Este blog destina-se a dividir com os companheiros de estrada as impressões e alguns belos trechos deste fantástico universo que é a literatura.
sábado, 22 de novembro de 2014
A Era dos Impérios (1875-1914) – Eric J. Hobsbawm
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
As 100 Melhores Histórias da Mitologia, de A. S. Franchini / Carmen Seganfredo
Editora: L&PM
ISBN: 978-85-254-1316-1
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 464
Sinopse: A Guerra de Tróia. Os Doze Trabalhos de Hércules. A história de amor de
Cupido e Psique. A desgraça de Édipo. O retorno de Ulisses a Ítaca. As maiores batalhas
do mundo antigo, o nascimento dos mais célebres heróis de então, os principais episódios
envolvendo deuses e deusas do Olimpo, mortais, imortais, monstros e bestas são aqui
relatados na sua forma original: com o vigor da ficção. Nas cem histórias que compõem
este livro, as forças da natureza tornam vida, forma-se o Universo, nasce o homem,
surgem os animais e explicam-se, segundo a ótica mágica da mitologia greco-romana,
os primórdios da existência e da história da humanidade. Os mitos não são mitos,
mas personagens vividos e de carne e osso, que pensam, sentem e amam – tudo isso
contado numa prosa acessível – e que compõem o berço da cultura ocidental.
“– Tudo se inicia pela
fantasia.”
DEUCALIÃO E PIRRA
A humanidade conheceu
várias épocas, desde a sua criação – épocas que a história batizou de Idades.
Na primeira delas, a Idade do Ouro, todos eram felizes. Apesar do nome, ninguém,
então, pensava em ouro. A velhice não existia, tampouco as doenças. Reinava uma
primavera permanente, os alimentos brotavam da terra por si sós, e a inocência imperava
por tudo.
Depois dessa idade
feliz seguiu-se a Idade da Prata, na qual a eterna primavera deu lugar às
quatro estações e a terra passou a ter de ser cultivada para oferecer os seus frutos.
A decadência prosseguiu com a Idade do Cobre, na qual começaram as disputas
entre os homens, até que se chegou, finalmente, à Idade do Ferro, quando
o crime fez a sua entrada triunfal entre os mortais. A paz abandonou definitivamente
a Terra, que ficou entregue à cobiça dos homens. As coisas estavam nesse estado
quando Júpiter, deus dos deuses, observando o caos que se instalara, decidiu pôr
um fim nele. Enfurecido, chamou um dia à corte o seu irmão Netuno.
– Meu irmão, creio
que é chegada a hora de castigarmos estes mortais insanos, que transformaram o paraíso
terrestre num horrível lugar de dor.
– Estou de acordo,
meu poderoso irmão – respondeu Netuno. – O que você sugere?
Júpiter ordenou ao
irmão que fendesse a terra com um golpe de seu poderoso tridente. Dali se abririam
as comportas das águas dos mares, que, uma vez liberadas, inundariam o mundo todo.
Netuno, retirando-se,
foi fazer exatamente o que Júpiter lhe dissera. Chegou a um vale seco e pedregoso
e empunhou o tridente, erguendo-o para o alto. Em seguida, o fez descer à terra
com tamanha força que o enterrou quase inteiro no solo. Uma rachadura começou a
se espalhar do ponto onde se abatera o golpe, espraiando-se para todos os lados,
como se fossem as raízes de uma árvore invisível. Daquelas imensas fissuras começou
a brotar a água submersa, que corria por debaixo da terra em imensos e borbulhantes
veios.
Netuno foi por todas
as partes golpeando o solo, até que em menos de um dia a terra começou a desaparecer,
engolida pela água.
Diante dos olhos deliciados
de Júpiter – que a tudo observava do alto – desfilaram envoltos em ondas de incrível
ferocidade gafanhotos, moscas, ratos, esquilos, zebras, leões, elefantes, casas,
templos e palácios. Em meio a tudo isso, passavam homens, agarrados em qualquer
coisa que sobrenadasse na violência das águas. A maioria das pessoas, no entanto,
passavam já mortas. As aves, não encontrando mais nenhum lugar seco onde repousar,
deixavam-se cair às águas, renunciando à luta pela vida.
No entanto, Júpiter
resolveu poupar da destruição um homem e sua esposa, que considerava os únicos justos
sobre a face da Terra. Deucalião e Pirra eram seus nomes. Ao verem que tudo naufragava
sob as ondas impetuosas, Deucalião abraçou-se à esposa, e foram ambos refugiar-se
num velho barquinho. As águas rapidamente cobriram tudo, enquanto suspendiam a frágil
embarcação até o topo do monte Parnaso, o último lugar seco da Terra.
Netuno, vendo sua tarefa
cumprida, chamou logo os seus tritões, semideuses marinhos metade homens, metade
peixes.
– Vão, agora, e devolvam
tudo à normalidade – disse, com autoridade.
Um exército de tritões
partiu, espalhando-se pela Terra. Surgindo de vários pontos das águas, fizeram soar
as imensas conchas marinhas, o que milagrosamente fez as águas recuarem de volta
aos leitos dos rios e dos oceanos. Rapidamente as águas foram baixando, deixando
à mostra outra vez as árvores, as casas, os templos, os palácios e uma multidão
de homens e animais mortos. Parecia que era a própria Terra que ressurgia de dentro
das águas, toda lavada e pronta para ser novamente ocupada.
O único casal de sobreviventes
vagou, assim, pela Terra, revendo antigos lugares que antes fervilhavam de pessoas,
mas que agora eram habitados somente pelo silêncio. De mãos dadas penetraram num
grande teatro, onde dias antes uma multidão alegre rira das piadas e gracejos de
uma velha comédia, pouco antes de morrer afogada. No centro do palco, Deucalião
enxergou o cadáver de um dos atores, que ainda tinha presa ao rosto uma máscara,
toda dobrada e enferrujada. Curioso, retirou o dourado e sorridente adereço, mas
por detrás da máscara só havia agora uma caveira pálida, que sorria, a seu modo,
o grande e compulsório sorriso da Morte.
Pirra virou o rosto
para o lado, com um ar compungido.
– Vamos, Deucalião.
Aqui só há desolação e morte!
Viram também templos
desertos, onde as estátuas dos deuses que não haviam tombado ainda permaneciam em
pé, em poses e gestos tão vividos que pareciam prestes a descer de seus nichos para
ocupar o lugar dos vivos. Passaram por ruas desertas. Entraram e saíram de casas
vazias. Percorreram cidades inteiramente abandonadas. Tudo estava ocupado pela morte.
– Ninguém sobreviveu
à cólera de Júpiter, a não ser nós! – disse Deucalião à esposa.
– Oh! – gemia a mulher.
– Que faremos vivos, num mundo de mortos?
– Procuremos nos consolar,
minha querida Pirra! – exclamou Deucalião, que intimamente estava grato a Júpiter
por haver poupado de sua ira a esposa, o seu único consolo e razão de viver.
Ela, de braços cruzados
ao peito, chorava em silêncio.
– Deucalião, devemos
procurar o templo de Têmis e lá implorarmos piedade – disse Pirra, tornando-se outra
vez resoluta.
De comum acordo seguiram
até chegar ao templo da deusa da Justiça. Do teto pendia ainda um musgo lamacento,
que o vento fazia dançar sobre as colunas, enquanto dos capitéis desciam finas cordas
de água. Sobre os altares, os vasos estavam vazios, e não havia fogo algum a brilhar.
Deucalião e Pirra, comovidos, lançaram-se aos pés da estátua da deusa:
– Poderosa Têmis, que
nos observa, com clemência, do alto! – disse Pirra. – Não queremos habitar um mundo
sem vida! Como faremos para repovoá-lo, se já não temos mais forças nem idade para
isso?
Uma voz suave saiu
da boca cerrada da estátua:
– Meus amados, se quiserem
ver de novo a terra povoada, façam exatamente como vou lhes dizer. Após cumprirem
meus ritos, quero que saiam do templo – disse a deusa. – Depois, cubram seus rostos,
alarguem seus cintos e atirem para trás de si os ossos de sua avó! – completou,
de modo enigmático.
Pirra, não entendendo
o que a deusa desejava, começou a chorar.
– Ó deusa, como farei
tal coisa? – exclamou. – E mesmo que reencontre os ossos de minha avó, como poderia
cometer tamanha blasfêmia?
Deucalião, no entanto,
tomando o rosto de Pirra nas mãos, a acalmou:
– Calma, querida! Acho
que compreendi o sentido das palavras da deusa! É muito simples – esclareceu Deucalião.
– A deusa está se referindo não aos ossos da sua avó, mas à Terra, nossa avó comum!
Ora, os ossos de nossa avó não são senão as pedras da Terra!
Eufóricos, os dois
velaram os rostos e saíram do templo. Juntaram todas as pedras que puderam encontrar,
e Deucalião lançou atrás de si a primeira. Tão logo ela caiu, eles escutaram o ruído
da pedra se esfarelando e algo surgindo às suas costas.
Era um homem!
Sim, um homem que surgira
dos restos da pedra.
Pirra, extasiada, velou
também o rosto e lançou para trás uma pedra, e surgiu dali uma linda mulher. E assim
foram ambos jogando pedras para trás. Daquelas lançadas por Deucalião surgiam homens,
e das que Pirra lançava surgiam mulheres, os novos habitantes da Terra.”
“Observar os mortais
era também um bom calmante, pois, ao ver as loucuras e confusões nas quais eles
viviam metidos, as apreensões do grande deus diminuíam.”
“Os deuses não amam
os temerosos.”
O RAPTO DE PROSÉRPINA
Plutão, o deus dos
infernos, andava inquieto com a agitação que vinha abalando os fundamentos do Monte
Etna, na Sicília. De fato, o vulcão que ali existia parecia mais irado do que nunca,
cuspindo fumaça e faíscas para todos os lados. Sabedor de que o interior daquelas
montanhas abrigava o gigante Tifão – que fora anteriormente derrotado por Júpiter
e ali acorrentado –, Plutão decidira ir ver pessoalmente o que estava ocorrendo.
Tomando a carruagem
da noite, o deus subterrâneo percorria a terra, no caminho do monte Etna, quando
avistou um grupo de mulheres que colhiam flores no campo. Enquanto isto Vênus, a
deusa do amor, observava tudo, tendo ao lado o filho Cupido.
– Veja, meu filho –
disse Vênus, pegando o braço do jovem –, parece que o deus dos infernos decidiu
dar uma voltinha à luz do dia.
– O coitado deve estar
cansado de toda aquela escuridão – disse Cupido. – Deve ser horrível, afinal, ser
o rei de um mundo de mortos.
De repente, Vênus,
dando-se conta de algo, encostou sua boca à orelha de Cupido:
– E se lhe arrumássemos
algo que o distraísse de sua solidão?
Os olhos do jovem pareceram
se iluminar. Cupido pegou rapidamente o seu arco, escolhendo a flecha mais aguda
de sua aljava repleta de setas.
– Já entendi, mãe...
– disse, caprichando na pontaria.
Uma flecha dourada
cortou o ar, indo atingir em cheio o coração do deus infernal. No mesmo instante,
Plutão ficou apaixonado pela mais bela das mulheres que tinha diante dos seus olhos.
Era Prosérpina, filha de Ceres, a deusa da fertilidade e da agricultura; a jovem
podia ser considerada uma digna filha de sua mãe, com seus longos cabelos da cor
do trigo.
Tomado por um ímpeto
verdadeiramente infernal, Plutão colheu as rédeas cor de ferro que seguravam seus
negros cavalos e se lançou em direção ao grupo de moças que circundavam a encantadora
presa. Assustadas com a aproximação do carro negro, todas correram em diversas direções,
deixando Prosérpina desprotegida. Plutão, aproveitando o descuido, suspendeu a moça
com o braço, arrebatando-a aos céus em seu carro veloz.
Foi em vão que a filha
de Ceres clamou por socorro: Plutão, mantendo-a solidamente presa em seus braços,
a conduzia para cada vez mais longe. Descendo, afinal, o seu carro, o deus das trevas
preparava-se para golpear o solo com seu tridente e abrir caminho para retornar
ao seu mundo subterrâneo, quando a ninfa Ciana, que estava ali por perto, ainda
tentou detê-los:
– Espere, cruel divindade!
Deixe-a em paz!
Plutão, sem lhe dar
ouvidos, fendeu a terra com um golpe poderoso de seu tridente. Um abismo abriu-se
aos pés de ambos. Antes, porém, que o raptor e sua presa entrassem pela negra passagem,
Plutão, temendo que a ninfa Ciana viesse a dar com a língua nos dentes, transformou-a
em uma fonte. Os cavalos relincharam, felizes de regressarem à sua escura morada,
enquanto Prosérpina perdia os sentidos ao ver-se prestes a adentrar aquela escuridão
sem fim. – Vamos, você será agora a rainha dos infernos! – disse Plutão, dando um
beijo na face desmaiada de Prosérpina, antes de chicotear com furor os seus cavalos
da cor da noite.
Ceres, no mesmo dia,
foi alertada pelas amigas de Prosérpina, que lhe contaram em detalhes o rapto e
o seu autor.
– Plutão?! – exclamou
Ceres, incrédula. – O que fará aquele maldito à minha filha?
Desesperada, a deusa
saiu a pé, do jeito que estava, em busca de Prosérpina. Percorreu a terra durante
o dia inteiro, sem encontrar nem sinal da filha. Quando a noite chegou, acendeu
uma tocha e prosseguiu em sua solitária e desesperada busca. Assim que Ceres avistou
Selene, a deusa da Lua, deteve o seu passo.
- Por acaso você não
viu, poderosa deusa, a minha filha sendo levada num grande carro conduzido por Plutão?
– perguntou, esperançosa.
Infelizmente, Selene
nada vira. Durante a noite inteira Ceres percorreu a terra, iluminada apenas pelas
estrelas e pela Lua, que intensificou seus raios para ajudá-la a encontrar a filha.
Quando o dia amanhecia, Ceres encontrou-se com a Aurora, que já vinha adiante, precedendo
o radiante carro de Febo, o deus do Sol.
– Aurora querida, perdi
minha filha! – disse Ceres, em prantos. – Você, por acaso, não a viu passar num
carro puxado por negros cavalos?
Também Aurora nada
vira. Estava disposta a ajudar na procura, mas o Sol a impelia para a frente, não
dando tempo para que continuasse sua conversa.
Durante vários dias
e várias noites, Ceres continuou em seu périplo inútil, esquecida de seus deveres
para com a natureza. Logo a terra começou a se tornar estéril. As águas não desciam
mais do céu para regar as plantações, e a fome começou a se espalhar por tudo. Um
dia, completamente desanimada, Ceres sentou-se numa pedra, curvando a exausta cabeça
sobre o peito. Assim esteve um bom tempo, abatida, quando percebeu que a seu lado
uma fonte cantante respingava suas águas sobre si. Passando os olhos sobre o espelho
das águas, Ceres percebeu nele o desenho do rosto de Ciana, uma das ninfas mais
íntimas de sua filha. Ainda que um pouco turvada pela fonte, a imagem a encarava
com indizível pena.
– Ciana, o que houve
com você? – disse a deusa, sem obter nenhuma resposta, pois, com a metamorfose,
a ninfa havia perdido o dom da fala.
Entretanto, por alguns
sinais que a deusa logo compreendeu, a ninfa fez entender que sua amiga havia sido
engolida pela terra, ali, naquele local. Ceres viu confirmada essa suspeita ao divisar
flutuando sobre as águas da fonte o cinto de sua adorada filha. Apanhando-o, secou-o
em seu seio, mas logo o encharcou novamente, com suas lágrimas.
Sem meios de poder
descer até as profundezas do reino de Plutão, Ceres decidiu subir aos elevados domínios
de Júpiter, pai de Prosérpina.
– Deus dos deuses,
preciso de sua ajuda! – exclamou Ceres, ao mesmo tempo aflita e determinada. – Quero
que obrigue Plutão a me devolver a minha filha.
– Plutão é senhor em
seus domínios... – tergiversou Júpiter, dando a entender que não queria problemas
com seu irmão das trevas.
– Ele que vá para o
inferno! – bradou Ceres, completamente impotente.
– Ele já está lá, querida...
– disse Júpiter, sem saber o que dizer.
– Não tenho tempo nem
ânimo para seus gracejos! – rugiu.
– Então vá lá para
baixo, que é seu lugar, e coloque em ordem outra vez a terra, da qual você tem se
descuidado há vários meses – disse Júpiter, tentando impor sua autoridade.
– Ela vai continuar
assim, sem brotar mais um pé de couve sequer, enquanto eu não tiver minha filha
de volta – respondeu, categórica, a deusa da fertilidade e da agricultura.
O grande Júpiter, ao
perceber que sua esposa Juno já se aproximava para ver o que estava acontecendo,
resolveu contemporizar, pois sabia que duas mulheres iradas eram demais para ele
ou qualquer outro deus:
– Está bem, façamos
então assim: sua filha poderá retornar para a Terra, desde que não tenha comido
nada nos infernos, pois assim determinaram as Parcas.
A condição parecia
meio absurda, mas Ceres não tinha alternativa e, por isto, resolveu ir pessoalmente
ao reino de Plutão. Esteve longo tempo nas margens do Aqueronte, aguardando a chegada
da barca de Caronte, que a transportaria até o reino das sombras. Quando o velho
barqueiro se aproximou, Ceres imediatamente embarcou.
– Vamos com calma!
– disse o velho, ameaçando-a com o remo.
– Cale-se e me leve
logo até a outra margem! – ordenou Ceres.
Uma vez desembarcada,
foi barrada por Cérbero, o terrível cão de três cabeças que guarda os portões do
inferno. Mas uma mãe que procura a filha não se deixa intimidar por qualquer coisa.
Com o facho que levava numa das mãos desceu uma bordoada sobre as três cabeças do
cão ao mesmo tempo, que saiu ganindo inferno adentro. Sem dar ouvido a nada nem
a ninguém, foi avançando pelas regiões escuras.
A deusa avançou tanto
que em breve tinha diante de si o deus infernal instalado em seu trono, tendo ao
lado sua filha. Esta, enxergando a mãe, lançou-se se em seus braços, num abraço
longo e emocionado.
Ceres, sem poder emitir
qualquer palavra, apenas a enxergava com os olhos nublados. Depois de recomposta,
quis saber como ela se sentia ali.
– Bem, não é tão mal
assim... – disse a filha, relanceando disfarçadamente o olhar para seu marido, que
observava de longe a cena, evitando, porém, se intrometer.
– Mas como pode ser
feliz aqui, nesta escuridão?
– É que aqui eu sou
rainha, mãe, senhora absoluta de todos estes domínios.
– Mas e este seu marido
terrível? – disse Ceres, lançando um olhar feroz para o deus subterrâneo, que olhou
para os lados, temeroso da vingança da sogra.
– Bem, ele foi um tanto
intempestivo na sua maneira de se declarar para mim, reconheço – disse Prosérpina,
com ar condescendente. – Mas sempre me tratou com muita atenção e delicadeza, como
uma legítima rainha – completou a moça, que parecia realmente feliz com seu novo
estado.
Mas sua mãe não podia
suportar a ideia de tê-la para sempre longe de si, por isto lhe perguntou:
– Minha filha, você
já comeu algo desde que chegou aqui?
– Por quê? Pareço muito
magra? – perguntou Prosérpina.
– Apenas responda –
disse Ceres, ansiosa. Prosérpina pensou por algum tempo e depois declarou:
– Bem, comi apenas
uma romã que colhi nos jardins de Plutão.
Ceres quase tombou
desfalecida ao chão, de tanta tristeza diante dessa terrível revelação. Abandonando
momentaneamente a filha, foi falar com o deus dos infernos, para tentar reverter
a situação, mas Plutão mostrou-se resoluto, recusando-se a perder a esposa. Uma
terrível discussão ameaçava se instalar entre a sogra e o genro, quando Prosérpina
propôs uma solução que agradaria a todos:
– Façamos assim, mãe:
a metade do ano passarei aqui em meus domínios e a outra metade em sua companhia,
na Terra. Que tal acha disso?
Ceres e Plutão chegaram,
assim, a um acordo que parecia ser a única solução consensual. Como já estivesse
na época da floração, Prosérpina seguiu com sua mãe de volta à terra, para passar
sua primeira temporada, disposta a regressar dentro de seis meses, conforme o combinado.
Ceres retomou seus cuidados com a Terra, e é assim que Prosérpina alterna a sua
vida: durante os meses de calor passeia pela Terra, dando vida e fecundidade a tudo,
e durante os meses de frio e escuridão recolhe-se para as profundezas da terra,
deixando a natureza despida de seus benefícios.
“– Não adianta fugir
de mim, Eurídice, pois a amo e ninguém me impedirá de tê-la um dia só para mim!
– Ninguém, a não ser
a minha vontade! – respondeu Eurídice.
Aristeu não escutou
estas palavras, pois o amor só escuta o que lhe convém.”
“– Mas se eu pudesse
compartilhar com Titão da sua decadência física, fazendo-me velha, também, quem
sabe não teria sido mais justo? Ao menos ele estaria mais consolado, ao ver que
ambos rumávamos para o mesmo destino!
– Não pode o sofrimento
de alguém acarretar a melhora de outro sofredor. O martírio inútil é o mais insensato
dos remédios, cara amiga, e aquele que exige tal sacrifício de alguém não passa
de um fraco e de um egoísta.”
“Cada qual tem de ser
capaz de carregar o seu fardo, seja ele qual for.”
“– Uma viagem é sempre
um enigma.”
“Sem ousadia o amor
será sempre uma palavra vã.”
“Foi-se o cetro, foi-se
o afeto.”
“Etéocles, tendo provado
uma vez o néctar do poder, tomara gosto pela coisa – pois quem, afinal, deixa arrebatar
dos seus dentes um petisco já abocanhado?”
“O tempo, porém, é
veloz e desapiedado para com os mortais.”
“– O trabalho aqui
no templo muito me orgulha e me satisfaz. É mais gratificante servir aos deuses
do que aos homens.
– Servir nunca é gratificante
– disse Creúsa, cuja voz ainda denotava claramente a amargura que lhe pesava na
alma. – Gratificante é termos nossa vontade entregue ao nosso exclusivo arbítrio.”
“Quando uma glória
inédita e ambicionada acena adiante, dificilmente um coração jovem e aventureiro
deixará de segui-la, só porque uma advertência costumeira lhe acena às costas para
que covardemente retroceda.”
“(...) Nos diz o insigne
Virgílio, com maior talento, e mais ainda:
Que logo em seguida
o chão sob os pés de Enéias começou a retumbar como se um deus irado sapateasse
o teto do subterrâneo;
E que os cães começaram
a latir desabrida e desordenadamente;
E que a profetisa Sibila
disse, então: “Que os profanos se afastem, eis que a deusa chega!”;
E que, voltando-se
para Enéias, disse-lhe: “Agora saque da bainha a sua espada e guarde firmeza em
seu coração”;
E que Enéias, levando
adiante a Sibila, adentrou as veredas sombrias e estéreis do reino de Plutão;
E que já no vestíbulo
dos infernos deu de cara com seres pavorosos, dispostos um ao lado do outro, como
num horrível mostruário;
E que dentre eles podia-se
divisar o negro Luto, mais escuro que a própria escuridão; as Enfermidades, mais
pálidas que o manto invernal; o Remorso, cuja cabeça, torcida várias vezes, olhava
sempre para trás; a Velhice, encarquilhada a ponto de seus lábios roçarem os joelhos;
o Medo, de olhos costurados e todo enrodilhado sobre si; a Fome, a comer os próprios
membros; a Miséria agitando os trapos misturados aos fios de sua própria carne;
a Fadiga, a arfar em longos haustos um alento que jamais lhe basta; a Gula estufada,
com sua pele lustrosa a rachar e verter uma gosma podre por toda parte; a Guerra,
coberta de dardos e com uma tiara ensanguentada posta sobre os olhos; e finalmente
o Sono, o pobre!, ali injustamente aprisionado apenas por ser irmão da Morte.
Tudo isto diz o insigne
Virgílio, com menos exagero, e ainda mais:
Que logo adiante estavam
as estrebarias dos centauros, estes a escarvarem furiosamente a palha;
E que um passo além
estavam ainda outros desaforos da Criação, tais como Cila, monstro de seis cabeças,
com uma matilha de cães rosnadores presa ao redor da cintura; Briareu, gigante perdulário
de cem braços e cinquenta cabeças; a hidra de Lerna, a silvar horrendamente; a Quimera,
a botar flamas pelas ventas; as Górgonas de tranças de serpentes; as Harpias, a
babarem uma gosma fétida sobre os alimentos;
E que Enéias, vendo
avançar sobre si toda esta horrenda estirpe infernal, sacou de sua espada e preparou-se
para o embate, mesmo tendo os pelos todos de seu braço arrepiados pelo medo;
E que a Sibila deteve
o primeiro golpe, dizendo: “Guarda a coragem, nobre herói, eis que são espectros
sem substância a esvoaçarem em vão pelas paredes!”;
E que partindo dali
os dois chegaram às margens do infernal Aqueronte, rio que leva à mansão dos mortos;
E que aos poucos foi
se aproximando uma velha barca conduzida por um remador horrendo;
E que este era um velho
chamado Caronte, cuja sujeira era indescritível;
E que sua barba absurdamente
branca lhe descia até o umbigo enorme, nada menos que um infame depósito de larvas;
E que seus olhos despediam
chispas, e a boca, impropérios;
E que tinha preso ao
ombro apenas um manto pútrido, úmido e fedorento como a pele apodrecida dos afogados;
E que este sórdido
barqueiro despedia impiedosos golpes de remo sobre todas as almas que se precipitavam
para embarcar em sua nau da cor do ferro;
E que escolhia apenas
alguns, afastando com o pé a chusma dos insistentes;
E que Enéias, aturdido,
voltou-se para a Sibila e disse: “Virgem, diga o que significa todo este atropelo,
e por que somente a alguns é dado embarcar para a outra margem?”;
E que a Sibila teria
respondido: “Veja, aqueles que ali ficam lançados sobre o chão a esmurrar a negra
areia são espectros daquele cujos ossos não tiveram o favor de uma sepultura, e
ali estarão durante cem anos, a vagar e a gemer sem socorro de deus algum nesta
infernal soledade, e somente após cumprido o prazo fatal é que serão finalmente
admitidos à barca do horrendo condutor”.
E que Enéias, firmando
melhor a vista, começou a enxergar velhos companheiros do malfadado sítio, que caíram
retumbando sobre o solo com as suas armas, sem terem o descanso de uma sepultura;
(...)
“E que Enéias e a Sibila,
dando as costas, intentaram, então, embarcar na nau de Caronte imundo;
E que este, volvendo
um olhar raiado de sangue ao piedoso Enéias, lhe disse: “Eia, esta é terra de sombras
e de mortos, e não é lícito a um vivo pôr os pés em minha barca!”;
E que a Sibila tratou
de acalmar o irado condutor, dizendo: “Esteja descansado, Caronte, que estas armas
que o forasteiro traz não carregam consigo a violência, eis que com elas pretende
apenas avistar seu velho pai, nas profundezas do Erebo, para uma importante revelação;
e se mesmo esta razão não o move à piedade, aqui está a passagem que dará o salvo-conduto
ao meu companheiro”;
E que a profetisa estendeu,
então, o ramo dourado até o barqueiro, que o tomou com grata satisfação nos furibundos
olhos;
Tudo isto diz o insigne
Virgílio, com maior elegância, e ainda mais:
Que Caronte esvaziou
a barca das almas que já estavam assentadas, admitindo nela exclusivamente Enéias
e a Sibila;
E que a barca rangeu
quando Enéias nela entrou, botando água dentro;
E que assim chegaram
os dois até a outra margem do pavoroso rio;
E que na outra margem
do pavoroso rio rugiu o troar das três bocas de Cérbero, cão de guarda infernal
que estava deitado na caverna em frente;
E que a Sibila lançou-lhe
um bolo soporífero feito de mel e de escolhidos grãos;
E que Cérbero, abocanhado
o petisco, caiu adormecido, facilitando a passagem de Enéias e da Sibila esperta;
E que após escutarem
o choro e o lamento de crianças que um dia foram arrancadas dos braços das suas
mães para a acerba morte, avistaram Minos, a agitar a urna do sorteio, a fim de
proceder ao julgamento das almas réprobas;
E que não distante
dali avistava-se o Campo das Lágrimas, bosque umbroso onde buscam refúgio aqueles
que o amor fez perecer em um langor cruel, onde entre outros se divisavam claramente
Fedra, a infeliz amante, e Prócris, ninfa vitimada por seu próprio ciúme;
E que logo encontrou
os antigos companheiros da funesta campanha de Tróia;
E que Enéias não pôde
conter um suspiro ao vê-los desfilar diante de si em uma longa e miseranda coluna;
E que as falanges inimigas
de Agamenon fugiram espavoridas ao enxergarem de novo entre eles o valente inimigo,
de armas em punho;
E que do rebanho das
sombras se destacou Deífobo, filho do rei troiano, com o rosto todo desfigurado,
eis que lhe faltavam à máscara da face o nariz e as orelhas;
E que Deífobo, ocultando
com as mãos as negras feridas, foi perguntado por Enéias da razão de se encontrar
em tão mau estado, posto que este não pudera encontrar o corpo do amigo no dia fatal
da derrocada da soberba Tróia;
E que Deífobo lhe respondera
dizendo que Helena pérfida fora a causa do seu negro fim, pois estando casado com
ela após a morte de Páris, fora traído pela infame, a qual pôs para dentro das suas
portas o marido ultrajado, retirando da cabeceira de sua cama a sua fidelíssima
espada, única defesa que poderia opor diante do invasor enfurecido.
Tudo isto diz o insigne
Virgílio, com muito mais colorido, e ainda mais:
Que a Sibila apressou
Enéias, dizendo, impaciente: “Eia, Enéias, eis que a noite se aproxima e já perdemos
muitas horas a chorar. Saiba que daqui por diante o caminho se bifurca: o da direita
conduz ao ameno Elísio, enquanto que o da esquerda leva ao tenebroso Tártaro”;
E que Enéias enxergou
no caminho da esquerda grandes casas circundadas por uma sólida e tríplice muralha
rodeada pelas águas em chamas do Flegeton sinistro, as quais rolam consigo, sem
cessar, enormes pedregulhos ressonantes;
E que ao centro da
cidadela erguia-se nos ares uma imensa torre de ferro, morada de Tisífone, a Fúria
vingadora, que do alto, de túnica sangrenta e arregaçada, vigiava noite e dia os
seus tétricos domínios;
E que de dentro da
torre de ferro ecoava o ruído de ásperas chibatadas, e o grito estertorado dos flagelados,
e o retinir das ásperas correntes, e o roncar maldito da castigadora;
E que Enéias, querendo
saber quem habitava aquelas horrendas moradas, recebeu da Sibila esta resposta:
“Deixa estar a sua curiosidade, que a nenhum inocente é permitido transpor o limiar
do crime; apenas digo que ali está o horripilante reino de Radamente, onde são interrogados
e torturados os autores dos crimes execrandos”;
E que a Sibila ainda
disse: “Ouve este silvo, também, que supera mesmo ao do açoite da Fúria vingativa?
É o bafo monstruoso que se escapa das cinquenta goelas negras e escancaradas da
pavorosa Hidra, que ali reside sempiterna”;
E que disse ainda que
mais para dentro, muito mais para dentro, o Tártaro se estendia num espaço duas
vezes maior que o que leva do Olimpo até o céu, e que lá embaixo, rolando nos fundos
deste medonho abismo, estavam os Titãs, primitivos habitantes da Terra, derrubados
que foram pelo raio de Júpiter tonante;
E que depois de a Sibila
ter descrito, com muito mais detalhes, a situação dos outros supliciados, disse
para Enéias que avançassem até a porta onde deveriam depor sua oferenda;
E que Enéias, depois
de ter lavado o corpo de toda sujidade infernal, penetrou no pórtico e pendurou
na soleira o ramo dourado, entrando assim nos sítios amenos e idílicos dos bosques
afortunados.
Tudo isto diz o insigne
Virgílio, com mais elevação, e ainda mais:
Que caía de um éter
mais amplo uma luz purpúrea que banhava os campos;
E que os habitantes
dos Elísios tinham um sol e variados astros que eram somente deles;
E que todos, guerreiros,
sacerdotes, poetas, pastores, tendo as frontes cingidas por ramos, passavam o tempo
todo em descanso ou em festejos, exercitando as armas ou a lira, conforme mandasse
a sua vontade;
E que tendo encontrado
entre eles Museu, aquele divino músico que chegava a curar com sua arte, lhe perguntou
Enéias onde morava seu pai Anquises;
E que o poeta lhe dissera:
“Não, engana-se, visitante, aqui ninguém possui morada, e todo lugar, bosque, arroio,
vereda ou prado é morada bastante para nós”;
E que mesmo assim,
apontando o dedo, indicou-lhes o lugar, num bosque verdejante, onde poderia Enéias
encontrar seu velho pai;
E que Anquises, com
os olhos repletos de lágrimas, estendeu os braços para o filho tão logo o divisou
por entre a chusma transparente das sombras que se interpunham entre ambos;
E que Enéias por três
vezes tentou em vão abraçar seu velho pai, posto que sua figura tinha a mesma consistência
da brisa, do fumo, do hálito e dos sonhos;
E que depois de trocar
palavras afetuosas com seu pai, Enéias avistou um pouco mais adiante uma mata de
caniços sonoros a margearem as águas silenciosas do Letes, o rio do Esquecimento;
E que tendo se espantado
com a imensidão de sombras que enxameavam ao redor daquelas águas de coloração escura,
perguntou ao pai: “Diga-me, pai saudoso, por que tantas almas revoluteiam ao redor
daquele curso incessante, como abelhas frenéticas ao redor de um oloroso favo?”;
E que Anquises lhe
disse que aquelas eram almas purificadas, que depois de haverem expiado suas antigas
faltas nas moradas infernais e terem tido o descanso das suas penas nos aprazíveis
Elísios, agora preparavam, cumpridos mil anos de exílio, a sua volta para a morada
dos vivos; antes, porém, deveriam beber daquelas águas para que, esquecidas de toda
mácula ou réstia de passado, pudessem retornar ao convívio da carne, com todos seus
tormentos, suas dúvidas, suas tristezas, seus sofrimentos, seus trabalhos, suas
penas e suas maravilhosas tentações.
E que depois Anquises
mostrou um por um os futuros descendentes de Enéias, os quais colhiam com ambas
as mãos a água do Letes, sorvendo-a com ansiosa sede; E que um seria guerreiro inexcedível,
outro, poeta mavioso, e o restante, reis, e reis, e reis, e infinitamente reis,
eis que ser rei parecia ser a ambição da maioria daquelas sombras; E que depois
do velho Anquises ter feito o relato do futuro grandioso que aguardava a cada uma
daquelas almas enfastiadas da Eternidade, conduziu, enfim, Enéias e a Sibila até
a grande porta de marfim do Sono, saindo ambos outra vez para a luz do Dia e da
Vida, a fim de que o piedoso herói pudesse outra vez ir ao encontro de seus companheiros
que o aguardavam dentro dos navios, com as proas voltadas para o mar.
Tudo isto diz o insigne
Virgílio, com maior inspiração, nos versos de seu poema imortal.”
“Quem disse que minhas
gentilezas acabariam por aí? Quem cede um pouco, cede mais além.”
“– Como diz o cego
aedo, “não é bom o acanhamento num necessitado”.”
“A que o ser humano
não se adapta, quando não há outra solução? A que o ser humano não toma logo tédio,
uma vez acabada a novidade?”
“‘Ah, lá vem ele de
novo com a história do duelo com a serpente!’, pensou a esposa de Cadmo. ‘E logo
depois a dos mirmidões, eu poderia apostar’.
Então cresceu na alma
de Harmonia a certeza de que não existia coisa mais enfadonha à paciência humana
do que o homem de um único feito – ou mesmo de dois ou três.”