Editora: Clube de Literatura Clássica
Opinião: ★★★★★
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Tradução: Machado de Assis
ISBN: 978-65-8703-638-0
Páginas: 610
Sinopse: Ver Parte
I
“Em certos pontos, a certas horas, contemplar o mar é sorver um veneno. É o que acontece, às vezes, olhando para uma mulher.”
“O corpo humano é talvez uma simples aparência, escondendo a nossa
realidade, e condensando-se sobre a nossa luz ou sobre a nossa sombra. A
realidade é a alma. A bem dizer, o rosto é uma máscara. O verdadeiro homem é o
que está debaixo do homem. Mais de uma surpresa haveria se se pudesse vê-lo
agachado e escondido debaixo da ilusão que se chama carne. O erro comum é ver
no ente exterior um ente real. Tal criaturinha, por exemplo, se pudéssemos
vê-la como realmente é, em vez de moça, mostrar-se-ia pássaro.”
“Neste mundo o lindo é o necessário. Há mui poucas funções tão
importantes como esta de ser encantadora. Que desespero na floresta se não
houvesse o colibri! Exalar alegrias, irradiar venturas, possuir no meio das
coisas sombrias uma transudação de luz, ser o dourado do destino, a harmonia, a
gentileza, a graça, é favorecer-te. A beleza basta ser bela para fazer bem. Há
criatura que tem consigo a magia de fascinar tudo quanto a rodeia; às vezes nem
ela mesmo o sabe, e é quando o prestígio é mais poderoso; a sua presença
ilumina, o seu contato aquece; se ela passa, ficas contente; se para, és feliz;
contemplá-la é viver; é a aurora com figura humana; não faz nada, nada que não
seja estar presente, e é quanto basta para edenizar o lar doméstico; de todos
os poros sai-lhe um paraíso; é um êxtase que ela distribui aos outros, sem mais
trabalho que o de respirar ao pé deles. Ter um sorriso que — ninguém sabe a
razão — diminui o peso da cadeia enorme arrastada em comum por todos os
viventes, que queres que te diga? É divino. Déruchette tinha esse sorriso. Mais
ainda, era o próprio sorriso. Há alguma coisa mais parecida que o nosso rosto,
é a nossa fisionomia; e outra mais parecida que a nossa fisionomia, é o nosso
sorriso. Déruchette, risonha, era Déruchette.”
“Cem anos justos, 1707-1807, separam o primeiro barco de Papin do
primeiro navio de Fulton. A Galeota de Lethierry era decerto um
progresso sobre aqueles dois esboços, mas era esboço também. Nem por isso
deixava de ser uma obra-prima. Todo embrião de ciência tem este duplo aspecto:
monstro, como feto; maravilha, como germe.”
“As
novidades têm contra si o ódio de todos; o menor erro compromete-as.”
“Zuela ia comer, algumas vezes, à Pousada João. O Sr. Clubin conhecia-o
de vista.
E o
Sr. Clubin não era soberbo; não se desprezava de conhecer de vista um tratante.
Às vezes chegava mesmo a conhecê-los de fato, dando-lhes a mão em plena rua.
Falava inglês com o smogler e engrolava o espanhol com o contrabandista.
A
este respeito tinha ele as seguintes máximas:
—
Pode-se adquirir o bem pelo conhecimento do mal. — O monteiro conversa
proveitosamente com o ladrão de caça. — O piloto deve sondar o pirata; o pirata
é um escolho. — Trata de provar um velhaco como o médico prova o veneno.
Não
tinha réplica. Todos davam razão ao Capitão Clubin. Era aprovado por não ter
escrúpulos tolos. Quem ousaria dizer mal dele? Tudo quanto fazia era para
bem do serviço. Nele tudo era simples. Nada podia comprometê-lo. O cristal
querendo manchar-se não pode. Esta confiança era a justa recompensa de uma
longa honestidade e é essa a excelência das reputações firmes. Fizesse o que
fizesse o Sr. Clubin, todos lhe viam malícia no sentido da virtude; tinha
adquirido a impecabilidade; e de mais a mais dizia-se que era muito esperto;
deste ou daquele encontro que com outra pessoa seria suspeito, a sua probidade
saía sempre com um relevo de habilidade. A fama de habilidade combinava-se
harmoniosamente com a fama de ingenuidade, sem contradição alguma. Ingênuo hábil
é coisa que existe. É uma das variedades do homem honesto e das mais
apreciadas. O Sr. Clubin era desses homens que, encontrados em conversa íntima
com um larápio ou um bandido, são recebidos, compreendidos, e mais respeitados,
e têm ainda por si o piscar de olhos satisfeitos da estima pública.”
“Em
muitos pontos do litoral inglês e francês o contrabando estava em boa harmonia
com o negócio lícito. Entrava na casa de mais de um financeiro de alta classe,
às escondidas, é verdade; e dilatava-se subterraneamente na circulação
comercial e por todas as vias de indústria. Negociante em público,
contrabandista às escondidas, eis a história de muitas fortunas. Seguin dizia
isto de Bourguin. Bourguin dizia isto de Seguin. Não garantimos o dito de
ambos. Talvez se caluniassem um ao outro. Fosse como fosse, o contrabando
perseguido pela lei estava, sem contestação, muito aparentado no comércio.
Carteava-se com a gema da sociedade. A caverna onde Maudrin acotovelava outrora
o Conde de Charolais era honesta exteriormente e tinha uma fachada
irrepreensível para o lado da sociedade.
Daqui
resultaram muitas conveniências necessariamente mascaradas. Tais mistérios
exigiam sombra impenetrável. Um contrabandista sabia de muitas coisas e devia
guardar segredo; a sua lei era uma fé inviolável e rígida. A primeira qualidade
de um trapaceiro era a lealdade. Sem discrição não há contrabando. Havia o
segredo da fraude como há o segredo da confissão.
Esse
segredo era imperturbavelmente guardado. O contrabandista jurava não dizer nada
e mantinha a sua palavra. Ninguém inspirava mais confiança que um
contrabandista. O juiz alcaide de Oyarzun apanhou um dia um contrabandista e
pôs-lhe a questão para obrigá-lo a declarar quem era o seu caixa de fundos. O
contrabandista não confessou quem era o caixa de fundos. O caixa de fundos era
o juiz alcaide. Dos dois cúmplices, juiz e contrabandista, o primeiro devia,
para cumprir a lei aos olhos de todos, ordenar a tortura, à qual o segundo
resistia para cumprir o juramento.
Os
dois mais famosos contrabandistas que andavam em Plainmont naquela época eram
Blasco e Blasquito. Eram tocaios. Parentesco espanhol e católico que consiste
em ter o mesmo patrão no paraíso, coisa não menos digna de consideração que ter
o mesmo pai na terra.”
“Devem
recordar-se que isto remonta à época em que os camponeses guernesianos
acreditavam que o mistério do presépio era repetido todos os anos pelos bois e
pelos asnos; época em que ninguém, na noite de Natal, ousaria penetrar em uma
estrebaria com receio de encontrar os animais ajoelhados. (...)
Houve
sempre quem acreditasse em congressos de feitiçaria, e alguns desses crédulos
altamente colocados. César consultava Sagana, e Napoleão Mademoiselle
Lenormand. Há consciências tão inquietas que chegam a procurar indulgências do
diabo. “Faça-o Deus, mas não o desfaça Satanás”, era uma das orações de Carlos
V.
Há
espíritos mais timoratos ainda. Esses chegam a persuadir-se de que o mal pode
ter razão contra eles. Ser irrepreensível para com o demônio é uma das suas
preocupações. Daí vêm as práticas religiosas voltadas para a imensa malícia
obscura. É uma carolice como qualquer outra. Os crimes contra o demônio existem
em certas imaginações doentias; violar a lei do inimigo é uma coisa que faz
sofrer os estranhos casuístas da ignorância; há escrúpulos para com as regiões
das trevas. Crer na eficácia da devoção aos mistérios do Brocken e de Armuyr,
imaginar que se peca contra o inferno recorrendo a penitências quiméricas por
infrações quiméricas, confessar a verdade ao espírito da mentira; fazer o mea
culpa diante do pai da Culpa, confessar-se em sentido inverso, tudo isto
existe ou existiu. Os processos de magia provam-no em cada uma de suas páginas.
Vai até esse ponto o sonho humano. Quando o homem começa a assustar-se, não
para mais. Sonha culpas imaginárias, sonha purificações imaginárias, e faz
limpar a sua consciência com a vassoura das feiticeiras.”
“A
nobreza conquista-se pela espada e perde-se pelo trabalho. Conserva-se pela
ociosidade. Não fazer coisa alguma é viver fidalgamente; quem não trabalha é
reverenciado. Ofício faz decair. Na França de outrora só se excetuavam os
operários de vidro. Sendo glória para os fidalgos esvaziar garrafas, fazê-las
não era desonra alguma. Nas ilhas da Mancha, assim como na Grã-Bretanha, quem
quiser ser nobre deve conservar-se opulento. Um workman não pode ser gentleman.
Ainda que o tenha sido, já não o é mais.”
“O mar
e o vento formam um composto de forças. O navio é um composto de máquinas. As
forças são máquinas infinitas, as máquinas são forças limitadas. Entre os dois
organismos, um inesgotável, outro inteligente, trava-se o combate que se chama
navegação.
Uma
vontade no mecanismo faz contrapeso ao infinito. Também o infinito encerra um
mecanismo. Os elementos sabem o que fazem e para onde vão. Não há força cega.
Cabe ao homem espreitar as forças e descobrir-lhes o itinerário.
Enquanto
se não descobre a lei, prossegue a luta, e nessa luta a navegação a vapor é uma
espécie de vitória perpétua que o gênio humano vai ganhando a todas as horas do
dia em todos os pontos do mar. A navegação a vapor é admirável porque
disciplina o navio. Diminui a obediência ao vento e aumenta a obediência ao
homem.”
“A
virtude, para ele, era coisa que esmagava. Passou a vida a ter vontade de
morder aquela mão que lhe tapava a boca.
E
querendo mordê-la foi obrigado a beijá-la.
Ter
mentido é ter sofrido. O hipócrita é um paciente na dupla acepção da palavra;
calcula um triunfo e sofre um suplício. A premeditação indefinida de uma ação
ruim, acompanhada por doses de austeridade, a infâmia interior temperada de
excelente reputação, enganar continuadamente, não ser jamais quem é, fazer ilusão,
é uma fadiga. Compor a candura com todos os elementos negros que trabalham no
cérebro, querer devorar os que o veneram, acariciar, reter-se, reprimir-se,
estar sempre alerta, espiar constantemente, compor o rosto do crime latente,
fazer da disformidade uma beleza, fabricar uma perfeição com a perversidade,
fazer cócegas com o punhal, pôr açúcar no veneno, velar na franqueza do gesto e
na música da voz, não ter o próprio olhar, nada mais difícil, nada mais
doloroso. O odioso da hipocrisia começa obscuramente no hipócrita. Causa
náuseas beber perpetuamente a impostura. A meiguice com que a astúcia disfarça
a malvadez repugna ao malvado, continuamente obrigado a trazer essa mistura na
boca, e há momentos de enjoo em que o hipócrita vomita quase o seu pensamento.
Engolir essa saliva é coisa horrível. Ajuntai a isto o profundo orgulho.
Existem horas estranhas em que o hipócrita se estima. Há um eu desmedido no
impostor. O verme resvala como o dragão e como ele retesa-se e levanta-se. O
traidor não é mais que um déspota tolhido que não pode fazer a sua vontade senão
resignando-se ao segundo papel. É a mesquinhez capaz da enormidade. O hipócrita
é um titã-anão.”
“Tudo
serve onde não há abundância.”
“Basta
começar para ver como é difícil concluir. Todo começo resiste. O primeiro passo
que se dá é um revelador inexorável. A dificuldade que se toca fere como um
espinho.”
“As
obras da natureza, não menos supremas que as obras do gênio, contêm o absoluto
e impõem-se. O inesperado delas faz-se obedecer imperiosamente pelo espírito;
sente-se uma premeditação que fica fora do homem, e elas não são mais
surpreendentes do que quando fazem subitamente sair o delicado do terrível.”
“Um
afago prévio tempera as traições.”
“Os
teimosos são os sublimes. Quem é apenas bravo tem só um assomo, quem é apenas
valente tem só um temperamento, quem é apenas corajoso tem só uma virtude; o
obstinado na verdade tem a grandeza. Quase todo o segredo dos grandes corações
está nesta palavra: perseverando. A perseverança está para a coragem como a
roda para a alavanca; é a renovação perpétua do ponto de apoio. Esteja na terra
ou no céu o alvo da vontade, a questão é ir a esse alvo; no primeiro caso, é
Colombo, no segundo caso, é Jesus. Insensata é a cruz; vem daí a sua glória.
Não deixar discutir a consciência, nem desarmar a vontade, é assim que se obtêm
o sofrimento e o triunfo. Na ordem dos fatos morais o cair não exclui o pairar.
Da queda sai a ascensão. Os medíocres deixam-se perder pelo obstáculo
especioso; não assim os fortes. Perecer é o talvez dos fortes, conquistar é a
certeza deles. (...)
A
perda das forças não esgota a vontade. Crer é apenas a segunda potência; a
primeira é querer; as montanhas proverbiais que a fé transporta nada valem ao
lado do que a vontade produz.”
“Existe
a pressão da sombra.
Inexprimível
teto de tênebras; alta obscuridade sem mergulhador possível; luz mesclada à
obscuridade, mas uma luz vencida e sombria; claridade reduzida a pó; é semente?
é cinza? milhões de fachos, claridade nula; vasta ignição que não diz o seu
segredo, uma difusão de fogo em poeira que parece um bando de faíscas paradas,
a desordem do turbilhão e a imobilidade do sepulcro, o problema oferecendo uma
abertura de precipício, o enigma desvendando e escondendo a sua face, o
infinito mascarado com a escuridão, eis a noite. Pesa no homem esta
superposição.
Esse
amálgama de todos os mistérios a um tempo, do mistério cósmico e do mistério
fatal, abate a cabeça humana.
A
pressão da sombra atua em sentido inverso nas diferentes espécies de almas. O
homem, diante da noite, reconhece-se incompleto. Vê a obscuridade e sente a
enfermidade. O céu negro é o homem cego. Entretanto, com a noite, o homem
abate-se, ajoelha-se, prosterna-se, roja-se, arrasta-se para um buraco, ou
procura asas. Quase sempre quer fugir a essa presença informe do desconhecido.
Pergunta
o que é; treme, curva-se, ignora; às vezes quer ir lá.
Aonde?
Lá.
Lá?
O que é? Que há lá?
Essa
curiosidade é evidentemente a das coisas defesas, porque para aquele lado todas
as pontes à roda do homem estão cortadas. Mas o desejo atrai, porque é golfão.
Onde não vai o pé, vai o olhar, onde o olhar para, pode continuar o espírito.
Não há homem que não tente, por mais fraco e insuficiente que seja. O homem,
segundo a sua natureza, investiga ou espera diante da noite. Para uns é um
rechaçamento, para outros é uma dilatação. O espetáculo é sombrio. Mescla-se a
ele o indefinível.
Vai
a noite serena? É um fundo de sombra. Vai tempestuosa? É um fundo de fumaça. O
ilimitado recusa-se e oferece-se ao mesmo tempo, fechado à experiência, aberto
à conjetura. Infinitas picadas de luz tornam mais negra a obscuridade sem
fundo. Carbúnculos, cintilações, astros. Presenças verificadas no Ignorado;
tremendos reptos para ir tocar esses clarões. São estacas da criação no
absoluto; são marcos de distância lá onde já não há distância; é uma espécie de
numeração impossível, e todavia real, do canal das profundezas. Um ponto
microscópico que fulge, depois outro, mais outro, mais outro; é o
imperceptível, é o enorme. Essa luz é um foco, esse foco é uma estrela, essa
estrela é um sol, esse sol é um universo, esse universo é nada. Todo o número é
zero diante do infinito.
Esses
universos, que nada são, existem. Verificando-os, sente-se a diferença que vai
entre ser nada, e não ser.
O
inacessível ligado ao inexplicável, eis o céu.”
“Quando
Deus quer, excede no execrável.
A
razão desta vontade é o medo do pensador religioso.”
“Mess
Lethierry estava reduzido à função maquinal de viver.
Os
homens mais valentes, privados da sua ideia realizável, atingem a isto. É esse
o efeito das existências esvaziadas. A vida é a viagem, a ideia é o itinerário.
Sem itinerário, para-se. Perdido o alvo, morre a força. A sorte é um obscuro
poder discricionário. Pode bater com as suas vergastas o nosso ser moral. O
desespero é quase a destituição da alma. Só os grandes espíritos resistem. E
ainda assim...”
“Ser
impotente é uma força. Diante das nossas duas grandes cegueiras, o destino e a
natureza, é na sua impotência que o homem acha o ponto de apoio, a oração.
O
homem socorre-se do próprio medo; pede auxílio ao pavor; a ansiedade aconselha
o ajoelhar.
A oração,
enorme força própria da alma, é da mesma espécie que o mistério. A oração
dirige-se à magnanimidade das trevas; a oração contempla o mistério com os
olhos da sombra, e, diante da fixidez poderosa desse olhar súplice, sente-se um
desarmamento possível no ignoto.”