quarta-feira, 28 de março de 2012

1984 – George Orwell

Editora: Companhia Editora Nacional
ISBN: 978-85-0400-611-7
Tradução:
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 302
Sinopse: Publicada originalmente em 1949, a distopia futurista 1984 é um dos romances mais influentes do século XX, um inquestionável clássico moderno. Lançada poucos meses antes da morte do autor, é uma obra magistral que ainda se impõe como uma poderosa reflexão ficcional sobre a essência nefasta de qualquer forma de poder totalitário.
Winston, herói de 1984, último romance de George Orwell, vive aprisionado na engrenagem totalitária de uma sociedade completamente dominada pelo Estado, onde tudo é feito coletivamente, mas cada qual vive sozinho. Ninguém escapa à vigilância do Grande Irmão, a mais famosa personificação literária de um poder cínico e cruel ao infinito, além de vazio de sentido histórico. De fato, a ideologia do Partido dominante em Oceânia não visa nada de coisa alguma para ninguém, no presente ou no futuro. O'Brien, hierarca do Partido, é quem explica a Winston que “só nos interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade: só o poder pelo poder, poder puro”.
Quando foi publicada em 1949, essa assustadora distopia datada de forma arbitrária num futuro perigosamente próximo logo experimentaria um imenso sucesso de público. Seus principais ingredientes – um homem sozinho desafiando uma tremenda ditadura; sexo furtivo e libertador; horrores letais – atraíram leitores de todas as idades, à esquerda e à direita do espectro político, com maior ou menor grau de instrução.
À parte isso, a escrita translúcida de George Orwell, os personagens fortes, traçados a carvão por um vigoroso desenhista de personalidades, a trama seca e crua e o tom de sátira sombria garantiram a entrada precoce de 1984 no restrito panteão dos grandes clássicos modernos. Algumas das ideias centrais do livro dão muito o que pensar até hoje, como a contraditória Novafala imposta pelo Partido para renomear as coisas, as instituições e o próprio mundo, manipulando ao infinito a realidade. Afinal, quem não conhece hoje em dia “ministérios da defesa” dedicados a promover ataques bélicos a outros países, da mesma forma que, no livro de Orwell, o “Ministério do Amor” é o local onde Winston será submetido às mais bárbaras torturas nas mãos de seu suposto amigo OBrien. Muitos leram 1984 como uma crítica devastadora aos belicosos totalitarismos nazifascistas da Europa, de cujos terríveis crimes o mundo ainda tentava se recuperar quando o livro veio a lume. Nos Estados Unidos, foi visto como uma fantasia de horror quase cômico voltada contra o comunismo da hoje extinta União Soviética, então sob o comando de Stálin e seu Partido único e inquestionável. No entanto, superando todas as conjunturas históricas – e até mesmo a data futurista do título –, a obra magistral de George Orwell ainda se impõe como uma poderosa reflexão ficcional sobre os excessos delirantes, mas perfeitamente possíveis, de qualquer forma de poder incontestado, seja onde for.


“Seu espírito mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar.”


“Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência.”


“Contanto que continuassem a trabalhar e se reproduzir, não tinham importância as atividades dos proles. Abandonados a si mesmos, como gado solto nas planícies argentinas, haviam regressado a um modo de vida que lhes parecia natural, uma espécie de tradição ancestral. Nasciam, cresciam nas sarjetas, iam para o trabalho aos doze, atravessavam um breve período de floração da beleza e do desejo sexual, casavam-se aos vinte, atingiam a maturidade aos trinta, e em geral morriam aos sessenta. O trabalho físico pesado, o trato da casa e dos filhos, as briguinhas com a vizinhança, o cinema, o futebol, a cerveja e, acima de tudo, o jogo, enchiam-lhes os horizontes. Mantê-los sob controle não era difícil. Alguns agentes da Polícia do Pensamento estavam sempre entre eles, soltando boatos, marcando e eliminando os poucos indivíduos julgados capazes de se tornar perigosos; mas não se tentava doutriná-los com a ideologia do partido. Não era desejável que os proles tivessem sentimentos políticos definidos. Tudo que se lhes exigia era uma espécie de patriotismo primitivo ao qual se podia apelar sempre que fosse necessário levá-los a aceitar rações menores ou maior expediente de trabalho. E mesmo quando ficavam descontentes, como às vezes acontecia, o descontentamento não os conduzia a parte alguma porque, não tendo ideias gerais, só podiam focalizar a animosidade em ridículas reivindicações específicas. Os males maiores geralmente lhes fugiam à observação.”


“Era à noite que vinham buscar a gente, sempre à noite. O melhor era matar-se antes de ser apanhado. Sem dúvida havia gente capaz disso. Com efeito, muitos dos desaparecidos eram suicidas. Mas era preciso coragem desesperada para se matar num mundo em que era impossível obter armas de fogo, ou veneno rápido e certo. Pensou, com uma espécie de assombro, na inutilidade biológica da dor e do medo, na traição do corpo humano que sempre se congela na inércia, no momento exato em que dele se exige esforço especial. Poderia ter silenciado a moça morena se conseguisse agir com rapidez, mas precisamente por causa do perigo extremo que corria perdera a capacidade de agir. Ocorreu-lhe que, em momentos de crise, nunca se luta com um inimigo externo, mas com o próprio organismo. Mesmo agora, apesar do gim, a dor surda do ventre tornava impossível dois pensamentos consecutivos. E é o mesmo em todas as situações aparentemente heroicas ou trágicas. No campo de batalha, na câmara de tortura, num navio que naufraga, as causas por que lutamos são sempre secundárias, esquecidas, porque o corpo incha e se infla até ocupar todo o universo, e mesmo quando não nos paralisa o medo, nem gritamos de dor, a vida é uma luta, minuto a minuto, contra a fome, o frio, a insônia, contra dor de estômago ou de dentes.”


“– Estou disposta a correr riscos, mas só por coisas que valham a pena, não por causa de pedacinhos de papel. Que poderias fazer com o recorte, se o guardasses?
– Pouca coisa, talvez. Mas era prova. Poderia ter semeado algumas dúvidas, aqui e ali, supondo que ousasse mostrá-lo a alguém. Não creio que possamos alterar coisa alguma nesta vida. Mas posso imaginar pequenos nódulos de resistência brotando aqui e ali... pequenos grupos de gente que se reúne, e vão crescendo, e deixando algumas notas, de modo que a geração seguinte possa continuar a obra.
– Não estou interessada na próxima geração, querido, mas sim em nós.
– És rebelde só da cintura para baixo - disse ele.
Ela achou esta frase excepcionalmente jocosa e atirou os braços em torno dele, deliciada.
Tampouco tinha Júlia o menor interesse pelas ramificações da doutrina do Partido. Sempre que ele começava a falar dos princípios do Ingsoc, duplipensar, a mutabilidade do passado e a negação da realidade objetiva, e a usar palavras de Novilíngua, ela ficava aborrecida, confusa, e dizia não ter jamais prestado atenção a essas coisas. Sabia que era tudo lixo, portanto para que se preocupar com ele? Sabia quando aplaudir e quando vaiar, e era toda a ciência de que precisava. Quando ele persistia em falar de tais assuntos, Júlia tinha o hábito desconcertante de adormecer. Era uma dessas pessoas que podem adormecer a qualquer momento, em qualquer posição. Falando com ela, Winston percebeu como era fácil aparentar ortodoxia, sem ter a menor noção do que fosse ortodoxia. De certo modo, o ponto de vista do Partido se impunha com mais êxito às pessoas incapazes de compreendê-lo. Aceitavam as mais flagrantes violações da realidade porque jamais percebiam inteiramente a enormidade do que lhes era exigido, e não estavam suficientemente interessadas para observar o que acontecia. Graças à falta de compreensão permaneciam sãs de juízo. Apenas engoliam tudo, e o que engoliam não lhes fazia mal, porque não deixava resíduo, do mesmo modo que um grão de milho passa, sem ser digerido, pelo corpo de uma ave.”


“Tornou-se também claro que o aumento total da riqueza ameaça destruir – com efeito, de certo modo era a destruição – de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com banheiro e refrigerador, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza não conferia distinção. Era possível, sem dúvida, imaginar uma sociedade em que a riqueza, no sentido de posse pessoal de bens e luxos, fosse igualmente distribuída, ficando o poder nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não poderia ser estável. Pois se o lazer e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa de seres humanos, normalmente imbecilizada pela miséria, aprenderia a ler e aprenderia a pensar por si; e uma vez isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde veria que não tinha função a minoria privilegiada, e acabaria com ela. De maneira permanente, uma sociedade hierárquica só é possível na base da pobreza e da ignorância.”


“Todos os governantes de todas as épocas têm tentado impor aos seus adeptos uma falsa visão do mundo, mas não podiam se dar ao luxo de encorajar nenhuma ilusão que tendesse a prejudicar a eficiência militar. Considerando que a derrota significava a perda de independência, ou outro resultado geralmente julgado indesejável, era preciso tomar sérias precauções contra a derrota. Não se podia ignorar os fatos físicos. Na filosofia, religião, ética, ou política, dois e dois podem ser cinco, mas quando se desenha um canhão ou um avião, somam quatro.”


“Mas quando a guerra se torna literalmente contínua, cessa também de ser perigosa.”


“Desde que se começou a escrever a história, e provavelmente desde o fim do Período Neolítico, tem havido três classes no mundo: Alta, Média e Baixa. Têm-se subdividido de muitas maneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e sua relação quantitativa, assim como sua atitude em relação às outras, variaram segundo as épocas; mas nunca se alterou a estrutura essencial da sociedade. (...)
Os objetivos desses três grupos são inteiramente irreconciliáveis. O objetivo da Alta é ficar onde está. O da Média é trocar de lugar com a Alta. E o objetivo da Baixa, quando tem objetivo – pois é característica constante da Baixa viver tão esmagada pela monotonia do trabalho cotidiano que só intermitentemente tem consciência do que existe fora de sua vida – é abolir todas as distinções e criar uma sociedade em que todos sejam iguais. Assim, por toda a história, trava-se repetidamente uma luta que é a mesma em seus traços gerais. Por longos períodos a Alta parece firme no poder, porém mais cedo ou mais tarde chega um momento em que, ou perde a fé em si própria ou sua capacidade de governar com eficiência, ou ambas. É então derrubada pela Média, que atrai a Baixa ao seu lado, fingindo lutar pela liberdade e a justiça. Assim que alcança sua meta, a Média joga a Baixa na sua velha posição servil e transforma-se em Alta. Dentro em breve, uma nova classe Média se separa dos outros grupos, de um deles ou de ambos, e a luta recomeça. Das três classes, só a Baixa nunca consegue nem êxito temporário na obtenção dos seus ideais.”


“A chamada “abolição da propriedade privada”, que se verificou em meados do século, significou, com efeito, a concentração da propriedade em número muito menor de mãos, mas com a diferença de que os novos donos eram um grupo em vez de uma massa de indivíduos. Individualmente, nenhum membro do Partido possui coisa alguma, exceto ninharias pessoais. Coletivamente, o Partido é dono de tudo na Oceania, porque tudo controla, e dispõe dos seus produtos como bem lhe parece.”


“O Partido não é uma classe no antigo sentido da palavra. Não tem por objetivo transmitir o poder aos próprios filhos; e se não houvesse outro meio de conservar os mais capazes nos postos de comando, estaria perfeitamente disposto a recrutar toda uma geração nova das fileiras do proletariado. Nos anos cruciais, muito contribuiu para neutralizar a oposição o fato de o Partido não ser um organismo hereditário. O antigo tipo de socialista, treinado a lutar contra o que às vezes se chamava “privilégio de classe”, supunha que o que não fosse hereditário não podia ser permanente. Não percebia que a continuidade de uma oligarquia não precisava ser física, nem fazia pausa para refletir que as aristocracias hereditárias sempre tiveram vida curta, enquanto que organizações auto-renovantes, como a Igreja Católica, às vezes duram centenas e mesmo milhares de anos. A essência do jugo oligárquico não é a herança de pai a filho, mas a persistência de certo ponto de vista em face do mundo e de certa maneira de viver, imposta aos vivos pelos mortos. Um grupo dominante só continua mandando enquanto consegue nomear seus sucessores. O Partido não se interessa pela perpetuação do seu sangue, mas pela perpetuação da entidade. O que importa não é quem maneja o poder, contanto que permaneça sempre a mesma a estrutura hierárquica.”


“Assim, o Partido rejeita e vilifica qualquer princípio originalmente defendido pelo movimento socialista, e no entanto o faz em nome do socialismo.”


“– Também te pegaram! – exclamou.
– Pegaram-me há muito tempo – disse O’Brien, com leve ironia, quase arrependida. Deu um passo para o lado e por trás dele apareceu um guarda de peito largo, com um longo bastão negro na mão.
– Sabias disto – disse O’Brien. – Não te iludas, Winston. Sabias... sempre soube.
Sim, agora ele via que sempre soubera. Mas não houve tempo para pensar. Só tinha olhos para o bastão do guarda. Podia cair em qualquer parte: no alto da cabeça, na ponta da orelha, no braço, no cotovelo...
O cotovelo! Caíra de joelhos, quase paralisado, protegendo com a mão o cotovelo atingido. Tudo explodira numa luz amarela. Inconcebível, inconcebível que um só golpe produzisse tamanha dor! O amarelo se foi e ele pôde enxergar os dois a contemplá-lo. O guarda ria-se das suas contorções. Ao menos uma dúvida fora esclarecida. Nunca, por nenhuma razão, se poderia desejar que a dor aumentasse. Da dor, só se podia desejar uma coisa, que parasse. Nada no mundo era tão horrível como a dor física. Em face da dor não há heróis, não há heróis, ele pensou e tornou a pensar, torcendo-se no chão, segurando à toa o braço esquerdo inválido.”


“– Somos diferentes de todas as oligarquias do passado, porque sabemos o que estamos fazendo. Todas as outras, até mesmo as que se assemelhavam conosco, eram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e os comunistas russos muito se aproximaram de nós nos métodos, mas nunca tiveram a coragem de reconhecer os próprios motivos. Fingiam, talvez até acreditassem, ter tomado o poder sem querer, e por tempo limitado, e que bastava dobrar a esquina para entrar num paraíso onde os seres humanos seriam iguais e livres. Nós não somos assim. Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de largá-lo. O poder não é um meio, é um fim em si. Não se estabelece uma ditadura para salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder. Agora começou a me compreender?”


“Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota pisando num rosto humano, para sempre.”

quinta-feira, 22 de março de 2012

O Grande Livro dos Signos & Símbolos: as origens, os significados, usos e análises reveladoras sob o ponto de vista histórico, psicológico e cultural (livro 1) – Mark O’ Connel e Raje Airey

Editora: Escala
ISBN: 978-85-389-0087-0
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 112


      “A palavra “símbolo” é derivada do grego antigo symbballein, que significa agregar. Seu uso figurado originou-se no costume de quebrar um bloco de argila para marcar o término de um contrato ou acordo: cada parte do acordo ficaria com um dos pedaços e, assim, quando juntassem os pedaços novamente, eles poderiam se encaixar como um quebra-cabeça. Os pedaços, cada um identificando uma das pessoas envolvidas, eram conhecidos como symbola. Portanto, um símbolo não representa somente “algo” que está faltando, uma parte invisível que é necessária para alcançar a conclusão ou a totalidade. Consciente ou inconscientemente, o símbolo carrega o sentido de unir as coisas para criar algo maior do que a soma das partes, como nuanças de significado que resultam em uma ideia complexa.
     Por outro lado, um signo pode ser entendido como algo que representa ou indica alguma coisa de modo mais literal. Um signo existe para transmitir informações sobre um objeto ou ideia específica, enquanto um símbolo geralmente ativa uma série de percepções, crenças e respostas emocionais. Por exemplo, como um signo, a palavra “árvore” significa um tipo particular de planta que desenvolve uma estrutura de madeira permanente com tronco e galhos, raízes e folhas. Como símbolo, a árvore pode ter muitos significados: pode representar fertilidade e generosidade da natureza, resistência e longevidade ou o entrelaçamento das relações familiares. Como símbolo cristão, pode se referir à cruz e, em muitas tradições, representa a “árvore da vida”, que conecta o mundo cotidiano com o mundo espiritual.”

As pirâmides do Egito Antigo simbolizavam, para seus arquitetos, o poder criativo do sol e a imortalidade dos faraós que eram enterrados dentro dela 
  

As estátuas monolíticas localizadas na Ilha de Páscoa possuem uma presença viva que simboliza a firmeza do espírito humano 



     “O Ankh (cruz ansata), formado por uma alça oval sobre uma cruz, era o hieróglifo do antigo Egito para a vida e imortalidade e era utilizado na iconografia dos opostos. A alça, uma forma de círculo, significava o universo (o macrocosmo), e a cruz em forma de T pode significar o homem (o microcosmo). Ele combina os símbolos feminino e masculino do Deus Osíris, e simboliza a união do Céu e da Terra. Nas pinturas dos muros egípcios, os deuses (particularmente Ísis) e os reis eram pintados segurando um ankh para simbolizar seus poderes sobre a vida e a morte. O ankh é associado à morte e os rituais funerários: carregado pelo morto, ele simboliza uma passagem segura desde mundo para o outro, enquanto for mantido de cabeça para baixo. É a chave que destrava os portões da morte para a eternidade. Às vezes, é colocado na testa, entre os olhos, conectando-o com a clarividência.”




     “No ano de 247 d.C., a dinastia Sassanid estabeleceu o Zoroastrianismo como religião oficial do Império Persa e ela ainda é praticada no Irã e em outras partes do mundo. Está fundamentada nos ensinamentos do profeta Zaratustra (chamado Zoroastro pelos gregos). Tais ensinamentos dizem que as forças opostas do bem e do mal são simbolizadas por Ahura Mazda, a deidade suprema responsável pela verdade e pela luz, e por Ahriman. Os dois representam a dualidade do cosmos: diferente de Satã, Ahriram não é criação do deus supremo, mas sim um ser igual.

O artifício com asas é o faravahar, um símbolo do desejo
humano de alcançar a união com Ahura Mazda, a suprema
deidade da fé zoroastriana
 
     O conflito universal entre os bons espíritos (ahuras) e os maus espíritos (daevas) resultará finalmente na vitória de Ahura Mazda e os fieis são encorajados a seguir Ahura Mazda através de “bons pensamentos, boas palavras e bons atos”. Esses três ideais são representados pelas três asas de plumas de faravahar, o principal símbolo zoroastriano. Os zoroastrianos acreditam que o primeiro animal a ser criado foi um touro branco, o progenitor de todos os outros animais e plantas, enquanto o ponto focal da religião é o fogo, visto como a manifestação mais pura de Ahura Mazda. Fogueiras permanentes foram estabelecidas por toda a Pérsia, algumas ao ar livre, outras dentro de templos do fogo e supervisionadas por sacerdotes conhecidos como magos (dessa palavra origina-se a palavra “mágica”). Retratos de altares de fogo são encontrados em moedas antigas.
     Como os zoroastrianos consideram o fogo sagrado, a cremação não é permitida porque poderia contaminar o fogo; em vez disso, os corpos são expostos na parte superior de “torres de silêncio” para que seus ossos sejam limpos por animais que se alimentam de carniça.”


     “Embora ela cresça na lama, a flor de lótus mantém sua beleza. Como flor nacional da Índia, é o símbolo do espírito puro enraizado na realidade mundana. O mantra “om mane padme” se refere ao iluminismo, a “joia da flor de lótus”.




     “A grande muralha da China é um exemplo de como algo pode ter diversos significados simbólicos, dependendo da perspectiva cultural ou política da pessoa. A muralha é diferentemente considerada como um símbolo de proteção, poder e realização, ou de opressão, isolamento e divisão.”





O símbolo yin/yang representa a
interação sem fim das qualidades
opostas da natureza
.
     “O símbolo do yin/yang é a indicação de uma lei natural de equilíbrio ou ciclo de mudança, que abrange todos os movimentos ou, às vezes, que se torna o oposto: a força leva à fraqueza, a vida leva à morte, o masculino leva ao feminino.
Yin, o princípio feminino, está associado ao frio, à escuridão e à terra; yang, o princípio masculino, está associado à luz, ao calor e ao céu. O símbolo mostra que a vida deve ser considerada como um todo e não pode verdadeiramente existir em partes isoladas. As partes escura e clara do símbolo são opostas, ainda que estejam interligadas e sejam mutuamente dependentes. Os dois pequenos pontos formam um círculo perfeito, simbolizando a totalidade da natureza. (...)
     O símbolo yin/yang mostra como cada força, sua potência máxima, provoca seu oposto.


     “Uma importante figura do taoísmo é o mítico P’an-ku, considerado o primeiro ser criado. Na criação do universo, no qual o Caos foi dividido em forças de yin e yang, a interação desses princípios opostos levou à criação de P’an Ku, que logo depois pegou uma talhadeira e um bastão e começou a esculpir o restante da criação em especial no espaço que fica entre o Céu e a Terra. P’an Ku viveu 18 mil anos, crescendo dia a dia, e quando completou sua tarefa, se deitou e morreu. Seu corpo se tornou o mundo, cuja extensão foi marcada pelas cinco montanhas sagradas da China. Simbolicamente ligadas aos cinco elementos, essas montanhas ficam nos quatro pontos cardinais e no centro do império; acredita-se que sirvam de apoio aos céus.
     Lao-Tzu aconselhava seus seguidores a “serem tranquilos como uma montanha e fluírem como um grande rio”. Muitos deles procuravam o Tao retirando-se para viverem sozinhos nas montanhas. Na crença taoísta, as montanhas são um meio de comunicação com os imortais e com a natureza. Assim como a imagem da árvore do mundo, elas conectam os mundos de cima e de baixo. As montanhas sagradas são lugares de peregrinação. Elas têm sido adoradas como deidades, os monastérios são construídos em suas encostas, e o próprio imperador subia anualmente até o topo do pico mais sagrado, Tai Shan, a montanha do Oriente, para oferecer um sacrifício.”



     “O simbolismo sempre foi usado para denotar identidade e confirmar a participação em grupos sociais ou “famílias”, as unidades básicas da sociedade. Tanto baseados em crenças compartilhadas ou interesses e atividades em comum, todos os grupos organizados – seja em nível local, regional, nacional, ou internacional – possuem seus próprios símbolos de identidade. Tais símbolos podem estar em forma de totens, estandartes, bandeiras, padrões, ou podem ser expressos através das vestimentas ou da observância de determinados rituais de comportamento. Uma das características importantes de tal simbolismo é sua visibilidade: é designado para proporcionar um signo instantaneamente reconhecido da identidade do grupo, um modo de codificar e estruturar as relações sociais, de criar uma distinção entre quem “faz parte” e quem “não faz parte” e estimular uma resposta emocional como medo, respeito, humildade ou orgulho em todos que o observam.”

 O martelo e a foice fazem parte do símbolo comunista, representando a união dos trabalhadores industriais e agricultores


     “As questões sobre a vida e morte são exploradas através dos mitos e as histórias das origens e do fim do mundo também podem ser encontradas em todas as culturas. Os mitos da criação se referem ao caos primitivo, simbolizado em muitas culturas como um lugar molhado, escuro e misterioso. Os mitos também antecipam a destruição do mundo em um acontecimento catastrófico – como o terremoto nórdico Ragnarok – enquanto muitos se referem a um tempo antigo, quando o mundo quase foi destruído por um dilúvio. A história bíblica de Noé é o exemplo mais conhecido; em um conto mesopotâmico semelhante, Utnapishtim, o único homem sábio que sobreviveu à inundação, tornou-se imortal.
     Tipicamente, os mitos são contos de seres divinos ou semidivinos – deuses e deusas, heróis e heroínas – figuras típicas que representam a luta entre o bem e o mau, explorando os conflitos morais e poderosos, emoções humanas, como o desejo e ganância, o ciúme e a luxúria, a ambição, o amor e o ódio. Noções de um submundo e de uma vida após a morte, assim como reinos mágicos sobrenaturais, são comuns. Além disso, animais com poderes extraordinários que ajudam a raça humanas destacam em muitos mitos.”


     “Em geral, a mitologia reforça e justifica as relações de força e liderança. Tipicamente, isso é explorado através de um panteão com uma estrutura hierárquica: um deus e/ou deusa supremo (a) no topo (usualmente associado com o céu e a terra) seguido por inúmeras deidades menores ou maiores. Essa estrutura segue aquela adotada pela sociedade humana. Na China, por exemplo, o Céu era visualizado como uma burocracia, mantendo a lei e a ordem do mesmo modo que a administração imperial.”




     “Geralmente, as mulheres em mitos são ruins, perigosas ou demoníacas, seja por causa de sua curiosidade e desobediência ou por causa de sua beleza ou poderes mágicos. No mito grego, Pandora desobedece aos deuses e abre uma caixa que libera doenças e o mal no mundo. Isso também acontece na tradição judaico-cristã, quando Eva desobedece a Deus e é responsável pela expulsão dos humanos do paraíso. As Sereias do mito grego, monstros marinhos com insaciável apetite de sangue, encantavam os marinheiros e os levavam à morte transformando-se em lindas donzelas. Na China, os espíritos demoníacos associados com morte violenta também se disfarçavam de lindas garotas. Dizem, na Índia, que o verdadeiro caráter de uma rakshasi (demônio feminino) podia ser reconhecido pelo modo como seus pés ficavam virados para trás.”


     “Qual a conexão entre simbolismo e modelos científicos? A própria ciência não é simplesmente um processo racional, uma vez que existem muitos exemplos de descobertas científicas que foram feitas através de sonhos e de outros processos irracionais – como a lenda Newtoniana de que o fato de uma maçã ter caído em cima da cabeça de sir Issac Newton o fez entender a força da gravidade. Parece que o inconsciente pode produzir símbolos que informam o próximo passo na exploração científica.

     O exemplo mais famoso é a descoberta do anel benzênico em 1865 pelo químico alemão Friedrich August Kekulé. As propriedades do benzeno não podiam ser explicadas em termos de estruturas moleculares lineares. Uma noite, tirando uma soneca em frente à lareira, Kekulé sonhou com longas fileiras de átomos “se retorcendo e girando como serpentes” até que uma dessas serpentes agarrou sua própria cauda. Ao acordar, ele criou a hipótese da estrutura em forma do anel de benzeno, conduzindo ao novo período prolífico do desenvolvimento da química orgânica. Em uma convenção social em 1890, Kekulé aconselhou seus colegas cientistas a “aprender a sonhar” a fim de buscar a verdade.
     Também em meados do século XIX, um químico russo, Dmitri Mendeleev, sonhou com a tabela periódica dos elementos com precisão notável, até mesmo prevendo a existência de três elementos ainda não existentes; todos eles foram descobertos em 15 anos. No início do século XX, o físico dinamarquês Niels Bohr, estudando a estrutura do átomo, viu em sonho um núcleo com elétrons girando em volta dele e pelo seu trabalho subsequente recebeu o Prêmio Nobel de Física, em 1922. Albert Einstein deu o mérito da fonte de sua Teoria da Relatividade a um sonho que teve quando estava na escola. Neste sonho, ele andava em um trenó que acelerava até uma velocidade inacreditável, transformando as estrelas à sua volta em luz ofuscante até que ele se aproximava da velocidade da luz.”



     “A comunicação através da escrita está baseada em um repertório convencionado de signos e símbolos formais que podem ser utilizados em diferentes combinações para reproduzir as ideias que o escritor quer expressar. (...)
     Quando os alfabetos foram desenvolvidos (por volta de 1.000 a.C.), o número de caracteres diferentes necessários foi drasticamente reduzido: o alfabeto romano, ainda usado atualmente, contém 26 letras, enquanto são necessários mil signos básicos para a escrita chinesa. (...)
     O Alfabeto fenício é geralmente considerado como o primeiro, abrangendo 22 caracteres consoantes e a escrita da direita para a esquerda. A partir da escrita fenícia, outras, como a aramaica, a hebraica e a arábica se desenvolveram, todas elas lidas da direita para a esquerda, além de alguns sistemas de escrita menos conhecidos, alguns dos quais resistiram até hoje.      Estes incluem Tifnagh, a escrita usada pelo povo Tuareg do norte da África, que é diferente por causa de sua forma bastante geométrica. Também é muito incomum, visto que seu uso é restrito às mulheres, uma vez que a sociedade dos Tuareg é matriarcal; um bom exemplo da conexão entre literatura e poder social. Outros alfabetos incluem o grego, o romano (que é a base do alfabeto inglês), o sânscrito e o cirílico.
     As letras individuais em um alfabeto podem possuir um valor simbólico. Os estudiosos têm observado que, em muitos alfabetos antigos, a maioria das letras retratava um animal, um gesto humano ou um objeto físico, enquanto alguns alfabetos, por exemplo, o hebraico e o rúnico, são formados por uma sequência de palavras específicas em vez de letras. O alfabeto hebraico começa assim: aleph (boi), beth (casa), gimel (camelo) e não A, B, G.”



     “Muitas associações simbólicas diferentes são conferidas à letra X. em países onde o alfabeto romano era utilizado, as pessoas analfabetas utilizavam esta letra em vez de suas assinaturas em documentos legais, como certificados de nascimento. Depois de terem feito sua marca, costumava-se beijá-la em sinal de sinceridade, razão pela qual usamos o X para representar um beijo. Nos numerais romanos, X é o número 10. na matemática ele denota multiplicação ou, em álgebra, uma variável em uma função. A última, indicando uma quantidade desconhecida, levou à criação de expressões como “Sr. X”, expressando a ideia de anonimato. O uso do X para garantir o anonimato também ocorre na votação. Em vez de ticar, colocar um X é marcar um erro. Nas estradas e em outros sinais, é um aviso de que algo é proibido ou foi cancelado, e é utilizado para demarcar pontos que se desejam encontrar em um mapa.


ANALFABETISMO E A PALAVRA FALADA
     Na moderna cultura ocidental, o analfabetismo em geral está ligado – erroneamente – à ignorância. Contudo, muitos grandes líderes espirituais, incluindo Mohammed, o mestre Zen Hui Neng e o sábio indiano Ramakrishna, foram analfabetos, indicando que sua direção e percepção intuitiva eram realidade divina, que não está baseada em palavras escritas. De certo modo, a escrita pode ser vista como uma forma rebaixada da fala, um símbolo de perda da presença e falta da palavra falada. Buda, Jesus e Sócrates não deixaram nenhuma obra escrita e muitos dos grandes mitos e culturas do mundo têm suas raízes em tradições orais e não escritas. Os linguistas identificaram cerca de 3 mil idiomas falados em uso no mundo atual, dos quais somente 100 são normalmente escritos.

terça-feira, 6 de março de 2012

A privataria tucana – Amaury Ribeiro Jr.

Editora: Geração Editorial
ISBN: 978-85-61501-98-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 344
Sinopse: Prepare-se, leitor, porque este, infelizmente, não é um livro qualquer.
A Privataria Tucana nos traz, de maneira chocante e até decepcionante, a dura realidade dos bastidores da política e do empresariado brasileiro, em conluio para roubar dinheiro público. Faz uma denúncia vigorosa do que foi a chamada Era das Privatizações, instaurada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso e por seu então Ministro do Planejamento, José Serra. Nomes imprevistos, até agora blindados pela aura da honestidade, surgirão manchados pela imprevista descoberta de seus malfeitos.
Amaury Ribeiro Jr. faz um trabalho investigativo que começa de maneira assustadora, quando leva um tiro ao fazer reportagem sobre o narcotráfico e assassinato de adolescentes, na periferia de Brasília. Depois do trauma sofrido, refugia-se em Minas e começa a investigar uma rede de espionagem estimulada pelo ex-governador paulista José Serra, para desacreditar seu rival no PSDB, o ex-governador mineiro Aécio Neves. Ao puxar o fio da meada, mergulha num novelo de proporções espantosas.

Serra e o martelo, uma relação amistosa e frequente a serviço da máxima de FHC: “vender tudo o que der para vender”


“Não é um riso aberto, caricatural, mas um sorriso quase íntimo, derramado para dentro. Observa-se um repuxar dos lábios, que expõem os dentes e esgarçam a pele das bochechas e do pescoço. É uma composição introspectiva, coadjuvada pelos olhos baixos, espreitando o martelo em sua descida vigorosa conduzido por sua mão direita. Quando se ouve o som da madeira contra a madeira, mais uma empresa pública foi vendida. A mão, a face e o sorriso pertencem a José Serra. A Light do Rio pertencia à Eletrobrás. Na foto histórica, os gestos e as emoções estão congelados, mas o patrimônio público moveu-se: passou a ser privado.
O leilão, no dia 21 de maio de 1996, dava continuidade ao programa federal de desestatização. Fernando Henrique Cardoso deflagrara o programa em 1995. Estreou com a venda da Excelsa, a companhia de eletricidade do Espírito Santo. E a mão de Serra também brandiu o martelo.
Nenhum político, mesmo os que privatizaram ou pretendem privatizar, recebe de bom grado a fama de privatizador. Mas, nos anos 1990, o que hoje é estigma era então condição inexorável para ser aceito na modernidade. O discurso tucano, hoje omisso quanto ao passado, possuía a arrogância dos donos da verdade. Mas está tudo registrado.
As lamúrias da revista Veja (edição de 03/05/1995) quanto à lentidão na venda das estatais receberam uma resposta rápida e reconfortante. O ministro José Serra, do Planejamento, anunciou “um ritmo mais veloz na venda das estatais” e encaixou as empresas de energia elétrica na lista das privatizáveis – prometeu e cumpriu, vibrando ele próprio o martelo na Excelsa, no mesmo ano, e na Light, no ano seguinte. E o presidente FHC expressou-se com tal ênfase que merece um parágrafo inteiro:
– É preciso dizer sempre e em todo lugar que este governo não retarda privatização, não é contra nenhuma privatização e vai vender tudo o que der para vender.”


“Independentemente do juízo que cada um possa fazer sobre a eficácia ou ineficácia do Estado ao gerir os bens públicos, ninguém precisa ser um inimigo do mercado para perceber que o modelo de privatização que assolou o Brasil nos anos FHC não foi, para ser leniente, o mais adequado aos interesses do país e do seu povo. Nem mesmo a Nossa Senhora Aparecida do fundamentalismo neoliberal, a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, teve o atrevimento de fazer o que foi feito na desestatização à brasileira. Nos anos 1980, Thatcher levou ao martelo as estatais inglesas, pulverizando suas ações e multiplicando o número de acionistas.
Contrapondo-se a essa “democratização”, o jeito tucano de torrar estatais envolveu “doação de empresas estatais, a preços baixos, a poucos grupos empresariais” (O Brasil privatizado – Aloysio Biondi).
Antes, porém, as estatais e seus servidores passaram a ser perseguidos e linchados diariamente nas manchetes. O Estado passou a ser o Grande Satã, semeando-se uma ira santa contra sua presença na economia e um fogo constante dirigido aos seus serviços. Seus erros foram escancarados e seus acertos, subtraídos. Era preciso preparar o clima para vender as estatais, fossem quais fossem. As pessoas precisavam entender que leiloar patrimônio público “seria um benefício” para todos. O Estado reduziria suas dívidas interna e externa e receberia um aporte de dólares que permitiria que se dedicasse somente à saúde, à educação e a um ou outro setor. E todos se livrariam daqueles trastes que não se sabia, afinal, por que ainda continuavam existindo. Na prática, a teoria acabou sendo outra. O torra-torra das estatais não capitalizou o Estado, ao contrário, as dívidas interna e externa aumentaram, porque o governo engoliu o débito das estatais leiloadas – para torná-las mais palatáveis aos compradores – e ainda as multinacionais não trouxeram capital próprio para o Brasil. Em vez disso, contraíram empréstimos no exterior e, assim, fizeram crescer a dívida externa. (Idem)
Para agravar o quadro, os cofres nacionais financiaram a aquisição das estatais e aceitaram moedas podres, títulos públicos adquiridos por metade do valor de face, na negociação.
Alguns cases clássicos do processo ajudam a esclarecer o que se passou. Na privatização da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) dos R$ 1,05 bilhão pagos pela maior siderúrgica da América Latina e marco da industrialização nacional no pós-guerra, R$ 1bilhão era formado de moedas podres. Nos cofres públicos só ingressaram, de verdade, R$ 38 milhões... E, como se o incrível habitasse o inacreditável, as moedas podres foram leiloadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. Nesta matrioshka*, na qual as aberrações brotam uma do interior da outra, o BNDES ainda financiou a aquisição das moedas podres com prazo de 12 anos para pagá-las. Na privatização da Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa), o governo de São Paulo, sob o PSDB de Mário Covas, demitiu dez mil funcionários e assumiu a responsabilidade pelos 50 mil aposentados da ferrovia! No Rio, o também tucano Marcelo Alencar realizou proeza maior: vendeu o Banerj para o Itaú por R$ 330 milhões, mas antes da privatização demitiu 6,2 mil dos 12 mil funcionários do banco estadual. Como precisava pagar indenizações, aposentadorias e o plano de pensões dos servidores, pegou um empréstimo de R$ 3,3 bilhões, ou seja, dez vezes superior ao que apurou no leilão. Na verdade, 20 vezes superior, porque o Rio só recebeu R$ 165 milhões, isto porque aceitou moedas podres, com metade do valor de face.
A temporada de bondades com dinheiro público ultrapassou os preços baixos, os financiamentos, as prestações em 12 anos e as moedas podres. Nos anos que antecederam a transferência das estatais para o controle privado, suas tarifas sofreram uma sequência de reajustes para que as empresas privatizadas não tivessem “de enfrentar o risco de protesto e indignação do consumidor”. No caso das tarifas telefônicas, aumentos de até 500% a partir de 1995 e, no caso da energia elétrica, de 150%. Tais custos ficaram com o Estado e o cidadão. Mas a cereja do bolo foram os empréstimos do BNDES. Quem adquiria uma estatal imediatamente se habilitava a contratar financiamentos oficiais com juros abaixo dos patamares do mercado. Comprada com moedas podres, a CSN foi contemplada com R$ 1,1 bilhão. E a Light, onde Serra bateu seu martelo, ganhou R$ 730 milhões. O resultado de tudo isso é que, em dezembro de 1998, quando já haviam sido leiloadas grandes empresas como a Vale, Embraer, Usiminas, Copesul, CSN, Light, Acesita e as ferrovias, havia um descompasso entre expectativa e realidade. Enquanto o governo FHC afirmava ter arrecadado R$ 85,2 bilhões no processo, o jornalista econômico Aloysio Biondi publicava no seu best‑seller O Brasil Privatizado que o país pagara para vender suas estatais. Este pagamento atingira R$ 87,6 bilhões, portanto R$ 2,4 bilhões a mais do que recebera. Reunindo sete itens que conseguiu calcular  –  vendas a prazo com dinheiro já contabilizado, mas fora dos cofres públicos; dívidas absorvidas; juros de 15% sobre dívidas assumidas; investimento nas estatais antes do leilão; juros sobre tais investimentos; uso de moedas podres e mais R$ 1,7 bilhão deixados nos cofres das estatais privatizadas – Biondi chegou ao seu valor. Mais cinco itens, entre eles custo de demissões e compromissos com fundos de pensão, considerados incalculáveis, não integram a coluna das despesas.
*Matrioshka: conjunto de bonecas típicas russas, de madeira pintada, que se sobrepõem umas às outras, encaixando-se.


“Um paraíso fiscal é, quase sempre, um pedaço de terra cercado por água e povoado por mais pessoas jurídicas do que por gente de carne e osso. É onde o dinheiro sujo, como ave migratória, pousa, repousa e segue adiante, com as impurezas originais já removidas. Lá, acontecem outras bizarrices: as empresas são do tamanho de uma caixa postal, e as contas bancárias ocultam seus titulares. São paraísos para o narcotráfico, o terrorismo, o tráfico de mulheres e o contrabando de armas. Lavam o dinheiro de todas as máfias e, também, aquele que provém da corrupção política. “A lavagem de dinheiro é a espinha dorsal do crime organizado”, garante o ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Hoje – diz – 70% do dinheiro lavado no país vem da corrupção e não mais do tráfico internacional de entorpecentes e do contrabando de armas e munição, como ocorria antigamente.”*
Desses centros financeiros mundiais, 38 são ilhas. É mais da metade dos países ou regiões autônomas que se dedicam à hospedagem vip da dinheirama de procedência desconhecida ou imprecisa. Os valores transitam por empresas off-shore, um termo que presta reverência aos velhos tempos dos corsários que saqueavam os mares e depositavam a pilhagem off‑shore ou fora da costa. Os tempos mudaram, mas os modos operantes continuam os mesmos.”
*: Artigo publicado no site Consultor Jurídico.


“O desconforto do assessor, que acabara de envelopar um relatório com os dados que evisceravam as movimentações financeiras do ex-caixa de campanha de José Serra e de Fernando Henrique Cardoso, tinha lá suas razões. Em suas quase 50 páginas, o documento revira as entranhas das atividades do ex-tesoureiro tucano. Mostra que a Off-shore Infinity Trading depositou US$ 410 mil em favor da Franton Interprises no MTB Bank, de Nova York. Dito desta maneira ninguém se dá conta do que estes muitos milhares de dólares significam, de onde vieram e para onde foram. É que os nomes das empresas servem como biombo para seus controladores. O homem atrás da Franton é Ricardo Sérgio de Oliveira. E agora se sabe que quem se esconde atrás da Infinity Trading é o megaempresário Carlos Jereissati, dono do grupo La Fonte, e irmão do cacique tucano e ex-senador Tasso Jereissati (PSDB/CE).
A conexão entre Infinity Trading e Jereissati ratifica, pela primeira vez, aquilo que sempre se suspeitou, mas que nunca havia sido comprovado: que o ex-tesoureiro das campanhas do PSDB recebeu propina de Jereissati, um dos vencedores no leilão da privatização da Telebrás. Por meio do consórcio Telemar, Jereissati adquiriu a Tele Norte Leste e passou a controlar a telefonia de 16 estados. O Telemar pagou R$ 3,4 bilhões pelo sistema, ágio de 1%, em 1998.
A comprovação de que Jereissati é o dono da Infinity Trading está estampada em documento oficial. Consta do Relatório 369, da Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda, também encaminhado à Justiça. Oculto até agora nos porões do Tribunal de Justiça de São Paulo, o relatório e outros papéis inéditos da CPMI do Banestado confirmam a vinculação. A Infinity Trading, de Jereissati, favoreceu a Franton, de Ricardo Sérgio, com dois depósitos. O primeiro, de 18 de janeiro de 2000, somou precisamente US$ 246.137,00. E o segundo, no total de US$ 164.085,00, aconteceu em 3 de fevereiro do mesmo ano. Sigiloso, o documento saiu das sombras depois que o senador Antero Paes de Barros (PSDB), presidente da CPMI do Banestado, foi instado pela Justiça a permitir o acesso aos papéis devido a uma ação de exceção da verdade* movida pela Editora Três contra Ricardo Sérgio, que processava a empresa e o autor deste livro por danos morais. Buscando evitar uma eventual ação da Polícia Federal, munida de ordem judicial, contra a CPMI do Banestado para apreender o relatório, o senador tucano não teve outra saída senão entregá-lo.”
*: Ação que possibilita ao acusado por crime de calúnia ou injúria comprovar que é verídica a conduta por ele atribuída à pessoa que se julga ofendida e o processou por isso.


“A trajetória de Ricardo Sérgio nos anos FHC, seu poder e sua audácia ao mover-se nos bastidores do poder tucano com frequência o aproximaram das grandes fortunas do país. Naquele ponto privilegiado e nebuloso em que o interesse particular prevalece sobre o público, ele articulou, manobrou e formatou os consórcios de empresas para arrematar estatais durante os anos dourados da privataria. Para Ricardo Sérgio, a vida muda para valer quando Clóvis Carvalho, futuro ministro da Casa Civil, apresenta-o a José Serra e Fernando Henrique Cardoso. É o ponto zero a partir do qual principia a construir sua saga de coletor de contribuições milionárias para o PSDB. Corria o ano de 1990 e Serra, candidato a deputado federal, estava com dificuldades para levantar dinheiro para a campanha. Ricardo Sérgio era o homem certo. Virou tesoureiro, papel de que também se incumbiria em 1994, na eleição de Serra ao Senado. Para Fernando Henrique, arrecadou dinheiro nas campanhas presidenciais de 1994 e 1998.
Sob FHC, o caixa de campanha, que já lidava com poderosos cifrões, passou a manusear quantias espetaculares. Mais ainda após sua indicação – por Serra – para dirigir a área internacional do Banco do Brasil. Desde o seu gabinete, articularia a sucção dos recursos dos fundos de pensão estatais – Previ, Petros, entre outros – para a ciranda das privatizações. Era o homem de Serra quem orquestrava a montagem de grupos para disputar os leilões e garantia o aporte do dinheiro do BB e dos fundos para cada consórcio. Nesta modalidade dois-em-um da privataria, o dinheiro público financiava a alienação das empresas públicas. Leiloadas as estatais, a gratidão expressava-se zelosamente nas campanhas eleitorais do PSDB.
Uma gratidão, porém, que extravasava o limite do estrito financiamento dos gastos eleitorais. E que promoveria um primeiro contato explícito entre Ricardo Sérgio e Jereissati. Em 1994, Jereissati entregou R$ 2 milhões a Ricardo Sérgio para incrementar o caixa de Serra. A soma teria sido paga em quatro ou cinco parcelas. Foi o que o empresário declarou à revista Veja, em março de 2001. No entanto, a prestação de contas de Serra ao TRE/SP contabilizou tão somente a entrada de um cheque de R$ 50 mil. E duas ajudas de serviço totalizando mais R$ 45 mil. Ao todo, portanto R$ 95 mil.
Entre a mão do empresário e o cofre da campanha, os R$ 2 milhões volatilizaram-se, chegando menos de cinco por cento ao destino final. Ignora-se onde a bolada se materializou mais tarde.
O que se sabe é que as declarações de Jereissati desencadearam um festival de bate-cabeças em 2002, ano eleitoral. O próprio empresário apareceu com um remake da versão anterior. Nesta reengenharia semântica, não teria doado R$ 2 milhões, mas somente R$ 700 mil, dos quais R$ 600 mil em serviço – pagara o aluguel do jatinho de Serra durante cinco meses. Apesar do remendo, o problema persistia: os R$ 600 mil também estavam ausentes da prestação de contas do PSDB. E complicou-se ainda mais. Foi quando Serra surgiu, então, brandindo a terceira versão: negou toda a revelação de Jereissati e acrescentou – pior – que não usara nenhum avião do empresário. O que era insatisfatório ficou ainda mais grave depois de uma checagem na documentação oficial da campanha: ali aparece o cheque 642487, da agência 0564 do Unibanco, no valor de R$ 50 mil. E nada mais.
A proximidade entre Jereissati e Ricardo Sérgio ficaria mais evidente em 1998, ano notável em que todo o sistema de telefonia do Brasil, a Telebrás, é vendido por pouco mais de R$ 22 bilhões. É uma quantia tão impressionante quanto aquela que a União investira na Telebrás nos dois anos e meio anteriores à privatização: R$ 21 bilhões.”


“O controle acionário da Vale foi vendido em maio de 1997, com direito a financiamento oficial subsidiado aos compradores e uso de moedas podres... Custou a bagatela de US$ 3,3 bilhões. Hoje, o mercado lhe atribui preço 60 vezes maior, ou seja, rondando os US$ 200 bilhões. A companhia foi privatizada de forma perversa, atribuindo-se valor zero às suas imensas reservas de minério de ferro, capazes de suprir a demanda mundial por 400 anos. Além disso, a matéria-prima registrou elevação substancial de preço na primeira década do século 21.”


“Mendonça de Barros liga para Ricardo Sérgio e explica que o Opportunity está com “um problema de fiança” para participar do leilão das teles. E propõe: “Não dá para o Banco do Brasil dar (a fiança)?”
– Acabei de dar – responde Ricardo Sérgio, que alcançou R$ 874 milhões para o consórcio de Dantas. E agrega, cometendo a frase síntese do processo de privatização à brasileira. “Nós estamos no limite da nossa irresponsabilidade.” E emenda outra, mais tosca e premonitória: “Na hora que der merda, estamos juntos desde o início.”
Vale relembrar um telefonema de FHC para Mendonça de Barros. Queria saber a quantas andava a preparação do leilão das teles. Recebe, como resposta, que “estamos com o quadro praticamente fechado”. À vontade, os dois comentam o tom apologético adotado pela mídia para saudar as privatizações, que catapultariam o Brasil ao concerto das grandes nações. Não era ingenuidade. Se, de um lado, os grandes conglomerados propagandeavam as benesses que a venda do patrimônio público traria ao país, de outro, sonegavam aos seus leitores, ouvintes e telespectadores a condição de integrante de consórcios que disputavam a aquisição das teles.
– A imprensa está muito favorável, com editoriais – comenta Mendonça de Barros.
– Está demais, né – diz FHC. – Estão exagerando até... – acrescenta, mordaz com seus áulicos midiáticos.”


“Desde que passou a integrar o clã dos Serra, os horizontes do primo Preciado expandiram-se consideravelmente. Casado com uma prima em primeiro grau do ex-governador de São Paulo, Preciado arrebatou vantagens bancárias distantes das que arrebatariam mortais comuns, brasileiros ou espanhóis. Ou você, leitor, obteria, munido somente de sua integridade e seus belos olhos, um abatimento de seu débito com o Banco do Brasil de R$ 448 milhões para irrisórios R$ 4,1 milhões? Uma redução amiga de 109 vezes o valor da pendência, decididamente, não é para qualquer bico. Mas para bico de tucano, com certeza é...”


“Devendo milhões ao Banco do Brasil, com suas empresas arruinadas ou à beira da bancarrota, Gregório Marín Preciado é uma carta fora do baralho. Certo? Nada disso. Acontece que o empreendedor, primo e sócio de Serra, não é homem de se intimidar com pouca coisa.
Quando se abriu a porteira dourada dos grandes negócios das privatizações na Era FHC, Preciado, num estalar de dedos, transmutou-se em player global para jogar o jogo pesado da privataria. E foi às compras. Representante da empresa Iberdrola, da Espanha, montou o consórcio Guaraniana, que adquiriu três estatais de energia elétrica: a Coelba, da Bahia; a Cosern, do Rio Grande do Norte; e a Celpe, de Pernambuco.
Parece mágica, mas não é. É algo bem mais soturno, movido não pela mão invisível do mercado, mas pela mão onipresente do ex-tesoureiro de Serra e de FHC, Ricardo Sérgio de Oliveira que, no exercício desmesurado do seu cargo, obrigou o Banco do Brasil e a Previ, a caixa de previdência dos funcionários do BB, dois lugares onde dava as cartas e jogava de mão, a entrar na dança de Preciado.”


“Em 2008, quando a empresa de Miami tornou-se novamente notícia devido à repercussão da Satiagraha, que resultou na prisão de Dantas, Verônica Serra distribuiu nota à imprensa negando ser sócia da Decidir. A filha do governador dizia que apenas fazia parte do conselho da Decidir, aberta, de acordo com ela mesma, com o capital do Citibank e do Opportunity.
Sustentava que sua xará Verônica Dantas “foi indicada pelo CVC Opportunity para representá-lo no conselho de administração da Decidir. Não conheço Verônica Dantas, nem pessoalmente, nem de vista, nem por telefone, nem por e‑mail. Ela nunca participou de nenhuma reunião de conselho da Decidir – todas ocorriam mensalmente em Buenos Aires. O Citibank VentureCapital com sede em NY é quem mantinha o CVC Opportunity informado sobre a Decidir”.
A filha do ex-governador afiançava ainda que a Decidir sempre foi sediada em Buenos Aires e que no auge da bolha da internet foi aberta uma subsidiária em Miami. “Eu não tenho nenhuma ligação com a empresa desde o primeiro semestre de 2001”, dizia ainda na nota.
E o que este livro tem de novo a acrescentar sobre a Decidir? Documentos, é claro, obtidos de forma lícita, que esclarecem de vez a saga da sociedade entre as Verônicas. Os papéis comprovam que Verônica mentiu várias vezes em sua nota. A empresa não fechou as portas, Verônica não deixou a empresa e o dinheiro do Opportunity e do Citibank aplicado na firma também nunca esteve na Argentina. Após cancelar seu registro de funcionamento no Departamento de Comércio da Flórida em 2001, a Decicir passa a ter outro endereço. Dá para adivinhar?
As Ilhas Virgens Britânicas, é claro, e mais especificamente para o Citco Building, o velho navio pirata que ajudou a amoitar o dinheiro da propina das privatizações. A Decidir é transformada em offshore e rebatizada como Decidir International Limited. Não se trata de uma estratégia de investimento no Caribe. A legislação do paraíso fiscal caribenho veda transações financeiras em seu próprio território. A finalidade das offshores é a de propiciar transações financeiras intercontinentais. Como ensinam os manuais internacionais de combate aos crimes financeiros, as offshores funcionam como empresas-ônibus, que transportam dinheiro, quase sempre sem origem justificada, entre contas bancárias, um artifício que visa apenas dificultar as investigações fiscais e policiais e de outras autoridades que verificam atividades financeiras provenientes da corrupção, do narcotráfico e do terrorismo. E qual é a função da offshore Decidir? Internar dinheiro. Onde? Na empresa Decidir do Brasil, que funciona no escritório da filha do ex-governador, localizado na Rua Renato Paes de Barros, no bairro Itaim Bibi, em São Paulo (SP). Documento da Junta Comercial de São Paulo revela como a empresa injeta de uma vez R$ 10 milhões, em 2006, na Decidir do Brasil, que muda de nome para Decidir.com.Brasil S.A. Como isto ocorreu? Simplesmente, a offshore de Verônica Serra adquiriu 99% das ações – correspondentes, na época, aos US$ 5 milhões investidos por Dantas e o Citicorp na empresa homônima de Miami – da empresa Decidir Brasil.com.br. É exatamente o que você está lendo: surge na nossa crônica uma terceira “Decidir”...Não é falta de imaginação. Ao contrário, trata-se de uma demonstração inegável de criatividade na tortuosa arte da esquiva. 
Além de funcionar no escritório de Verônica Serra na Rua Dr. Renato Paes de Barros, bairro do Itaim Bibi, em São Paulo, a Decidir brasileira tem como vice-presidente a própria filha do governador.”


“De acordo com documentos obtidos em cartórios, a filha do governador fecha outro negócio, este mais interessante: compra de terceiros, em setembro de 2001, por R$ 475 mil, a mansão em que Serra mora, no bairro Alto de Pinheiros, área nobre de São Paulo. Um excelente negócio para Serra, que continua morando no mesmo endereço. Mas de onde vem esse dinheiro? Não se sabe. Mas Verônica tenta nos ajudar: a fortuna lhe sorriria por obra de ganhos de capital no exterior. À revista IstoÉ Dinheiro (sempre a mesma publicação) ela disse que a chave do cofre traria o nome de Patagon, uma companhia argentina de internet por meio da qual teria levantado cerca de R$ 1 milhão como resultado de aplicações financeiras.”


“A papelada cedida ao autor pelo jornalista Gilberto Nascimento evidencia que o então governador paulista José Serra contratou, sem licitação, por meio da Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo (Prodesp), a empresa Fence Consultoria Empresarial. A Fence é propriedade do ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI), o legendário coronel reformado do Exército Ênio Gomes Fontelle, 73 anos, conhecido na comunidade de informações como “Doutor Escuta”.
A empresa do “Doutor Escuta” foi contratada por R$ 858 mil por ano “mais extras emergenciais” – pagos pelo contribuinte – no dia 10 de julho de 2008. Vale lembrar que nessa época a vida particular do ex-governador de Minas Gerais Aécio Neves estava sendo espreitada por arapongas no Rio de Janeiro, onde a Fence está sediada. Talvez isso explique por que a Prodesp tenha invocado “inelegibilidade” para contratar a empresa do araponga sem licitação.
Em outras palavras, a Prodesp afirma que o “Doutor Escuta” não tinha concorrentes à altura para realizar o serviço. Conforme o contrato, entre outros serviços, a Fence é responsável pela “detecção de incursões eletrônicas nas instalações da Prodesp ou em outras localizações de interesse da empresa”. Isto significa que a empresa tem como acessar os dados pessoais de funcionários públicos, de juízes e até de parlamentares por uma simples razão: a Prodesp é a responsável não só pela folha de pagamento, mas também por todos os serviços de informação do Estado. Ou seja, o contrato concede à firma do “Doutor Escuta” o direito de invadir esses dados na hora que bem entender. Até o fechamento deste livro (final de junho) o governador Geraldo Alckmin (PSDB) mantinha o contrato com a empresa de Fontelle.
E o que o delegado federal e ex-deputado, também federal, Marcelo Itagiba, tem a ver com isso? A resposta quem fornece é o próprio currículo do coronel. O “Doutor Escuta” jacta-se de haver integrado o seleto grupo de arapongas que Serra, quando era ministro da Saúde de FHC, montou na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Sob a batuta de Itagiba, além do coronel Fontelle, estavam ainda mais dois personagens destas páginas. Um deles, o ex-agente do SNI Fernando Luiz Barcellos, de alcunha “agente Jardim”. E… adivinhe quem mais! Sim, ele mesmo, o delegado Onézimo das Graças Sousa, aquele mesmo frequentador do restaurante Fritz, da confeitaria Praline e das páginas da Veja e dos jornalões em 2010.
O ninho de arapongas da Anvisa foi desativado pelo próprio Serra, o que aconteceu após a imprensa denunciar que a vida privada de servidores do Ministério da Saúde e de desafetos do então ministro – entre eles seu colega, o ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, falecido em 2010 – estaria sendo esquadrinhada. Na época, o argumento de Serra para a arregimentação de arapongas foi o medo. Receava ser grampeado por representantes das indústrias de medicamentos, que teriam sido contrariados por medidas do governo.
Coincidentemente, o “Doutor Escuta” e os demais pássaros foram contratados em 2002, quando partidários do PFL (atual DEM) denunciaram a suposta vinculação de setores do governo do PSDB com os grampos fatais à candidatura pefelista à Presidência da República. Teriam levado a Polícia Federal a descobrir que a empresa Lunus, de propriedade da candidata Roseana Sarney e de seu marido Jorge Murad, guardava R$ 1,34 milhão em seu cofre. Suspeita-se que o dinheiro alimentaria a campanha do PFL, implodida ali mesmo pela apreensão.”


“Toda essa simulação para internar dinheiro sujo certamente teria fim com uma providência: a proibição pelo governo da entrada de offshores em sociedades com firmas do Brasil. Só deveria ser permitido o ingresso nas empresas nacionais de companhias estrangeiras que identificassem o nome de seus verdadeiros donos em seus balanços contábeis. É uma medida simples que certamente ajudaria a conter o grande esquema de lavagem do dinheiro e o assalto aos recursos públicos.”


“Como já foi evidenciado, todos os dados que alimentam estas páginas foram coletados de forma legal em cartórios de títulos e documentos, juntas comerciais do país e do exterior e em processos judiciais diversos. Comparar as datas serve para constatar, por exemplo, a inutilidade das declarações de renda do vice-presidente do PSDB e de familiares de Serra – vazadas por funcionário da agência da Receita Federal em Mauá, na região do ABC paulista – para a produção deste livro. Segundo investigação da PF e da Corregedoria da Receita Federal, os sigilos dos dirigentes tucanos e familiares de Serra foram acessados irregularmente nos anos de 2007 e 2008. Acontece que este livro detalha exclusivamente operações do período que vai de 1998 a 2003. Ou seja, as movimentações verificadas durante e logo após as privatizações. Por isso é tão importante cotejar data com data. “Eu falo para os chefes do meu jornal que as datas não batem, que a história não bate, mas a verdade não lhes interessa”, ouvi de um colega de um dos jornalões durante a cobertura da crise.”


“Nos dias anteriores ouvira relatos de jornalistas e mesmo de tucanos de que o Eduardo “Sombra” Jorge havia transformado a cobertura midiática da quebra do sigilo numa grande ópera bufa, em que ele era o mais divertido dos personagens. Com ironia, colegas de imprensa diziam que, de posse de informações privilegiadas do inquérito, o prócer do PSDB travestira-se de pauteiro e editor de veículos dos quais arrancara indenizações milionárias em ações de danos morais. EJ teria iniciado um verdadeiro leilão em trocadas informações privilegiadas. Não pedia dinheiro ou algum benefício pessoal. Apenas exigia determinado espaço, chegando a definir qual seria a linha editorial da matéria. Se determinado jornal não concordasse com suas exigências, simplesmente transferia o “furo” ao concorrente. Pareceu algo simplesmente genial. EJ conseguira a façanha tão desejada pelos blogs: levar a mídia ao papel ridículo que se propôs a assumir no pleito. Além de arrancar fábulas de dinheiro dos jornais e revistas que no passado haviam publicado reportagens que considerou caluniosas, EJ tinha o prazer de aumentar seu poder de vingança, ao assumir o controle editorial, mesmo que momentâneo, das páginas de política. E, de sobra, irritava Serra que o havia deixado de lado durante a campanha eleitoral. Afinal, Serra acionara seus arapongas com o objetivo inverso, o de impedir que as denúncias viessem a público. Acabou perdendo o controle da situação devido aos conflitos internos do PSDB e ao fogo amigo petista, que colocaram o tema em pauta. O sinal de que o candidato tucano não queria confusão com o assunto foi sinalizado pelo próprio Serra ao autor. Na reta final da campanha, quando meu nome frequentava as manchetes, Márcio Aith, assessor de imprensa do tucano, tentou marcar um encontro comigo. Escaldado com a arapongagem serrista, rejeitei a ideia. “Não é nada disso. O Serra só quer dizer que não tem nada contra você”, mandou Aith dizer.”


“Depois desta jornada pelos pântanos da política em que todos são vilões e o Brasil é a vítima, acho importante encerrar a narrativa com algumas observações. A primeira delas é que o país e suas instituições não têm o direito de continuar fazendo de conta que não viram a rapinagem organizada que devastou os bens do Estado nos anos 1990 e começo da década seguinte. E que serviu para tornar os ricos mais ricos.
Varrer a sujeira para debaixo do tapete, como se fez tantas vezes, não é mais possível. Não há tapete suficiente para acobertar tanto lixo. O Brasil, que escondeu a escravidão e ainda oculta a barbárie de suas ditaduras, não pode negar aos brasileiros a evisceração da privataria. Quem for inocente que seja inocentado, quem for culpado que expie sua culpa.
Se isso não acontecer, isto é, se a memória do saque não se tornar um patrimônio dos brasileiros, o país poderá repetir esta história, mais cedo ou mais tarde. Não é demais reparar que, na América Latina, estamos atrasados nestas providências. No México, o ex-presidente Carlos Salinas de Gortari – espécie de santo padroeiro da privataria latina – crivado de denúncias de corrupção, saltou em seu jatinho e fugiu para Nova York. Na Bolívia, após privatizar até a água, que entregou à francesa Suez-Lyonnaise des Eaux e à norte-americana Betchel, o “modernizador neoliberal” Gonzalo Sánchez de Lozada foi ejetado do seu trono aos gritos de “assassino” e voou para Miami.
Tripulando uma razia privatizante que liquidou até mesmo estatais que davam lucro e um processo de concentração de renda que desempregou 30% da população ativa, Carlos Menen virou sinônimo de azar. Na Argentina, as pessoas dizem “Mendéz” para não pronunciar seu nome receando uma catástrofe. No Peru, após aprovar sua segunda reeleição, Alberto Fujimori evadiu-se do país sob acusação de surrupiar US$ 15 milhões do erário e de autorizara execução de dissidentes. Condenado a 25 anos de prisão, Fujimori admitiu, depois, ter concedido propinas – “briberization”, como diria Joseph Stiglitz – o que somou à sua pena mais alguns anos de cadeia.
Para quem entende a desigualdade social como um valor em si mesmo e o Estado do Bem-Estar Social como um trambolho no caminho da realização plena do indivíduo, Salinas de Gortari, Sánchez de Losada, Menem, Fujimori e similares fizeram o que tinham que fazer. Foram flagrados – uma lástima do seu ponto de vista – mas não se pode fazer maiores reparos à sua ação política em termos de coerência. Resta saber se quem interpreta o Estado Mínimo como uma perversidade ineficaz – aqui ou em qualquer outro lugar – está disposto a fazer valer sua condição cidadã e exigir da Polícia, do Fisco, do Ministério Público e da Justiça que cumpram a sua parte. Se jogar uma luz sobre este passado ainda imerso nas sombras, este livro, que termina aqui, terá cumprido a sua parte. E tudo o que houve terá valido a pena.”