Editora: Rocco
ISBN: 978-85-3251-317-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 608
Sinopse: Um grupo
de ex-militares reúne-se num jantar com o ex-comandante de um batalhão
expedicionário em Moçambique e à mesa relembra dez anos sobre si mesmo e sobre
o Portugal de antes, durante e após a Revolução dos Cravos. As lembranças dos
cinco evocam as disputas políticas e militares em Angola, as dificuldades no
retorno a Lisboa, a guerra e suas terríveis conseqüências, as relações
profissionais, familiares e sociais. Através deste enredo, António Lobo Antunes
compõe um retrato da sociedade portuguesa que abrange dez anos, de 1972 a 1982.
(ao telefone)
“– Importa-se de me passar a Inês?
– Quem é?
– A tua mãe, explicou o alferes, e ela
encolheu os ombros de indiferença, de enfado:
– Diz-lhe que saí, alvitrou baixinho. Uma
desculpa, sei lá, que tenho um amante, que fui à missa, ao cabeleireiro, ao
supermercado fazer compras: são as únicas quatro coisas que ela respeita.”
“A atitude típica dos pequeno-burgueses,
segredou-me o oficial de transmissões. O terror de perder os privilégios que os
impede de agir.”
“– Meses e meses a sonhar com uma mulher, meu
capitão, disse o soldado a bater com os dedos na toalha ao ritmo da música, a
querer coisas; a inventar coisas, a desesperar: tem um namorado, não tem um
namorado, gosta de mim, não gosta de mim, quantos colegas de emprego lhe
pediram namoro, quantos amigos já teve, será virgem ou dorme às escondidas com
um tipo casado, um gajo de Mercedes verde-alface à espera dela à saída do externato,
pensamentos deste gênero, está a topar, que me envenenavam a cabeça, me doíam
nos pulmões, me provocavam gases, me impediam de me distrair, de andar
bem-disposto, de me concentrar no trabalho. Descarregava um piano e aparecia-me
o sorriso dela, ouvia os resmungos do velho a conduzir a camioneta e era a voz
da Odete que eu ouvia, ia ao café e a sua gargalhada soava-me nas costas, a
gozar-me, virava-me de repente, espantadíssimo, ninguém. Emagreci uma porção de
quilos, olheiras, cara de defunto, rugas, não pegava no sono, o médico da Dona
Isaura receitou-me umas injeções de beber para antes do almoço e do jantar e
nem assim, meu capitão, na minha ideia a gente apaixona-se por uma mulher e
começa a apodrecer por dentro.”
“O céu protege os parvos como nós.”
“– Quer o meu tenente-coronel dizer que a
revolução (dos cravos) foi isto?, espantou-se o soldado. Quer dizer que a
revolução eram os trutas a engolirem-se uns aos outros, à bulha, a ver quem se
amanhava melhor?
Não propriamente a revolução, pensou ele, mas
os bastidores, os camarins do golpe, os coronéis, os brigadeiros e os generais
de que os capitães se socorreram, a partir de determinada altura, a fim de
legitimar a origem bastarda da democracia, a fim de tranquilizar a inquietação
dos capitalistas, dos empresários, dos emigrantes e amansar os Estados Unidos e
a Europa, assegurando-lhes que não haveria Cubas na península, barbudos tipos
cataclísmicos, de farda de cotim, a fumarem charuto e a plantarem por toda a
parte cana-de-açúcar e bustos de Lenine. Não a revolução nem os que fizeram a
revolução mas os vorazes micróbios cancerosos que dela se alimentavam e em
torno dela se moviam, partidos políticos, jogos de influências, ódios pessoais,
as insaciáveis ambiçõezinhas dos frustrados: quero ser marechal, quer ser rico,
quero ser ministro, quero um barco, uma casa com piscina, uma televisão a
cores, uma amante cara, quero vinte mil criaturas a aplaudirem-me, agitando
entusiasticamente cartazes e bandeiras, quero lixar os outros, quero esmigalhar
os outros, quero enrabar os outros, quero ficar sozinho, heroico e de bronze,
no cimo vertiginoso do pedestal. E afinal, chiça, miseravelmente na cama, cheio
de tubos e de fios, jazendo num hospitalzeco qualquer, a ofegar num pânico
silencioso de cão que se esvai, de mão sardenta coxeando, como um lavagante
aleijado, nas franjas da colcha, e evaporar-se de urina, de diarreia, de
hálitos pestilentos e de suor malcheiroso, no desalinho dos lençóis.”
“Está para se descobrir doença que o vinho
não cure.”
“E comentou a dona Elisa: o senhor brigadeiro
não acha que o que há de mais natural é a gente fartar-se de um homem?”
“Queria sair da boate antes de amanhecer, meu
capitão, porque não há nada pior no mundo do que a cara de uma puta à luz do
dia.”
“– Vasculhei os jornais, chateei os amigos,
corri Lisboa inteira à procura de um sítio decente, desculpou-se o oficial de
transmissões multiplicando majestosamente as benzeduras, mas lar para velhos é
mais difícil de encontrar do que uma virgem numa casa de putas.”
“– A gente à procura, ao menos com os filhos,
de uma relação sincera, queixou-se o alferes, e sempre mentiras, sempre
rodeios, sempre evasivas, sempre aldrabices, sempre bocejos maçados, sempre
amabilidades condescendentes, sempre soslaios distraídos. Como quer que eu
acredite que não estamos sempre sozinhos, meu capitão?”
“A democracia serve pra gente se
desenrascar.”
“E por essa altura o Menino era um homem já,
um rapaz magro e de óculos que entrava e saía de casa sempre sem falar, que não
respondia às perguntas, que se fechava no quarto, que fugia da companhia da
Senhora inventando pretextos ou sem pretexto nenhum, o único homem da minha
vida que não quis ou não logrei odiar, mau grado se comportar comigo como os
outros, com o mesmo desinteresse, a mesma surdez, os mesmos passos ávidos
esmagando o chão e as mesmas vagas pupilas sem rumo, antes gostava dele por se
assemelhar ao filho que não tinha e que por esse motivo se não assemelhava a
ninguém, uma vez que entendi muito cedo que todos os homens se aparentam no
desalento e na fraqueza, que todos pretendem vasculhar-nos as tripas com as
chaves dependuradas da barriga, depositar em nós a gota de ranho de que são
feitos e vestirem-se sem nos mirar, enganando-se nas dezenas de botões da sua
roupa, para partirem a seguir, furtivamente, como ladrões do nosso corpo,
ladrões do próprio prazer murcho que tiveram, de botas a escorregarem primavera
acima, colina acima, no lodo malcheiroso da ribeira.
(...) se a minha irmã saberia, se a minha mãe
saberia, se as mais mulheres saberiam, porque a cabeça das mulheres trabalha
oblíqua e através do futuro e a dos homens a direito e tão inútil e pegada ao
presente como uma oliveira seca, apenas capaz de somas subtrações e cálculos de
colheitas e preços de móveis e vontade de fornicar e desespero, e talvez que
todas saibam o mesmo que eu sei e tenham medo de confessá-lo às restantes por
não saberem se elas sabem e recearam a incredulidade e a troça, ou porque os
homens nos fizeram assim para seu alívio e defesa, e nos lançam umas contra as
outras como cabras de currais diversos, raspando o xisto da terra com a córnea
persistência magra das patas.”
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