terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Fado Alexandrino – António Lobo Antunes

Editora: Rocco
ISBN: 978-85-3251-317-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 608
Sinopse: Um grupo de ex-militares reúne-se num jantar com o ex-comandante de um batalhão expedicionário em Moçambique e à mesa relembra dez anos sobre si mesmo e sobre o Portugal de antes, durante e após a Revolução dos Cravos. As lembranças dos cinco evocam as disputas políticas e militares em Angola, as dificuldades no retorno a Lisboa, a guerra e suas terríveis conseqüências, as relações profissionais, familiares e sociais. Através deste enredo, António Lobo Antunes compõe um retrato da sociedade portuguesa que abrange dez anos, de 1972 a 1982.



(ao telefone)
“– Importa-se de me passar a Inês?
– Quem é?
– A tua mãe, explicou o alferes, e ela encolheu os ombros de indiferença, de enfado:
– Diz-lhe que saí, alvitrou baixinho. Uma desculpa, sei lá, que tenho um amante, que fui à missa, ao cabeleireiro, ao supermercado fazer compras: são as únicas quatro coisas que ela respeita.”


“A atitude típica dos pequeno-burgueses, segredou-me o oficial de transmissões. O terror de perder os privilégios que os impede de agir.”


“– Meses e meses a sonhar com uma mulher, meu capitão, disse o soldado a bater com os dedos na toalha ao ritmo da música, a querer coisas; a inventar coisas, a desesperar: tem um namorado, não tem um namorado, gosta de mim, não gosta de mim, quantos colegas de emprego lhe pediram namoro, quantos amigos já teve, será virgem ou dorme às escondidas com um tipo casado, um gajo de Mercedes verde-alface à espera dela à saída do externato, pensamentos deste gênero, está a topar, que me envenenavam a cabeça, me doíam nos pulmões, me provocavam gases, me impediam de me distrair, de andar bem-disposto, de me concentrar no trabalho. Descarregava um piano e aparecia-me o sorriso dela, ouvia os resmungos do velho a conduzir a camioneta e era a voz da Odete que eu ouvia, ia ao café e a sua gargalhada soava-me nas costas, a gozar-me, virava-me de repente, espantadíssimo, ninguém. Emagreci uma porção de quilos, olheiras, cara de defunto, rugas, não pegava no sono, o médico da Dona Isaura receitou-me umas injeções de beber para antes do almoço e do jantar e nem assim, meu capitão, na minha ideia a gente apaixona-se por uma mulher e começa a apodrecer por dentro.”


“O céu protege os parvos como nós.”


“– Quer o meu tenente-coronel dizer que a revolução (dos cravos) foi isto?, espantou-se o soldado. Quer dizer que a revolução eram os trutas a engolirem-se uns aos outros, à bulha, a ver quem se amanhava melhor?
Não propriamente a revolução, pensou ele, mas os bastidores, os camarins do golpe, os coronéis, os brigadeiros e os generais de que os capitães se socorreram, a partir de determinada altura, a fim de legitimar a origem bastarda da democracia, a fim de tranquilizar a inquietação dos capitalistas, dos empresários, dos emigrantes e amansar os Estados Unidos e a Europa, assegurando-lhes que não haveria Cubas na península, barbudos tipos cataclísmicos, de farda de cotim, a fumarem charuto e a plantarem por toda a parte cana-de-açúcar e bustos de Lenine. Não a revolução nem os que fizeram a revolução mas os vorazes micróbios cancerosos que dela se alimentavam e em torno dela se moviam, partidos políticos, jogos de influências, ódios pessoais, as insaciáveis ambiçõezinhas dos frustrados: quero ser marechal, quer ser rico, quero ser ministro, quero um barco, uma casa com piscina, uma televisão a cores, uma amante cara, quero vinte mil criaturas a aplaudirem-me, agitando entusiasticamente cartazes e bandeiras, quero lixar os outros, quero esmigalhar os outros, quero enrabar os outros, quero ficar sozinho, heroico e de bronze, no cimo vertiginoso do pedestal. E afinal, chiça, miseravelmente na cama, cheio de tubos e de fios, jazendo num hospitalzeco qualquer, a ofegar num pânico silencioso de cão que se esvai, de mão sardenta coxeando, como um lavagante aleijado, nas franjas da colcha, e evaporar-se de urina, de diarreia, de hálitos pestilentos e de suor malcheiroso, no desalinho dos lençóis.”


“Está para se descobrir doença que o vinho não cure.”


“E comentou a dona Elisa: o senhor brigadeiro não acha que o que há de mais natural é a gente fartar-se de um homem?”


“Queria sair da boate antes de amanhecer, meu capitão, porque não há nada pior no mundo do que a cara de uma puta à luz do dia.”


“– Vasculhei os jornais, chateei os amigos, corri Lisboa inteira à procura de um sítio decente, desculpou-se o oficial de transmissões multiplicando majestosamente as benzeduras, mas lar para velhos é mais difícil de encontrar do que uma virgem numa casa de putas.”


“– A gente à procura, ao menos com os filhos, de uma relação sincera, queixou-se o alferes, e sempre mentiras, sempre rodeios, sempre evasivas, sempre aldrabices, sempre bocejos maçados, sempre amabilidades condescendentes, sempre soslaios distraídos. Como quer que eu acredite que não estamos sempre sozinhos, meu capitão?”


“A democracia serve pra gente se desenrascar.”


“E por essa altura o Menino era um homem já, um rapaz magro e de óculos que entrava e saía de casa sempre sem falar, que não respondia às perguntas, que se fechava no quarto, que fugia da companhia da Senhora inventando pretextos ou sem pretexto nenhum, o único homem da minha vida que não quis ou não logrei odiar, mau grado se comportar comigo como os outros, com o mesmo desinteresse, a mesma surdez, os mesmos passos ávidos esmagando o chão e as mesmas vagas pupilas sem rumo, antes gostava dele por se assemelhar ao filho que não tinha e que por esse motivo se não assemelhava a ninguém, uma vez que entendi muito cedo que todos os homens se aparentam no desalento e na fraqueza, que todos pretendem vasculhar-nos as tripas com as chaves dependuradas da barriga, depositar em nós a gota de ranho de que são feitos e vestirem-se sem nos mirar, enganando-se nas dezenas de botões da sua roupa, para partirem a seguir, furtivamente, como ladrões do nosso corpo, ladrões do próprio prazer murcho que tiveram, de botas a escorregarem primavera acima, colina acima, no lodo malcheiroso da ribeira.
(...) se a minha irmã saberia, se a minha mãe saberia, se as mais mulheres saberiam, porque a cabeça das mulheres trabalha oblíqua e através do futuro e a dos homens a direito e tão inútil e pegada ao presente como uma oliveira seca, apenas capaz de somas subtrações e cálculos de colheitas e preços de móveis e vontade de fornicar e desespero, e talvez que todas saibam o mesmo que eu sei e tenham medo de confessá-lo às restantes por não saberem se elas sabem e recearam a incredulidade e a troça, ou porque os homens nos fizeram assim para seu alívio e defesa, e nos lançam umas contra as outras como cabras de currais diversos, raspando o xisto da terra com a córnea persistência magra das patas.”

Nenhum comentário: