Editora: Geração Editorial
ISBN: 978-85-61501-98-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 344
Sinopse: Prepare-se,
leitor, porque este, infelizmente, não é um livro qualquer.
A Privataria Tucana nos traz, de maneira chocante e até decepcionante, a dura realidade dos
bastidores da política e do empresariado brasileiro, em conluio para roubar
dinheiro público. Faz uma denúncia vigorosa do que foi a chamada Era das
Privatizações, instaurada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso e por seu
então Ministro do Planejamento, José Serra. Nomes imprevistos, até agora
blindados pela aura da honestidade, surgirão manchados pela imprevista
descoberta de seus malfeitos.
Amaury Ribeiro Jr. faz um trabalho investigativo que
começa de maneira assustadora, quando leva um tiro ao fazer reportagem sobre o
narcotráfico e assassinato de adolescentes, na periferia de Brasília. Depois do
trauma sofrido, refugia-se em Minas e começa a investigar uma rede de
espionagem estimulada pelo ex-governador paulista José Serra, para desacreditar
seu rival no PSDB, o ex-governador mineiro Aécio Neves. Ao puxar o fio da
meada, mergulha num novelo de proporções espantosas.
Serra e o
martelo, uma relação amistosa e frequente a serviço da máxima de FHC: “vender
tudo o que der para vender”
“Não é um riso aberto, caricatural, mas um
sorriso quase íntimo, derramado para dentro. Observa-se um repuxar dos lábios,
que expõem os dentes e esgarçam a pele das bochechas e do pescoço. É uma
composição introspectiva, coadjuvada pelos olhos baixos, espreitando o martelo
em sua descida vigorosa conduzido por sua mão direita. Quando se ouve o som da
madeira contra a madeira, mais uma empresa pública foi vendida. A mão, a face e
o sorriso pertencem a José Serra. A Light do Rio pertencia à Eletrobrás. Na
foto histórica, os gestos e as emoções estão congelados, mas o patrimônio
público moveu-se: passou a ser privado.
O leilão, no dia 21 de maio de 1996, dava
continuidade ao programa federal de desestatização. Fernando Henrique Cardoso
deflagrara o programa em 1995. Estreou com a venda da Excelsa, a companhia de
eletricidade do Espírito Santo. E a mão de Serra também brandiu o martelo.
Nenhum político, mesmo os que privatizaram ou
pretendem privatizar, recebe de bom grado a fama de privatizador. Mas, nos anos
1990, o que hoje é estigma era então condição inexorável para ser aceito na
modernidade. O discurso tucano, hoje omisso quanto ao passado, possuía a
arrogância dos donos da verdade. Mas está tudo registrado.
As lamúrias da revista Veja (edição de
03/05/1995) quanto à lentidão na venda das estatais receberam uma resposta
rápida e reconfortante. O ministro José Serra, do Planejamento, anunciou “um
ritmo mais veloz na venda das estatais” e encaixou as empresas de energia
elétrica na lista das privatizáveis – prometeu e cumpriu, vibrando ele próprio
o martelo na Excelsa, no mesmo ano, e na Light, no ano seguinte. E o presidente
FHC expressou-se com tal ênfase que merece um parágrafo inteiro:
– É preciso dizer sempre e em todo lugar que
este governo não retarda privatização, não é contra nenhuma privatização e vai
vender tudo o que der para vender.”
“Independentemente do juízo que cada um possa
fazer sobre a eficácia ou ineficácia do Estado ao gerir os bens públicos,
ninguém precisa ser um inimigo do mercado para perceber que o modelo de
privatização que assolou o Brasil nos anos FHC não foi, para ser leniente, o
mais adequado aos interesses do país e do seu povo. Nem mesmo a Nossa Senhora
Aparecida do fundamentalismo neoliberal, a primeira-ministra britânica Margaret
Thatcher, teve o atrevimento de fazer o que foi feito na desestatização à
brasileira. Nos anos 1980, Thatcher levou ao martelo as estatais inglesas,
pulverizando suas ações e multiplicando o número de acionistas.
Contrapondo-se a essa “democratização”, o
jeito tucano de torrar estatais envolveu “doação de empresas estatais, a preços
baixos, a poucos grupos empresariais” (O Brasil privatizado – Aloysio Biondi).
Antes, porém, as estatais e seus servidores
passaram a ser perseguidos e linchados diariamente nas manchetes. O Estado passou
a ser o Grande Satã, semeando-se uma ira santa contra sua presença na economia
e um fogo constante dirigido aos seus serviços. Seus erros foram escancarados e
seus acertos, subtraídos. Era preciso preparar o clima para vender as estatais,
fossem quais fossem. As pessoas precisavam entender que leiloar patrimônio
público “seria um benefício” para todos. O Estado reduziria suas dívidas
interna e externa e receberia um aporte de dólares que permitiria que se
dedicasse somente à saúde, à educação e a um ou outro setor. E todos se
livrariam daqueles trastes que não se sabia, afinal, por que ainda continuavam
existindo. Na prática, a teoria acabou sendo outra. O torra-torra das estatais
não capitalizou o Estado, ao contrário, as dívidas interna e externa
aumentaram, porque o governo engoliu o débito das estatais leiloadas – para
torná-las mais palatáveis aos compradores – e ainda as multinacionais não
trouxeram capital próprio para o Brasil. Em vez disso, contraíram empréstimos
no exterior e, assim, fizeram crescer a dívida externa. (Idem)
Para agravar o quadro, os cofres nacionais
financiaram a aquisição das estatais e aceitaram moedas podres,
títulos públicos adquiridos por metade do valor de face, na negociação.
Alguns cases clássicos do
processo ajudam a esclarecer o que se passou. Na privatização da Companhia
Siderúrgica Nacional (CSN) dos R$ 1,05 bilhão pagos pela maior siderúrgica da
América Latina e marco da industrialização nacional no pós-guerra, R$ 1bilhão
era formado de moedas podres. Nos cofres públicos só ingressaram,
de verdade, R$ 38 milhões... E, como se o incrível habitasse o inacreditável,
as moedas podres foram leiloadas pelo Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. Nesta matrioshka*, na
qual as aberrações brotam uma do interior da outra, o BNDES ainda financiou a
aquisição das moedas podres com prazo de 12 anos para
pagá-las. Na privatização da Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa), o governo de São
Paulo, sob o PSDB de Mário Covas, demitiu dez mil funcionários e assumiu a
responsabilidade pelos 50 mil aposentados da ferrovia! No Rio, o também tucano
Marcelo Alencar realizou proeza maior: vendeu o Banerj para o Itaú por R$ 330
milhões, mas antes da privatização demitiu 6,2 mil dos 12 mil funcionários do
banco estadual. Como precisava pagar indenizações, aposentadorias e o plano de
pensões dos servidores, pegou um empréstimo de R$ 3,3 bilhões, ou seja, dez
vezes superior ao que apurou no leilão. Na verdade, 20 vezes superior, porque o
Rio só recebeu R$ 165 milhões, isto porque aceitou moedas podres,
com metade do valor de face.
A temporada de bondades com dinheiro público
ultrapassou os preços baixos, os financiamentos, as prestações em 12 anos e
as moedas podres. Nos anos que antecederam a transferência das
estatais para o controle privado, suas tarifas sofreram uma sequência de
reajustes para que as empresas privatizadas não tivessem “de enfrentar o risco
de protesto e indignação do consumidor”. No caso das tarifas telefônicas,
aumentos de até 500% a partir de 1995 e, no caso da energia elétrica, de 150%.
Tais custos ficaram com o Estado e o cidadão. Mas a cereja do bolo foram os
empréstimos do BNDES. Quem adquiria uma estatal imediatamente se habilitava a
contratar financiamentos oficiais com juros abaixo dos patamares do mercado.
Comprada com moedas podres, a CSN foi contemplada com R$ 1,1
bilhão. E a Light, onde Serra bateu seu martelo, ganhou R$ 730 milhões. O
resultado de tudo isso é que, em dezembro de 1998, quando já haviam sido
leiloadas grandes empresas como a Vale, Embraer, Usiminas, Copesul, CSN, Light,
Acesita e as ferrovias, havia um descompasso entre expectativa e realidade.
Enquanto o governo FHC afirmava ter arrecadado R$ 85,2 bilhões no processo, o
jornalista econômico Aloysio Biondi publicava no seu best‑seller O
Brasil Privatizado que o país pagara para vender suas estatais. Este
pagamento atingira R$ 87,6 bilhões, portanto R$ 2,4 bilhões a mais do que
recebera. Reunindo sete itens que conseguiu calcular – vendas
a prazo com dinheiro já contabilizado, mas fora dos cofres públicos; dívidas
absorvidas; juros de 15% sobre dívidas assumidas; investimento nas estatais
antes do leilão; juros sobre tais investimentos; uso de moedas podres e mais R$
1,7 bilhão deixados nos cofres das estatais privatizadas – Biondi chegou ao seu
valor. Mais cinco itens, entre eles custo de demissões e compromissos com
fundos de pensão, considerados incalculáveis, não integram a coluna das
despesas.
*Matrioshka: conjunto de bonecas típicas
russas, de madeira pintada, que se sobrepõem umas às outras, encaixando-se.
“Um paraíso fiscal é, quase sempre, um pedaço
de terra cercado por água e povoado por mais pessoas jurídicas do que por gente
de carne e osso. É onde o dinheiro sujo, como ave migratória, pousa, repousa e
segue adiante, com as impurezas originais já removidas. Lá, acontecem outras
bizarrices: as empresas são do tamanho de uma caixa postal, e as contas
bancárias ocultam seus titulares. São paraísos para o narcotráfico, o
terrorismo, o tráfico de mulheres e o contrabando de armas. Lavam o dinheiro de
todas as máfias e, também, aquele que provém da corrupção política. “A lavagem
de dinheiro é a espinha dorsal do crime organizado”, garante o ministro Gilson
Dipp, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Hoje – diz – 70% do dinheiro
lavado no país vem da corrupção e não mais do tráfico internacional de
entorpecentes e do contrabando de armas e munição, como ocorria antigamente.”*
Desses centros financeiros mundiais, 38 são
ilhas. É mais da metade dos países ou regiões autônomas que se dedicam à
hospedagem vip da dinheirama de procedência desconhecida ou
imprecisa. Os valores transitam por empresas off-shore, um termo
que presta reverência aos velhos tempos dos corsários que saqueavam os mares e
depositavam a pilhagem off‑shore ou fora da costa. Os tempos
mudaram, mas os modos operantes continuam os mesmos.”
*: Artigo publicado no site Consultor
Jurídico.
“O desconforto do assessor, que acabara de
envelopar um relatório com os dados que evisceravam as movimentações financeiras
do ex-caixa de campanha de José Serra e de Fernando Henrique Cardoso, tinha lá
suas razões. Em suas quase 50 páginas, o documento revira as entranhas das
atividades do ex-tesoureiro tucano. Mostra que a Off-shore Infinity
Trading depositou US$ 410 mil em favor da Franton Interprises no MTB Bank, de
Nova York. Dito desta maneira ninguém se dá conta do que estes muitos milhares
de dólares significam, de onde vieram e para onde foram. É que os nomes das
empresas servem como biombo para seus controladores. O homem atrás da Franton é
Ricardo Sérgio de Oliveira. E agora se sabe que quem se esconde atrás da
Infinity Trading é o megaempresário Carlos Jereissati, dono do grupo La Fonte,
e irmão do cacique tucano e ex-senador Tasso Jereissati (PSDB/CE).
A conexão entre Infinity Trading e Jereissati
ratifica, pela primeira vez, aquilo que sempre se suspeitou, mas que nunca
havia sido comprovado: que o ex-tesoureiro das campanhas do PSDB recebeu
propina de Jereissati, um dos vencedores no leilão da privatização da Telebrás.
Por meio do consórcio Telemar, Jereissati adquiriu a Tele Norte Leste e passou
a controlar a telefonia de 16 estados. O Telemar pagou R$ 3,4 bilhões pelo
sistema, ágio de 1%, em 1998.
A comprovação de que Jereissati é o dono da
Infinity Trading está estampada em documento oficial. Consta do Relatório 369,
da Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda, também
encaminhado à Justiça. Oculto até agora nos porões do Tribunal de Justiça de
São Paulo, o relatório e outros papéis inéditos da CPMI do Banestado confirmam
a vinculação. A Infinity Trading, de Jereissati, favoreceu a Franton, de
Ricardo Sérgio, com dois depósitos. O primeiro, de 18 de janeiro de 2000, somou
precisamente US$ 246.137,00. E o segundo, no total de US$ 164.085,00, aconteceu
em 3 de fevereiro do mesmo ano. Sigiloso, o documento saiu das sombras depois
que o senador Antero Paes de Barros (PSDB), presidente da CPMI do Banestado,
foi instado pela Justiça a permitir o acesso aos papéis devido a uma ação de
exceção da verdade* movida pela Editora Três contra Ricardo Sérgio, que
processava a empresa e o autor deste livro por danos morais. Buscando evitar
uma eventual ação da Polícia Federal, munida de ordem judicial, contra a CPMI
do Banestado para apreender o relatório, o senador tucano não teve outra saída
senão entregá-lo.”
*: Ação que possibilita ao acusado por crime
de calúnia ou injúria comprovar que é verídica a conduta por ele atribuída à
pessoa que se julga ofendida e o processou por isso.
“A trajetória de Ricardo Sérgio nos anos FHC,
seu poder e sua audácia ao mover-se nos bastidores do poder tucano com
frequência o aproximaram das grandes fortunas do país. Naquele ponto
privilegiado e nebuloso em que o interesse particular prevalece sobre o
público, ele articulou, manobrou e formatou os consórcios de empresas para
arrematar estatais durante os anos dourados da privataria. Para Ricardo Sérgio,
a vida muda para valer quando Clóvis Carvalho, futuro ministro da Casa Civil,
apresenta-o a José Serra e Fernando Henrique Cardoso. É o ponto zero a partir
do qual principia a construir sua saga de coletor de contribuições milionárias
para o PSDB. Corria o ano de 1990 e Serra, candidato a deputado federal, estava
com dificuldades para levantar dinheiro para a campanha. Ricardo Sérgio era o
homem certo. Virou tesoureiro, papel de que também se incumbiria em 1994, na
eleição de Serra ao Senado. Para Fernando Henrique, arrecadou dinheiro nas
campanhas presidenciais de 1994 e 1998.
Sob FHC, o caixa de campanha, que já lidava
com poderosos cifrões, passou a manusear quantias espetaculares. Mais ainda
após sua indicação – por Serra – para dirigir a área internacional do Banco do
Brasil. Desde o seu gabinete, articularia a sucção dos recursos dos fundos de
pensão estatais – Previ, Petros, entre outros – para a ciranda das
privatizações. Era o homem de Serra quem orquestrava a montagem de grupos para
disputar os leilões e garantia o aporte do dinheiro do BB e dos fundos para
cada consórcio. Nesta modalidade dois-em-um da privataria, o dinheiro público
financiava a alienação das empresas públicas. Leiloadas as estatais, a gratidão
expressava-se zelosamente nas campanhas eleitorais do PSDB.
Uma gratidão, porém, que extravasava o limite
do estrito financiamento dos gastos eleitorais. E que promoveria um primeiro
contato explícito entre Ricardo Sérgio e Jereissati. Em 1994, Jereissati
entregou R$ 2 milhões a Ricardo Sérgio para incrementar o caixa de Serra. A
soma teria sido paga em quatro ou cinco parcelas. Foi o que o empresário
declarou à revista Veja, em março de 2001. No entanto, a prestação de contas de
Serra ao TRE/SP contabilizou tão somente a entrada de um cheque de R$ 50 mil. E
duas ajudas de serviço totalizando mais R$ 45 mil. Ao todo, portanto R$ 95 mil.
Entre a mão do empresário e o cofre da
campanha, os R$ 2 milhões volatilizaram-se, chegando menos de cinco por cento
ao destino final. Ignora-se onde a bolada se materializou mais tarde.
O que se sabe é que as declarações de
Jereissati desencadearam um festival de bate-cabeças em 2002, ano eleitoral. O
próprio empresário apareceu com um remake da versão anterior.
Nesta reengenharia semântica, não teria doado R$ 2 milhões, mas somente R$ 700
mil, dos quais R$ 600 mil em serviço – pagara o aluguel do jatinho de Serra
durante cinco meses. Apesar do remendo, o problema persistia: os R$ 600 mil
também estavam ausentes da prestação de contas do PSDB. E complicou-se ainda
mais. Foi quando Serra surgiu, então, brandindo a terceira versão: negou toda a
revelação de Jereissati e acrescentou – pior – que não usara nenhum avião do
empresário. O que era insatisfatório ficou ainda mais grave depois de uma
checagem na documentação oficial da campanha: ali aparece o cheque 642487, da
agência 0564 do Unibanco, no valor de R$ 50 mil. E nada mais.
A proximidade entre Jereissati e Ricardo
Sérgio ficaria mais evidente em 1998, ano notável em que todo o sistema de
telefonia do Brasil, a Telebrás, é vendido por pouco mais de R$ 22 bilhões. É
uma quantia tão impressionante quanto aquela que a União investira na Telebrás
nos dois anos e meio anteriores à privatização: R$ 21 bilhões.”
“O controle acionário da Vale foi vendido em
maio de 1997, com direito a financiamento oficial subsidiado aos compradores e
uso de moedas podres... Custou a bagatela de US$ 3,3 bilhões. Hoje, o mercado
lhe atribui preço 60 vezes maior, ou seja, rondando os US$ 200 bilhões. A
companhia foi privatizada de forma perversa, atribuindo-se valor zero às suas
imensas reservas de minério de ferro, capazes de suprir a demanda mundial por 400
anos. Além disso, a matéria-prima registrou elevação substancial de preço na
primeira década do século 21.”
“Mendonça de Barros liga para Ricardo Sérgio
e explica que o Opportunity está com “um problema de fiança” para participar do
leilão das teles. E propõe: “Não dá para o Banco do Brasil dar (a fiança)?”
– Acabei de dar – responde Ricardo Sérgio,
que alcançou R$ 874 milhões para o consórcio de Dantas. E agrega, cometendo a
frase síntese do processo de privatização à brasileira. “Nós estamos no limite
da nossa irresponsabilidade.” E emenda outra, mais tosca e premonitória: “Na
hora que der merda, estamos juntos desde o início.”
Vale relembrar um telefonema de FHC para
Mendonça de Barros. Queria saber a quantas andava a preparação do leilão das
teles. Recebe, como resposta, que “estamos com o quadro praticamente fechado”.
À vontade, os dois comentam o tom apologético adotado pela mídia para saudar as
privatizações, que catapultariam o Brasil ao concerto das grandes nações. Não
era ingenuidade. Se, de um lado, os grandes conglomerados propagandeavam as
benesses que a venda do patrimônio público traria ao país, de outro, sonegavam
aos seus leitores, ouvintes e telespectadores a condição de integrante de
consórcios que disputavam a aquisição das teles.
– A imprensa está muito favorável, com
editoriais – comenta Mendonça de Barros.
– Está demais, né – diz FHC.
– Estão exagerando até... – acrescenta, mordaz com seus áulicos midiáticos.”
“Desde que passou a integrar o clã dos Serra,
os horizontes do primo Preciado expandiram-se consideravelmente. Casado com
uma prima em primeiro grau do ex-governador de São Paulo, Preciado arrebatou
vantagens bancárias distantes das que arrebatariam mortais comuns, brasileiros
ou espanhóis. Ou você, leitor, obteria, munido somente de sua integridade e
seus belos olhos, um abatimento de seu débito com o Banco do Brasil de R$ 448
milhões para irrisórios R$ 4,1 milhões? Uma redução amiga de 109 vezes o valor
da pendência, decididamente, não é para qualquer bico. Mas para bico de tucano,
com certeza é...”
“Devendo milhões ao Banco do Brasil, com suas
empresas arruinadas ou à beira da bancarrota, Gregório Marín Preciado é uma
carta fora do baralho. Certo? Nada disso. Acontece que o empreendedor, primo e
sócio de Serra, não é homem de se intimidar com pouca coisa.
Quando se abriu a porteira dourada dos
grandes negócios das privatizações na Era FHC, Preciado, num estalar de dedos,
transmutou-se em player global para jogar o jogo pesado da
privataria. E foi às compras. Representante da empresa Iberdrola, da Espanha,
montou o consórcio Guaraniana, que adquiriu três estatais de energia elétrica:
a Coelba, da Bahia; a Cosern, do Rio Grande do Norte; e a Celpe, de Pernambuco.
Parece mágica, mas não é. É algo bem mais
soturno, movido não pela mão invisível do mercado, mas pela mão onipresente do
ex-tesoureiro de Serra e de FHC, Ricardo Sérgio de Oliveira que, no exercício
desmesurado do seu cargo, obrigou o Banco do Brasil e a Previ, a caixa de
previdência dos funcionários do BB, dois lugares onde dava as cartas e jogava
de mão, a entrar na dança de Preciado.”
“Em 2008, quando a empresa de Miami tornou-se
novamente notícia devido à repercussão da Satiagraha, que resultou na prisão de
Dantas, Verônica Serra distribuiu nota à imprensa negando ser sócia da Decidir.
A filha do governador dizia que apenas fazia parte do conselho da Decidir,
aberta, de acordo com ela mesma, com o capital do Citibank e do Opportunity.
Sustentava que sua xará Verônica Dantas “foi
indicada pelo CVC Opportunity para representá-lo no conselho de administração
da Decidir. Não conheço Verônica Dantas, nem pessoalmente, nem de vista, nem
por telefone, nem por e‑mail. Ela nunca participou de nenhuma
reunião de conselho da Decidir – todas ocorriam mensalmente em Buenos Aires. O
Citibank VentureCapital com sede em NY é quem mantinha o CVC Opportunity
informado sobre a Decidir”.
A filha do ex-governador afiançava ainda que
a Decidir sempre foi sediada em Buenos Aires e que no auge da bolha da internet
foi aberta uma subsidiária em Miami. “Eu não tenho nenhuma ligação com a
empresa desde o primeiro semestre de 2001”, dizia ainda na nota.
E o que este livro tem de novo a acrescentar
sobre a Decidir? Documentos, é claro, obtidos de forma lícita, que esclarecem
de vez a saga da sociedade entre as Verônicas. Os papéis comprovam que Verônica
mentiu várias vezes em sua nota. A empresa não fechou as portas, Verônica não
deixou a empresa e o dinheiro do Opportunity e do Citibank aplicado na firma
também nunca esteve na Argentina. Após cancelar seu registro de funcionamento
no Departamento de Comércio da Flórida em 2001, a Decicir passa a ter outro
endereço. Dá para adivinhar?
As Ilhas Virgens Britânicas, é claro, e mais
especificamente para o Citco Building, o velho navio pirata que ajudou a
amoitar o dinheiro da propina das privatizações. A Decidir é transformada
em offshore e rebatizada como Decidir International Limited.
Não se trata de uma estratégia de investimento no Caribe. A legislação do
paraíso fiscal caribenho veda transações financeiras em seu próprio território.
A finalidade das offshores é a de propiciar transações
financeiras intercontinentais. Como ensinam os manuais internacionais de
combate aos crimes financeiros, as offshores funcionam como
empresas-ônibus, que transportam dinheiro, quase sempre sem origem justificada,
entre contas bancárias, um artifício que visa apenas dificultar as
investigações fiscais e policiais e de outras autoridades que verificam
atividades financeiras provenientes da corrupção, do narcotráfico e do
terrorismo. E qual é a função da offshore Decidir? Internar
dinheiro. Onde? Na empresa Decidir do Brasil, que funciona no escritório da
filha do ex-governador, localizado na Rua Renato Paes de Barros, no bairro
Itaim Bibi, em São Paulo (SP). Documento da Junta Comercial de São Paulo revela
como a empresa injeta de uma vez R$ 10 milhões, em 2006, na Decidir do Brasil,
que muda de nome para Decidir.com.Brasil S.A. Como isto ocorreu? Simplesmente,
a offshore de Verônica Serra adquiriu 99% das ações – correspondentes,
na época, aos US$ 5 milhões investidos por Dantas e o Citicorp na empresa
homônima de Miami – da empresa Decidir Brasil.com.br. É exatamente o que você
está lendo: surge na nossa crônica uma terceira “Decidir”...Não é falta de
imaginação. Ao contrário, trata-se de uma demonstração inegável de criatividade
na tortuosa arte da esquiva.
Além de funcionar no escritório de Verônica
Serra na Rua Dr. Renato Paes de Barros, bairro do Itaim Bibi, em São Paulo, a
Decidir brasileira tem como vice-presidente a própria filha do governador.”
“De acordo com documentos obtidos em
cartórios, a filha do governador fecha outro negócio, este mais interessante:
compra de terceiros, em setembro de 2001, por R$ 475 mil, a mansão em que Serra
mora, no bairro Alto de Pinheiros, área nobre de São Paulo. Um excelente
negócio para Serra, que continua morando no mesmo endereço. Mas de onde vem
esse dinheiro? Não se sabe. Mas Verônica tenta nos ajudar: a fortuna lhe
sorriria por obra de ganhos de capital no exterior. À revista IstoÉ
Dinheiro (sempre a mesma publicação) ela disse que a chave do cofre
traria o nome de Patagon, uma companhia argentina de internet por meio da qual
teria levantado cerca de R$ 1 milhão como resultado de aplicações financeiras.”
“A papelada cedida ao autor pelo jornalista
Gilberto Nascimento evidencia que o então governador paulista José Serra
contratou, sem licitação, por meio da Companhia de Processamento de Dados do
Estado de São Paulo (Prodesp), a empresa Fence Consultoria Empresarial. A Fence
é propriedade do ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI), o
legendário coronel reformado do Exército Ênio Gomes Fontelle, 73 anos,
conhecido na comunidade de informações como “Doutor Escuta”.
A empresa do “Doutor Escuta” foi contratada
por R$ 858 mil por ano “mais extras emergenciais” – pagos pelo contribuinte –
no dia 10 de julho de 2008. Vale lembrar que nessa época a vida particular do
ex-governador de Minas Gerais Aécio Neves estava sendo espreitada por arapongas
no Rio de Janeiro, onde a Fence está sediada. Talvez isso explique por que a
Prodesp tenha invocado “inelegibilidade” para contratar a empresa do araponga
sem licitação.
Em outras palavras, a Prodesp afirma que o
“Doutor Escuta” não tinha concorrentes à altura para realizar o serviço.
Conforme o contrato, entre outros serviços, a Fence é responsável pela
“detecção de incursões eletrônicas nas instalações da Prodesp ou em outras
localizações de interesse da empresa”. Isto significa que a empresa tem como
acessar os dados pessoais de funcionários públicos, de juízes e até de
parlamentares por uma simples razão: a Prodesp é a responsável não só pela
folha de pagamento, mas também por todos os serviços de informação do Estado.
Ou seja, o contrato concede à firma do “Doutor Escuta” o direito de invadir
esses dados na hora que bem entender. Até o fechamento deste livro (final de
junho) o governador Geraldo Alckmin (PSDB) mantinha o contrato com a empresa de
Fontelle.
E o que o delegado federal e ex-deputado,
também federal, Marcelo Itagiba, tem a ver com isso? A resposta quem fornece é
o próprio currículo do coronel. O “Doutor Escuta” jacta-se de haver integrado o
seleto grupo de arapongas que Serra, quando era ministro da Saúde de FHC,
montou na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Sob a batuta de Itagiba, além do coronel
Fontelle, estavam ainda mais dois personagens destas páginas. Um deles, o
ex-agente do SNI Fernando Luiz Barcellos, de alcunha “agente Jardim”. E…
adivinhe quem mais! Sim, ele mesmo, o delegado Onézimo das Graças Sousa, aquele
mesmo frequentador do restaurante Fritz, da confeitaria Praline e das páginas
da Veja e dos jornalões em 2010.
O ninho de arapongas da Anvisa foi desativado
pelo próprio Serra, o que aconteceu após a imprensa denunciar que a vida
privada de servidores do Ministério da Saúde e de desafetos do então ministro –
entre eles seu colega, o ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, falecido
em 2010 – estaria sendo esquadrinhada. Na época, o argumento de Serra para a
arregimentação de arapongas foi o medo. Receava ser grampeado por
representantes das indústrias de medicamentos, que teriam sido contrariados por
medidas do governo.
Coincidentemente, o “Doutor Escuta” e os
demais pássaros foram contratados em 2002, quando partidários do PFL (atual DEM)
denunciaram a suposta vinculação de setores do governo do PSDB com os grampos
fatais à candidatura pefelista à Presidência da República. Teriam levado a
Polícia Federal a descobrir que a empresa Lunus, de propriedade da candidata
Roseana Sarney e de seu marido Jorge Murad, guardava R$ 1,34 milhão em seu
cofre. Suspeita-se que o dinheiro alimentaria a campanha do PFL, implodida ali
mesmo pela apreensão.”
“Toda essa simulação para internar dinheiro
sujo certamente teria fim com uma providência: a proibição pelo governo da
entrada de offshores em sociedades com firmas do Brasil. Só
deveria ser permitido o ingresso nas empresas nacionais de companhias
estrangeiras que identificassem o nome de seus verdadeiros donos em seus
balanços contábeis. É uma medida simples que certamente ajudaria a conter o
grande esquema de lavagem do dinheiro e o assalto aos recursos públicos.”
“Como já foi evidenciado, todos os dados que
alimentam estas páginas foram coletados de forma legal em cartórios de títulos
e documentos, juntas comerciais do país e do exterior e em processos judiciais
diversos. Comparar as datas serve para constatar, por exemplo, a inutilidade
das declarações de renda do vice-presidente do PSDB e de familiares de Serra –
vazadas por funcionário da agência da Receita Federal em Mauá, na região do ABC
paulista – para a produção deste livro. Segundo investigação da PF e da
Corregedoria da Receita Federal, os sigilos dos dirigentes tucanos e familiares
de Serra foram acessados irregularmente nos anos de 2007 e 2008. Acontece que
este livro detalha exclusivamente operações do período que vai de 1998 a 2003.
Ou seja, as movimentações verificadas durante e logo após as privatizações. Por
isso é tão importante cotejar data com data. “Eu falo para os chefes do meu
jornal que as datas não batem, que a história não bate, mas a verdade não lhes
interessa”, ouvi de um colega de um dos jornalões durante a cobertura da
crise.”
“Nos dias anteriores ouvira relatos de
jornalistas e mesmo de tucanos de que o Eduardo “Sombra” Jorge havia
transformado a cobertura midiática da quebra do sigilo numa grande ópera bufa,
em que ele era o mais divertido dos personagens. Com ironia, colegas de
imprensa diziam que, de posse de informações privilegiadas do inquérito, o
prócer do PSDB travestira-se de pauteiro e editor de veículos dos quais
arrancara indenizações milionárias em ações de danos morais. EJ teria iniciado
um verdadeiro leilão em trocadas informações privilegiadas. Não pedia dinheiro
ou algum benefício pessoal. Apenas exigia determinado espaço, chegando a
definir qual seria a linha editorial da matéria. Se determinado jornal não
concordasse com suas exigências, simplesmente transferia o “furo” ao
concorrente. Pareceu algo simplesmente genial. EJ conseguira a façanha tão desejada
pelos blogs: levar a mídia ao papel ridículo que se propôs a
assumir no pleito. Além de arrancar fábulas de dinheiro dos jornais e revistas
que no passado haviam publicado reportagens que considerou caluniosas, EJ tinha
o prazer de aumentar seu poder de vingança, ao assumir o controle editorial,
mesmo que momentâneo, das páginas de política. E, de sobra, irritava Serra que
o havia deixado de lado durante a campanha eleitoral. Afinal, Serra acionara
seus arapongas com o objetivo inverso, o de impedir que as denúncias viessem a
público. Acabou perdendo o controle da situação devido aos conflitos internos
do PSDB e ao fogo amigo petista, que colocaram o tema em pauta. O sinal de que
o candidato tucano não queria confusão com o assunto foi sinalizado pelo próprio
Serra ao autor. Na reta final da campanha, quando meu nome frequentava as
manchetes, Márcio Aith, assessor de imprensa do tucano, tentou marcar um
encontro comigo. Escaldado com a arapongagem serrista, rejeitei a ideia. “Não é
nada disso. O Serra só quer dizer que não tem nada contra você”, mandou Aith
dizer.”
“Depois desta jornada pelos pântanos da
política em que todos são vilões e o Brasil é a vítima, acho importante
encerrar a narrativa com algumas observações. A primeira delas é que o país e
suas instituições não têm o direito de continuar fazendo de conta que não viram
a rapinagem organizada que devastou os bens do Estado nos anos 1990 e começo da
década seguinte. E que serviu para tornar os ricos mais ricos.
Varrer a sujeira para debaixo do tapete, como
se fez tantas vezes, não é mais possível. Não há tapete suficiente para
acobertar tanto lixo. O Brasil, que escondeu a escravidão e ainda oculta a
barbárie de suas ditaduras, não pode negar aos brasileiros a evisceração da
privataria. Quem for inocente que seja inocentado, quem for culpado que expie
sua culpa.
Se isso não acontecer, isto é, se a memória
do saque não se tornar um patrimônio dos brasileiros, o país poderá repetir
esta história, mais cedo ou mais tarde. Não é demais reparar que, na América
Latina, estamos atrasados nestas providências. No México, o ex-presidente
Carlos Salinas de Gortari – espécie de santo padroeiro da privataria latina –
crivado de denúncias de corrupção, saltou em seu jatinho e fugiu para Nova
York. Na Bolívia, após privatizar até a água, que entregou à francesa
Suez-Lyonnaise des Eaux e à norte-americana Betchel, o “modernizador
neoliberal” Gonzalo Sánchez de Lozada foi ejetado do seu trono aos gritos de
“assassino” e voou para Miami.
Tripulando uma razia privatizante
que liquidou até mesmo estatais que davam lucro e um processo de concentração
de renda que desempregou 30% da população ativa, Carlos Menen virou sinônimo de
azar. Na Argentina, as pessoas dizem “Mendéz” para não pronunciar seu nome
receando uma catástrofe. No Peru, após aprovar sua segunda reeleição, Alberto
Fujimori evadiu-se do país sob acusação de surrupiar US$ 15 milhões do erário e
de autorizara execução de dissidentes. Condenado a 25 anos de prisão, Fujimori
admitiu, depois, ter concedido propinas – “briberization”, como diria Joseph
Stiglitz – o que somou à sua pena mais alguns anos de cadeia.
Para quem entende a desigualdade social como
um valor em si mesmo e o Estado do Bem-Estar Social como um trambolho no
caminho da realização plena do indivíduo, Salinas de Gortari, Sánchez de
Losada, Menem, Fujimori e similares fizeram o que tinham que fazer. Foram
flagrados – uma lástima do seu ponto de vista – mas não se pode fazer maiores
reparos à sua ação política em termos de coerência. Resta saber se quem
interpreta o Estado Mínimo como uma perversidade ineficaz – aqui ou em qualquer
outro lugar – está disposto a fazer valer sua condição cidadã e exigir da
Polícia, do Fisco, do Ministério Público e da Justiça que cumpram a sua parte.
Se jogar uma luz sobre este passado ainda imerso nas sombras, este livro, que
termina aqui, terá cumprido a sua parte. E tudo o que houve terá valido a
pena.”