Editora: Zahar
ISBN:
978-85-378-0030-0
Tradução: Sérgio
Lopes
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 440
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Sinopse: Cartas
do front revela a dimensão humana da guerra. O livro de Andrew Carroll
reúne correspondências de soldados e civis que participaram de vários conflitos
na história mundial - das mensagens manuscritas da Guerra de Independência
norte-americana aos e-mails enviados do Afeganistão. Emocionante, envolvente e
dramático, o livro mostra que, na verdade, a guerra é uma sucessão de histórias
particulares e anônimas. Ao longo de três anos, Carroll foi a diversos países,
como Afeganistão, Iraque e Estados Unidos para pesquisar cartas e e-mails que
nunca tivessem sido publicados. Cartas do front foi construído a partir dos
depoimentos e do material recolhidos nestas viagens. Esta edição brasileira
inclui um capítulo dedicado à correspondência dos pracinhas da FEB durante a
Segunda Guerra Mundial. Soldados com saudade de casa, crianças temendo a morte
nos campos de concentração e mulheres de militares sofrendo com a abstinência
sexual emergem das páginas como personagens reais. Seus relatos emocionam,
perturbam, fazem rir e chorar. O livro é dividido em capítulos temáticos e,
além do horror e do desespero dos conflitos, apresenta casos marcados pelo
amor, pela surpresa e pelo humor.
“Poucas horas antes de deixar Sarajevo,
perguntei a Amir qual fora, para ele, o momento mais sombrio da guerra. Houve
muitos, respondeu, mas o pior ocorreu durante o primeiro inverno do cerco à
cidade. Sem eletricidade ou óleo combustível, os moradores morriam de frio em
suas casas. Certa noite, o pai de Amir saiu para apanhar lenha, que começava a
faltar em toda a cidade. (Até o final da guerra, praticamente todas as árvores
de Sarajevo seriam cortadas. Alguns indivíduos, desesperados, apelaram para o
artifício de desencavar túmulos e despedaçar caixões, simplesmente pela
madeira.) Um soldado sérvio ou, mais provavelmente, um franco-atirador, avistou
o pai de Amir e o baleou pelas costas. Os vizinhos conseguiram arrastá-lo para
um carro e seguiram para um hospital. Antes do cerco, esse trajeto levaria
somente alguns minutos. Por causa das barricadas que bloqueavam o caminho mais
rápido até o hospital, no entanto, e devido ao perigo de transitar por certas
localidades, viram-se obrigados a percorrer vagarosamente as ruas de Sarajevo.
Apinhado de pacientes gravemente feridos, até mesmo o hospital estava às
escuras. O pai de Amir sangrou até a morte, antes que um médico pudesse ao
menos examinar seu ferimento.
Depois de ouvir essa, e com todas as outras
histórias de atrocidades ainda frescas na memória, deixei escapar: “Meu Deus,
você deve odiar os sérvios.”
“Não!”, respondeu Amir com firmeza. “Não e
não. Já houve ódio demais. Estou cheio de tudo isso. Minha namorada é sérvia.
Muitos sérvios em Sarajevo e em toda a Bósnia sofreram também. Muitas pessoas
na Sérvia não sabiam o que estava acontecendo, pois Milosevic mentia para elas.
Uma hora isso precisa acabar. Já houve o bastante. Tem que acabar.” Quando lhe
perguntei como podia ter tamanha compaixão, ele respondeu: “Somente quem passou
por isso pode realmente entender como é ruim.” Esse sentimento seria um dos
temas recorrentes em minha viagem.
A primeira vez que o assunto me chamou a atenção
foi durante minha visita a Volgogrado, apenas uma semana antes. Durante a
Segunda Guerra Mundial, quando ainda se chamava Stalingrado, a cidade foi o
cenário daquela que é considerada uma das mais sangrentas batalhas de todos os
tempos. Dezenas de milhares de civis foram mortos nas primeiras 36 horas de
bombardeio alemão, que se iniciou em 23 de agosto de 1942. Doenças proliferavam
à medida que os corpos apodreciam nas ruas e os cachorros se alimentavam dos
cadáveres. As tropas de ambos os lados coagiam meninos e meninas a servirem
como batedores e mensageiros, com a função precípua de entregar mensagens e
encher os cantis dos soldados no rio Volga e ambos os lados executavam as
crianças suspeitas de ajuda ao inimigo. “A questão filosófica de saber se a violência
é, em algum momento, justificável, já me atormentou”, escreveu de Stalingrado,
em 29 de agosto, o tenente russo Joseph Maranov à sua amada Lola. “Agora”,
continuou ele, “meu sonho, meu objetivo é destruir, sufocar e despedaçar o
inimigo.” Aproximadamente meio milhão de russos e meio milhão de soldados
alemães e do eixo morreram em cinco meses de selvageria. “Você não pode
compreender o ódio”, me disse um russo depois de perceber que eu estava lendo
um livro sobre Stalingrado. “Em seu país, vocês vivenciaram os ataques de 11 de
Setembro. Quantos morreram? Isso aqui era o 11 de Setembro todos os dias por
quase 200 dias”.
Um guia local me levou para ver a sólida
estátua da Mãe Rússia, que se encontra majestosamente no topo da mais alta
montanha de Volgogrado e homenageia a resistência dos soldados e civis que
defenderam a cidade. É 30 metros mais alta que a Estátua da Liberdade. A mão
direita empunha uma espada, erguida em desafio, e a esquerda estende-se na
direção de onde vieram as tropas do eixo. A centenas de metros dali, um
memorial guarda uma chama que jamais se apaga, em homenagem àqueles que
pereceram. Quando meu guia e eu entramos, ouvi uma música tranquila, mas um
pouco melancólica.
“Qual é o compositor russo?”, perguntei.
Meu guia respondeu: “Na verdade é Schumann.”
Fiquei perplexo: Escolheram um compositor
alemão para o Memorial de Stalingrado? Por que não optaram por um russo?”. O
Guia explicou que, quando construíram o monumento, na década de 1960, decidiram
mandar uma mensagem de reconciliação aos alemães que vêm prestar seus respeitos
aos mortos.”
Memorial aos heróis Mortos na Batalha de Stalingrado Os três soldados russos, sentados na base da estátua, são menores que os dedos do pé esquerdo da Mãe Rússia |
“Os veteranos que ofereceram cartas tão
reveladoras esperavam que elas pudessem ter um valor catártico para homens e
mulheres que servem hoje nas Forças Armadas. Ninguém pode entender
verdadeiramente a vida militar – as constantes pressões, a separação dos entes
queridos, tanto a excitação quanto o terror de seguir para o combate, o choque
devastador de perder um companheiro – como aqueles que já passaram por isso. Os
mais antigos veteranos simpatizam profundamente com a atual geração de soldados
e querem que saibam que há algum conforto em perceber que outros também
suportaram as mesmas dificuldades.”
“O que mais me impressionou nas cartas foi a
força das descrições. Na verdade, muito mais que tudo que já lera. “Deparei-me
com um dos nossos rapazes – irreconhecível graças a decomposição”, escreveu o
capelão canadense Willian Mayse à sua esposa durante a Primeira Guerra Mundial.
Ele jazia exatamente como caíra – a cabeça
desaparecera –, mas todos os equipamentos estavam afivelados, seu rifle e
capacete jaziam ao lado. Como recordação, cortei-lhe a fivela do cinto, e
enterramos o que restara dele. Procurei algo que o pudesse identificar, mas foi
em vão. Pobre rapaz, em algum lar distante no Canadá alguém esta chorando a
perda do marido, filho ou namorado. O mais triste de tudo é que jamais saberão
como morreu, ou onde foi enterrado, e, até mesmo agora, podem se apegar à
esperança de que ainda esteja vivo...
Muitos dos que contribuíram com cartas
expressaram sua frustração com o fato de a cultura popular frequentemente
romantizar a guerra. Como demonstrado pelas próprias cartas, essa reclamação
não é nova. “Afirmas que gostaria de estar aqui”, escreveu o major Oscar
Mitchell a sua amiga Sylvia Helene Hairston, em 15 de abril de 1944. Mitchell
estava servindo no cenário China-Burna-Índia da Segunda Guerra Mundial, e
apressou-se em desencorajar Sylvia e qualquer um que desejasse idealizar a vida
nas linhas de frente:
Embora a maioria das pessoas acredite saber o
que é a guerra, será que sabe mesmo? – estando tão distante das frentes de
batalha, será possível saber?
Só se sabe o que é a guerra quando se veem os
aviões em formação no começo da manhã, voando em direção aos alvos... e se vê
esta mesma formação voltando à noite. Mas o número já não é mais o mesmo! Doze
partiram, nove voltaram. Fica-se ali, parado, olhando para o alto,
observando-se afastarem-se, na direção do horizonte, e então desaparecer. O que
de fato aconteceu? Aqueles que mergulharam em chamas... terão morrido como nos
filmes? Creio que não. Não com um sorriso nos lábios e um brilho alegre nos
olhos, mas talvez com a terrível e dolorosa consciência de que tudo chegava ao
fim! É preciso ver a leva de feridos voltando da frente de batalha... acima de
tudo, ver a luz se apagar nos olhos desses homens. Jovens tremendo devido à
exaustão nervosa e chorando como bebês. São, ou foram, homens fortes, que não
tiveram ou que jamais terão a chance de viver uma vida normal... As pessoas
podem acreditar que sabem como é a guerra. Esse conhecimento é ilusório. Tenho
um corpo despedaçado pela guerra, tomado de pavor até o fundo da alma. Quando
estava nos EUA, a guerra era distante, irreal. Eu lia, via as fotos, mas agora
eu sei.
Muitos daqueles que forneceram cartas
descrevendo a dura realidade da guerra enfatizaram que não se consideram
pacifistas. Acreditam que haja crueldade e brutalidade no mundo – tirania,
genocídio, escravidão – e, se esses terríveis males não puderem ser derrotados
por meios pacíficos, que seja usada a violência para destruí-los. Os veteranos
de guerra que encontrei são, particularmente, patriotas arrebatados e
orgulhosos de seu serviço militar, e suas cartas falam com grande convicção
sobre a coragem dos companheiros mortos e a importância de honrar as liberdades
pelas quais deram a vida.
O que abominam é a glorificação da guerra por
si só. Acreditam que maquiar ou ocultar sua fealdade somente banaliza o
sacrifício feito por homens e mulheres em serviço. Eles desejam que as pessoas
compreendam o preço que ela cobra, não só de quem combate, mas também de seus
familiares – e, em especial, daqueles que receberão um telefonema ou uma
visita, informando-lhes da morte de seu ente querido. Os ferimentos que lhes
são impostos são tão traumáticos e dolorosos quanto aqueles suportados nos
campos de batalha, e permanecerão para o resto de suas vidas. Os choques
emocionais decorrentes da guerra reverberam muito além da assinatura dos
tratados de paz.
E enquanto muitos veteranos de guerra
reconhecem o fascínio de partir para o combate e lembram perfeitamente o
intoxicante arrebatamento que advém de se estar sob o fogo inimigo, também
reconhecem que a euforia raramente se conserva. Marcado por exaustão, fome e infindáveis
horas de marcha e espera, este prazer desaparece por completo ao ver um amigo
baleado ou despedaçado e, mais tarde, despachado para casa em um caixão envolto
em uma bandeira. Também os civis, em geral, compartilham um sentimento inicial
de excitação quando do anúncio da guerra, e há uma inegável eletricidade e
tensão no ar no começo de qualquer conflito. Novamente, os veteranos sabem que
esse fervor desaparece com facilidade. Além disso, a suspeita de que o apoio em
casa começa a esmorecer causa um efeito incapacitante sobre o moral da tropa.
O que enfatizam, acima de tudo, é que uma
declaração de guerra é a mais importante decisão que pode ser tomada por uma
sociedade – e, quando o fizer, deve estar preparada para as consequências. O
que a guerra exige daqueles que servem nas Forças Armadas, bem como o
sofrimento que inflige aos que não se alistam, é frequentemente muito pior do
que possa imaginar quem não a vivenciou na própria carne.”
“Tua pátria precisa de ti. Teus quatro irmãos
morreram para defendê-la. Se não vieres, não mais o considero meu filho. Não
admitirei covardes na família.”
Uma mãe francesa de St. Pierre, escrevendo ao
filho em novembro de 1914.
“Para ex-prisioneiros de guerra que estão
prestes a se reencontrar com suas esposas ou noivas, saber que suas amadas
permaneceram fieis a eles, às vezes por anos a fio, apenas aumentava o
sentimento de felicidade. Era justamente a perspectiva desses reencontros que
dava a muitos prisioneiros a força necessária para suportar a provação física e
mental, à qual muitas vezes parecia impossível sobreviver. Homer James Colman,
um soldado norte-americano de Salt Lake City, Utah, servindo no 57º Regimento
de Infantaria, passou quase três anos como prisioneiro de guerra depois que as
tropas norte-americanas entregaram as Filipinas aos japoneses em maio de 1942.
Depois de cinco meses de combate brutal, Colman e 10 mil outros prisioneiros
aliados foram obrigados a participar da infame Marcha da Morte de Bataan, uma
caminhada de 100 quilômetros sob o calor tropical, sem comida, água ou
remédios, o que se provou fatal para muitos soldados já doentes e famintos.
Antes de embarcar para o Pacífico, em maio de 1941, Colman ficara noivo de Mary
Parkman, uma jovem de Columbus, Geórgia. Eles só voltaram a se ver na primavera
de 1945. A salvo e de volta aos EUA, Colman, que convalescia no Hospital
Militar Walter Reed em Bethesda, Maryland (ele perdera quase metade de seu peso
enquanto estivera prisioneiro), enviou à sua noiva a seguinte carta reafirmando
a ela seu amor e sua devoção:
Minha querida Mary,
Levarei mais ou menos um dia para terminar
esta carta que te escrevo. Provavelmente, será a última carta que escreverei a
Mary Parkman. Embora ela jamais deixe de ser minha namorada, a próxima vez que
eu escrever, a destinatária será Mary Colman, minha mulher. Adeus, Mary
Parkman. Foste a mais fiel e adorável namorada, que, ao longo de tanto tempo,
esperou sozinha, por horas, semanas e anos de incerteza por um soldado que a
deixou com lágrimas nos olhos. Foste uma das milhares de bravas mulheres que
fizeram o mesmo nestes últimos quatro terríveis anos e que, a menos que a
população mundial mude sua natureza da noite para o dia, continuarão vendo seus
homens partirem para lutar uns contra os outros.
Mas eu tive sorte e tinha tuas preces para me
trazer de volta para casa.
Eu poderia passar o resto de minha vida a
dizer-te o quanto significavas para mim, durante aquelas longas noites de
espera, e, no entanto, jamais seria capaz de descrever esse quadro com
exatidão; as noites e os dias em que tu eras minha única razão para viver e por
quem voltar, e o preciso momento em que percebi, em São Francisco, que poderia
voltar a falar contigo de verdade. Então veio a percepção que eu a veria em
breve, não em um ou dois anos, mas em poucas e curtas semanas, quando te teria
em meus braços e te beijaria, e sentiria o perfume de teus cabelos, e tudo o
que és estaria ali. Esses sentimentos que antes foram meus sonhos mais
agradáveis agora são realidade.
E meu coração esta repleto de gratidão, não
por ter regressado, mas por ter, ao voltar, te encontrado à minha espera. Só
isso compensa milhares de vezes tudo o que por ventura te ofereci.
Pois todo o meu coração e todo o meu amor são
teus, foram e continuarão a ser enquanto nós dois vivermos. Deus me dê a força
e o poder para te fazer feliz.
E seu eu for capaz de te trazer a paz e a
felicidade que quero que tenhas, então também serei feliz, pois não mais
seremos apenas Mary Parkman e Jim Colman – duas pessoas distintas. Pois tu
serás eu, e eu serei tu, e haverá apenas um onde antes haviam dois.
Então, nesta última carta à minha noiva, como
estará em toda e qualquer carta à minha esposa, veja e encontre todo o amor que
há aqui para ti. E talvez possas ver em alguma parte a vida a dois que será a
tua e a minha e a de nossos filhos. Uma vida que será cheia de ternura,
compreensão e amor, e desse particular pedaço de felicidade pelo qual nós dois
lutamos tanto tempo para possuir.
Boa noite, querida.
Para sempre, teu
Jim
Uma semana depois os dois se casaram na
capela do hospital Walter Reed.”
“Os pais são aqueles a quem mais
frequentemente os soldados confidenciam a vívida violência da guerra ou a
severidade de sua própria situação, e, em geral, o fazem com a seguinte
recomendação: “Não conte a mamãe.” Em momentos em que temem demonstrar fraqueza
a seus pais, no entanto, ou em que retornam a um estado quase infantil de
vulnerabilidade, ou em momentos de grande estresse emocional, geralmente quando
estão em perigo, os combatentes despejam seus sentimentos no papel e apelam
para suas mães em busca de carinho e consolo. (Sabe-se que os soldados
gravemente feridos nos campos de batalha gritam por suas mães nos momentos de
lucidez. É um som que muitos veteranos relembram como uma das mais torturantes
memórias auditivas da guerra.) Durante a Segunda Guerra Mundial, o soldado
italiano Fiorigi A. Contro empreendeu uma fuga durante a esmagadora derrota dos
exércitos alemão e italiano em El Alamein, no Egito, imposta pelo VIII Exército
do general britânico Bernard Montgomery. Das quase 70 mil baixas de ambos os lados,
nessa que foi a principal batalha de 1942, mais de 50 mil eram alemães e
italianos, e Contro chegou muito perto de ser um deles. Longe do perigo,
escreveu a seguinte carta à sua mãe, descrevendo a aterradora retirada.
À minha mãe,
A senhora não sabe quantas dificuldades
encontrei em minha vida; não lhe contarei aquelas de que não sabe, para não
deixá-la ainda mais triste, mas uma memória entre tantas permanece mais forte.
Era uma sombria noite de abril, domingo de
Ramos. Depois de um susto rápido e inesperado causado por um grupo de caças
inimigos que se aproximava, tentamos decolar de um aeroporto improvisado.
Conseguimos, mas, dez minutos depois, todo um esquadrão de Junkers surgiu
voando em formação pouco acima da superfície da água, para que não fossem
detectados pelo radar. Fomos atacados de frente pelos aviões, que eram mais
ágeis e bem armados do que nós, e num instante ficamos completamente
estupefatos, e começamos a cair, um a um, irremediavelmente no golfo.
Senti balas arranharem minhas costas quatro
vezes. Nosso avião foi atingido várias vezes: no motor, neste momento em
chamas, no nariz e na cauda.
Um soldado na minha frente transformou-se em
meu escudo e ficou banhado em sangue. O piloto que dera a ordem para saltar do
avião tinha os intestinos à mostra.
O avião, com seus 18 homens mortos ou feridos
a bordo, pegava fogo e perdia altitude, e a única escolha que tínhamos era
pular sem paraquedas, apenas com um colete salva-vidas.
Fui o primeiro a chegar à porta e, enquanto
hesitava a respeito do que fazer, senti um forte empurrão em minhas costas, que
me lançou no ar. Caí na água nas proximidades do cabo Bon.
Estava aterrorizado pelo enorme perigo que
enfrentava e ainda sob o fogo das metralhadoras. Lutei desesperadamente para
alcançar a praia, que não parecia distante.
Quando consegui cuspir toda a água que havia
engolido e recuperar o fôlego, chamei dois nomes: “Deus!” e “Mamãe!”. Nunca
havia passado por tal situação.
Mas, então, eu estava exausto e não tinha
mais forças. Naquele momento, outro avião foi abatido e despencou com o nariz
pra baixo. Ouvi um assobio ensurdecedor perto de mim... Fechei os olhos e
pensei que iria morrer. Entreguei-me ao que quer que fosse que Deus houvesse
reservado para mim.
Mas ainda não era minha hora, e aquela carcaça
em chamas caiu tão perto de mim que uma onda gigantesca me empurrou para a
terra, como se eu fosse um pedaço de cortiça. Busquei abrigo em uma espécie de
caverna, e ali permaneci, quase morto e exausto, ouvindo o terrível som da
infindável metralhadora dos aviões.
A guarda costeira me encontrou em péssimas
condições físicas. Mais tarde, recuperei-me e acordei com os olhos cheios de
lágrimas, como se acordasse de um pesadelo. Descrevi minha longa odisseia à
curiosa plateia a meu redor, que ficou impressionada com o que acontecera.
Mas, na verdade, eu queria ficar em paz para
que pudesse passar novamente em minha cabeça o filme da memória, no qual a
senhora, minha querida e boa mãe, era a personagem principal.
A senhora lembra que, quando eu era pequeno,
havia um grande tanque atrás de nossa casa de campo, que usávamos para dar água
ao rebanho da vizinhança? Eu ainda usava fraldas, era um belo dia de primavera,
e fui ao tanque para pegar umas pequenas flores amarelas. Aproximei-me e me
estiquei todo... perdi o equilíbrio e caí na água. Gritei e a senhora veio
correndo, minha mãe zelosa e gentil, e carregou-me para dentro de casa e me
enxugou perto da lareira. Mudou minha roupinha e prometi que permaneceria por
perto.
Mas minhas palavras e minhas promessas foram
inúteis porque assim que a senhora virou as costas corri para o tanque e caí
outra vez. E novamente a senhora veio correndo, e, gentilmente explicou-me por
que eu precisava ter mais cuidado e me repreendeu um pouco, então pediu-me que
tomasse conta das galinhas. Uma delas correu para o tanque e vi aquelas lindas
flores que havia achado tão encantadoras; então, agarrado a um galho, estiquei
minha mão, mas o galho partiu-se, e caí de novo na água.
Outra vez a senhora me recolheu com muita
paciência, e decidiu levar-me para a cama onde caí no sono, sonhando com
aquelas flores.
Quando acordei, minha caminha estava coberta
de flores amarelas; quem as pegara para mim? “Papai”, a senhora disse.
A vida dá realmente muitas voltas.
Quando acordei na terra desconhecida depois
de cair no mar, não tive o doce conforto de flores, havia apenas a triste
realidade.
Quando eu era um garotinho, não tive medo, e
enquanto eu hesitava na porta da fuselagem, quando somente um empurrão de um
companheiro me deu coragem para confrontar o perigo, eu não poderia contar com
sua ajuda porque a senhora não estava fisicamente aqui para me tranquilizar.
Mas sei que foi a sua mão que me salvou daquele desastre. Suas preces diárias e
sua presença confiante e sagrada estão sempre comigo, erguendo-me onde quer que
eu esteja. Nossas almas se comunicam! A força do zelo materno se expande muito,
muito além de tudo.
Então essa memória, que jamais esquecerei, é
para a senhora. À senhora dedico toda minha afeição e amor, todo o meu cuidado,
acima de todas as coisas.
Fiorigi A. Contro
Em Capua, próximo a Nápoles, 7 de maio de
1943.”
“Sem dúvida, deves ter pensado que me esqueci
completamente de ti. Se tais pensamentos ocuparam tua cabeça, espero que me
perdoes, pois estive muito mal. Ainda agora tenho tremores nas mãos. Empreendi
fugas maravilhosas. Fui ferido na perna por estilhaços de bombas, mas eram
apenas feridas na carne. Algumas vezes, o impacto me arrancava o capacete e
logo eu apalpava a cabeça em busca de sangue, porém o mais próximo disso que
cheguei foi quando uma bala atingiu meu rosto e cobriu de sangue a túnica, e
outra bala arrancou-me todo o cabelo da sobrancelha deixando apenas um pequeno
arranhão. Como é estranho ver sangue, nosso próprio sangue, quando você esta
bem no meio de tudo isso. É claro que me envolvi em algumas dificuldades e
agradeço a Deus por estar vivo para contá-las. Por vezes, foi simplesmente
aterrador. Que estranho modo de vida este de estar entre bombas e balas, noites
e dias sem dormir. Eu costumava passar mal diante da funesta visão de corpos
caídos ao redor, com uma cabeça a rolar sem corpo, pernas e braços por toda
parte, muitas vezes tomei nossos próprios mortos como escudo. Quando os turcos
tentavam me acertar, a bala se chocava com o corpo à minha frente: Oh, Gill,
isto é o inferno na Terra. Talvez o inferno possa ser ainda pior, mas, na
verdade, não acredito que o seja.
Frederick C. Trenne, um soldado neozelandês,
escreveu em 12 de janeiro de 1916 a seu amigo G. Harry Gillespie sobre o
combate em Galípoli.”
“Balas, bombas e baionetas foram responsáveis
pela maior parte das fatalidades da Primeira Guerra Mundial, mas as armas
tecnologicamente “avançadas” eram particularmente temidas por um vasto
contingente de tropas que jamais vira ou escutara falar de tais engenhocas
antes. “Essa guerra é terrível”, escreveu o soldado gurca Shed Karn Das à
Índia, sua terra natal. “Não há lugar onde um homem possa estar em segurança na
terra nem debaixo da terra, no ar nem no mar. É isso a verdadeira guerra? ...
Por tudo isso, seria possível julgar que Deus esta descontente com os povos do
mundo”.”
“Após uma visita à frente ocidental, o
artista britânico Paul Nash promete à sua esposa que representará em suas telas
a “amarga verdade” da guerra.
A ofensiva de Passchendaele, comandada por
sir Douglas Haig, foi um demorado banho de sangue em meio a um grande lamaçal,
no qual combateram soldados exaustos que, ao final, pouco conquistaram. As
forças aliadas tomaram vários quilômetros de território estrategicamente
insignificante ao custo de 310 mil baixas. (Para os alemães, a conta fechou em
torno de 260 mil.) Embora não tenha participado dos combates, Paul Nash, um
artista de 28 anos, esteve em Passchendaele; Nash se alistara em 1914, mas
retornara à Inglaterra devido à um acidente não relacionado aos combates.
Tornou-se então, um artista oficial da guerra e, após se recuperar e fazer
inúmeros apelos para voltar à ação sem demora, foi enviado a frente ocidental.
“Meu amor”, começa Nash na carta endereçada à esposa, após sua chegada a Ypres.
“Nesta tarde, subirei as linhas até um dos QGs da brigada, de onde, por uma ou
duas noites, poderei ver coisas maravilhosas.” Nash, que esperava ansiosamente
assistir a uma batalha com toda a sua fúria dramática, defrontou-se, porém, com
um espetáculo inimaginável de desespero e aniquilação. Funcionários do Governo
encorajaram Nash e outros companheiros a criar uma arte motivadora e
patriótica. Devastado pela visão quase apocalíptica que tivera, no entanto,
Nash enfatizou que sua obra seria um testemunho da barbárie da guerra,
independentemente do que os burocratas desejavam ou solicitavam. Escreveu ele à
esposa:
Retornei na noite passada de uma visita ao QG
da brigada no alto das linhas e, não importa quanto viva, jamais esquecerei
essa experiência. Assisti ao mais aterrorizante pesadelo que parece ter saído
da imaginação de Dante ou Poe, inexprimível, completamente indescritível. Os 15
desenhos que fiz talvez lhe deem uma vaga ideia dos horrores, mas é preciso
estar presente para compreender sua terrível natureza e o que os homens na
França têm de enfrentar.
Todos temos uma vaga ideia dos horrores de
uma batalha e podemos evocar, com a ajuda de alguns dos mais inspirados
correspondentes de guerra e nos retratos do Daily Mirror, a visão
de um campo de batalha, no entanto nenhum desenho pode expressar o que acontece
neste país – o cenário ordinário de batalhas que se desenrolam por dias e
noites, mês após mês. Somente o mal e o demônio encarnado podem ser os
cicerones desta guerra; não se percebe nenhum vislumbre da mão de Deus. O
poente e o nascente são blasfemos, escarnecem do homem; apenas a chuva negra
vinda das nuvens sufocantes e intumescidas, através da amarga escuridão da
noite, é uma atmosfera condizente com um país igual a este. A chuva continua; a
lama fétida torna-se mais diabolicamente amarela, as crateras de bombas
repletas de água branca e esverdeada, as estradas e os atalhos estão cobertos
por uma camada de lama, as negras árvores agonizantes transpiram e as bombas
jamais deixam de cair.
Elas voam e despedaçam à nossa frente,
arrancando os troncos apodrecidos das árvores, despedaçando as
sinalizações das estradas, abatendo cavalos e mulas; aniquilando, mutilando,
enlouquecendo; mergulham na cova que é esta terra; um grande túmulo, e fazem o
cômputo dos infelizes que morreram. Oh, é inominável, ímpio, desesperador. Não
sou mais um artista interessado e curioso, sou um mensageiro que dará voz a
homens que lutam contra aqueles que desejam perpetuar a guerra. Frágil e
inarticulada será minha mensagem, mas representará uma amarga verdade, que
talvez faça arder suas almas abomináveis.
Nenhuma carta até agora chegou, espero que
eles as enviem. Sê gentil com teu amor e não o repreenda por escrever tão
pouco, para ninguém mais ele escreveu até o momento. Em um ou dois dias, ele
terá mais a dizer e não será tão sombrio. Desejo ouvir tudo a respeito da minha
querida. Conte-me se mandou ao John minhas lembranças.
Por enquanto, adieu, minha
querida.
Com um longo beijo, daqueles que só nós
sabemos dar, de teu mais apaixonado e entusiasta amor.
Paul”
2 comentários:
É de se frisar o péssimo tratamento que a editora deu a obra, que contém múltiplos erros de português, erros na separação das partes em itálico, etc.
O livro é muito bom, mas a Zahar ficou devendo na parte que lhe cabia.
Fato, Super concordo com oque Tu disse.
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