Editora: Livro distribuído
Tradução base: Paulo M. Oliveira
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 154
Sinopse: Escrito
em latim, publicado no ano de 1509, o Elogio da loucura foi um dos
best-sellers do século XVI. De rara violência contra os poderosos da época, o
livro e seu autor só escaparam à fogueira porque Erasmo se escondeu atrás de
uma máscara, como faziam os bobos da corte, únicas pessoas a quem se permitia
serem insolentes por sua condição de corcundas ou aleijados. No caso, a máscara
escolhida foi a loucura, narradora em primeira pessoa dessa prosopopeia.
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Erasmo de Roterdã |
“Já escreveu sensatamente alguém que ser deus
consiste em favorecer os mortais.”
“Quando a trôpega velhice coloca os homens à
beira da sepultura, então, na medida do que sei e do que posso, eu os faço de
novo meninos. De onde o provérbio: Os velhos são duas vezes crianças.
(...)
Enfim, quanto mais entra na velhice, tanto
mais se aproxima o homem da infância, a tal ponto que sai deste mundo como as
crianças, sem desejar a vida e sem temer a morte.”
“O delírio e a loucura não serão, talvez,
próprios das crianças? Que é que, a vosso ver, mais agrada nas crianças? A
falta de juízo. Um menino que falasse e agisse como um adulto não seria um
pequeno monstro? Pelo menos, não poderíamos deixar de odiá-lo e de ter por ele
um certo horror. Há muitos séculos, é trivial o provérbio: Odeio o
menino de saber precoce. Quem, por outro lado, poderia fazer negócios ou
ter relações com um velho, se este aliasse a uma longa experiência todo o vigor
do espírito e a força do discernimento?”
“Segundo o provérbio dos gregos, o
macaco é sempre macaco, mesmo vestido de púrpura.”
“Tão agradável é a amizade que afastá-la do
mundo equivaleria a afastar o sol.”
“Um homem que odeia a si mesmo poderá, acaso,
amar alguém? Um homem que discorda de si mesmo poderá, acaso, concordar com
outro? Será capaz de inspirar alegria aos outros quem tem em si mesmo a aflição
e o tédio?”
“A natureza, que em muitas coisas é mais
madrasta do que mãe, imprimiu nos homens, sobretudo nos mais sensatos, uma
fatal inclinação no sentido de cada qual não se contentar com o que tem,
admirando e almejando o que não possui: daí o fato de todos os bens, todos os
prazeres, todas as belezas da vida se corromperem e reduzirem a nada.”
“Os homens que se consagram ao estudo da
ciência são, em geral, infelicíssimos em tudo, sobretudo com os filhos. Suponho
que isso provenha de uma precaução da natureza, que dessa forma procura impedir
que a peste da sabedoria se difunda em excesso entre os mortais.”
“Se alguém se aproximasse de um cômico
mascarado, no instante em que estivesse desempenhando o seu papel, e tentasse
arrancar-lhe a máscara para que os espectadores lhe vissem o rosto, não
perturbaria assim toda a cena? Não mereceria ser expulso a pedradas, como um
estúpido e petulante? No entanto, os cômicos mascarados tornariam a aparecer;
ver-se-ia que a mulher era um homem, a criança um velho, o rei um infeliz e
Deus um sujeito à-toa. Querer, porém, acabar com essa ilusão importaria em
perturbar inteiramente a cena, pois os olhos dos espectadores se divertiam
justamente com a troca das roupas e das fisionomias. Vamos à aplicação: que é,
afinal, a vida humana? Uma comédia. Cada qual aparece diferente de si mesmo;
cada qual representa o seu papel sempre mascarado, pelo menos enquanto o chefe
dos comediantes não o faz descer do palco. O mesmo ator aparece sob várias
figuras, e o que estava sentado no trono, soberbamente vestido, surge, em
seguida, disfarçado em escravo, coberto por miseráveis andrajos. Para dizer a
verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o
fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra
forma.”
“Quando se reflete atentamente sobre o gênero
humano, e quando se observam como de uma alta torre (justamente a maneira pela
qual Júpiter costuma proceder, segundo dizem os poetas), todas as calamidades a
que está sujeita a vida dos mortais, não se pode deixar de ficar vivamente
comovido. Santo Deus! Que é, afinal, a vida humana? Como é miserável, como é
sórdido o nascimento! Como é penosa a educação! A quantos males está exposta a
infância! Como sua a juventude! Como é grave a velhice! Como é dura a
necessidade da morte! Percorramos, ainda uma vez, esse deplorável caminho. Que
horrível e variada multiplicidade de males! Quantos desastres, quantos
incômodos se encontram na vida! Enfim não há prazer que não tenha o amargor de
muito fel. Quem poderia descrever a infinita série de males que o homem causa
ao homem, como sejam a pobreza, a prisão, a infâmia, a desonra, os tormentos, a
inveja, as traições, as injúrias, os conflitos, as fraudes, etc.? Eu não
saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para merecer tão grande
quantidade de males, nem que deus furioso o teria constrangido a nascer em tão
horrível vale de misérias.”
“Só a gramática é mais do que suficiente para
nos aborrecer durante toda a vida.”
“A verdade se encontra no vinho e nas
crianças.” (Alcebíades)
“Só se costuma defender a verdade quando não
se é atingido por ela.”
“Suponha-se que, em meio a todos esses
prejuízos, surgisse um odioso moralista que, em tom apostólico, fizesse esta
patética, mas verdadeira exortação: “Não basta ter devoção por São Cristóvão: é
preciso, também, viver segundo a lei divina, para não chegar a um mau fim. Não
basta oferecer uma pequena moeda para obter perdões e indulgências: é preciso,
ainda, odiar o mal, chorar, velar, rezar, jejuar, numa palavra, mudar de vida,
praticando constantemente o Evangelho. Confiais em algum santo? Pois segui os
seus exemplos, vivei como ele viveu, e assim merecereis a graça do vosso santo
protetor”. Aqui entre nós: esse moralista não andaria mal falando dessa forma,
mas, ao mesmo tempo tiraria os homens de um estado de felicidade, para
lançá-los na miséria e na dor.”
“Os cômicos, os músicos, os oradores, os
poetas eis aí, eis os melhores amigos do amor próprio! Quanto mais ignorantes,
tanto mais perfeitos se julgam em sua arte, e, assim prevenidos em benefício
próprio, aproveitam todas as ocasiões para celebrar os próprios louvores. Mas,
não penseis que não encontrem quem os aplauda, pois toda tolice, por mais
grosseira que seja, sempre encontra sequazes. Mas, ainda é pouco: quanto mais
contrária ao bom senso é uma coisa, tanto maior é o número dos seus
admiradores, e constantemente se vê que tudo o que mais se opõe à razão é
justamente o que se adota com maior avidez.”
“É uma grande extravagância querer fazer
consistir a felicidade do homem na realidade das coisas, quando essa realidade
depende exclusivamente da opinião que dela se tem. Tudo na vida é tão obscuro,
tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma verdade.”
“Se, finalmente, pudésseis observar, do mundo
da lua, como o fez Menipo, as inúmeras agitações dos mortais, decerto
acreditaríeis estar vendo uma densa nuvem de moscas ou de pernilongos brigando,
insidiando-se, guerreando-se, invejando-se, espoliando-se, enganando-se,
fornicando-se, nascendo, envelhecendo, morrendo. Não podeis sequer imaginar os
horrores e as revoluções com que enche a terra esse animalzinho, tão pequeno e
de tão pouca duração, que vulgarmente se chama homem.”
“A loucura tem uma força maior do que a
razão, porque, muitas vezes, aquilo que não se pode conseguir com nenhum
argumento se obtém com uma chacota.”
“Seria menos difícil sair de um labirinto do
que desembaraçar-se do embrulho dos realistas, dos noministas, dos tomistas,
dos albertistas, dos occanistas, dos scotistas, ai de mim! já me falta a
respiração, e, contudo, só citei as principais seitas da escola, não falando de
muitíssimas outras. Em todas essas facções, são tantas as erudições e tantas as
dificuldades, que, se os próprios apóstolos descessem à terra e fossem
obrigados a discutir com os teólogos modernos sobre essas sublimes matérias,
sou de opinião que teriam necessidade de um novo espírito totalmente diverso
daquele que, em seu tempo, lhes dava a possibilidade de falar.
Os apóstolos consagravam com devoção e com
piedade o sacramento da Eucaristia: se tivessem, porém, de explicar como Deus
pode passar de um lugar para outro por meio da consagração; como se dá a transubstanciação;
como um mesmo corpo pode encontrar-se ao mesmo tempo em vários lugares; que
diferença existe entre o corpo de Jesus Cristo no céu, na cruz e na Eucaristia;
em que momento se verifica a transubstanciação, de vez que a fórmula
sacramental, como dizem eles, sendo composta de sílabas e de palavras, só
pode ser pronunciada sucessivamente, creio eu que, se esses primeiros teólogos
do cristianismo tivessem de dirimir tais dificuldades, teriam necessidade da
agudeza dos scotistas, que são verdadeiros Mercúrios na arte de argumentar e
definir.
Tiveram os apóstolos, é verdade, a sorte de
conviver com a mãe de Jesus, mas nenhum deles a conheceu tão bem como os nossos
teólogos, que provaram geometricamente ter sido a Virgem fecunda preservada da
mancha do pecado original. São Pedro recebeu as chaves das próprias mãos do
Homem-Deus, sendo de supor-se que este não tivesse tido a intenção de
colocá-las em más mãos; mas, não sei se o beato pescador conhecia bem o
significado daquelas místicas chaves. Nós, porém, sabemos, com certeza, que ele
nunca perguntou a Deus seu mestre como poderia um grosseiro e ignorante
pescador ter as chaves da ciência.
Os apóstolos batizavam continuamente, mas, apesar
disso, nunca ensinaram a causa formal, material, eficiente e final do batismo,
nem fizeram menção do caráter delével e indelével do mesmo. Esses fundadores da
religião cristã adoravam a Deus, mas a sua adoração apoiava-se neste princípio
fundamental do evangelho: Deus é um espírito puro e é preciso adorá-lo
em espírito e verdade. Parece, igualmente, não ter sido revelado aos
apóstolos que o culto, nas escolas chamado latria, possa prestar-se
tanto a Jesus Cristo em pessoa como às suas imagens rabiscadas na parede com
carvão, bastando que representem o filho de Deus dando a bênção com os dois
dedos, índice e médio, da mão direita levantada, e com a cabeça ornada por uma
longa cabeleira e um tríplice círculo de raios. Mas, como poderiam os apóstolos
possuir tão grande e salutar erudição? Eles não encaneceram no fatigante estudo
das ciências físicas e metafísicas de Aristóteles e dos scotistas. Os apóstolos
costumam falar da graça, mas não distinguem a graça gratuita da graça
gratificante; exortam às boas obras, mas não distinguem a obra operante da obra
operada; inculcam a caridade, mas não separam a infusa da adquirida,
além de não explicarem se essa amável e divina virtude é substância ou acidente, criada ou
incriada; detestam o pecado, mas eu quisera morrer se eles já foram
capazes de definir cientificamente o que chamamos de pecado, a não ser que
tenham sido inspirados pelo espírito dos scotistas. Se São Paulo, pelo qual
devemos julgar todos os outros apóstolos, tivesse tido uma boa teoria do
pecado, teria ele condenado com tanta insistência as polêmicas, as contendas,
as querelas, as discussões em torno de palavras? Digamos, pois, com franqueza,
que São Paulo não conhecia as argúcias e as qualidades espirituais que distinguem
os modernos, tanto mais quanto as controvérsias surgidas na primitiva Igreja
não passavam de pueris mesquinharias diante do refinamento dos nossos mestres,
que, em matéria de sutileza, ultrapassaram de muito o próprio sofista Crisipo.
Façamos, porém, justiça à sua modéstia, pois não condenam o que os apóstolos
escreveram com pouco acerto e precisão, mas se limitam a interpretá-lo de modo
favorável, para usar de certa consideração para com a venerável antiguidade e
para com o apostolado. Não seria, aliás, razoável pretender que os apóstolos
tratassem dessas difíceis matérias, quando o seu divino mestre nunca lhes disse
uma palavra a respeito. (...)
Não considerareis felicíssimas essas pessoas?
Mas, prossigamos ainda um pouco. Quantas lindas lorotas não vão esses doutores
impingindo a respeito do inferno? Conhecem tão bem todos os seus apartamentos,
falam com tanta franqueza da natureza e dos vários graus do fogo eterno, e das
diversas incumbências dos demônios, discorrem, finalmente, com tanta precisão
sobre a república dos danados, que parecem já ter sido cidadãos da mesma
durante muitos anos. Além disso, quando julgam conveniente, não se poupam o
trabalho de criar ainda novos mundos, como o mostraram formando o décimo céu,
por eles denominado empíreo e fabricado expressamente para os
beatos, sendo mais do que justo que as almas glorificadas tivessem uma vasta e
deliciosa morada para aí gozarem de todo o conforto, divertindo-se juntas e até
jogando a péla quando tivessem vontade.
Os nossos finos pensadores têm a cabeça tão
cheia, tão agitada por essas bobagens, que decerto não estava mais cheia a
cabeça de Júpiter quando, ao querer parir Minerva, implorou o socorro do
machado de Vulcano. Não vos admireis, pois, ao vê-los aparecer nas defesas
públicas com a cabeça cuidadosamente cingida com tantas faixas, pois não fazem
senão procurar impedir, por meio desses respeitáveis liames, que ela arrebente
de todos os lados em virtude da porção de ciência de que o seu cérebro se acha
sobrecarregado.”
“Depois desses, segue-se imediatamente a
espécie melhor do gênero animal, isto é, os que vulgarmente se chamam monges ou religiosos.
Seria, porém, abusar grosseiramente dos
termos chamá-los, ainda hoje, por tais nomes. Com efeito, por via de regra, não
há pessoas mais irreligiosas do que essas e, como a palavra monge significa solitário,
parece-me não se poder aplicá-la mais ironicamente as pessoas que se encontram
em toda parte, acotovelando-se a cada passo. Sem o meu socorro (da Loucura),
que seria desses pobres porcos dos deuses? São de tal forma odiados que, quando
por acaso são vistos, costuma-se tomá-los por aves de mau agouro. Isso não
impede que cuidem escrupulosamente da sua conservação e se considerem
personagens de alta importância. A sua principal devoção consiste em não fazer
nada, chegando ao ponto de nem ler. Sem dar-se ao trabalho de entender os
salmos, já se julgam demasiados doutos quando lhes conhecem o número, e, quando
os cantam em coro, imaginam enlevar o céu com a asnática melodia. Entre esse variegado
rebanho, alguns se encontram que se gabam da própria imundície e da própria
mendicidade, indo de casa em casa esmolar, mas com uma fisionomia tão descarada
que parecem mais exigir um crédito do que pedir a esmola. Albergues, botequins,
carros, diligências, todos, em suma, são por eles importunados, com grande
prejuízo dos verdadeiros necessitados. É dessa forma que pretendem ser, como
dizem eles, os nossos apóstolos, com toda a sua imundície, toda a sua
ignorância, toda a sua grosseria, todo o seu descaramento.
Nada mais ridículo do que a ordem exata e
precisa que observam em todos os seus atos: tudo é feito por eles a compasso e
à medida. Os sapatos devem ter tantos nós, o cíngulo deve ser de tal cor, a
roupa composta de tantas peças, a cinta de tal qualidade e de tal largura, o
hábito de tal forma e de tal tamanho, a coroinha de tantas polegadas de
diâmetro. Além disso, devem comer a tal hora, tal qualidade e tal quantidade de
alimento, dormir somente tantas horas, etc. Ora, todos podem compreender muito
claramente que é impossível conciliar tão precisa uniformidade com a infinita
variedade de opiniões e de temperamentos. Pois é nessa metódica exterioridade
que os monges encontram argumento para desprezar os que eles chamam de seculares.
Muitas vezes, dá causa a sérias contendas entre as diferentes ordens, a ponto
dessas santas almas que se vangloriam de professar a caridade apostólica se
destruírem mutuamente. E por que? Por causa de um cíngulo diverso ou da cor
mais carregada da roupa.
Alguns desses reverendos mostram,
contudo, o hábito de penitência, mas evitam que se veja a finíssima camisa que
trazem por baixo; outros, ao contrário, trazem externamente a camisa e a roupa
de lã sobre a pele. Os mais ridículos, a meu ver, são os que se horrorizam ao
verem dinheiro, como se se tratasse de uma serpente, mas não dispensam o vinho
nem as mulheres. Não podeis, enfim, imaginar quanto se esforçam por se
distinguirem em tudo uns dos outros. Imitar Jesus Cristo? É o último dos seus
pensamentos. Muito se ofenderiam se lhes dissésseis que obtiveram isto ou mais
aquilo deste ou daquele instituto. Julgais que a enorme variedade de sobrenomes
e de títulos não deleite muito os seus ouvidos? Há os que se gabam de chamar-se
franciscanos, tronco que se subdivide nos seguintes ramos: os reformados,
os menores observantes, os mínimos, os capuchinhos;
outros se dizem beneditinos; estes se chamam bernardinos e
aqueles de Santa Brígida; outros são de Santo Agostinho;
estes se denominam guilherminos e aqueles jacobitas,
etc. Como se não lhes bastasse o nome de cristãos. Quase todos confiam tanto em
certas cerimônias e em certas tradiçõezinhas humanas, que um só paraíso lhes
parece um prêmio muito modesto para os seus méritos. No entanto, Jesus Cristo,
desprezando todas essas macaquices, só julgará os homens pela caridade, que é o
primeiro dos seus mandamentos. Em vão, tremendo no dia do juízo final,
apresentarão eles a Deus um corpo bem nutrido por tudo quanto é peixe; em vão
lhe oferecerão o canto dos salmos e os inúmeros jejuns; em vão sustentarão que
arrumaram a barriga com uma única refeição; em vão produzirão uma porção de
práticas fradescas, capazes de carregar pelo menos sete navios; em vão se
gabará este de ter passado sessenta anos sem tocar em dinheiro, a não ser com dois
dedos muitos sujos; em vão mostrará aquele o seu hábito tão sórdido que até um
barqueiro se recusaria a vesti-lo; em vão se gabará outro de ter vivido
cinquenta e cinco anos sempre encerrado em seu claustro, como uma esponja; em
vão aquele fará ver que perdeu a voz de tanto cantar, e este que a longa
solidão lhe perturbou o cérebro; em vão dirá um outro que o perpétuo silêncio
entorpeceu-lhe a língua. Interrompendo todas essas gabolices (pois do contrário
seria um nunca mais acabar), Jesus Cristo dirá:
– De que país vem essa nova raça de judeus?
Pois não dei aos homens uma lei única? Sim, e somente essa eu reconheço como
verdadeiramente minha. E esses malandros não dizem sequer uma palavra a
respeito? Abertamente e sem parábolas, eu prometi, outrora, a herança do meu
Pai, não às túnicas, nem às oraçõezinhas, nem à inédia, mas à observância da
caridade. Não, não reconheço pessoas que apreciam demais as suas pretensas
obras meritórias e querem parecer mais santas do que eu próprio. Procurem, se
quiserem, um céu a parte. Mandem construir um paraíso por aqueles cujas
frívolas tradições eles preferiram à santidade dos meus preceitos.
Qual não será a consternação de todos eles,
ao ouvirem tão terrível sentença e ao verem que se lhes antepõem os barqueiros
e os carroceiros? No entanto, a despeito de tudo isso, são sempre felizes com
suas vãs esperanças, o que, em substância, não é senão o efeito da minha
bondade para com eles.”
“(Estes teólogos) Principiam sempre as suas
mixórdias com uma invocação tomada de empréstimo aos poetas, e fazem um exórdio
sem relação alguma com o assunto que devem abordar. Devem, por exemplo, pregar
a caridade? Começam pelo rio Nilo. Devem pregar sobre o mistério da cruz?
Começam pelo Belo, o fabuloso dragão da Babilônia. Devem pregar o jejum
quaresmal? Começam pelas doze constelações do zodíaco. Devem pregar a fé?
Começam pela quadratura do círculo. E assim por diante. (...)
Pregam como os charlatães, e juraríeis que,
embora conheçam muito mais que os frades o coração humano, com estes é que
aprenderam a sua arte. Com efeito, é tal a semelhança das suas declamações que
de duas uma: ou os charlatães aprenderam retórica com os nossos pregadores, ou
os nossos pregadores estudaram eloquência com os charlatães.”
“Passemos, agora, aos grandes da corte. Não
há escravidão mais vil, mais repulsiva, mais desprezível do que aquela a que se
submete essa ridícula espécie de homens, que, não obstante, costuma ganhar para
si, de alto a baixo, o resto dos mortais. Convenhamos, porém, que são
modestíssimos num único ponto: é que, satisfeitos de possuir o ouro, as pedras,
a púrpura e todos os outros símbolos da sabedoria e da virtude, cedem facilmente
aos outros o cuidado da sabedoria e da virtude.”
“Com efeito, o principal objetivo dos nossos
Ilustríssimos e Reverendíssimos consiste em viver alegremente, e, quanto ao
rebanho, que dele cuide Jesus Cristo. Aliás, já não possuem os arcediagos, os
vigários gerais, os confessores, os frades e mil outros fiéis mastins, que
estão sempre em guarda contra o lobo do inferno? Os bispos chegaram a esquecer
que o seu nome, tomado ao pé da letra, significa trabalho, zelo, solicitude
pela redenção da almas. Mas por Baco! não se esquecem nunca das honrarias e do
dinheiro.”
“Os nossos Santíssimos Pais de Cristo e o
seus vigários gerais nunca empregam com maior zelo esse espantoso castigo do
que no caso daqueles que, à instigação do demônio, tentam diminuir ou danificar
o patrimônio de São Pedro. Dizia este bom apóstolo ao seu Mestre:
– Deixamos tudo para seguir-te.
Compreendereis que grande sacrifício fez o
pobre pescador! Foi a fortuna o que ele conseguiu em virtude dessa renúncia; é
por isso que Sua Santidade glorificada possui terras, cidades, domínios, e
percebe impostos e taxas. E é sobretudo para defender e conservar essa rica
aquisição que os pontífices romanos costumam condenar as almas. É verdade que
nem ao menos poupam os corpos, e, inflamados pelo zelo de Jesus Cristo,
desfraldam a bandeira de Marte e, sem piedade, empregam o ferro e o fogo para
sustentar as suas razões. Bem vedes que não se pode fazer semelhante guerra sem
derramar o sangue cristão.
– Mas, que importa? – respondem os papas –
Estamos defendendo apostolicamente a causa da Igreja e só deporemos as armas
quando tivermos vingado a esposa de Jesus Cristo contra os seus inimigos.
Eu desejaria saber, porém, se haverá para a
Igreja inimigos mais perniciosos do que esses ímpios pontífices, os quais, em
lugar de pregar Jesus Cristo, deixam no esquecimento o seu nome e o põem de
lado com leis lucrativas, alteram a sua doutrina com interpretações forçadas e,
finalmente, o destroem com exemplos pestilentos.
Além disso, assim como a Igreja cristã foi
fundada com sangue, confirmada com sangue, dilatada com sangue, assim também os
papas a governam com sangue, como se nunca Jesus Cristo tivesse existido para
protegê-la e sustentá-la.
A guerra é, por natureza, tão cruel, que
muito mais conviria às feras do que aos homens; tão insensata que os poetas a
atribuíram às fúrias do inferno; tão pestilenta que corrompe todos os costumes;
tão iníqua que a fazem melhor perversos ladrões do que homens probos e
virtuosos; finalmente, tão ímpia que nenhuma relação possui com Jesus Cristo
nem com sua moral. Isso não impede que alguns pontífices abandonem todas as
funções pastorais para consagrar-se inteiramente a esse flagelo da humanidade.
(...) E acham razões para provar que desembainhar a espada e cravá-la no coração
de um irmão não é absolutamente infringir o grande mandamento da caridade para
com o próximo.”
“Naturalmente, todos os homens fazem um alto
conceito de si mesmos.”
“Não vos esqueçais deste antigo provérbio dos
gregos: Muitas vezes, também o homem louco fala judiciosamente.”
“Em lugar de um epílogo quero oferecer-vos
duas sentenças. A primeira, antiquíssima, é esta: Eu jamais desejaria beber
com um homem que se lembrasse de tudo. E a segunda, nova, é a
seguinte: Odeio o ouvinte de memória fiel demais.”