à conclusão de que as delícias dos sentidos do corpo, por maiores que sejam, e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que as cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem merecem que delas se faça menção.
Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa felicidade, divagamos gradualmente por todas as coisas corporais até o próprio céu, donde o Sol, a Lua e as estrelas iluminam a terra. Subíamos ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as vossas obras. Chegamos às nossas almas e passamos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância, onde apascentais eternamente Israel com o pastio da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por quem tudo foi criado, tudo o que existiu e o que há de existir, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe como sempre foi e como sempre será. Antes, não há nela ter sido, nem haver de ser, pois simplesmente “é”, por ser eterna. Ter sido e haver de ser não são próprios do Ser eterno.
Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria, atingimo-la momentaneamente num ímpeto completo do nosso coração. Suspiramos e deixamos lá agarradas “as primícias do nosso espírito4”. Voltamos ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como poderá esta, meu Deus, comparar-se ao vosso Verbo, que subsiste por si mesmo, nunca envelhecendo e tudo renovando?
Dizíamos pois: Suponhamos uma alma onde jazem em silêncio a rebelião da carne, as vãs imaginações da terra, da água, do ar e do céu. Suponhamos que ela guarda silêncio consigo mesma, que passa para além de si, nem sequer pensando em si; uma alma na qual se calem igualmente os sonhos e as revelações imaginárias, toda a palavra humana, todo o sinal, enfim, tudo o que sucede passageiramente.
Imaginemos que nessa mesma alma existe o silêncio completo porque, se ainda pode ouvir, todos os seres lhe dizem: “Não nos fizemos a nós mesmos, fêz-nos O que permanece eternamente5”. Se ditas estas palavras os seres emudecerem, porque já escutaram quem os fez, suponhamos então que Deus sozinho fala, não por essas criaturas, mas diretamente, de modo a ouvirmos a sua palavra, não pronunciada por uma língua corpórea, nem por voz de anjo, nem pelo estrondo do trovão, nem por metáforas enigmáticas, mas já por Ele mesmo.
Suponhamos que ouvíamos Aquele que amamos nas criaturas, mas sem o intermédio delas, assim como nós acabamos de experimentar, atingindo, num relance de pensamento, a Eterna Sabedoria, que permanece imutável sobre todos os seres. Se esta contemplação se continuasse e se todas as outras visões de ordem muito inferior cessassem, se unicamente esta arrebatasse a alma e a absorvesse, de tal modo que a vida eterna fosse semelhante a este vislumbre intuitivo, pelo qual suspiramos: não seria isto a realização do “entra no gozo do teu Senhor6”? E quando sucederá isto? Será quando todos “ressuscitarmos”?
Mas então não “seremos todos transformados7”?
Ainda que isto disséssemos, não pelo mesmo modo e por estas palavras, contudo bem sabeis, Senhor, quanto o mundo e os seus prazeres nos pareciam vis, naquele dia, quando assim conversávamos. Minha mãe então disse: Meu filho, quanto a mim, já nenhuma coisa me dá gosto, nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem por que ainda cá esteja, esvanecidas já as esperanças deste mundo. Por um só motivo desejava prolongar um pouco mais a vida: para ver-te católico antes de morrer. Deus concedeu-me esta graça superabundantemente, pois vejo que já desprezas a felicidade terrena para servires ao Senhor. Que faço eu, pois, aqui?
Não me lembro bem do que lhe respondi a respeito destas palavras. Dentro de cinco dias ou pouco mais, recolhia-se ao leito, com febre. Num daqueles dias da sua doença perdeu os sentidos e, durante um curto espaço de tempo, não dava acordo dos presentes.
Enfim, no nono dia da doença, aos cinquenta e seis anos de idade, e no trigésimo terceiro de minha vida, aquela alma piedosa e santa libertou-se do corpo8.”
1: Flp 3, 13. / 2: 1 Cor 2, 9. / 3: Sl 30, 10. / 4: Rom 8, 23. / 5: Sl 99, 3, 5. / 6: Mt 25, 21. / 7: 1 Cor 15,51. / 8:  Mônica recebeu da Igreja e da tradição cristã o título de santa. O seu corpo foi sepultado na cripta da Igreja de Santa Áurea, em Óstia, onde foi descoberto em 1430 e trasladado para Roma, primeiro para a Igreja de São Trifão e mais tarde para a igreja que lhe foi dedicada. (N. do T.)


“Fazei que eu Vos conheça, ó Conhecedor de mim mesmo, sim, que Vos conheça como de Vós sou conhecido.”


“Que a vossa misericórdia supere a vossa justiça.” (Tg 2, 13)


Quem é Deus?
A minha consciência, Senhor, não duvida, antes tem a certeza de que Vos amo. Feristes-me o coração com a vossa palavra e amei-Vos. O céu, a terra e tudo o que neles existe dizem-me por toda parte que Vos ame. Não cessam de o repetir a todos os homens, para que sejam inescusáveis. Compadecer-Vos-eis mais profundamente daquele de quem já Vos compadecestes, e concedereis misericórdia àquele para quem já fostes misericordioso. De outro modo, o céu e a terra só a surdos cantariam os vossos louvores.
Que amo eu, quando Vos amo? Não amo a formosura corporal, nem a glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as doces melodias das canções de todo o gênero, nem o suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão flexíveis aos abraços da carne. Nada disto amo, quando amo o meu Deus. E contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um contato que a saciedade não desfaz. Eis o que amo, quando amo o meu Deus.
Quem é Deus?
Perguntei-o à terra e disse-me: “Eu não sou”. E tudo o que nela existe respondeu-me o mesmo. Interroguei o mar, os abismos e os répteis animados e vivos e responderam-me: “Não somos o teu Deus; busca-o acima de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e o ar, com os seus habitantes respondeu-me: “Anaxímenes está enganado; eu não sou o teu Deus”. Interroguei o céu, o Sol, a Lua, as estrelas e disseram-me: “Nós também não somos o Deus que procuras”. Disse a todos os seres que me rodeiam as portas da carne: “Já que não sois o meu Deus, falai-me do meu Deus, dizei-me, ao menos, alguma coisa d’Ele”. E exclamaram com alarido: “Foi Ele quem nos criou¹”.
A minha pergunta consistia em contemplá-las; a sua resposta era a sua beleza.
Dirigi-me, então, a mim mesmo, e perguntei-me: “E tu, quem és?” “Um homem” respondi. Servem-me um corpo e uma alma; o primeiro é exterior, a outra interior. Destas duas substâncias, a qual deveria eu perguntar quem é o meu Deus, que já tinha procurado com o corpo, desde a terra ao céu, até onde pude enviar, como mensageiros, os raios dos meus olhos? À parte interior, que é a melhor. Na verdade, a ela é que os mensageiros do corpo remetiam, como a um presidente ou juiz, as respostas do céu, da terra e de todas as coisas que neles existem, e que diziam: “Não somos Deus; mas foi Ele quem nos criou”. O homem interior conheceu esta verdade pelo ministério do homem exterior. Ora, eu, homem interior — alma —, eu conheci-a também pelos sentidos do corpo. Perguntei pelo meu Deus à massa do Universo, e respondeu-me: “Não sou eu; mas foi Ele quem me criou”.
Mas não se manifesta esta beleza a todos os que possuem sentidos perfeitos? Porque não fala a todos do mesmo modo? Os animais, pequenos ou grandes, veem a beleza, mas não a podem interrogar. Não lhes foi dada a razão — juiz que julga o que os sentidos lhe anunciam. Os homens, pelo contrário, podem-na interrogar, para verem as perfeições invisíveis de Deus, considerando-as nas obras criadas². Submetem-se todavia a estas pelo amor, e, assim, já não as podem julgar. Nem a todos os que as interrogam respondem as criaturas, mas só aos que as julgam. Não mudam a voz, isto é, a beleza, se um a vê simplesmente, enquanto outro a vê e a interroga. Não aparecem a um duma maneira e a outro doutra... Mas, aparecendo a ambos do mesmo modo, para um é muda e para outro fala. Ou antes, fala a todos, mas somente a entendem aqueles que comparam a voz vinda de fora com a verdade interior.
Ora, a verdade diz-me: “O teu Deus não é o céu, nem a terra, nem corpo algum”. E a natureza deles exclama: “Repara que a matéria é menor na parte que no todo”. Por isso te digo, ó minha alma, que és superior ao corpo, porque vivificas a matéria do teu corpo, dando-lhe vida, o que nenhum corpo pode fazer a outro corpo. Além disso, o teu Deus é também para ti vida da tua vida.
1: Sl 99,3. / 2: Rom 1, 20.


“Por que é que a verdade gera o ódio¹? Por que é que os homens têm como inimigo aquele que prega a verdade, se amam a vida feliz, que não é mais que a alegria vinda da verdade? Talvez por amarem de tal modo a verdade que todos os que amam outra coisa querem que o que amam seja a verdade. Como não querem ser enganados, não se querem convencer de que estão em erro. Assim, odeiam a verdade, por causa daquilo que amam em vez da verdade. Amam-na quando os ilumina, e odeiam-na quando os repreende². Não querendo ser enganados e desejando enganar, amam-na quando ela se manifesta e odeiam-na quando os descobre. Porém a verdade castigá-los-á, denunciando todos os que não quiserem ser manifestados por ela. Mas nem por isso ela se lhes há de mostrar.
É assim, é assim, é assim também a alma humana: cega, lânguida, torpe e indecente, procura ocultar-se e não quer que nada lhe seja oculto. Em castigo, não se pode ocultar à verdade, mas oculta-se-lhe. Apesar de ser tão infeliz, antes quer encontrar a alegria nas coisas verdadeiras do que nas falsas. Será feliz quando, liberta de todas as moléstias, se alegrar somente na Verdade, origem de tudo o que é verdadeiro.”
1: Terêncio, Ândria, 68. / 2: Jo 5, 35; 3, 20.


“Ó Verdade, Vós em toda parte assistis a todos os que Vos consultam e ao mesmo tempo respondeis aos que Vos interrogam sobre os mais variados assuntos. Respondeis com clareza, mas nem todos Vos ouvem com a mesma lucidez. Todos Vos consultam sobre o que desejam, mas nem sempre ouvem o que querem. O Vosso servo mais fiel é aquele que não espera nem prefere ouvir aquilo que quer, mas se propõe aceitar, antes de tudo, a resposta que de Vós ouviu.”


“Só na grandeza da vossa misericórdia coloco toda a minha esperança. Dai-me o que me ordenais, e ordenai-me o que quiserdes.”


“Daqui se vê claramente quanto a volúpia e curiosidade agem em nós pelos sentidos: o prazer corre atrás do belo, do harmonioso, do suave, do saboroso, do brando; a curiosidade, porém, gosta às vezes de experimentar o contrário dessas sensações, não para se sujeitar a enfados dolorosos, mas para satisfazer a paixão de tudo examinar e conhecer.
Que gosto há em ver um cadáver dilacerado, a que se tem horror? Apesar disso, onde quer que esteja, toda a gente lá acorre, ainda que, vendo-o, se entristeça e empalideça. Depois, até em sonhos temem vê-lo, como se alguém os tivesse obrigado a ir examiná-lo, quando estavam acordados, ou como se qualquer anúncio de beleza os tivesse persuadido a lá irem.
O mesmo se dá com os outros sentidos. Iríamos longe se os percorrêssemos a todos. Por causa desta doença da curiosidade, exibem-se no teatro cenas monstruosas de superstição. Dela nasce o desejo de perscrutar os segredos preternaturais, que afinal nada nos aproveita conhecer, e que os homens anseiam saber, só por saber.
É ainda a curiosidade que, com o mesmo intuito de alcançar uma ciência perversa, faz o homem recorrer às artes mágicas. Enfim é ela que, até na religião, nos arrasta a tentar a Deus, pedindo-lhe milagres e prodígios, não porque os exija a salvação das almas, mas só porque se deseja fazer a experiência.”


“Uma coisa é levantar-me após a queda, e outra coisa é não cair nunca.
De tais misérias está repleta a minha vida. A minha única esperança é a vossa infinita misericórdia. Como o nosso coração é recipiente de todas estas misérias e porque traz essa imensa multidão de vaidades, muitas vezes as nossas orações interrompem-se e perturbam-se.
Enquanto na vossa presença elevamos até junto dos vossos ouvidos a voz da nossa alma, não sei donde provêm tantos pensamentos fúteis, que se despenham sobre nós e nos cortam a atenção em coisa tão importante.”


“Que Vos hei de eu, Senhor, confessar, neste gênero de tentações? Que me deleito muito com os louvores? Mas ainda me deleito mais com a verdade do que com os louvores! Pois, se me dessem à escolha ou ser um doido que se engana em todas as coisas, mas que é louvado por todos, ou ser um homem seguríssimo da verdade, mas por toda gente escarnecido, bem sei o que escolheria. Portanto, não quereria que o louvor saído duns lábios alheios aumentasse o gosto que experimento pela boa obra, seja ela qual for. Porém, tenho de confessar que não só o louvor lhe aumenta o deleite, mas também que o vitupério lho diminui.
Quando me perturbo com esta minha miséria, penetra-me na mente uma desculpa cuja natureza Vós conheceis, meu Deus. Torno-me duvidoso e perplexo ante ela.
Pois Vós não só nos ordenastes a continência, que nos ensina que coisas devemos afastar da nossa afeição, mas também preceituastes a justiça, que nos ensina para onde havemos de dirigir o nosso amor. Não quisestes que nos amássemos somente a nós, mas também ao próximo. Ora, muitas vezes, quando retamente me deleito no louvor que é dado por uma pessoa inteligente, parece que me comprazo no aproveitamento e nas esperanças de que dá mostras. E, pelo contrário, entristeço-me com a sua maldade, quando a ouço censurar o que ignoro ou o que é bom.
Algumas vezes também me contristo com os louvores que me dirigem, quando enaltecem em mim coisas que me desagradam, ou quando apreciam bens somenos e transitórios, com maior estima do que merecem. Mas, repito de novo, como hei de eu saber se este sentimento me aflige por causa de eu não querer que o meu admirador pense a meu respeito de modo diverso do que eu penso?
Será, não porque me deixe arrastar pelo valor e utilidade desse meu admirador, mas porque aqueles bens que em mim me agradam me são mais saborosos quando agradam também aos outros? De certo modo, não sou louvado quando a minha opinião, a meu respeito, não é elogiada, porque ou enchem de encômios as coisas que me desagradam, ou louvam ainda mais as coisas que menos me comprazem. Sobre este ponto não sou eu um enigma para comigo mesmo?”


“Por isso, patenteamos o nosso amor para convosco, confessando-Vos as nossas misérias e as vossas misericórdias, a fim de que ponhais termo à obra já começada da nossa libertação e sejamos felizes em Vós, cessando de ser miseráveis em nós.”


“Quem afirma tais coisas, ó “Sabedoria de Deus¹”, Luz das inteligências, ainda não compreendeu como se realiza o que se faz por Vós e em Vós. Esforça-se por saborear as coisas eternas, mas o seu pensamento ainda volita ao redor das ideias da sucessão dos tempos passados e futuros, e, por isso, tudo o que excogita é vão.
A esse, quem o poderá prender e fixar, para que pare um momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade perpetuamente imutável, para que veja como a eternidade é incomparável, se a confronta com o tempo, que nunca para? Compreenderá então que a duração do tempo não será longa, se não se compuser de muitos movimentos passageiros.
Ora, estes não podem alongar-se simultaneamente.
Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente. Esse tal verá que o passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro está precedido dum passado, e todo o passado e futuro são criados e dimanam d’Aquele que sempre é presente. Quem poderá prender o coração do homem, para que pare e veja como a eternidade imóvel determina o futuro e o passado, não sendo ela nem passado nem futuro? Poderá, porventura, a minha mão que escreve explicar isto? Poderá a atividade da minha língua conseguir pela palavra realizar empresa tão grandiosa?”
Precedeis, porém, todo o passado, alteando-Vos sobre ele com a vossa eternidade sempre presente². Dominais todo o futuro porque está ainda para vir. Quando ele chegar, já será pretérito. “Vós, pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo, e os vossos anos não morrem”. Os vossos anos não vão nem vêm. Porém os nossos vão e vêm, para que todos venham. Todos os vossos anos estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os anos que chegam expulsam os que vão, porque estes não passam. Quanto aos nossos anos, só poderão existir todos, quando já todos não existirem. Os vossos anos são como um só dia³, e o vosso dia não se repete de modo que possa chamar-se cotidiano, mas é um perpétuo “hoje”, porque este vosso “hoje” não se afasta do “amanhã”, nem sucede ao “ontem”. O vosso “hoje” é a eternidade. Por isso gerastes coeterno o vosso Filho, a quem dissestes: “Eu hoje te gerei4”. Criastes todos os tempos e existis antes de todos os tempos. Não é concebível um tempo em que possa dizer-se que não havia tempo.”
1: Ef 3, 10. / 2: Sl 101, 28. / 3: 2 Pdr 3, 8. / 4: Sl 2,7; Hbr 5,5.


O que é o tempo?
Não houve tempo nenhum em que não fizésseis alguma coisa, pois fazíeis o próprio tempo.
Nenhuns tempos Vos são coeternos, porque Vós permaneceis imutável, e se os tempos assim permanecessem, já não seriam tempos. Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.


“Por isso, na maior parte dos casos, a pobreza da inteligência humana manifesta-se na abundância de palavras, porque a investigação é mais loquaz no buscar do que no descobrir, o pedir demora mais do que o obter e a mão, batendo à porta, cansa-se mais do que recebendo. Mas temos a vossa promessa, e quem a destruirá? “Se Deus é por nós, quem contra nós¹?” “Pedi e recebereis; buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á. Com efeito, todo aquele que pede recebe; o que busca, encontra; e a quem bate, abrir-se-á².”
Estas são as vossas promessas. Quem temerá ser iludido, quando é a própria Verdade quem promete?”
1: Gên 1, 1. / 2: Rom 8,3l.


“Os soberbos amam somente o próprio parecer, não por ser verdadeiro, mas por ser o deles. Se assim não fosse, estimariam igualmente a opinião dos outros quando é verdadeira, assim como eu estimo o que eles dizem, quando afirmam a verdade, e, por esse motivo, já não é um bem exclusivo deles. Se amam essa opinião por ser a verdade, pertence-lhes a eles e a mim. É um bem comum, pertencente a todos os amantes da verdade.”


“Quando, porém, lemos que o homem “julga todas as coisas”, isto significa que tem poder sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre todos os animais domésticos e feras, sobre toda a terra, e sobre os répteis que “pela terra se arrastam¹”. Este poder, exerce-o por meio da inteligência, pela qual percebe o que é do Espírito de Deus. Mas o “homem, posto em lugar de honra, não entendeu a sua grandeza e igualou-se aos jumentos insensatos, tornando-se semelhante a eles²”. Por isso, na vossa Igreja, meu Deus, tanto os que presidem como os que obedecem julgam pelo Espírito segundo a graça que a cada um concedestes, porque “somos obra vossa e criados para obras boas³”. Desse modo formastes a criatura humana, o homem e a mulher na vossa graça espiritual, sem que no entanto houvesse na ordem do espírito distinção de sexo entre eles, porque “não há judeu, nem grego, nem escravo, nem homem livre4”.
Portanto, os “espirituais”, quer os que presidem, quer os que obedecem, julgam espiritualmente. A sua inteligência não se exerce sobre os pensamentos intelectuais que brilham no firmamento, pois não lhes pertence formular juízos sobre tão sublime autoridade. Nem julgam da vossa Escritura, ainda que esta contenha obscuridades, porque lhe devemos sujeitar a inteligência. Temos como certo ainda mesmo o que permanece velado à nossa compreensão, e acreditamos que isso não foi dito com justiça e com verdade.
Deste modo o homem, se bem que já espiritual e renovado “no conhecimento de Deus, segundo a imagem d’Aquele que o criou5”, deve ser cumpridor e não juiz da lei6.”
1: Gên I, 26. / 2: Sl 48,21 / 3: Ef 2, 10. / 4: Col 3, 11. / 5: Col 3, 10. / 6: Tg 4, 11.


“Contudo, Vós, meu Deus e único Bem, nunca deixastes de nos beneficiar. Com a vossa graça algumas obras realizamos; mas estas não são eternas. Depois de as termos praticado, esperamos repousar na vossa grande santificação. Vós sois o Bem que de nenhum bem precisa. Estais sempre em repouso, porque sois Vós mesmo o vosso descanso.
Quem dos homens poderá dar a outro homem a inteligência deste mistério? Que anjo a outro anjo? Que anjo ao homem? A Vós se peça, em Vós se procure, à vossa porta se bata. Deste modo, sim, deste modo se há de receber, se há de encontrar e se há de abrir a porta do mistério.”

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De Magistro

“Ver a virtude e não a ter é um suplício.”


“Diz o profeta: “Se não credes, não entendereis¹”; certamente não diria isto se não julgasse necessário pôr uma diferença entre as duas coisas. Portanto, creio tudo o que entendo, mas nem tudo que creio também entendo. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo que creio conheço. E não ignoro quanto é útil crer também em muitas coisas que não conheço, utilidade que encontro também na história dos três jovens². Pois, não podendo saber a maioria das coisas, sei porém quanto é útil acreditar nelas. No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à própria mente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é consultado ensina verdadeiramente, e este é Cristo, que habita, como foi dito, no homem interior³, isto é: a virtude incomutável de Deus e a sempiterna Sabedoria, que toda alma racional consulta, mas que se revela a cada um quanto é permitido pela sua própria boa ou má vontade. E se às vezes há enganos, isto não acontece por erro da verdade consultada, como não é por erro da luz externa que os olhos, volta e meia, se enganam: luz que confessamos consultar a respeito das coisas sensíveis, para que no-las mostre na proporção em que nos é permitido distingui-las.”
1: Is 7, 9. / 2: Hananias, Misael e Azarias se recusaram a adorar um ídolo, e por isso foram jogados na fornalha ardente, mas escaparam milagrosamente ilesos. / 3: São Paulo, Ef 3, 16, 17.