Editora: Clube de Literatura Clássica
Opinião: ★★★★★
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Tradução: Machado de Assis
ISBN: 978-65-8703-638-0
Páginas: 610
Sinopse: A
riqueza imagística e formal de sua lírica fez de Victor Hugo o maior poeta
romântico francês, também principal mentor do Romantismo em seu país e um de
seus mais importantes prosadores. Em 1886, escreveu o romance “Os Trabalhadores
do Mar”, considerado por muitos críticos e leitores como sua verdadeira
obra-prima.
“A
última queima de feiticeiros em Guernesey foi em 1747, sendo teatro do
espetáculo a praça de Bordage, que, de 1565 a 1700, viu queimarem-se onze
feiticeiros. Em geral esses culpados confessavam seus crimes: eram para isso
ajudados pela tortura.
A
praça Bordage prestou serviços à sociedade e à religião. Queimaram-se aí os
heréticos. No tempo de Maria Tudor, entre outros huguenotes, queimou-se uma mãe
e duas filhas: a mãe chamava-se Perrotine Massy. Uma das filhas estava grávida
e teve o sucesso sobre o braseiro.
A
crônica diz: “Arrebentou-lhe o ventre”. Saiu desse ventre um menino vivo; o
recém-nascido rolou na fogueira, um tal House apanhou-o. O bailio, Hélier
Grosselin, bom católico, mandou atirar a criança ao fogo.”
“Os
vulcões arrojam pedras, as revoluções homens. Espalham-se famílias a grandes
distâncias, deslocam-se os destinos, separam-se os grupos dispersos às
migalhas; cai gente das nuvens, uns na Alemanha, outros na Inglaterra, outros
na América. Pasmam os naturais dos países. Donde vêm estes desconhecidos? Foi
aquele Vesúvio, que fumega além, que os expeliu de si. Dão-se nomes a esses
aerólitos, a esses indivíduos expulsos e perdidos, a esses eliminados da sorte:
chamam-nos emigrados, refugiados, aventureiros. Se ficam, toleram-nos:
alegram-se quando eles vão embora. Algumas vezes são entes absolutamente
inofensivos, estranhos, as mulheres ao menos, aos acontecimentos que os
proscreveram, não tendo rancores nem cólera, projéteis contra a vontade,
espantadíssimos de o serem. Enraízam-se como podem. Não fazem mal a ninguém e
não compreendem o que lhes acontece. Vi um dia uma pobre moita de ervas atirada
aos ares pela explosão de uma mina. A Revolução Francesa, mais do que nenhuma
explosão, fez desses jatos longínquos.”
“Envelheceu
a mulher. Cresceu o menino. Viviam ambos sós; todos fugiam deles, mas eles bastavam-se
a si próprios. Loba e filhote lambem-se mutuamente. Foi esta uma das fórmulas
que lhes aplicou a benevolência da vizinhança.
O
menino tornou-se adolescente, o adolescente homem, e então, devendo caírem
sempre as velhas crostas da vida, a mãe veio a falecer. (...)
A
morte da mãe acabrunhou o filho. Era rústico, tornou-se feroz. Completou-se-lhe
o deserto. Era isolamento, tornou-se vácuo. Quando há duas criaturas, a vida é
possível. Havendo uma só, parece que nem se pode arrastá-la. Renuncia-se a ela.
É a primeira forma de desespero. Mais tarde compreende-se que o dever é uma
série de aceites. Contempla-se a morte, contempla-se a vida, consente-se na última.
Mas é um consentimento que sangra.
Gilliatt
era moço, a ferida cicatrizou. Naquela idade as carnes do coração tornam a
unir-se. A tristeza, dissipando-se-lhe a pouco e pouco, misturou-se à natureza
em redor dele, tornou-se uma espécie de encanto, atraiu-o para perto das coisas
e longe dos homens, e amalgamou cada vez mais aquela alma e a solidão.”
“IMPOPULARIDADE
Já
o dissemos. Gilliatt não era estimado na paróquia. Antipatia natural. Sobravam
motivos. O primeiro, acabamos de explicá-lo, era a casa em que morava. Depois a
origem dele. Quem era aquela mulher? E este menino? A gente não gosta de
enigmas a respeito de estrangeiros. Depois, trajava uma roupa de operário,
tendo aliás com que viver, embora não fosse rico. Depois, o jardim, que ele conseguia
cultivar e donde colhia batatas, apesar dos ventos de equinócio. Depois, os
alfarrábios que ele lia.
Outras
razões, ainda.
Por
que motivo vivia solitário? A casa mal-assombrada era uma espécie de lazareto;
conservavam Gilliatt em quarentena; deste modo, era muito simples que o seu
isolamento causasse espanto, e o responsabilizassem pela solidão em que o
deixavam.
Nunca
ia à igreja. Saía muitas vezes à noite. Falava aos feiticeiros. Uma vez
viram-no sentado sobre a relva com ar espantado. Frequentava o dólmen de
Ancresse e as pedras fatídicas que existem espalhadas pelo campo. Havia quase
certeza de terem-no visto cumprimentar polidamente a Rocha que Canta. Comprava
todos os pássaros que lhe levavam, e soltava-os. Era civil para com as pessoas
das ruas de Saint-Sampson, mas preferia dar uma volta para não passar por lá.
Pescava muitas vezes e sempre apanhava peixe. Trabalhava no jardim aos
domingos. Tinha um bagpipe (gaita-de-foles), que comprara a uns soldados
escoceses, ao passarem por Guernesey, e tocava nele sobre os rochedos, à beira
do mar, ao cair da noite. Gesticulava como um semeador. Que virá a ser uma
terra com um homem destes?
Quanto
aos livros que haviam pertencido à mulher finada, esses eram assustadores.
Quando o Reverendo Jaquemin Herodes, cura de Saint-Sampson, entrou na casa para
encomendar a mulher, leu no lombo desses livros os títulos seguintes: Dicionário
de Rosier, Cândido, por Voltaire; Aviso ao Povo acerca da Sua Saúde,
por Tissot. Dissera um fidalgo francês emigrado, retirado em Saint-Sampson, que
“aquele Tissot15 devia ser o que carregou a cabeça da Princesa de
Lamballe”.
O
reverendo notou, num dos livros, este título verdadeiramente extravagante e
ameaçador: De Ruibarbaro.
Cumpre
observar que, sendo a obra escrita em latim, como indica o título, era duvidoso
que Gilliatt, que não sabia latim, lesse aquela obra.
Mas
são exatamente os livros que a gente não lê os que mais condenam. A Inquisição
da Espanha julgou esse caso, e pô-lo fora de dúvida.
Demais,
o livro era o tratado do Doutor Tilingius16 Sobre o Ruibarbaro,
publicado na Alemanha em 1679.
Não
havia certeza de que Gilliatt não fizesse bruxarias, filtros e sortilégios.
Tinha frascos em casa.
Por
que motivo ia ele passear, às vezes até a meia-noite, nos penhascos da costa?
Era evidentemente para conversar com a gente maligna que anda à noite nas
praias no meio das exalações.
Ajudou
ele uma vez a feiticeira de Torteval a desatolar a carroça. Era uma velha, por
nome Moutonne Gahy.
Tendo-se
feito um recenseamento na ilha, perguntou-se-lhe a profissão, e ele respondeu:
“Pescador, quando há peixe”. Vejam lá se a gente da ilha podia gostar de tais
respostas.
Pobreza
e riqueza são relativas. Gilliatt tinha terras e uma casa, e, comparado aos que
não possuem coisa nenhuma, não era pobre. Um dia, para experimentá-lo, e talvez
para inculcar-se, porque há mulheres que estariam prontas a desposar o diabo
rico, disse uma rapariga a Gilliatt: “Quando se casa?” A resposta dele foi: “Casar-me-ei
quando se casar a Rocha que Canta”.
A
Rocha que Canta era uma grande pedra colocada a pique numa horta rústica perto
do Senhor Lemezurier de Fry. Esta pedra inspira desconfiança. Não se sabe o que
ela faz ali. Ouve-se cantar um galo invisível, coisa extremamente desagradável.
Verificou-se que a pedra foi posta ali por uns fantasmas.
De
noite, quando troveja, se aparecem homens a voar entre as nuvens avermelhadas,
são os tais fantasmas. Há uma mulher que mora no Grande Mielles e que os
conhece. Uma noite, em que havia fantasmas numa encruzilhada, essa mulher,
vendo um carroceiro que não sabia por onde seguir, gritou-lhe: “Pergunte-lhes o
caminho; é gente benéfica, e bem-educada, com quem se pode conversar” — aquela
mulher é com certeza feiticeira.
O
judicioso e sábio Rei Jacques I mandava ferver ainda vivas as mulheres
dessa espécie, provava o caldo e, pelo gosto, dizia: “É feiticeira”, ou: “Não é
feiticeira”.
É
para lamentar que os reis hoje não tenham daqueles talentos, que faziam
compreender a utilidade da instituição.
Gilliatt,
não sem motivos sérios, tinha fama de feiticeiro.
Num
temporal, à meia-noite, estando Gilliatt sozinho no mar, dentro de uma lancha,
do lado da Someilleuse, ouviram-no perguntar:
— Há lugar para passar?
Respondeu-lhe uma voz de cima dos penhascos:
—
Pois não! ânimo.
A
quem falaria ele senão a alguém que lhe respondia? Parece-nos que isto é uma
prova.
Outra
noite de temporal, tão negro que nada se via pertinho da Catiau-Roque, que é
uma dupla fileira de rochedos onde os feiticeiros e as cabras vão dançar à
sexta-feira, houve quem reconhecesse a voz de Gilliatt no meio deste terrível
diálogo:
—
Como está Vésin Brovard? (Era um pedreiro que tinha caído de um telhado.)
—
Vai sarando.
—
Deveras! pois caiu de um lugar tão alto como aquela estaca. Admira não ficar
despedaçado.
—
Bom tempo foi a semana passada para a colheita das praias.
—
Melhor do que hoje.
—
Decerto! não haverá muito peixe no mercado.
— O
vento é rijo.
—
Não se podem deitar as redes.
—
Como vai a Catarina?
—
Está embruxada.
A
Catarina era evidentemente alguma feiticeira.
Gilliatt,
ao que parecia, trabalhava de noite. Ao menos, ninguém duvidava disso.
Viam-no,
algumas vezes, espalhar pelo chão a água de um púcaro. Ora, a água espalhada
pelo chão traça a forma dos diabos.
Existem
na estrada de Saint-Sampson três pedras dispostas em forma de escada. Na
plataforma houve em outro tempo uma cruz, e, se não foi cruz, era forca.
Aquelas pedras são malignas.
Muita
gente esperta, e digna de crédito, afirmava ter visto, perto dessas pedras,
Gilliatt conversando com um sapo. Ora, não há sapos em Guernesey; Guernesey tem
todas as cobras, e Jersey todos os sapos. Aquele sapo veio naturalmente de
Jersey, a nado, para falar a Gilliatt. A conversa era amigável.
Todos
estes fatos estavam averiguados; e a prova disso é que as três pedras lá estão.
Quem duvidar pode ir vê-las, e mesmo a alguma distância há uma casa em cuja
esquina lê-se isto: “Mercador de gato morto e vivo, cordas velhas, ferros,
ossos e fumo de mascar; é pronto na paga e na atenção”.
Só
de má-fé se pode contestar a existência daquelas pedras e daquela casa. Tudo
isso fazia mal a Gilliatt.
Só
os ignorantes não sabem que o maior perigo dos mares da Mancha é o que se chama
Rei dos Auxcriniers. Não há personagem marítimo mais temível. Quem o
vê naufraga logo entre uma e outra Saint-Michel. É pequeno e surdo, por ser anão
e rei. Sabe o nome de quantos morreram no mar, e em que lugar estão. Conhece a
fundo o cemitério Oceano. Cabeça larga em baixo e estreita em cima, corpo
cheio, barriga viscosa e disforme, nodosidades no crânio, pernas curtas, braços
compridos, barbatanas em vez de pés, garras em vez de mãos, cara larga e verde,
tal é aquele rei. As garras são achatadas, as barbatanas têm unhas. Imaginem um
peixe com cara de homem e forma de espectro. Para vencê-lo é preciso
exorcismá-lo ou pescá-lo. Fora disso, é sinistro. Vê-lo é perigoso.
Descobrem-se acima das ondas e do marulho, através da espessura do nevoeiro,
umas feições de gente; testa curta, nariz esborrachado, orelhas chatas, boca
imensa e sem dentes, beiços esverdeados, sobrancelhas angulosas, olhos vivos e
grandes. O rei torna-se vermelho quando o relâmpago é lívido, descorado quando
o relâmpago é vermelho. Tem barba gotejante e rígida, cortada em quadro, que
lhe cai sobre uma membrana em forma de mantéu de peregrino; o mantéu é adornado
de catorze conchas, sete na frente, sete nas costas. As conchas são
extraordinárias para os que conhecem conchas. O rei só é visível no mar
violento. É o dançarino lúgubre da tempestade. Vê-se a forma dele esboçada no
nevoeiro e na chuva. O umbigo é hediondo. Uma casca de escamas guarda-lhe os
quadris à semelhança de colete. O rei levanta-se de pé, sobre as vagas que
irrompem à pressão dos ventos e vão rolar-se como os cavacos que saem do rabote
do marceneiro. Conserva-se todo fora da espuma, e, quando avista ao longe os
navios em perigo, entra a bailar, descorado na sombra, com a face iluminada por
um vago sorriso, feio e demente no aspecto. Mau encontro esse.
Na
época em que Gilliatt era uma das preocupações de Saint-Sampson, as últimas
pessoas que tinham visto o rei da Mancha declaravam que já não havia no mantéu
mais de treze conchas. Treze; era mais perigoso ainda. Mas onde foi parar a
outra concha? Deu-a a alguém? A quem seria? Ninguém podia dizê-lo, todos se
limitavam às conjecturas. O que é certo é que o Sr. Lupin Matier, do lugar de
Godaines, homem de posição, proprietário taxado em catorze bairros, estava
pronto a jurar que vira uma vez, nas mãos de Gilliatt, uma concha muito
esquisita.
Não
raras vezes se ouviam os campônios conversarem entre si:
—
Vizinho, não é verdade que este boi é magnífico?
—
Inchado, vizinho.
—
Homem, é verdade.
—
Tem mais sebo do que carne.
—
Deveras!
— Estais certo de que Gilliatt não lhe pôs os olhos em cima?
Gilliatt parava nos
campos, ao pé dos lavradores, e nos jardins, ao pé dos jardineiros, e
dizia-lhes palavras misteriosas:
—
Quando florescer a escabiosa17, semeia o centeio.
— O
freixo enfolha, acaba-se a neve.
—
Solstício de verão, cardo em flor.
—
Se não chover em junho, o trigo há de espigar. Tomem cuidado com as plantas
nocivas.
— A cerejeira está dando frutos, desconfia da lua cheia.
—
Se o tempo, no sexto dia da lua, conservar-se como no quarto dia ou como no
quinto, há de ser o mesmo em toda a lua, nove vezes em doze no primeiro caso, e
onze vezes em doze no segundo.
—
Vigia o teu vizinho com quem andas em processo. Cautela com as espertezas.
Porco que bebe leite quente estoura. Vaca que leva alho nos dentes não come.
— O
peixe está gerando, guarda-te das febres.
—
As rãs aparecem, semeia os melões.
— A
anêmona enflora, semeia a cevada.
— A
tília enflora, ceifa os campos.
— O choupo enflora, fecha as estufas.
E, coisa terrível, quem seguisse os seus conselhos achá-los-ia muito bons.
Uma noite de junho, em que ele tocava o bagpipe, sobre os cabedelos da praia, do lado da Damie de Fontenelle não se pôde pescar uma só cavala.
Outra noite, vazando a maré aconteceu tombar na praia, em frente
da casa mal-assombrada, uma carreta cheia de sargaço. Gilliatt receou
naturalmente ser chamado à justiça, pois atirou-se a levantar a carreta,
pondo-lhe outra vez toda a carga que se espalhara no chão.
Uma
menina da vizinhança tinha muitos piolhos; Gilliatt foi a Saint-Pierre-Port,
trouxe de lá um unguento e o esfregou à cabeça da pequena; tirou-lhe os
piolhos, o que prova que foi ele quem lhos deitou.
Sabe
toda a gente que há feitiço para fazer criar piolhos na cabeça dos outros.
Dizia-se
que Gilliatt olhava para os poços, o que é perigoso quando é mau-olhado; e o
caso é que um dia, nos Arculons, a água de um poço tornou-se doentia. A dona do
poço disse a Gilliatt: “Veja esta água”. E apresentou-lhe um copo cheio.
Gilliatt confessou: “A água está grossa”, disse ele; “é exato”. A boa mulher,
que desconfiava, disse-lhe: “Pois cure-a”. Gilliatt perguntou-lhe se ela tinha
algum curral, se o curral tinha esgoto, e se o rego do esgoto passava perto do
poço. A boa mulher disse que sim. Gilliatt entrou no curral, desviou o rego do
esgoto, e a água do poço ficou boa. Ora, pensava a gente da terra, nenhum poço
fica insalubre, nem é curado depois, sem motivo; a doença do poço não é
natural; é difícil não acreditar que Gilliatt tenha enguiçado18 a
água.
De
uma vez, tendo ido a Jersey, foi alojar-se em São Clemente, em uma rua cujo
nome quer dizer almas do outro mundo.
Nas
aldeias, colhem-se os indícios, comparam-se: o total faz a reputação de um
homem.
Aconteceu
um dia que Gilliatt foi surpreendido a deitar sangue pelo nariz. Coisa grave.
Um patrão de lancha, grande viajante, que fez quase a volta do mundo, afirmou
que havia uma terra, onde todos os feiticeiros deitam sangue pelo nariz. Quando
um homem deita sangue pelo nariz, já toda a gente sabe como se haver com ele.
Todavia, algumas pessoas de juízo observaram que aquilo que caracteriza os
feiticeiros em uma terra pode não caracterizá-los em outra.
Nos
arredores de Saint-Michel, viu-se Gilliatt parado em uma horta dos Huriaux, ao
pé da estrada real de Videclins. Gilliatt assobiou, e pouco depois veio um
corvo, e depois uma pega19. O fato foi atestado por um homem notável
que pertenceu depois a uma comissão encarregada de fazer um novo livro de
medidas.
No
Hamel, há mulheres velhas que diziam estar certas de ter ouvido, ao romper da
manhã, umas andorinhas chamando por Gilliatt.
A
isto deve acrescentar-se que Gilliatt não era bom.
Um
dia um pobre homem batia num asno, que tinha empacado. Deu-lhe algumas
tamancadas na barriga, o animal caiu. Gilliatt correu para levantá-lo, estava
morto. Gilliatt esbofeteou o pobre homem.
Noutra
ocasião, vendo um rapaz descer de uma árvore com um ninho de passarinhos ainda
implumes, Gilliatt tirou o ninho do rapaz, e levou a crueldade ao ponto de
restituí-lo ao seu lugar na árvore.
Uns
viandantes censuraram-no por isto: Gilliatt não fez mais do que apontar para o
pai e a mãe dos passarinhos, que guinchavam por cima da árvore e voltavam para
o ninho. Tinha queda pelos pássaros. É um sinal esse que faz conhecer
geralmente os bruxos.
Os
rapazes gostam de tirar os ninhos de cotovias e goelanos no penedio das costas.
Trazem consigo grande porção de ovos azuis, amarelos e verdes, para armar com
eles a frente das lareiras. Como os penedos estão a pique, aconteceu-lhes às
vezes escorregarem, caírem e morrerem. Nada mais lindo que uma varanda adornada
com ovos de pássaros do mar. Gilliatt já não sabia que inventar para fazer mal
aos rapazes. Trepava, com risco de vida, ao cimo das rochas marinhas, e
pendurava aí molhos de feno, com chapéus velhos em cima e tudo quanto pudesse
servir de espantalho, para arredar os pássaros e, por consequência, as
crianças.
Por
tudo isto Gilliatt ia sendo a pouco e pouco odiado por todos. Não precisava
tanto para sê-lo.”
15
Samuel Auguste David Tissot (1728-1797) – médico suíço muito reputado em sua
época por uma abordagem moderna da medicina. Deu contribuições importantes para
o estudo da enxaqueca e escreveu sobre os males da masturbação. Aviso ao
Povo acerca da Sua Saúde foi um dos primeiros livros populares de
medicina da história. Um bestseller da época.
16
Matthias Tilingius (1634-1674) é o autor deste livro que descreve descobertas
acerca das qualidades medicinais do ruibardo, hortaliça com propriedades
digestivas e laxantes.
17 No original mors du diable.
Escabiosa ou língua-de-vaca é uma planta que possui propriedades medicinais.
18 Enguiçar tem aqui o sentido pouco usual de
jogar enguiço, mau-olhado.
19 Pega: uma espécie de gralha do campo.
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