Editora: Martin Claret
ISBN: 978-85-7232-595-0
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 268
Sinopse: Viagens na minha terra é o relato romanceado
de uma viagem verídica empreendida pelo autor de Lisboa a Santarém na década de
1830. Numa prosa fluida, espontânea e aparentemente despretensiosa, que constantemente
busca cooptar o leitor, fazendo uso de vocativos, Almeida Garrett comenta os lugares
por onde passa e, entre uma reflexão e outra, critica o atraso tecnológico do país,
a literatura que falseia a realidade, as más condições das estradas e hospedarias;
a maneira dos homens públicos de governar; enfim, divaga sobre diversos temas, fazendo
uso ligeiro e bem humorado de ironias.
“A virtude é o galardão de si mesma, disse um filósofo antigo.”
“Plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai
estradas, fazeis caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual
mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como
tendes feito esta que Deus nos deu tão diferente do que a que hoje vivemos. Andai,
ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações
de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou
a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto
aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos
que é forçoso condenar a miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização,
à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para
produzir um rico? Cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis.”
“Por mim, não conheço objeto mais lindo em toda a natureza,
mais feiticeiro, mais capaz de arrebatar o espírito e inflamar o coração do que
é uma jovem donzela quando a modéstia lhe faz subir o rubor às faces e o pejo lhe
carrega brandamente nas pálpebras...”
“O italiano tinha fé em Deus, o alemão no cepticismo, o português
na sua pátria. É preciso crer em alguma coisa para ser grande — não só poeta — grande
seja no que for.”
“O inglês não canta senão quando bebe... aliás quando está
BEBIDO.”
“Este é o único privilégio dos poetas: que até morrer podem
estar namorados.”
“O coração humano é como o estômago humano, não pode estar
vazio, precisa de alimento sempre: são e generoso só as afeições lho podem dar;
o ódio, a inveja e toda a outra paixão má é estímulo que só irrita mas não sustenta.
Se a razão e a moral nos mandam abster destas paixões, se as quimeras filosóficas,
ou outras, nos vedarem aquelas, que alimento dareis ao coração, que há de ele fazer?
Gastar-se sobre si mesmo, consumir-se... Altera-se a vida, apressa-se a dissolução
moral da existência, a saúde da alma é impossível.
O que pode viver assim, vive para fazer mal ou para não fazer
nada.
Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente, seu filho
se o tem, sua mãe se a conserva, ou a mulher que prefere a todas, esse homem é o
tal, e Deus me livre dele.
Sobretudo que não escreva: há de ser um maçador terrível.
Talvez seja este o motivo da indefinida permissão que é dada aos poetas de andarem
namorados sempre. O romancista goza do mesmo foro e tem as mesmas obrigações.”
“– Não sei o que é, mas quando não trabalho eu, trabalha não
sei o que em mim que me cansa ainda mais. Bem dizem que a ociosidade é o pior lavor.”
“Sei que me não namoro de paradoxos, nem sou destes espíritos
de contradição desinquieta que suspiram sempre pelo que foi, e nunca estão contentes
com o que é.”
“– Vencedores ou vencidos, toda a comunhão, toda a possibilidade
de união acabou entre nós e estes homens. Nós temos obrigação de os destruir, eles
o seu único desejo é exterminar-nos.
– Meu Deus! meu Deus! pois a isto somos chegados? Pois já
não há misericórdia no céu nem na terra!
– A misericórdia de Deus cansou-se; a da terra não sei onde
está nem onde esteve nunca. Os fracos dão sacrilegamente este nome à sua relaxação.
– Pois é relaxação desejar a paz, querer a união, suplicar
a indulgência? Não nos manda Deus perdoar todas as nossa dívidas, amar os nossos
inimigos?
– Os nossos sim, os d’Ele não.
– Pois tão perdidos, tão abandonados da mão de Deus são eles
todos... todos?
– Todos. E que cuida, irmã? que são melhores os nossos, esses
que se dizem nossos? que há mais fé na sua crença, mais verdade na sua religião?
Ó santo Deus!
– Faz-me tremer, padre!
– E para tremer é. A impiedade e a cobiça entraram em todos
os corações. Duvidar é o único princípio, enriquecer o único objeto
de toda essa gente. Liberais e realistas, nenhum tem fé: os liberais ainda têm esperança;
não lhe há de durar muito. Deixem-nos vencer e verão.
– E hão de vencer eles?
– Decerto.
– Ninguém mais diz isso.
– Digo-o eu.
– Tantos mil soldados que o governo tem por si!
– E tantos milhões de pecados contra. Não pode ser, não pode
ser: a misericórdia divina está exausta, e o dia desejado dos ímpios vai chegar.
A sua missão é fácil e pronta; não sabem, não podem senão destruir. Edificar não
é para eles, não têm com quê, não creem em nada. O símbolo cristão não é só uma
verdade religiosa, é um princípio eterno e universal. Fé, esperança e caridade.
Sem crer, sem esperar...
– E sem amar!
– Mulher, mulher! o amor é a última virtude...
– Mas por ela, por ela se chega às outras.”
“O chamado liberalismo, esse entendia frei Dinis: “Reduz-se,
dizia, a duas coisas, duvidar e destruir por princípio, adquirir
e enriquecer por fim; é uma seita toda material em que a carne domina
e o espírito serve; tem muita força para o mal; bem verdadeiro, real e perdurável,
não o pode fazer. Curar com uma revolução liberal um país estragado, como são todos
os da Europa, é sangrar um tísico: a falta de sangue diminui as ânsias do pulmão
por algum tempo, mas as forças vão-se e a morte é a mais certa”.”
“Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou
a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices.
O homem — não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade
tem contrafeito, apertando e forçando em seus moldes de ferro aquela pasta de limo
que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade — o homem assim aleijado
como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente
que habita na terra.
Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza: príncipe deserdado
e proscrito, hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados, altivo ainda e
soberbo com as recordações do passado, baixo, vil e miserável pela desgraça do presente.
Destas duas tão opostas atuações constantes, que já per si
sós o tornariam ridículo, formou a sociedade, em sua vã sabedoria, um sistema quimérico,
desarrazoado e impossível, complicado de regras a qual mais desvairada, encontrado
de repugnâncias a qual mais oposta. E vazado este perfeito modelo de sua arte pretensiosa,
meteu dentro dele o homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e
disparatado, doente, fraco, raquítico; colocou-o no meio do Éden fantástico de sua
criação — verdadeiro inferno de tolices — e disse-lhe, invertendo com blasfemo arremedo
as palavras de Deus Criador:
“De nenhuma árvore da horta comendo comerás:
Porém da árvore da ciência do bem e do mal dela só comerás
se quiseres viver.”
Indigestão de ciência que não comutou seu mau estômago, presunção
e vaidade que dela se originaram — tal foi o resultado daquele preceito a que o
homem não desobedeceu como ao outro: tal é o seu estado habitual.
E quando as memórias da primeira existência lhe fazem nascer
o desejo de sair desta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar à natureza
e a Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem sobre ele, e o prende,
e o esmaga, e o contorce de novo, e o aperta no ecúleo doloroso de suas formas.
Ou há de morrer ou ficar monstruoso e aleijão.
Poucos filhos do Adão social tinham tantas reminiscências
da outra pátria mais antiga, e tendiam tanto a aproximar-se do primitivo tipo que
saíra das mãos do Eterno, forcejavam tanto por sacudir de si o pesado aperto das
constrições sociais, e regenerar-se na santa liberdade da natureza, como era o nosso
Carlos.
Mas o melhor e o mais generoso dos homens segundo a sociedade,
é ainda mais fraco, falso e acanhado.
Demais, cada tentativa nobre, cada aspiração elevada de sua
alma lhe tinha custado duros castigos, severas e injustas condenações desse grande
juiz hipócrita, mentiroso e venal... o mundo.
Carlos estava quase como os mais homens... ainda era bom e
verdadeiro no primeiro impulso de sua natureza excepcional; mas a reflexão descia-o
à vulgaridade da fraqueza, da hipocrisia, da mentira comum.
Dos melhores era, mas era homem.”
“Quem tem uma ideia fixa, em tudo a mete.”
“Detesto a filosofia, detesto a razão; e sinceramente creio
que num mundo tão desconchavado como este, numa sociedade tão falsa, numa vida tão
absurda como a que nos fazem as leis, os costumes, as instituições, as conveniências
dela, afetar nas palavras a exatidão, a lógica, a retidão que não há nas coisas,
é a maior e mais perniciosa de todas incoerências.”
“Em Portugal não há religião de nenhuma espécie. Até a sua
falsa sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar,
ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio
das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito...
Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor
tempo, apesar desta paralisia que lhe pasma a vida da alma na mais nobre parte de
seu corpo. Mas uma nação pequena, é impossível; há de morrer.
Mais dez anos de barões e de regime da matéria, e infalivelmente
nos foge deste corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito.
Creio isto firmemente.
Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo,
esta são; os corruptos somos nós, os que cuidamos saber e ignoramos tudo.
Nós, que somos a prosa vil da nação, nós não entendemos a
poesia do povo; nós, que só compreendemos o tangível dos sentidos, nós somos estranhos
às aspirações sublimes do senso íntimo, que despreza as nossas teorias presunçosas,
porque todas vêm de uma acanhada análise que procede curta e mesquinha dos dados
materiais, insignificantes e imperfeitos; — enquanto ele, aquele senso íntimo do
povo, vem da Razão divina, e procede da síntese transcendente, superior, e inspirada
pelas grandes e eternas verdades que se não demonstram porque se sentem.
E eu que descrevo isto serei eu demagogo? Não sou.
Serei fanático, jesuíta, hipócrita? Não sou.
Que sou eu, então?
Quem não entender o que eu sou, não vale a pena que lho diga...
Perdoa-me, leitor amigo, uma reflexão última no fim deste
capítulo já tão secante, e prometo não refletir nunca mais.
Jesus Cristo, que foi o modelo da paciência, da tolerância,
o verdadeiro e único fundador da liberdade e da igualdade entre os homens, Jesus
Cristo sofreu com resignação e humildade quantas injustiças, quantos insultos lhe
fizeram a ele e à sua missão divina; perdoou ao matador, a adúltera, ao blasfemo,
ao ímpio. Mas quando viu os barões a agiotar dentro do templo, não se pode conter,
pegou num azorrague e zurziu-os sem dor.”