Editora: L&PM
ISBN: 978-85-254-1488-5
Tradução: Eric Nepomuceno
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 272
Sinopse: Tratar a
memória como coisa viva, bicho inquieto: assim faz Eduardo Galeano quando
escreve. Sua memória pessoal e a nossa memória coletiva, da América. Quando
escreve, ele mostra que a história pode – e deve – ser contada a partir de
pequenos momentos, aqueles que sacodem a alma da gente sem a grandiloquência
dos heroísmos de gelo, mas com a grandeza da vida.
Assim é O livro dos abraços. Em suas andanças
incessantes de caçador de histórias. Galeano vai ouvindo de tudo. O que de
melhor ouviu ele transforma em livros como este, onde lembra como são grandes
os pequenos momentos e como eles vão se abraçando, traçando a vida.
A função da arte (1)
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago
Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar,
estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram
aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de
seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino
ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar,
tremendo, gaguejando, pediu ao pai: – Me ajuda a olhar!
Celebração da voz humana (2)
Tinham as mãos amarradas, ou algemadas, e
ainda assim os dedos dançavam, voavam, desenhavam palavras. Os presos estavam
encapuzados; mas inclinando-se conseguiam ver alguma coisa, alguma coisinha,
por baixo. E embora fosse proibido falar, eles conversavam com as mãos.
Pinio Ungerfeld me ensinou o alfabeto dos
dedos, que aprendeu na prisão sem professor:
– Alguns tinham caligrafia ruim –
me disse. – Outros tinham letra de artista.
A ditadura uruguaia queria que cada um fosse
apenas um, que cada um fosse ninguém: nas cadeias e quartéis, e no país
inteiro, a comunicação era delito.
Alguns presos passaram mais de dez anos
enterrados em calabouços solitários do tamanho de um ataúde, sem escutar outras
vozes além do ruído das grades ou dos passos das botas pelos corredores.
Fernández Huidobro e Maurício Rosencof, condenados a essa solidão, salvaram-se
porque conseguiram conversar, com batidinhas na parede. Assim contavam sonhos e
lembranças, amores e desamores; discutiam, se abraçavam, brigavam;
compartilhavam certezas e belezas e também dúvidas e culpas e perguntas que não
têm resposta.
Quando é verdadeira, quando nasce da
necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a
boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for.
Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma
palavra que merece ser celebrada ou perdoada.
A fronteira da arte
Foi a batalha mais longa de todas as lutadas
em Tuscatlán ou em qualquer outra região de El Salvador. Começou à meia-noite,
quando as primeiras granadas caíram da montanha, e durou a noite toda e foi até
a tarde do dia seguinte. Os militares diziam que Cinquera era inexpugnável. Os
guerrilheiros tinham atacado quatro vezes, e quatro vezes tinham fracassado. Na
quinta vez, quando foi erguida a bandeira branca no mastro do quartel-general,
os tiros para o alto começaram os festejos.
Julio Ama, que lutava e fotografava a guerra,
andava caminhando pelas ruas. Levava seu fuzil na mão e a câmara, também
carregada e pronta para ser disparada, pendurada no pescoço. Andava Julio pelas
ruas poeirentas, procurando os irmãos gêmeos. Esses gêmeos eram os únicos
sobreviventes de uma aldeia exterminada pelo exército. Tinham dezesseis anos.
Gostavam de combater ao lado de Julio; e nas entre-guerras, ele os ensinava a
ler e a fotografar. No turbilhão daquela batalha, Julio tinha perdido os
gêmeos, e agora não os via entre os vivos ou entre os mortos.
Caminhou através do parque. Na esquina da
igreja, meteu-se numa viela. E então, finalmente, encontrou-os. Um dos gêmeos
estava sentado no chão, de costas contra um muro. Sobre seus joelhos jazia o
outro, banhado em sangue; e aos pés, em cruz, estavam os dois fuzis.
Júlio se aproximou, e talvez tenha dito
alguma coisa. O gêmeo que vivia não disse nada, nem se moveu: estava lá, mas
não estava. Seus olhos, que não pestanejavam, olhavam sem ver, perdidos em
algum lugar, em nenhum lugar; e naquela cara sem lágrimas estavam a guerra
inteira e a dor inteira.
Júlio deixou o fuzil no chão e empunhou a
câmara. Rodou o filme, calculou num instante a luz e a distância e colocou a
imagem em foco. Os irmãos estavam no centro do visor, imóveis, perfeitamente
recortados contra o muro recém-mordido pelas balas.
Júlio ia fazer a foto da sua vida, mas o dedo
não quis. Júlio tentou, tornou a tentar, e o dedo não quis. Então baixou a
câmara, sem apertar o botão, e se retirou em silêncio.
A câmara, uma Minolta, morreu em outra
batalha, afogada pela chuva, um ano mais tarde.
Celebração da fantasia
Foi na entrada da aldeia de Ollantaytambo,
perto de Cuzco. Eu tinha me soltado de um grupo de turistas e estava sozinho,
olhando de longe as ruínas de pedra, quando um menino do lugar, esquelético,
esfarrapado, chegou perto para me pedir que desse a ele de presente uma caneta.
Eu não podia dar a caneta que tinha, porque estava usando-a para fazer sei lá
que anotações, mas me ofereci para desenhar um porquinho em sua mão.
Subitamente, correu a notícia. E de repente me vi cercado por um enxame de
meninos que exigiam, aos berros, que eu desenhasse em suas mãozinhas rachadas
de sujeira e frio, pele de couro queimado: havia os que queriam um condor e uma
serpente, outros preferiam periquitos ou corujas, e não faltava quem pedisse um
fantasma ou um dragão.
E então, no meio daquele alvoroço, um
desamparadozinho que não chegava a mais de um metro do chão, mostrou-me um
relógio desenhado com tinta negra em seu pulso:
– Quem mandou o relógio foi um tio
meu, que mora em Lima – disse.
– E funciona direito? –
perguntei.
– Atrasa um pouco –
reconheceu.
A burocracia (2)
Tito Sclavo conseguiu ver e transcrever
alguns boletins oficiais do cárcere chamado Libertad, nos anos da
ditadura militar uruguaia. São atas de castigo: condena-se ao Calabouço os
presos que tenham cometido o delito de desenhar pássaros, ou casais, ou
mulheres grávidas, ou que tenham sido surpreendidos usando uma toalha estampada
de flores. Um preso, cuja cabeça estava, como todas, raspada a zero, foi
castigado por entrar despenteado no refeitório. Outro, por passar
a cabeça por baixo da porta, embora debaixo da porta houvesse um milímetro
de luz. Houve Calabouço para um preso que pretendeu familiarizar-se com
um cão de guerra, e para outro que insultou um cão integrante das
Forças Armadas. Outro foi castigado porque latiu como um cão sem
razão justificada.
A burocracia (3)
Sixto Martínez fez o serviço militar num
quartel de Sevilha. No meio do pátio desse quartel havia um banquinho. Junto ao
banquinho, um soldado montava guarda. Ninguém sabia porque se montava guarda
para o banquinho. A guarda era feita porque sim, noite e dia, todas as noites,
todos os dias, e de geração em geração os oficiais transmitiam a ordem e os
soldados obedeciam. Ninguém nunca questionou, ninguém nunca perguntou. Assim
era feito, e sempre tinha sido feito.
E assim continuou sendo feito até que alguém,
não sei qual general ou coronel, quis conhecer a ordem original. Foi preciso
revirar os arquivos a fundo. E depois de muito cavoucar, soube-se. Fazia trinta
e um anos, dois meses e quatro dias, que um oficial tinha mandado montar guarda
junto ao banquinho, que fora recém-pintado, para que ninguém sentasse na tinta
fresca.
Noite de Natal
Fernando Silva dirige o hospital de crianças,
em Manágua. Na véspera do Natal, ficou trabalhando até muito tarde. Os foguetes
esposavam e os fogos de artifício começavam a iluminar o céu quando Fernando
decidiu ir embora. Em casa, esperavam por ele para festejar.
Fez um último percorrido pelas salas, vendo
se tudo ficava em ordem, e estava nessa quando sentiu que passos o seguiam.
Passos de algodão: virou e descobriu que um dos doentinhos andava atrás dele.
Na penumbra, reconheceu-o. Era um menino que estava sozinho. Fernando
reconheceu sua cara marcada pela morte e aqueles olhos que pediam desculpas ou
talvez pedissem licença.
Fernando aproximou-se e o menino roçou-o com
a mão: – Diga para... – sussurrou o menino. – Diga
para alguém que eu estou aqui.
Os ninguéns
As pulgas sonham com comprar um cão, e os
ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de
repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem
hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais
que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o
pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos
de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos,
morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam
superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos
humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal,
aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala
que os mata.
A fome (2)
Um sistema de desvínculo: Boi sozinho
se lambe melhor... O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu
amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma
coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena
muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços.
Teologia (1)
O catecismo me ensinou, na infância, a fazer
o bem por interesse e a não fazer o mal por medo. Deus me oferecia castigos e
recompensas, me ameaçava com o inferno e me prometia o céu; e eu temia e
acreditava.
Passaram-se os anos. Eu já não temo nem
creio. E em todo caso – penso – se mereço ser assado cozido no caldeirão do
inferno, condenado ao fogo lento e eterno, que assim seja. Assim me salvarei do
purgatório, que está cheio de horríveis turistas da classe média; e no final
das contas, se fará justiça.
Sinceramente: merecer, mereço. Nunca matei
ninguém, é verdade, mas por falta de coragem ou de tempo, e não por falta de
querer. Não vou à missa aos domingos, nem nos dias de guarda. Cobicei quase
todas as mulheres de meus próximos, exceto as feias, e assim violei, pelo menos
em intenção, a propriedade privada que Deus pessoalmente sacramentou nas tábuas
de Moisés: Não cobiçarás a mulher de teu próximo nem seu touro, nem seu
asno... E como se fosse pouco, com premeditação e deslealdade cometi o
ato do amor sem o nobre propósito de reproduzir a mão-de-obra. Sei muito bem
que o pecado carnal não é bem visto no céu; mas desconfio que Deus condena o
que ignora.
Teologia (2)
O deus dos cristãos, Deus da minha infância,
não faz amor. Talvez o único deus que nunca fez amor, entre todos os deuses de
todas as religiões da história humana. Cada vez que penso nisso, sinto pena
dele. E então o perdoo por ter sido meu super-pai castigador, chefe de polícia
do universo, e penso que afinal Deus também foi meu amigo naqueles velhos
tempos, quando eu acreditava Nele e acreditava que Ele acreditava em mim. Então
preparo a orelha, na hora dos rumores mágicos, entre o pôr-do-sol e o nascer
subir da noite, e acho que escuto suas melancólicas confidências.
A noite (3)
Eu adormeço às margens de uma mulher: eu
adormeço às margens de um abismo.
Dizem as paredes
Na cidade uruguaia de Melo: Ajude a
polícia: torture-se.
Na faculdade de Ciências Econômicas, em
Montevidéu: A droga provoca amnésia e outras coisas que esqueci.
Em Santiago do Chile, nas margens do rio
Mapocho: Bem-aventurados os bêbados, porque eles verão Deus duas vezes.
Em Buenos Aires, no bairro de Flores: Uma
namorada sem tetas é, mais que namorada, um amigo.
Em Caracas, em tempos de crise, na entrada de
um dos bairros mais pobres:
Bem-vinda, classe média.
Em Bogotá, pertinho da Universidade Nacional:
Deus vive.
Embaixo, com outra letra:
Só por milagre.
E também em Bogotá:
Proletários de todos os países, uni-vos!
Embaixo, com outra letra:
(Último aviso.)
A vida profissional (3)
Os banqueiros da grande bancaria do mundo,
que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais que os reis e os marechais e
mais que o próprio Papa de Roma. Eles jamais sujam as mãos. Não matam ninguém:
se limitam a aplaudir o espetáculo.
Seus funcionários, os tecnocratas
internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem
ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos
salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os
impostos, os lucros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a frequência das
chuvas.
Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das
câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de
extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis consequências de seus
atos.
Os tecnocratas reivindicam o privilégio da
irresponsabilidade:
– Somos neutros – dizem.
Mapa-múndi (2)
No Sul, a repressão. Ao Norte, a depressão.
Não são poucos os intelectuais do Norte que
se casam com as revoluções do Sul só pelo prazer de ficarem viúvos.
Prestigiosamente choram, choram a cântaros, choram mares, a morte de cada ilusão;
e nunca demoram muito para descobrir que o socialismo é o caminho mais longo
para chegar do capitalismo ao capitalismo.
A moda do Norte, moda universal, celebra a
arte neutra e aplaude a víbora que morde a própria cauda e acha que é saborosa.
A cultura e a política se converteram em artigos de consumo. Os presidentes são
eleitos pela televisão, como os sabonetes, e os poetas cumprem uma função
decorativa. Não há maior magia que a magia do mercado, nem heróis mais heróis
que os banqueiros.
A democracia é um luxo do Norte. Ao Sul é
permitido o espetáculo, que não é negado a ninguém. E ninguém se incomoda
muito, afinal, que a política seja democrática, desde que a economia não o
seja. Quando as cortinas se fecham no palco, uma vez que os votos foram depositados
nas urnas, a realidade impõe a lei do mais forte, que é a lei do dinheiro.
Assim determina a ordem natural das coisas. No Sul do mundo, ensina o sistema,
a violência e fome não pertencem à história, mas à natureza, e a justiça e a
liberdade foram condenadas a odiar-se entre si.
A desmemória (3)
Nas ilhas francesas do Caribe, os textos de
história ensinam que Napoleão foi o mais admirável guerreiro do Ocidente.
Naquelas ilhas, Napoleão restabeleceu a escravidão em 1802. A sangue e fogo
obrigou os negros livres a voltarem a ser escravos nas plantações. Disso, os
textos não dizem nada. Os negros são os netos de Napoleão, não as suas vítimas.
A desmemória (4)
Chicago está cheia de fábricas. Existem
fábricas até no centro da cidade, ao redor do edifício mais alto do mundo.
Chicago está cheia de fábricas, Chicago está cheia de operários.
Ao chegar ao bairro de Heymarket, peço aos
meus amigos que me mostrem o lugar onde foram enforcados, em 1886, aqueles
operários que o mundo inteiro saúda a cada primeiro de maio.
– Deve ser por aqui – me
dizem. Mas ninguém sabe. Não foi erguida nenhuma estátua em memória dos
mártires de Chicago na cidade de Chicago. Nem estátua, nem monolito, nem placa
de bronze, nem nada.
O primeiro de maio é o único dia
verdadeiramente universal da humanidade inteira, o único dia no qual coincidem
todas as histórias e todas as geografias, todas as línguas e as religiões e as
culturas do mundo; mas nos Estados Unidos, o Primeiro de maio é um dia como
qualquer outro. Nesse dia, as pessoas trabalham normalmente, e ninguém, ou
quase ninguém, recorda que os direitos da classe operária não brotaram do
vento, ou da mão de Deus ou do amo.
Após a inútil exploração de Heymarket, meus
amigos me levam para conhecer a melhor livraria da cidade. E lá, por pura
curiosidade, por pura casualidade, descubro um velho cartaz que está como que
esperando por mim, metido entre muitos outros cartazes de música, rock e
cinema.
O cartaz reproduz um provérbio da
África: Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as
histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador.
Celebração das contradições (2)
Desamarrar as vozes, dessonhar os sonhos:
escrevo querendo revelar o real maravilhoso, e descubro o real maravilhoso no
exato centro do real horroroso da América.
Nestas terras, a cabeça do deus Elegguá leva
a morte na nuca e a vida na cara. Cada promessa é uma ameaça; cada perda, um
encontro. Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos
anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão.
Somos, enfim, o que fazemos para transformar
o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a
sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia.
Nessa fé, fugitiva, eu creio. Para mim, é a
única fé digna de confiança, porque é parecida com o bicho humano, fodido mas
sagrado, e à louca aventura de viver no mundo.
Paradoxos
Se a contradição for o pulmão da história, o
paradoxo deverá ser, penso eu, o espelho que a história usa para debochar de
nós. Nem o próprio filho de Deus salvou-se do parado: Ele escolheu, para
nascer, um deserto subtropical onde jamais nevou, mas a neve se converteu num
símbolo universal do Natal desde que a Europa decidiu europeizar Jesus. E para
mais inri, o nascimento de Jesus é, hoje em dia, o negócio que mais
dinheiro dá aos mercadores que Jesus tinha expulsado do templo.
Napoleão Bonaparte, o mais francês dos
franceses, não era francês. Não era russo Josef Stálin, o mais russo dos
russos; e o mais alemão dos alemães, Adolf Hitler, tinha nascido na Áustria.
Margherita Sarfatti, a mulher mais amada pelo antissemita Mussolini, era judia.
José Carlos Mariátegui, o mais marxista dos marxistas latino-americanos,
acreditava fervorosamente em Deus. O Che Guevara tinha sido declarado completamente
incapaz para a vida militar pelo exército argentino.
Das mãos de um escultor chamado Aleijadinho,
que era o mais feio dos brasileiros, nasceram as mais altas formosuras do
Brasil. Os negros norte-americanos, os mais oprimidos, criaram o jazz, que é a
mais livre das músicas. No fundo de um cárcere foi concebido o Dom Quixote, o
mais andante dos cavaleiros. E cúmulo dos paradoxos, Dom Quixote nunca disse
sua frase mais célebre. Nunca disse: Ladram, Sancho, sinal que
cavalgamos.
“Acho que você está meio nervosa”, diz o
histérico. “Te odeio”, diz a apaixonada. “Não haverá desvalorização”, diz, na
véspera da desvalorização, o ministro da Economia. “Os militares respeitam a
Constituição”, diz, na véspera do golpe de Estado, o ministro da Defesa.
Em sua guerra contra a revolução sandinista,
o governo dos Estados Unidos coincidia, paradoxalmente, com o Partido Comunista
da Nicarágua. E paradoxais foram, enfim, as barricadas sandinistas durante a
ditadura de Somoza: as barricadas, que fechavam as ruas, abriam o caminho.
O sistema (1)
Os funcionários não funcionam. Os políticos
falam mas não dizem. Os votantes votam mas não escolhem. Os meios de informação
desinformam. Os centros de ensino ensinam a ignorar. Os juízes condenam as
vítimas. Os militares estão em guerra contra seus compatriotas. Os policiais
não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os.
As bancarrotas são socializadas, os lucros
são privatizados.
O dinheiro é mais livre que as pessoas. As
pessoas estão a serviço das coisas.
A televisão (2)
A televisão mostra o que acontece? Em nossos
países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a
televisão não mostrar.
A televisão, essa última luz que te salva da
solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que
se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona.
A dignidade da arte
Eu escrevo para os que não podem me ler. Os
de baixo, os que esperam há séculos na fila da história, não sabem ler ou não
tem com o quê. Quando chega o desânimo, me faz bem recordar uma lição de
dignidade da arte que recebi há anos, num teatro de Assis, na Itália. Helena e
eu tínhamos ido ver um espetáculo de pantomima, e não havia ninguém. Ela e eu
éramos os únicos espectadores. Quando a luz se apagou, juntaram-se a nós o
lanterninha e a mulher da bilheteria. E, no entanto, os atores, mais numerosos
que o público, trabalharam naquela noite como se estivessem vivendo a glória de
uma estreia com lotação esgotada. Fizeram sua tarefa entregando-se inteiros,
com tudo, com alma e vida; e foi uma maravilha.
Nossos aplausos ressoaram na solidão da sala.
Nós aplaudimos até esfolar as mãos.
A máquina de retroceder
Nos princípios do século vinte, o Uruguai era
um país do século vinte e um. No final do século vinte, o Uruguai é um país do
século dezenove. No reino da chatice, os bons modos proíbem tudo aquilo que não
é imposto pela rotina. Os homens sonham com aposentar-se e as mulheres com
casar-se. Os jovens, culpados do delito de ser jovens, sofrem a pena da solidão
ou do desterro, a menos que possam provar que são velhos.
Celebração das bodas entre a palavra e o ato
Leio um artigo de um escritor de teatro,
Arkadi Rajkin, publicado numa revista de Moscou. O poder burocrático, diz o
autor, faz com que os atos, as palavras e os pensamentos jamais se encontrem:
os atos ficam no local de trabalho, as palavras nas reuniões e os pensamentos
no travesseiro.
Boa parte da força de Che Guevara, penso,
essa misteriosa energia que vai muito além de sua morte e de seus equívocos,
vem de um fato muito simples: ele foi um raro exemplo dos que dizem o que
pensam e fazem o que dizem.
Eu, mutilado capilar
Os barbeiros me humilham cobrando meia
tarifa. Faz uns vinte anos que o espelho delatou os primeiros clarões debaixo
da melena frondosa. Hoje o luminoso reflexo de minha calva em vitrines e
janelas e janelinhas me provoca estremecimentos de horror.
Cada fio de cabelo que perco, cada um dos
últimos cabelos, é um companheiro que tomba, e que antes de tombar teve nome ou
pelo menos número.
A frase de um amigo piedoso me consola:
– Se o cabelo fosse importante, estaria
dentro da cabeça, e não fora.
Também me consolo comprovando que em todos
esses anos caíram muitos de meus cabelos mas nenhuma de minhas ideias, o que
acaba sendo uma alegria quando a gente pensa em todos esses arrependidos que
andam por aí.
O céu e o inferno
Cheguei a Bluefíelds, no litoral da
Nicarágua, no dia seguinte a um ataque dos contras. Havia muitos
mortos e feridos. Eu estava no hospital quando um dos sobreviventes do
tiroteio, um garoto, despertou da anestesia: despertou sem braços, olhou o
médico e pediu:
– Me mate.
Fiquei com um nó no estômago.
Naquela noite, noite atroz, o ar fervia de
calor. Eu me estendi num terraço, sozinho, olhando o céu. Não longe dali, a
música soava forte. Apesar da guerra, apesar de tudo, a cidade de Bluefields
estava celebrando a festa tradicional do Paio de Mayo. A multidão dançava,
jubilosa, ao redor da árvore cerimonial. Mas eu, estendido no terraço, não
queria escutar a música nem queria escutar nada, e estava tentando não sentir,
não recordar, não pensar: em nada, em nada de nada. E estava naquilo,
espantando sons e tristezas e mosquitos, com os olhos pregados na noite alta,
quando um menino de Bluefíelds, que eu não conhecia, estendeu-se ao meu lado e
começou a olhar o céu, como eu, em silêncio.
Então, passou uma estrela cadente. Eu podia
ter pedido um desejo; mas não lembrei.
O menino me explicou:
– Você sabe por que as estrelas caem? A culpa
é de Deus. Deus gruda elas mal. Ele gruda as estrelas com cola de arroz.
Amanheci dançando.
O desafio
– Não conseguiram nos transformar em
eles – escreveu-me Cacho El Kadri. Eram os últimos tempos das
ditaduras militares na Argentina e no Uruguai. Tínhamos comido medo no café da
manhã, medo no almoço e no jantar, medo; mas não tinham conseguido nos
transformar em eles.
“Somos todos mortais até o primeiro beijo e o
segundo copo, e qualquer um sabe disso, por menos que saiba.”
“Em Montevidéu, existe um menino que explica:
– Eu não quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.”
Um comentário:
Muito bom e muito forte. Destaco os trechos que achei muito massa:
"Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as
histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador."
"O poder burocrático, diz o autor, faz com que os atos,
as palavras e os pensamentos jamais se encontrem: os atos
ficam no local de trabalho, as palavras nas reuniões e os
pensamentos no travesseiro."
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