Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-7164-451-9
Opinião: ★★★★★
Páginas: 476
Sinopse: Ver Parte
I
“A empresa escravista, fundada na apropriação
de seres humanos através da violência mais crua e da coerção permanente,
exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó desumanizadora e
deculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa compressão, qualquer
povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser
ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de
carga; depois, para ser outro, quando transfigurado etnicamente na linha
consentida pelo senhor, que é a mais compatível com a preservação dos seus
interesses.
O espantoso é que os índios como os pretos,
postos nesse engenho deculturativo, consigam permanecer humanos. Só o
conseguem, porém, mediante um esforço inaudito de auto-reconstrução no fluxo do
seu processo de desfazimento. Não têm outra saída, entretanto, uma vez que da
condição de escravo só se sai pela porta da morte ou da fuga. Portas estreitas,
pelas quais, entretanto, muitos índios e muitos negros saíram; seja pela fuga
voluntarista do suicídio, que era muito frequente, ou da fuga, mais frequente
ainda, que era tão temerária porque quase sempre resultava mortal. Todo negro
alentava no peito uma ilusão de fuga, era suficientemente audaz para, tendo uma
oportunidade, fugir, sendo por isso supervigiado durante seus sete a dez anos
de vida ativa no trabalho. Seu destino era morrer de estafa, que era sua morte
natural. Uma vez desgastado, podia até ser alforriado por imprestável, para que
o senhor não tivesse que alimentar um negro inútil. Uma morte prematura numa
tentativa de fuga era melhor, quem sabe, que a vida do escravo trazido de tão
longe para cair no inferno da existência mais penosa. Sentindo que é
violentado, sabendo que é explorado, ele resiste como lhe é possível. “Deixam
de trabalhar bem se não forem convenientemente espancados”, diz um observador
alemão, “e se desprezássemos a primeira iniquidade a que os sujeitou, isto é,
sua introdução e submissão forçada, devíamos de considerar em grande parte os
castigos que lhes impõem os seus senhores” (Thomas Davatz, Memórias de
um colono no Brasil – 1850). Aí está a racionalidade do escravismo,
tão oposta à condição humana que uma vez instituído só se mantém através de uma
vigilância perpétua e da violência atroz da punição preventiva.
Apresado aos quinze anos em sua terra, como
se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro –
mercador africano de escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de
tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a
pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido
no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o
exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da
fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no
lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes,
pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora
de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares,
para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito
horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha,
devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua
capacidade de trabalhar no dia seguinte até a exaustão.
Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo
que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém –
seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos –,
maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou
orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo
diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha
um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava
atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos,
do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados
criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma
vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e
era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado,
viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na
boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto
oleoso.
Nenhum povo que passasse por isso como sua
rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado
indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e
índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que
os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram
para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e
brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos
seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo
sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício
da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em
pasto de nossa fúria.
A mais terrível de nossas heranças é esta de
levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a
explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje,
em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os
pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos
dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade
solidária.”
“Sobrevivendo a todas as provações, no
trânsito de negro boçal a negro ladino, ao aprender a língua nova, os novos
ofícios e novos hábitos, aquele negro se refazia profundamente. Não chegava,
porém, a ser alguém, porque não reduzia jamais seu próprio ser à simples
qualidade comum de negro na raça e de escravizado. Seu filho, crioulo, nascido
na terra nova, racialmente puro ou mestiçado, este sim, sabendo-se não-africano
como os negros boçais que via chegando, nem branco, nem índio e seus mestiços,
se sentia desafiado a sair da ninguendade, construindo sua identidade. Seria, assim,
ele também, um protobrasileiro por carência.
O brasilíndio como o afro-brasileiro existiam
numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa carência
essencial, para livrar-se da ninguendade de não-índios, não-europeus e
não-negros, que eles se veem forçados a criar a sua própria identidade étnica:
a brasileira.”
“A historieta clássica, tão querida dos
historiadores, segundo a qual os índios foram amadurecendo para a civilização
de forma que cada aldeia foi se convertendo em vila, é absolutamente
inautêntica. O estudo que realizamos para a Unesco, esperançosos de apresentar
o Brasil como um país por excelência assimilacionista, demonstrou precisamente
o contrário. O índio é irredutível em sua identificação étnica, tal como ocorre
com o cigano ou com o judeu. Mais perseguição só os afunda mais convictamente
dentro de si mesmos.”
“Na primeira década deste século, a situação
indígena brasileira era altamente conflitiva. Missionários se apropriavam das
terras dos índios que catequizavam e as estavam loteando, com grande revolta
dos índios. Vastas áreas entregues à colonização estrangeira, principalmente
alemã, viviam convulsionadas por bugreiros pagos pelos colonos para limpar suas
terras do incômodo “invasor”. O próprio diretor do Museu Paulista e eminente
cientista pediu ao governo que optasse entre a selvageria e a civilização. Se
seu propósito era civilizar o país, cumpria abrir guerras de extermínio com
tropas oficiais para resolver o problema.
Nessa situação é que se levanta o principal dos
humanistas brasileiros, Cândido Rondon. Tendo muito mais experiência de trato
com os índios, porque havia estendido milhares de quilômetros de linhas
telegráficas em território indígena sem entrar em conflito com eles, Rondon
exigia do país respeito à sua população original. Seu apelo foi atendido não só
pelo governo, mas por dezenas de oficiais das forças armadas e profissionais de
toda a sorte, que decidiram dedicar suas vidas à salvação dos povos indígenas.
Fundado nos princípios do positivismo de Augusto
Comte, mas superando-os largamente, Rondon e seus companheiros estabeleceram um
corpo de diretrizes que por décadas orientaram uma política indigenista
oficial. Eles afirmavam que o objetivo não podia ser exterminar ou transformar
o indígena, mas fazer dele um índio melhor, dando-lhe acesso a ferramentas e a
orientação adequada. O que cumpria fazer em essência era assegurar aquele
mínimo indispensável a cada povo indígena, que é o direito de ser índio,
mediante a garantia de um território onde possam viver sossegados, a salvo de
ataques, e reconstituir sua vida e seus costumes. A necessidade de abrir novas
frentes de colonização tinha que ser precedida de um cuidadoso trabalho junto
aos índios.
A inovação principal de Rondon foi, porém, o
estabelecimento pioneiro do princípio, só hoje reconhecido internacionalmente,
do direito à diferença. Em lugar da fofa proclamação da igualdade de todos os
cidadãos, os rondonianos diziam que, não sendo iguais, essa igualdade só servia
para entregar os índios a seus perseguidores. O que cumpria era fixar as normas
de um direito compensatório, pelo qual os índios tinham os mesmos direitos que
os brasileiros – de ser eleitor, de fazer serviço militar, por exemplo –, mas
esses direitos não lhes podiam ser cobrados como deveres.”
“O processo de formação do povo brasileiro,
que se fez pelo entrechoque de seus contingentes índios, negros e brancos, foi,
por conseguinte, altamente conflitivo. Pode-se afirmar, mesmo, que vivemos
praticamente em estado de guerra latente, que, por vezes, e com frequência, se
torna cruento, sangrento.
Conflitos interétnicos existiram desde
sempre, opondo as tribos indígenas umas às outras. Mas isto se dava sem maiores
consequências, porque nenhuma delas tinha possibilidade de impor sua hegemonia
às demais. A situação muda completamente quando entra nesse conflito um novo
tipo de contendor, de caráter irreconciliável, que é o dominador europeu e os
novos grupos humanos que ele vai aglutinando, avassalando e configurando como
uma macroetnia expansionista.
De 1500 até hoje, esses enfrentamentos se vêm
desencadeando através de lutas armadas contra cada tribo que se defronta com a
sociedade nacional, em sua expansão inexorável pelo território de que vai se
apropriando como seu chão do mundo: a base física de sua existência. Os
Yanomami e as emoções desencontradas que eles provocam entre os que os defendem
e os que querem desalojá-los são apenas o último episódio dessa guerra secular.
O conflito interétnico se processa no curso
de um movimento secular de sucessão ecológica entre a população original do
território e o invasor que a fustiga a fim de implantar um novo tipo de
economia e de sociedade. Trata-se, por conseguinte, de uma guerra de extermínio.
Nela, nenhuma paz é possível, senão com um armistício provisório, porque os
índios não podem ceder no que se espera deles, que seria deixar de ser eles
mesmos para ingressar individualmente na nova sociedade, onde viveriam outra
forma de existência que não é a sua.
As forças que se defrontam nessas lutas não
podiam ser mais cruamente desiguais. De um lado, sociedades tribais,
estruturadas com base no parentesco e outras formas de sociabilidade, armadas
de uma profunda identificação étnica, irmanadas por um modo de vida
essencialmente solidário. Do lado oposto, uma estrutura estatal, fundada na
conquista e dominação de um território, cujos habitantes, qualquer que seja a
sua origem, compõem uma sociedade articulada em classes, vale dizer,
antagonicamente opostas, mas imperativamente unificadas para o cumprimento de
metas econômicas socialmente irresponsáveis. A primeira das quais é a ocupação
do território. Onde quer que um contingente etnicamente estranho procure,
dentro desse território, manter seu próprio modo tradicional de vida, ou queira
criar para si um gênero autônomo de existência, estala o conflito cruento.
Mas há, também, conflitos virulentos entre os
invasores. O mais complexo deles, quanto a suas motivações, ainda que também
remarcado por componentes classistas, racistas e étnicos, foi a longa guerra
sem quartel de colonos contra os jesuítas. Muito cedo surgiram desentendimentos
entre o projeto comunitário dos inacianos para a indiada nativa e o processo
colonial lusitano que lhes reservava o destino de mão-de-obra de suas empresas.
Surgiram assim que os padres fugiram de sua função prevista de amansadores de
índios para se arvorarem a seus protetores.”
“Outra modalidade principal de conflito é a
dos enfrentamentos predominantemente raciais. Aqui, vemos opondo-se umas às
outras todas as três matrizes da sociedade, cada uma delas armada de
preconceitos raciais contra as outras duas. Esses antagonismos alcançam caráter
mais cruento no enfrentamento dos negros, trazidos da África para serem escravos,
que se veem condenados a lutar por sua liberdade e, mesmo depois de alcançada a
abolição, a continuar lutando contra as discriminações humilhantes de que são
vítimas, bem como contra as múltiplas formas de preterição.
As lutas são inevitavelmente sangrentas,
porque só à força se pode impor e manter a condição de escravo. Desde a chegada
do primeiro negro, até hoje, eles estão na luta para fugir da inferioridade que
lhes foi imposta originalmente, e que é mantida através de toda a sorte de
opressões, dificultando extremamente sua integração na condição de
trabalhadores comuns, iguais aos outros, ou de cidadãos com os mesmos direitos.
Palmares é o caso exemplar do enfrentamento
inter-racial. Ali, negros fugidos dos engenhos de açúcar ou das vilas
organizam-se para si mesmos, na forma de uma economia solidária e de uma
sociedade igualitária. Não retornam às formas africanas de vida, inteiramente
inviáveis. Voltam-se a formas novas, arcaicamente igualitárias e precocemente
socialistas. Sua destruição sendo requisito de sobrevivência da sociedade
escravista, torna esses conflitos crescentes inevitáveis, seja para reaver
escravos fugidos, seja para precaver-se contra novas fugas. Mas também para
acautelar-se contra o que poderia vir a ser uma ameaça pior do que as invasões
estrangeiras, que seria a sublevação geral dos negros.
Uma terceira modalidade de conflitos que
envolvem as populações brasileiras é de caráter fundamentalmente classista.
Aqui se enfrentam, de um lado, os
privilegiados proprietários de terras, de bens de produção, que são
predominantemente brancos, e de outro lado, as grandes massas de trabalhadores,
estas majoritariamente mestiças ou negras.
Ainda que nas outras duas formas de conflito
sempre se encontrem componentes classistas, mesmo porque em todas elas está presente
a preocupação com o recrutamento de mão-de-obra para a produção mercantil, em
certas circunstâncias elas ganham especificidade como enfrentamentos
interclassistas. Isso ocorre quando não são contingentes diferenciados
racialmente ou etnicamente que se opõem, mas conglomerados humanos ou estratos
sociais multirraciais e multiétnicos propensos a criar novas formas de
ordenação socioeconômica, inconciliáveis com o projeto das classes dominantes.
Canudos é um bom exemplo dessa classe de
enfrentamentos, como a grande explosão dessa modalidade de lutas. Ali,
sertanejos atados a um universo arcaico de compreensões, mas cruamente
subversivos porque pretendiam enfrentar a ordem social vigente, segundo valores
diferentes e até opostos aos dos seus antagonistas, enfrentavam uma sociedade
fundada na propriedade territorial e no poderio do dono, sobre quem vivesse em
suas terras. Desde o princípio os fiéis do Conselheiro eram vistos como um
grupo crescente de lavradores que saíam das fazendas e se organizavam em si e
para si, sem patrões nem mercadores, e parecia e era tido como o que há de mais
perigoso.
Quando a situação amadureceu completamente,
esse contingente humano foi capaz de enfrentar e vencer, primeiro, as
autoridades locais e os fazendeiros, aliciando jagunços; depois, as tropas
estaduais e, por fim, diversos exércitos armados pelo governo federal. Venceram
sempre, até a derrota total, porque nenhuma paz era possível entre quem lutava
para refazer o mundo em nome dos valores mais sagrados e as forças armadas que
cumpriam seu papel de manter esse mundo tal qual é, ajudadas nesse empenho por
todas as forças da sociedade global.
Os exemplos de conflitos continuados se
multiplicam ao longo desse texto. O que têm de comum e mais relevante é a
insistência dos oprimidos em abrir e reabrir as lutas para fugir do destino que
lhes é prescrito; e, de outro lado, a unanimidade da classe dominante que
compõe e controla um parlamento servil, cuja função é manter a
institucionalidade em que se baseia o latifúndio. Tudo isso garantido pela
pronta ação repressora de um corpo nacional das forças armadas que se prestava,
ontem, ao papel de perseguidor de escravos, como capitães do mato, e se presta,
hoje, à função de pau-mandado de uma minoria infecunda contra todos os
brasileiros.”
“No plano econômico, o Brasil é produto da
implantação e da interação de quatro ordens de ação empresarial, com distintas
funções, variadas formas de recrutamento da mão-de-obra e diferentes graus de
rentabilidade. A principal delas, por sua alta eficácia operativa, foi a
empresa escravista, dedicada seja à produção de açúcar, seja à mineração de
ouro, ambas baseadas na força de trabalho importada da África. A segunda,
também de grande êxito, foi a empresa comunitária jesuítica, fundada na
mão-de-obra servil dos índios. Embora sucumbisse na competição com a primeira,
e nos conflitos com o sistema colonial, também alcançou notável importância e
prosperidade. A terceira, de rentabilidade muito menor, inexpressiva como fonte
de enriquecimento, mas de alcance social substancialmente maior, foi a
multiplicidade de microempresas de produção de gêneros de subsistência e de
criação de gado, baseada em diferentes formas de aliciamento de mão-de-obra,
que iam de formas espúrias de parceria até a escravização do indígena, crua ou
disfarçada.
A empresa escravista, latifundiária e
monocultora, é sempre altamente especializada e essencialmente mercantil.
Na realidade, competindo embora, essas três
formas de organização empresarial se conjugavam para garantir, cada qual no
desempenho de sua função específica, a sobrevivência e o êxito do
empreendimento colonial português nos trópicos. As empresas escravistas
integram o Brasil nascente na economia mundial e asseguram a prosperidade
secular dos ricos, fazendo do Brasil, para eles, um alto negócio. As missões
jesuíticas solaparam a resistência dos índios, contribuindo decisivamente para
a liquidação, a começar pelos recolhidos às reduções, afinal entregues inermes
a seus exploradores. As empresas de subsistência viabilizaram a sobrevivência
de todos e incorporaram os mestiços de europeus com índios e com negros,
plasmando o que viria a ser o grosso do povo brasileiro. Foram, sobretudo, um
criatório de gente.
Com efeito, o corpo do Brasil rústico, seus tecidos
constitutivos – carne, sangue, ossos, peles –, se estrutura, nessas
microempresas de subsistência, configuradas nas diversas variantes
ecológico-regionais. É sobre esse corpo, como mecanismo de sucção de sua
substância, mas também de ejeção sobre ele da matéria humana emprestável para
seus fins mercantis, que se instalam, como carcinomas, as empresas
agroexportadoras e mineradoras.
Sobre essas três esferas empresariais
produtivas pairava, dominadora, uma quarta, constituída pelo núcleo portuário
de banqueiros, armadores e comerciantes de importação e exportação. Esse setor
parasitário era, de fato, o componente predominante da economia colonial e o
mais lucrativo dela. Ocupava-se das mil tarefas de intermediação entre o
Brasil, a Europa e a África no tráfico marítimo, no câmbio, na compra e venda,
para o cumprimento de sua função essencial, que era trocar mais de metade do
açúcar e do ouro que aqui se produzia por escravos caçados na África, a fim de
renovar o sempre declinante estoque de mão-de-obra necessário para a sua
produção.
Esta classe dominante
empresarial-burocrático-eclesiástica, embora exercendo-se como agente de sua
própria prosperidade, atuou também, subsidiariamente, como reitora do processo
de formação do povo brasileiro. Somos, tal qual somos, pela fôrma que ela
imprimiu em nós, ao nos configurar, segundo correspondia a sua cultura e a seus
interesses. Inclusive reduzindo o que seria o povo brasileiro como entidade
cívica e política a uma oferta de mão-de-obra servil.
Foi sempre nada menos que prodigiosa a
capacidade dessa classe dominante para recrutar, desfazer e reformar gentes,
aos milhões. Isso foi feito no curso de um empreendimento econômico secular, o
mais próspero de seu tempo, em que o objetivo jamais foi criar um povo
autônomo, mas cujo resultado principal foi fazer surgir como entidade étnica e
configuração cultural um povo novo, destribalizando índios, desafricanizando
negros, deseuropeizando brancos.
Ao desgarrá-los de suas matrizes, para
cruzá-los racialmente e transfigurá-los culturalmente, o que se estava fazendo
era gestar a nós brasileiros tal qual fomos e somos em essência. Uma classe
dominante de caráter consular-gerencial, socialmente irresponsável, frente a um
povo-massa tratado como escravaria, que produz o que não consome e só se exerce
culturalmente como uma marginália, fora da civilização letrada em que esta
imersa.
Entre aquela estreita cúpula e esta larga
base, um contingente de escapados da miséria e da ignorância geral busca
brechas institucionais em que se possa meter para fazer o Brasil a seu jeito.
No princípio eram principalmente curas e militares subversivos, mesmo porque só
eles eram alfabetizados e minimamente informados naquele submundo da opressão
colonial.”
“No Brasil, vários processos já referidos,
sobretudo o monopólio da terra e a monocultura, promovem a expulsão da
população do campo. No nosso caso, as dimensões são espantosas, dada a
magnitude da população e a quantidade imensa de gente que se vê compelida a
transladar-se.
Conforme se vê, vivemos um dos mais violentos
êxodos rurais, tanto mais grave porque nenhuma cidade brasileira estava em
condições de receber esse contingente espantoso de população. Sua consequência
foi a miserabilização da população urbana e uma pressão enorme na competição
por empregos.
Embora haja variações regionais e São Paulo
represente um grande percentual nesse translado, o fenômeno se deu em todo o
país. Inchou as cidades, desabitou o campo sem prejuízo para a produção
comercial da agricultura, que, mecanizada, passou a produzir mais e melhor. Se
nosso programa fosse produzir só gêneros de exportação, isso seria admissível.
Como a questão que a história nos põe é organizar toda a economia para que
todos trabalhem e comam, esse translado astronômico, da ordem de 80%, gera
enormes problemas.
No presente século, teve lugar uma
urbanização caótica provocada menos pela atratividade da cidade do que pela
evasão da população rural. Chegamos, assim, à loucura de ter algumas das
maiores cidades do mundo, tais como São Paulo e Rio de Janeiro, com o dobro da
população de Paris ou Roma, mas dez vezes menos dotadas de serviços urbanos e
de oportunidades de trabalho. É um mistério inexplicado até agora como vive o
povaréu do Recife, da Bahia, com aquela trêfega alegria, e, ultimamente, como
sobrevivem sem trabalho milhões de paulistas e cariocas.
A própria população urbana, largada a seu
destino, encontra soluções para seus maiores problemas. Soluções esdrúxulas é
verdade, mas são as únicas que estão a seu alcance. Aprende a edificar favelas
nas morrarias mais íngremes fora de todos os regulamentos urbanísticos, mas que
lhe permitem viver junto aos seus locais de trabalho e conviver como
comunidades humanas regulares, estruturando uma vida social intensa e orgulhosa
de si. Em São Paulo, onde faltam morrarias, as favelas se assentam no chão liso
de áreas de propriedade contestada e organizam-se socialmente como favelas.
Resistem quanto podem a tentativas governamentais de desalojá-las e
exterminá-las. Quem puder oferecer milhão de casas, terá direito de falar em
erradicação de favelas.
Esse crescimento explosivo entra em crise em
1982, anunciando a impossibilidade de seguir crescendo economicamente sob o
peso das constrições sociais que deformavam o desenvolvimento nacional.
Primeiro, a estrutura agrária dominada pelo latifúndio que, incapaz de elevar a
produção agrícola ao nível do crescimento da população, de ocupar e pagar as
massas rurais, as expulsa em enormes contingentes do campo para as cidades,
condenando a imensa maioria da população à marginalidade. Segundo, a espoliação
estrangeira, que amparada pela política governamental fortalecera seu domínio,
fazendo-se sócia da expansão industrial, jugulando a economia do país pela
sucção de todas as riquezas produtivas.
O Brasil alcança, desse modo, uma
extraordinária vida urbana, inaugurando, provavelmente, um novo modo de ser das
metrópoles. Dentro delas geram-se pressões tremendas, porque a população
deixada ao abandono mantém sua cultura arcaica, mas muito integrada e criativa.
Dificulta, porém, uma verdadeira modernização, porque nenhum governo se ocupa
efetivamente da educação popular e da sanidade.
Em nossos dias, o principal problema
brasileiro é atender essa imensa massa urbana que, não podendo ser exportada, como
fez a Europa, deve ser reassentada aqui. Está se alcançando, afinal, a
consciência de que não é mais possível deixar a população morrendo de fome e se
trucidando na violência, nem a infância entregue ao vício e à delinquência e à
prostituição. O sentimento generalizado é de que precisamos tornar nossa
sociedade responsável pelas crianças e anciãos. Isso só se alcançará através da
garantia de pleno emprego, que supõe uma reestruturação agrária, porque ali é
onde mais se pode multiplicar as oportunidades de trabalho produtivo.
Não há nenhum indício, porém, de que isso se
alcance. A ordem social brasileira, fundada no latifúndio e no direito
implícito de ter e manter a terra improdutiva, é tão fervorosamente defendida
pela classe política e pelas instituições do governo que isso se torna
impraticável. É provável que a União Democrática Ruralista (UDR), que
representa os latifundiários no Congresso, seja o mais poderoso órgão do
Parlamento. É impensável fazê-la admitir o princípio de que ninguém pode manter
a terra improdutiva por força do direito de propriedade, a fim de devolver as
terras desaproveitadas à União para programas de colonização.
A indústria, por sua vez, se orienta cada vez
mais para sistemas produtivos poupadores de mão-de-obra, nos quais cada novo
emprego exige altíssimos investimentos. Isso ocorre, aliás, em todo o mundo,
mas de forma mais aguda no Brasil, em razão da massa de desocupados que juntou
e dos efeitos desastrosos do desemprego sobre a sociedade.
A moderna industrialização brasileira teve o
seu impulso inicial através de dois atos de guerra. Getúlio Vargas impôs aos
aliados, como condição de dar seu apoio em tropas e matérias-primas, a
construção da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda e a devolução das
jazidas de ferro de Minas Gerais. Surgiram, assim, imediatamente após a guerra,
dois dínamos da modernização no Brasil. Volta Redonda foi a matriz da indústria
naval e automobilística e de toda a indústria mecânica. A Vale do Rio Doce pôs
nossas reservas minerais a serviço do Brasil, provendo delas o mercado mundial.
Cresceu, assim, como uma das principais empresas de seu ramo. Além dessas
empresas, o Estado criou várias outras com êxito menor, como a Fábrica Nacional
de Motores e a Companhia Nacional de Alcalis.
Essa política de capitalismo de Estado e de
industrialização de base provocou sempre a maior reação por parte dos
privatistas e dos porta-vozes dos interesses estrangeiros. Assim é que, quando
Getúlio Vargas se prepara para criar a Petrobrás e a Eletrobrás, uma campanha
uníssona de toda a mídia levou seu governo a tal desmoralização que ele se viu
na iminência de ser enxotado do Catete. Venceu pelo próprio suicídio, que
acordou a nação para o caráter daquela campanha e para os interesses que
estavam atrás dos inimigos do governo.
Em consequência, os líderes da direita não
alcançaram o poder e o candidato de centro-esquerda, Juscelino Kubitschek, foi
eleito presidente. Com ele, se desencadeia a industrialização substitutiva. Num
mundo em que nem Dutra nem Getúlio conseguiam qualquer investimento, JK,
abandonando a política de capitalismo de Estado, atrai numerosas empresas para
implantar subsidiárias no Brasil, no campo da indústria automobilística, naval,
química, mecânica etc. Para tanto, concedeu toda a sorte de subsídios, tais
como terrenos, isenção de impostos, empréstimos e avais a empréstimos
estrangeiros. O fez com tanta largueza, que muita indústria custou a seus donos
menos de 20% de investimento real do seu capital (Maria da Conceição Tavares,
1964).
O fundamento dessa política, formulada pelo
Centro de Estudos para a América Latina (CEPAL), era o de que, elevando as
barreiras alfandegárias para reservar o mercado interno às indústrias que aqui
se instalassem, se promoveria uma Revolução Industrial equivalente à que
ocorreu originalmente em outros países. Os resultados foram, por um lado,
altamente exitosos pela modernização que essas indústrias substitutivas das
importações promoveram, dinamizando toda a economia nacional. Por outro lado,
concentrou-se tanto em São Paulo, que fez desse estado um polo de colonização
interna, crescendo exorbitantemente e coactando o desenvolvimento industrial de
outros estados. Simultaneamente com esse processo, as metrópoles do Brasil
absorveram imensas parcelas da população rural que, não tendo lugar no seu
sistema de produção, se avolumaram como massa desempregada, gerando uma crise
sem paralelo de violência urbana.
O Estado brasileiro não tem nenhum programa
de reestruturação econômica que permita garantir pleno emprego a essas massas
dentro de prazos previsíveis. Que fazer? Prosseguir o genocídio dos pioneiros,
que nas terras de ninguém da Amazônia procuram seu pé-de-chão? Continuar
castrando as mulheres de Goiás, por exemplo, para guardar espaço brasileiro não
se sabe para quem? Insistir num liberalismo aloucado, que regeu a economia
desde 64, enriquecendo os ricos e empobrecendo os pobres? Continuar imbuídos da
ilusão de que o melhor para o Brasil é o espontaneísmo, regido pelo lucrismo
dos banqueiros, que acabará por resolver nossos problemas? Até quando este país
continuará sem seu projeto próprio de desenvolvimento autônomo e
autossustentável?
Os tecnocratas dos últimos governos só veem
saída na venda a qualquer preço das indústrias criadas no passado com tão
grandes sacrifícios, seguida do mergulho da indústria brasileira no mercado
global, confiante em que ele nos dará a prosperidade, se não para o povo
trabalhador, ao menos para os que estão bem integrados no sistema econômico.
Se fôssemos uma pequena nação, seria uma
fatalidade para nós a integração no Colosso. Sendo o que somos, não se pode
adiar mais a formulação de um projeto próprio que nos insira no contexto
mundial, guardando nossa autonomia econômica para um crescimento autônomo. O
que nos falta hoje é maior indignação generalizada em face de tanto desemprego,
tanta fome e tanta violência desnecessárias, porque perfeitamente sanáveis com
alterações estratégicas na ordem econômica. Falta mais, ainda, competência
política para usar o poder na realização de nossas potencialidades.
A história nos fez, pelo esforço de nossos
antepassados, detentores de um território prodigiosamente rico e de uma massa
humana metida no atraso, mas sedenta de modernidade e de progresso, que não
podemos entregar ao espontaneísmo do mercado mundial. A tarefa das novas
gerações de brasileiros é tomar este país em suas mãos para fazer dele o que há
de ser, uma das nações mais progressistas, justas e prósperas da terra.”
“A questão hoje é mais grave. A luta dentro
dessa massa urbana é ferocíssima. Os marginais não devem, porém, ser
confundidos com a secular população favelada das grandes cidades, que de fato
são suas principais vítimas.
O normal na marginália é uma agressividade em
que cada um procura arrancar o seu, seja de quem for. Não há família, mas meros
acasalamentos eventuais. A vida se assenta numa unidade matricêntrica de
mulheres que parem filhos de vários homens.
Apesar de toda a miséria, essa heroica mãe
defende seus filhos e, ainda que com fome, arranja alguma coisa para pôr em
suas bocas. Não tendo outro recurso, se junta a eles na exploração do lixo e na
mendicância nas ruas das cidades. É incrível que o Brasil, que gosta tanto de
falar de sua família cristã, não tenha olhos para ver e admirar essa mulher
extraordinária em que se assenta toda a vida da gente pobre.
A anomia frequentemente se instala,
prostrando multidões no desânimo e no alcoolismo. Muitas vezes se deteriora,
também, na anarquia, em gestos fugazes de revolta incontrolável.
Um corpo elementar de valores coparticipados
a todos afeta, oriundos principalmente dos cultos afro-brasileiros, do futebol
e do Carnaval, suas paixões. As circunstâncias fazem surgir, periodicamente,
lideranças ferozes que a todos se impõem na divisão do despojo de saqueios.
Essa situação é agravada por uma lúmpen-burguesia de microempresários que vivem
da exploração dessa gente paupérrima e os controla através de matadores
profissionais, recrutados entre fugidos da prisão e policiais expulsos de suas
corporações.
O doloroso é que esses bandos se instalam no
meio das populações faveladas e das periferias, impondo a mais dura opressão
para impedir que escapem do seu domínio. Isso é o que desejam muitas famílias
pobres, geralmente desajustadas. Paradoxalmente, confiam é no crime organizado,
que costuma limpar a favela dos pequenos delinquentes mais irresponsáveis e
violentos e põe cobro à caçada de crianças pelos matadores profissionais.
Talvez, por isso, tanto se apeguem aos cultos evangélicos que salvam os homens
do alcoolismo, as mulheres da pancadaria dos maridos bêbados, as crianças de
toda sorte de violência e do incesto. Os cultos católicos, regidos por
sacerdotes bem formados, raramente aparecem ali. Quem compete mais com os
evangélicos são os cultos afro-brasileiros, que com sua hierarquia rígida e com
sua liturgia apuradíssima abrem perspectivas de carreira religiosa e de vidas
devotadas ao culto.
Ultimamente, a coisa se tornou mais complexa
porque as instituições tradicionais estão perdendo todo o seu poder de controle
e de doutrinação. A escola não ensina, a igreja não catequiza, os partidos não
politizam. O que opera é um monstruoso sistema de comunicação de massa fazendo
a cabeça das pessoas. Impondo-lhes padrões de consumo inatingíveis,
desejabilidades inalcançáveis, aprofundando mais a marginalidade dessas
populações e seu pendor à violência. Algo tem que ver a violência desencadeada
nas ruas com o abandono dessa população entregue ao bombardeio de um rádio e de
uma televisão social e moralmente irresponsáveis, para as quais é bom o que
mais vende, refrigerantes ou sabonetes, sem se preocupar com o desarranjo
mental e moral que provocam.”
CLASSE E PODER
Nossa tipologia das classes sociais vê na
cúpula dois corpos conflitantes, mas mutuamente complementares. O patronato de
empresários, cujo poder vem da riqueza através da exploração econômica; e o
patriciado, cujo mando decorre do desempenho de cargos, tal como o general, o
deputado, o bispo, o líder sindical e tantíssimos outros. Naturalmente, cada
patrício enriquecido quer ser patrão e cada patrão aspira às glórias de um
mandato que lhe dê, além de riqueza, o poder de determinar o destino alheio.
Nas últimas décadas surgiu e se expandiu um
corpo estranho nessa cúpula. É o estamento gerencial das empresas estrangeiras,
que passou a constituir o setor predominante das classes dominantes. Ele
emprega os tecnocratas mais competentes e controla a mídia, conformando a
opinião pública. Ele elege parlamentares e governantes. Ele manda, enfim, com
desfaçatez cada vez mais desabrida.
Abaixo dessa cúpula ficam as classes
intermediárias, feitas de pequenos oficiais, profissionais liberais, policiais,
professores, o baixo-clero e similares. Todos eles propensos a prestar
homenagem às classes dominantes, procurando tirar disso alguma vantagem. Dentro
dessa classe, entre o clero e os raros intelectuais, é que surgiram mais
subversivos em rebeldia contra a ordem. A insurgência mesmo foi encarnada por
gente de seus estratos mais baixos. Por isso mesmo mais padres foram enforcados
que qualquer outra categoria de gente.
Seguem-se as classes subalternas, formadas
por um bolsão da aristocracia operária, que têm empregos estáveis, sobretudo os
trabalhadores especializados, e por outro bolsão que é formado por pequenos
proprietários, arrendatários, gerentes de grandes propriedades rurais etc.
Abaixo desses bolsões, formando a linha mais
ampla do losango das classes sociais brasileiras, fica a grande massa das
classes oprimidas dos chamados marginais, principalmente negros e mulatos,
moradores das favelas e periferias da cidade. São os enxadeiros, os
boias-frias, os empregados na limpeza, as empregadas domésticas, as pequenas
prostitutas, quase todos analfabetos e incapazes de organizar-se para
reivindicar. Seu desígnio histórico é entrar no sistema, o que sendo
impraticável, os situa na condição da classe intrinsecamente oprimida, cuja
luta terá de ser a de romper com a estrutura de classes. Desfazer a sociedade
para refazê-la.
Essa estrutura de classes engloba e organiza
todo o povo, operando como um sistema autoperpetuante da ordem social vigente.
Seu comando natural são as classes dominantes. Seus setores mais dinâmicos são
as classes intermédias. Seu núcleo mais combativo, as classes subalternas. E
seu componente majoritário são as classes oprimidas, só capazes de explosões
catárticas ou de expressão indireta de sua revolta. Geralmente estão resignadas
com seu destino, apesar da miserabilidade em que vivem, e por sua incapacidade
de organizar-se e enfrentar os donos do poder.
As classes dominantes, cujo número é
insignificante, detêm, graças ao apoio das outras classes, o poder efetivo
sobre toda a sociedade. Os setores intermédios funcionam como um atenuador ou
agravador das tensões sociais e são levados mais vezes a operar no papel de
mantenedores da ordem do que de ativistas de transformações.
As classes subalternas são formadas pelos que
estão integrados regularmente na vida social, no sistema produtivo e no corpo
de consumidores, geralmente sindicalizados. Seu pendor é mais para defender o
que já têm e obter mais, do que para transformar a sociedade. O quarto estrato,
formado pelas classes oprimidas, é o dos excluídos da vida social, que lutam
por ingressar no sistema de produção e pelo acesso ao mercado. Na verdade, é a
este último corpo, apesar de sua natureza inorgânica e cheia de antagonismos,
que cabe o papel de renovador da sociedade como combatente da causa de todos os
outros explorados e oprimidos. Isso porque só tem perspectivas de integrar a
vida social rompendo toda estrutura de classes. Essa configuração de classes
antagônicas, mas interdependentes organiza-se, de fato, para fazer oposição às
classes oprimidas – ontem escravos, hoje subassalariados – em razão do
pavor-pânico que infunde a todos a ameaça de uma insurreição social
generalizada.”
Um comentário:
Não pude citar tudo que gostaria (ou, mais bem dizendo, tudo que necessitaria), por questões de espaço. Em “O Povo Brasileiro” tive a mesma dificuldade de outras obras (“A Era dos Extremos” de Eric J. Hobsbawm e “João Goulart: uma biografia”, de Jorge Ferreira), em que havia tanto a citar que descaracterizaria uma postagem de um blog. Porém, diferentemente do que fiz nestes outros dois casos, resolvi cortar na carne e deixar pra trás trechos talvez tão importantes quanto os que acabaram sendo citados nas postagens. De toda forma, ao menos algumas partes deles puderam vir pra cá: eram demasiado preciosos para que ficassem escondidos.
Dentre outros, cito, por exemplo, o fenomenal capítulo “Razões desencontradas” que acabou não sendo incluído aqui.
De qualquer modo, fica a indicação (ou demanda, ou súplica): a leitura deste livro é essencial. Em sua integralidade.
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