Editora: Global
ISBN: 978-85-2600-869-4
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Opinião: ★★★★★
Páginas: 736
Sinopse: Ver Parte I
“Enquanto o esforço exigido pelo colono do escravo
índio foi o de abater árvores, transportar os toros aos navios, granjear mantimentos,
caçar, pescar, defender os senhores contra os selvagens inimigos e corsários estrangeiros,
guiar os exploradores através do mato virgem – o indígena foi dando conta do trabalho
servil. Já não era o mesmo selvagem livre de antes da colonização portuguesa; mas
esta ainda não o arrancara pela raiz do seu meio físico e do seu ambiente moral;
dos seus interesses primários, elementares, hedônicos; aqueles sem os quais a vida
se esvaziaria para eles de todos os gostos estimulantes e bons: a caça, a pesca,
a guerra, o contato místico e como que esportivo com as águas, a mata, os animais.
Esse desenraizamento viria com a colonização agrária, isto é, a latifundiária: com
a monocultura, representada principalmente pelo açúcar. O açúcar matou o índio.
Para livrar o indígena da tirania do engenho é que o missionário o segregou em aldeias.
Outro processo, embora menos violento e mais sutil, de extermínio da raça indígena
no Brasil: a sua preservação em salmoura, mas não já a sua vida própria e autônoma.
As exigências do novo regime de trabalho, o agrário,
o índio não correspondeu, envolvendo-se em uma tristeza de introvertido. Foi preciso
substituí-lo pela energia moça, tesa, vigorosa do negro, este um verdadeiro contraste
com o selvagem americano pela sua extroversão e vivacidade. Não que o português
aqui tivesse deparado em 1500 com uma raça de gente fraca e mole, incapaz de maior
esforço que o de caçar passarinho com arco e flecha e atravessar a nado lagoas e
rios fundos: os depoimentos dos primeiros cronistas são todos em sentido contrário.
Léry salienta nos indígenas seu grande vigor físico abatendo a machado árvores enormes
e transportando-as aos navios franceses sobre o dorso nu. Gabriel Soares descreve-os
como indivíduos “bem feitos e bem dispostos”; Cardim destaca-lhes a ligeireza e
a resistência nas longas caminhadas a pé; e o português que primeiro os surpreendeu,
ingênuos e nus, nas praias descobertas por Pedrálvares, fala com entusiasmo da robustez,
da saúde e da beleza desses “como aves ou alimareas monteses”: “por que hos corpos
seus sam tam limpos, e tam gordos, e tam fremosos, que nem pode mais ser [...]”.
Robustez e saúde que não esquece de associar ao sistema de vida e de alimentação
seguido pelos selvagens: ao “ar” – isto é, ao ar livre – “a que se criam”; e ao
“inhame, que aquy haa muyto [...]. Elles nom lauram, nem criam, nem haa aquy boy,
nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimarea, que costumada
seja aho viver dos homeens; nem comem senom dese inhame, que aquy haa muyto, e desa
semente, e fruitos que ha terra, e has arvores de sy lançam: e com isto andam taaes,
e tam rijos, e tam nedeos, que ho nom somonós tanto com quanto trigo, e legumes
comemos.”
Se índios de tão boa aparência de saúde fracassaram,
uma vez incorporados ao sistema econômico do colonizador é que foi para eles demasiado
brusca a passagem do nomadismo à sedentariedade –, da atividade esporádica à contínua;
é que neles se alterou desastrosamente o metabolismo ao novo ritmo de vida econômica
e de esforço físico. Nem o tal inhame nem os tais frutos da terra bastariam agora
à alimentação do selvagem submetido ao trabalho escravo nas plantações de cana.
O resultado foi evidenciar-se o índio no labor agrícola o trabalhador banzeiro e
moleirão que teve de ser substituído pelo negro. Este, vindo de um estádio de cultura
superior ao do americano, corresponderia melhor às necessidades brasileiras de intenso
e contínuo esforço físico. Esforço agrícola, sedentário. Mas era outro homem. Homem
agrícola. Outro, seu regime de alimentação, que, aliás, pouca alteração sofreria
no Brasil, transplantadas para cá muitas das plantas alimentares da África: o feijão,
a banana, o quiabo; e transportados das ilhas portuguesas do Atlântico para a colônia
americana o boi, o carneiro, a cabra, a cana-de-açúcar.
Do indígena se salvaria a parte por assim dizer
feminina de sua cultura. Esta, aliás, quase que era só feminina na sua organização
técnica, mais complexa, o homem limitando-se a caçar, a pescar, a remar e a fazer
a guerra. Atividades de valor, mas de valor secundário para a nova organização econômica
– a agrária estabelecida pelos portugueses em terras da América. O sistema português
do que precisava, fundamentalmente, era do trabalhador de enxada para as plantações
de cana. Trabalhador fixo, sólido, pé-de-boi.
Entre culturas de interesses e tendências tão
antagônicos era natural que o contato se verificasse com desvantagem para ambas.
Apenas um conjunto especialíssimo de circunstâncias impediu, no caso do Brasil,
que europeus e indígenas se extremassem em inimigos de morte, antes se aproximassem
como marido e mulher, como mestre e discípulo, daí resultando uma degradação de
cultura por processos mais sutis e em ritmo mais lento do que em outras partes do
continente.
Goldenweiser aponta para o destino dos mongóis
submetidos pelos russos; dos ameríndios, dos nativos da Austrália, da Melanésia,
da Polinésia e da África, sempre o mesmo drama: as culturas atrasadas desintegrando-se
sob o jugo ou à pressão das adiantadas. E o que mata esses povos primitivos é perderem
quase a vontade de viver, “o interesse pelos seus próprios valores”, diz Goldenweiser,
uma vez alterado o seu ambiente; quebrado o equilíbrio de sua vida pelo civilizado.
Dos primitivos da Melanésia já escrevera W. H. R. Rivers que estavam “dyíng from
lack of interest”. Morrendo de desinteresse pela vida. Morrendo de banzo. Ou
chegando mesmo a se matar, como aqueles índios que Gabriel Soares observou irem
definhando e inchando: o diabo lhes aparecia e mandava que comessem terra até morrerem.
Ainda assim o Brasil é dos países americanos onde
mais se tem salvo da cultura e dos valores nativos. O imperialismo português – o
religioso dos padres, o econômico dos colonos – se desde o primeiro contato com
a cultura indígena feriu-a de morte, não foi para abatê-la de repente, com a mesma
fúria dos ingleses na América do Norte. Deu-lhe tempo de perpetuar-se em várias
sobrevivências úteis.
Sem que no Brasil se verifique perfeita intercomunicação
entre seus extremos de cultura – ainda antagônicos e por vezes até explosivos, chocando-se
em conflitos intensamente dramáticos como o de Canudos – ainda assim podemos nos
felicitar de um ajustamento de tradições e de tendências raro entre povos formados
nas mesmas circunstâncias imperialistas de colonização moderna dos trópicos.
A verdade é que no Brasil, ao contrário do que
se observa em outros países da América e da África de recente colonização europeia,
a cultura primitiva – tanto a ameríndia como a africana – não se vem isolando em
bolões duros, secos, indigestos, inassimiláveis; ao sistema social do europeu. Muito
menos estratificando-se em arcaísmos e curiosidades etnográficas. Faz-se sentir
na presença viva, útil, ativa, e não apenas pitoresca, de elementos com atuação
criadora no desenvolvimento nacional. Nem as relações sociais entre as duas raças,
a conquistadora e a indígena, aguçaram-se nunca na antipatia ou no ódio cujo ranger,
de tão adstringente, chega-nos aos ouvidos de todos os países de colonização anglo-saxônica
e protestante. Suavizou-as aqui o óleo lúbrico da profunda miscigenação, quer a
livre e danada, quer a regular e cristã sob a bênção dos padres e pelo incitamento
da Igreja e do Estado. Nossas instituições sociais tanto quanto nossa cultura material
deixaram-se alagar de influência ameríndia, como mais tarde da africana, da qual
se contaminaria o próprio direito: não diretamente, é certo, mas sutil e indiretamente.
Nossa “benignidade jurídica” já a interpretou Clóvis Beviláqua como reflexo da influência
africana. Certa suavidade brasileira na punição do crime de furto talvez reflita
particular contemporização do europeu com o ameríndio, quase insensível à noção
desse crime em virtude do regime comunista ou meio comunista de sua vida e economia.
Vários são os complexos característicos da moderna
cultura brasileira, de origem pura ou nitidamente ameríndia: o da rede, o da mandioca,
o do banho de rio, o do caju, o do “bicho”, o da “coivara”, o da “igara”, o do “moquém”,
o da tartaruga, o do bodoque, o do óleo de coco-bravo, o da “casa do caboclo”, o
do milho, o de descansar ou defecar de cócoras, o do cabaço para cuia de farinha,
gamela, coco de beber água, etc. Outros, de origem principalmente indígena: o do
pé descalço, o da “muqueca”, o da cor encarnada, o da pimenta, etc. Isto sem falarmos
no tabaco e na bola de borracha, de uso universal, e de origem ameríndia, provavelmente
brasílica.
No costume, ainda muito brasileiro, muito do interior
e dos sertões, de não aparecerem as mulheres e os meninos aos estranhos, nota-se
também influência da cultura ameríndia; da crença, salientada por Karsten, de serem
as mulheres e os meninos mais expostos que os homens aos espíritos malignos. Entre
caboclos do Amazonas, Gastão Cruls observou o fato de as mulheres e crianças serem
sempre postas “ao abrigo do olhar estrangeiro”.”
“A figura do colonizador português do Brasil é
vaga, falta-lhe o contorno ou a cor que a individualize entre os imperialistas modernos.
Assemelha-se em uns pontos à do inglês –, em outros à do espanhol. Um espanhol sem
a flama guerreira nem a ortodoxia dramática do conquistador do México e do Peru;
um inglês sem as duras linhas puritanas. O tipo do contemporizador. Nem ideais absolutos,
nem preconceitos inflexíveis.
O escravocrata terrível que só faltou transportar
da África para a América, em navios imundos, que de longe se adivinhavam pela inhaca,
a população inteira de negros, foi por outro lado o colonizador europeu que melhor
confraternizou com as raças chamadas inferiores. O menos cruel nas relações com
os escravos. É verdade que, em grande parte, pela impossibilidade de constituir-se
em aristocracia europeia nos trópicos: escasseava-lhe para tanto o capital, senão
em homens, em mulheres brancas. Mas independente da falta ou escassez de mulher
branca, o português sempre pendeu para o contato voluptuoso com mulher exótica.
Para o cruzamento e miscigenação. Tendência que parece resultar da plasticidade
social, maior no português que em qualquer outro colonizador europeu.
Nenhum menos rígido no contorno. Menos duro nas
linhas do caráter. Daí prestar-se a tantas e tão profundas deformações. Não é uma
“lenda negra”, como a grande, sinistra, que prestigia, mesmo denegrindo, a figura
do conquistador espanhol, a que envolve o colonizador português, mas uma tradição
pegajenta de inépcia, de estupidez e de salacidade.”
“Longe de conformar-se com uma viuvez honesta,
de nação decaída – como mais tarde a Holanda, que depois de senhora de vasto império
entregou-se ao fabrico do queijo e da manteiga – continuou Portugal, após Alcácer-Quebir,
a supor-se o Portugal opulento de D. Sebastião vivo. A alimentar-se da fama adquirida
nas conquistas de ultramar. A iludir-se de uma mística imperialista já sem base.
A envenenar-se da mania de grandeza. “Celebram Lisboa com tal cópia de palavras,
que a fazem igual às principais cidades do mundo, e por isso costumam dizer: – Quem
não vê Lisboa, não vê cousa boa”, escreviam dos portugueses em fins do século XVI
os embaixadores venezianos Trom e Lippomani. E acrescentavam: “A gente miúda gosta
que lhe deem o tratamento de Senhor, manha esta comum a toda a Espanha”.
Do século XVI até hoje só tem feito aguçar-se
no português a simulação de qualidades europeias e imperiais, que possuiu ou encarnou
por tão curto período. É um povo que vive a fazer de conta que é poderoso e importante.
Que é supercivilizado à europeia. Que é grande potência colonial. Bell observou
entre os portugueses dos princípios do século XX que seus ideais de engrandecimento
nacional continuavam a variar entre “a conquista da Espanha e a construção de uma
marinha de guerra.” A Suíça que condense o seu leite e a Holanda que fabrique seus
queijos. Portugal continua de ponta de pé, no esforço de aparecer entre as grandes
potências europeias.
Foram esses exageros que o impressionismo de Keyserling
não soube descontar ou descontou mal, reduzindo os portugueses a um povo sem grandeza
nenhuma: quase uma Andorra ou uma São Marinho. República de opereta onde todos os
homens fossem doutores e se tratassem por Vossa Excelência. Diminuiu-lhes a importância
da função criadora que nos séculos XV e XVI afirmou-se não só na técnica da navegação
e da construção naval como no arrojo dos descobrimentos e das conquistas, nas guerras
da África e da Índia, na opulenta literatura de viagens, no eficiente imperialismo
colonizador. Só lhes deixou de original a música popular ou plebeia; e de grande
o ódio ao espanhol. Ódio igualmente plebeu.
Pelo ódio ou antagonismo ao espanhol é que o português
se teria tornado e conservado autônomo. Independente.
Mas antes do ódio ao espanhol, salientado por
Keyserling, outro, talvez mais profundo e criador, atuou sobre o caráter português,
predispondo-o ao nacionalismo e até ao imperialismo: o ódio ao mouro. Quase o mesmo
ódio que se manifestou mais tarde no Brasil nas guerras aos bugres e aos hereges.
Principalmente aos hereges – o inimigo contra quem se uniram energias dispersas
e até antagônicas. Jesuítas e senhores de engenho. Paulistas e baianos. Sem esse
grande espantalho comum talvez nunca se tivesse desenvolvido “consciência de espécie”
entre grupos tão distantes uns dos outros, tão sem nexo político entre si, como
os primeiros focos de colonização lusitana no Brasil. A unificação moral e política
realizou-se em grande parte pela solidariedade dos diferentes grupos contra a heresia,
ora encarnada pelo francês, ora pelo inglês ou holandês; às vezes, simplesmente
pelo bugre.
Repetiu-se
na América, entre portugueses disseminados por um território vasto, o mesmo processo
de unificação que na Península: cristãos contra infiéis. Nossas guerras contra os
índios nunca foram guerras de branco contra peles-vermelhas, mas de cristãos contra
bugres. Nossa hostilidade aos ingleses, franceses, holandeses teve sempre o mesmo
caráter de profilaxia religiosa: católicos contra hereges. Os padres de Santos que
em 1580 tratam com os ingleses da Minion, não manifestam contra eles nenhum
duro rancor: tratam-nos até com alguma doçura. Seu ódio é profilático. Contra o
pecado e não contra o pecador, diria um teólogo.”
“No Brasil, a catedral ou a igreja mais poderosa
que o próprio rei seria substituída pela casa-grande de engenho. Nossa formação
social, tanto quanto a portuguesa, fez-se pela solidariedade de ideal ou de fé religiosa,
que nos supriu a lassidão de nexo político ou de mística ou consciência de raça.
Mas a igreja que age na formação brasileira, articulando-a, não é a catedral com
o seu bispo a que se vão queixar os desenganados da justiça secular; nem a igreja
isolada e só, ou de mosteiro ou abadia, onde se vão açoitar criminosos e prover-se
de pão e restos de comidas mendigos e desamparados. É a capela de engenho. Não chega
a haver clericalismo no Brasil. Esboçou-se o dos padres da Companhia para esvair-se
logo, vencido pelo oligarquismo e pelo nepotismo dos grandes senhores de terras
e escravos.
Os jesuítas sentiram, desde o início, nos senhores
de engenho, seus grandes e terríveis rivais. Os outros clérigos e até mesmo frades
acomodaram-se, gordos e moles, às funções de capelães, de padres-mestres, de tios-padres,
de padrinhos de meninos; à confortável situação de pessoas da família, de gente
de casa, de aliados e aderentes do sistema patriarcal, no século XVIII muitos deles
morando nas próprias casas-grandes. Contra os conselhos, aliás, do jesuíta Andreoni
que enxergava nessa intimidade o perigo da subserviência dos padres aos senhores
de engenho e do demasiado contato – não diz claramente, mas o insinua em meias palavras
com negras e mulatas moças. Ao seu ver devia o capelão manter-se “familiar de Deus,
e não de outro homem”; morar sozinho, fora da casa-grande; e ter por criada escrava
velha. Norma que parece ter sido seguida raramente pelos vigários e capelães dos
tempos coloniais.”
“Mas o ponto a destacar é a presença, não esporádica
porém farta, de descendentes de moçárabes, de representantes da plebe enérgica e
criadora, entre os povoadores e primeiros colonizadores do Brasil. Através desse
elemento moçárabe é que tantos traços de cultura moura e mourisca se transmitiram
ao Brasil. Traços de cultura moral e material. Debbané destaca um: a doçura no tratamento
dos escravos que, na verdade, foram entre os brasileiros, tanto quanto entre os
mouros, mais gente de casa do que besta de trabalho. Outro traço de influência moura
que se pode identificar no Brasil: o ideal de mulher gorda e bonita de que tanto
se impregnaram as gerações coloniais e do Império. Ainda outro: o gosto dos voluptuosos
banhos de gamela ou de “canoa”; o gosto da água corrente cantando nos jardins das
casas-grandes. Burton surpreendeu no Brasil no século XIX várias reminiscências
de costumes mouros. O sistema das crianças cantarem todas ao mesmo tempo suas lições
de tabuada e de soletração recordou-lhe as escolas maometanas. E tendo viajado no
interior de Minas e de São Paulo, ainda encontrou o hábito das mulheres irem à missa
de mantilha, o rosto quase tapado, como o das mulheres árabes. Nos séculos XVI,
XVII e XVIII os rebuços e mantilhas predominam por todo o Brasil, dando às modas
femininas um ar mais oriental que europeu. Os rebuços eram uma espécie de “dominós
pretos”, “mantilhas fúnebres em que se andam amortalhadas muitas das beldades portuguesas”,
como os descreveu Sebastião José Pedroso no seu Itinerário, referindo-se
às mulheres do reino.
E não esqueçamos de que nossas avós coloniais
preferiram sempre ao requinte europeu das poltronas e dos sofás estofados, o oriental,
dos tapetes e das esteiras. Em casa e até nas igrejas era sobre os tapetes de seda
ou as frescas esteiras de pipiri que se sentavam, de pernas cruzada à mourisca,
os pezinhos tapados pela saia. “Quando vão visitar”, informa um relatório holandês
do século XVII, referindo-se às mulheres luso-brasileiras, “primeiramente mandam
participar; a dona da casa senta-se sobre um belo tapete turco de seda estendido
sobre o soalho e espera suas amigas que também se sentam a seu lado sobre o tapete,
à guisa dos alfaiates, tendo os pés cobertos, pois seria grande vergonha deixar
alguém ver os pés”.
Diversos outros valores materiais, absorvidos
da cultura moura ou árabe pelos portugueses, transmitiram-se ao Brasil: a arte do
azulejo que tanto relevo tomou em nossas igrejas, conventos, residências, banheiros,
bicas e chafarizes; a telha mourisca; a janela quadriculada ou em xadrez; a gelosia;
o abalcoado; as paredes grossas. Também o conhecimento de vários quitutes e processos
culinários; certo gosto pelas comidas oleosas, gordas, ricas em açúcar. O cuscuz,
hoje tão brasileiro, é de origem norte-africana. (...)
Da influência
dos maometanos, em geral, sobre a Península Hispânica – sobre a medicina, a higiene,
as matemáticas, a arquitetura, as artes decorativas – limitamo-nos a observar que,
abafada por severas medidas de repressão ou reação católica, ainda assim sobreviveu
à reconquista cristã. A arte de decoração mourisca dos palácios e das casas atravessou
incólume os séculos de maior esplendor cristão para vir, no XVIII, enfrentar vantajosamente
o rococó. Dominou em Portugal, vindo florescer na decoração de casas-grandes do
Brasil do século XIX.
Os artífices coloniais, a quem deve o Brasil o
traçado de suas primeiras habitações, igrejas, fontes e portões de interesse artístico,
foram homens criados dentro da tradição mourisca. De suas mãos recolhemos a herança
preciosa do azulejo, traço de cultura em que insistimos devido a sua íntima ligação
com a higiene e a vida de família em Portugal e no Brasil. Mais que simples decoração
mural em rivalidade com o pano-de-rás, o azulejo mourisco representou na vida doméstica
do português e na do seu descendente brasileiro dos tempos coloniais a sobrevivência
daquele gosto pelo asseio, pela limpeza, pela claridade, pela água, daquele quase
instinto ou senso de higiene tropical, tão vivo no mouro. Senso ou instinto de que
Portugal, reeuropeizando-se sob as sombras da reconquista cristã, infelizmente perdeu
grande parte. O azulejo quase se transformou, para os cristãos, em tapete decorativo
de que o hagiológio tirou o melhor partido na decoração piedosa das capelas, dos
claustros e das residências. Guardou, porém, pela própria natureza do seu material,
as qualidades higiênicas, caracteristicamente árabes e mouriscas, de frescura, lustro
fácil e limpeza.”
“O contraste da higiene verdadeiramente felina
dos maometanos com a imundície dos cristãos, seus vencedores, é traço que aqui se
impõe destacar. Conde, em sua história do domínio árabe na Espanha, tantas vezes
citada por Buckle, retrata os cristãos peninsulares, isto é, os intransigentes,
dos séculos VIII e IX, como indivíduos que nunca tomavam banho, nem lavavam a roupa,
nem a tiravam do corpo senão podre, largando os pedaços. O horror à água, o desleixo
pela higiene do corpo e do vestuário permanecem entre os portugueses. Cremos poder
afirmar que mais intenso nas zonas menos beneficiadas pela influência moura. (...)
É verdade que Estanco Louro, em uma bem documentada monografia sobre o Alportel,
freguesia rural do Sul, registra “flagrante desleixo pelo asseio” da parte do alportelense:
“falta de higiene corpórea que na maior parte dos casos se limita a lavagem da cara
aos domingos, de modo muito sumário”; “falta na vila de retretes públicas e de urinóis;
no campo de retretes, junto dos montes”; “a permanência de pocilgas e de estrumeiras
mesmo junto das casas de habitação e das cavalariças em comunicação com estas.”
Mas salienta por outro lado certas noções de asseio entre os habitantes que vão
até à obsessão. Noções porventura conservadas do mouro. “É o que se pode ver na
lavagem frequente do solo da casa, na caiação constante de casas e muros; na infalível
mudança da roupa da semana por outra muito limpa [...]”. Aliás com relação ao sul
de Portugal deve-se tomar na devida conta a escassez de água que coloca o morador
de seus povoados e campos em condições idênticas à do sertanejo do Brasil – outro
que raramente toma banho, embora capriche na roupa escrupulosamente limpa e em outros
hábitos de asseio pessoal e doméstico.”
“Impossível negar-se que ao imperialismo econômico
da Espanha e de Portugal ligou-se, da maneira mais íntima, o religioso, da Igreja.
A conquista de mercados, de terras e de escravos – a conquista de almas. Pode-se
dizer que o entusiasmo religioso foi o primeiro a inflamar-se no Brasil diante de
possibilidades só depois entrevistas pelo interesse econômico. Colônia fundada quase
sem vontade, com um sobejo apenas de homens, estilhaços do bloco de gente nobre
que só faltou ir inteira do reino para as Índias, o Brasil foi por algum tempo a
Nazaré das colônias portuguesas. Sem ouro nem prata. Somente pau-de-tinta e almas
para Jesus Cristo.
Para a escravidão, saliente-se mais uma vez que
não necessitava o português de nenhum estímulo. Nenhum europeu mais predisposto
ao regime de trabalho escravo do que ele. No caso brasileiro, porém, parece-nos
injusto acusar o português de ter manchado, com instituição que hoje tanto nos repugna,
sua obra grandiosa de colonização tropical. O meio e as circunstâncias exigiriam
o escravo. A princípio o índio. Quando este, por incapaz e molengo, mostrou não
corresponder às necessidades da agricultura colonial – o negro. Sentiu o português
com o seu grande senso colonizador, que para completar-lhe o esforço de fundar agricultura
nos trópicos – só o negro. O operário africano. Mas o operário africano disciplinado
na sua energia intermitente pelos rigores da escravidão.
Deixemo-nos de lirismo com relação ao índio. De
opô-lo ao português como igual contra igual. Sua substituição pelo negro – mais
uma vez acentuemos – não se deu pelos motivos de ordem moral que os indianófilos
tanto se deliciam em alegar: sua altivez diante do colonizador luso em contraste
com a passividade do negro. O índio, precisamente pela sua inferioridade de condições
de cultura – a nômade, apenas tocada pelas primeiras e vagas tendências para a estabilização
agrícola – é que falhou no trabalho sedentário. O africano executou-o com decidida
vantagem sobre o índio principalmente por vir de condições de cultura superiores.
Cultura já francamente agrícola. Não foi questão de altivez nem de passividade moral.
(...)
Aliás, os negros, no Brasil, não foram assim tão
passivos. Ao contrário: mais eficientes – por mais adiantados em cultura – na sua
resistência à exploração dos senhores brancos que os índios. “Os negros lutaram”,
escreve Astrojildo Pereira a propósito da tese de Oliveira Viana de não ter havido
luta de classes no Brasil. Para A. Pereira houve entre nós “autêntica luta de classes
que encheu séculos de nossa história e teve o seu episódio culminante de heroísmo
e grandeza na organização da República dos Palmares, tendo à sua frente a figura
épica de Zumbi, o nosso Spartacus negro”.”
“Todo brasileiro, mesmo o alvo de cabelo louro,
traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha
mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro.
No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente
do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo
em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar
menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a
marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de
mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da
negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado.
Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos
iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira
sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.”
“Mas logo de início uma discriminação se impõe:
entre a influência pura do negro (que nos é quase impossível isolar) e a do negro
na condição de escravo. “Em primeiro lugar o mau elemento da população não foi a
raça negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro”, escreveu Joaquim Nabuco em 1881.
Admiráveis palavras para terem sido escritas na mesma época em que Oliveira Martins
sentenciava em páginas gravíssimas: “Há decerto, e abundam os documentos que nos
mostram no negro um tipo antropologicamente inferior, não raro próximo do antropoide,
e bem pouco digno do nome de homem”. (...)
Se há hábito que faça o monge é o do escravo;
e o africano foi muitas vezes obrigado a despir sua camisola de malê para vir de
tanga, nos negreiros imundos, da África para o Brasil. Para de tanga ou calça de
estopa tornar-se carregador de tigre. A escravidão desenraizou o negro do seu meio
social e de família, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes hostil. Dentro
de tal ambiente, no contato de forças tão dissolventes, seria absurdo esperar do
escravo outro comportamento senão o imoral, de que tanto o acusam.
Passa por ser defeito da raça africana, comunicado
ao brasileiro, o erotismo, a luxúria, a depravação sexual. Mas o que se tem apurado
entre os povos negros da África, como entre os primitivos em geral é maior moderação
do apetite sexual que entre os europeus. É uma sexualidade, a dos negros africanos,
que para excitar-se necessita de estímulos picantes. Danças afrodisíacas. Culto
fálico. Orgias. Enquanto no civilizado o apetite sexual de ordinário se excita sem
grandes provocações. Sem esforço. A ideia vulgar de que a raça negra é chegada,
mais do que as outras, a excessos sexuais, atribui-a Ernest Crawley ao fato do temperamento
expansivo dos negros e do caráter orgiástico de suas festas criarem a ilusão de
desbragado erotismo. Fato que “indica justamente o contrário”, demonstrando a necessidade,
entre eles, de “excitação artificial”. (...)
É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que
não foi obra sua nem do índio, mas do sistema social e econômico em que funcionaram
passiva e mecanicamente. Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência
mesma do regime. Em primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a depravação
criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior número possível
de crias. Joaquim Nabuco colheu em um manifesto escravocrata de fazendeiros as seguintes
palavras, tão ricas de significação: “a parte mais produtiva da propriedade escrava
é o ventre gerador”.
Fora assim em Portugal, de onde a instituição
se comunicou ao Brasil, já opulenta de vícios. “Os escravos mouros, e negros, além
de outros trazidos de diversas regiões, aos quais se ministrava o batismo, não recebiam
depois a mínima educação religiosa”, informa Alexandre Herculano. Entre esses escravos
os senhores favoreciam a dissolução para “aumentarem o número de crias como quem
promove o acréscimo de um rebanho.” Dentro de semelhante atmosfera moral, criada
pelo interesse econômico dos senhores, como esperar que a escravidão – fosse o escravo
mouro, negro, índio ou malaio – atuasse senão no sentido da dissolução, da libidinagem,
da luxúria? O que se queria era que os ventres das mulheres gerassem. Que as negras
produzissem moleques. (...)
Essa animalidade nos negros, essa falta de freio
aos instintos, essa desbragada prostituição dentro de casa, animavam-na os senhores
brancos. No interesse da procriação à grande, uns; para satisfazerem caprichos sensuais,
outros. Não era o negro, portanto, o libertino: mas o escravo a serviço do interesse
econômico e da ociosidade voluptuosa dos senhores. Não era a “raça inferior” a fonte
de corrupção, mas o abuso de uma raça por outra. Abuso que implicava conformar-se
a servil com os apetites da todo-poderosa. E esses apetites estimulados pelo ócio
– pela “riqueza adquirida sem trabalho”, diz o referido Dr. Bernardino; pela “ociosidade”
ou pela “preguiça”, diria Vilhena; por conseguinte, pela própria estrutura econômica
do regime escravocrata. (...)
Nada nos autoriza a concluir ter sido o negro
quem trouxe para o Brasil a pegajenta luxúria em que nos sentimos todos prender,
mal atingida a adolescência. A precoce voluptuosidade, a fome de mulher que aos
treze ou quatorze anos faz de todo brasileiro um don-juan não vem do contágio ou
do sangue da “raça inferior” mas do sistema econômico e social da nossa formação;
e um pouco, talvez, do clima; do ar mole, grosso, morno, que cedo nos parece predispor
aos chamegos do amor e ao mesmo tempo nos afastar de todo esforço persistente. Impossível
negar-se a ação do clima sobre a moral sexual das sociedades. Sem ser preponderante,
dá entretanto para acentuar ou enfraquecer tendências; endurecer ou amolecer traços
sociais. Tudo isso com repercussão sobre o seu comportamento social; sobre sua eficiência
econômica; sobre sua moral sexual. Pode-se concluir, com Kelsey, que certos climas
estimulam o homem a maiores esforços e consequentemente a maior produtividade; outros,
o enlanguescem. Para admiti-lo não necessitamos de ir aos exageros de Huntington
e dos outros fanáticos da “influência do clima”.
O negro no Brasil, nas suas relações com a cultura
e com o tipo de sociedade que aqui se vem desenvolvendo, deve ser considerado principalmente
sob o critério da história social e econômica. Da antropologia cultural. Daí ser
impossível – insistamos neste ponto – separá-lo da condição degradante de escravos,
dentro da qual abafaram-se nele muitas das suas melhores tendências criadoras e
normais para acentuarem-se outras, artificiais e até mórbidas. Tornou-se, assim,
o africano um decidido agente patogênico no seio da sociedade brasileira. Por “inferioridade
de raça”, gritam então os sociólogos arianistas. Mas contra seus gritos se levantam
as evidências históricas – as circunstâncias de cultura e principalmente econômicas
– dentro das quais se deu o contato do negro com o branco no Brasil. O negro foi
patogênico, mas a serviço do branco; como parte irresponsável de um sistema articulado
por outros.
Nas condições econômicas e sociais favoráveis
ao masoquismo e ao sadismo criadas pela colonização portuguesa – colonização, a
princípio, de homens quase sem mulher – e no sistema escravocrata de organização
agrária do Brasil; na divisão da sociedade em senhores todo-poderosos e em escravos
passivos é que se devem procurar as causas principais do abuso de negros por brancos,
através de formas sadistas de amor que tanto se acentuaram entre nós; e em geral
atribuídas à luxúria africana.”
“A sífilis fez sempre o que quis no Brasil patriarcal.
Matou, cegou, deformou à vontade. Fez abortar mulheres. Levou anjinhos para o céu.
Uma serpente criada dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno. O sangue
envenenado rebentava em feridas. Coçavam-se então as perebas ou “cabidelas”, tomavam-se
garrafadas, chupava-se caju. A sifilização do Brasil – admitida sua origem extra-americana
– data dos princípios do século XVI. Mas no ambiente voluptuoso das casas-grandes,
cheias de crias, negrinhas, molecas, mucamas, é que as doenças venéreas se propagaram
mais à vontade, através da prostituição doméstica – sempre menos higiênica que a
dos bordéis.
Em princípios do século XVIII já o Brasil é assinalado
em livros estrangeiros como terra da sífilis por excelência. Segundo John Barrow,
viajante inglês que no século XVIII andou pelo Brasil, pela ilha de Java e pela
Cochinchina, até nos mosteiros o mal-gálico causava devastações.”
Um comentário:
Peço sinceras desculpas à Editora Global pelo excesso de trechos aqui no blog, mas não consegui me conter. Nesta intensa e belíssima obra de Gylberto Freire, vemos o Brasil em estado puro, na sua essência, na sua história, no seu sangue, na sua carne, com suas dores e deleites. Recomendo decididamente a leitura do livro em sua integralidade. Aqui vão belas pepitas, mas o tesouro é bem mais farto.
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