terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

1968: O ano que não terminou (Parte I), de Zuenir Ventura

Editora: Planeta

ISBN: 978-85-7665-361-5

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 286

Sinopse: Considerado um dos maiores clássicos da literatura contemporânea brasileira, 1968 - O ano que não terminou retorna, 20 anos depois de seu estrondoso sucesso, às livrarias totalmente revisado. O livro é um retrato fiel de todos os acontecimentos que fizeram do ano de 1968 um divisor de águas na história brasileira e mundial. Além de ser uma peça de excelente jornalismo, um exemplo de texto brilhante, 1968 - O ano que não terminou presta relevante serviço à revitalização da consciência democrática brasileira.


 

“Num dia de agosto, o Jornal do Brasil estampou na primeira página a foto de uma cena então rara e chocante: uma quadrilha de assaltantes de táxi formada por garotos de doze a dezessete anos.

Garrincha, o mais novo, aparecia de tarja nos olhos e um cigarro de maconha na boca. O Rio era uma cidade cujas ocorrências policiais nos fazem morrer de inveja hoje: quatro assaltos por dia, três carros roubados, sete acidentes de tráfego. Inusitada, a foto do bando de Garrincha inspirou uma crônica a Carlinhos, que, lida 20 anos depois, parece um remoto prefácio ao nosso apocalipse urbano:

Todos os dados indicam que fracassamos. Não temos futuro algum para oferecer às nossas crianças. Os garotos ricos – em minoria, é verdade, mas a minoria que vale, aquela que faz barulho – querem outra coisa, outra sociedade, outro regime. Os garotos pobres precisam apenas de uma pistola e de um cigarro de maconha.

O mais impressionante é que, rebelde, anárquico, contraditório, Carlinhos era um “alienado”. Ele próprio, nessa crônica, confessa que não chega nem a ser “contra o atual governo federal”. O seu grito de alerta era tanto mais significativo quanto não está comprometido por nenhuma motivação ideológica ou oposicionista. É como profeta que ele fala dos ainda iniciantes jovens delinquentes:

Só pensaremos neles daqui a 20 anos, daqui a 50 anos, quando eles forem numerosos como ratos e agressivos como ratazanas bloqueadas pelo perigo.

José Carlos Oliveira morreu em 1986, deixando, entre outros, um romance, Terror e êxtase, de 1978, que é a história de uma garotinha rica que se apaixona por seu sequestrador, 1001, um bandido preto e desdentado.

Pouco tempo depois, como se sabe, esses personagens deixaram o livro para frequentar as nossas ruas e cadeias. Como previra Carlinhos, os vários governos da ditadura fizeram o possível para marginalizar as duas gerações, empurrando uma para a clandestinidade e ajudando a outra a permanecer na delinquência.

A diferença é que, embora sofrida e marcada, a chamada geração de 68 se salvou, quando nada como exemplo de entrega e como lição para outras gerações.

Na realidade, como diz Cesinha, relembrando o tempo em que tinha 14 anos, “nossa vida como um todo estava disponível para aquele projeto”. Segundo ele, a “exigência integradora” que procurou articular sonho e vida perdeu-se, seja na música, seja na política. Ao contrário do rock dos Rolling Stones, de Jimmy Hendrix ou de Janis

Jopplin, ele observa com razão que o rock atual não vive mais a sua música, assim como a esquerda não vive mais o seu projeto.

Ninguém melhor do que Cesinha para fazer essa crítica. Como se viu no capítulo anterior, ele foi preso em 1971. E na prisão passaria mais de cinco anos, dos quais três e meio numa solitária, com direito a apenas uma visita semanal do pai, da mãe e do irmão Leo – dez minutos para cada um. Como atividade, só lhe permitiam trabalhos manuais. Um dia, na altura do terceiro ano de isolamento, Cesinha confeccionou uma capa de livro em couro preto, com o desenho de um pássaro amarelo solto no infinito.

Sua mãe, Iramaia, uma precursora das “locas de la Plaza de Maio”, temendo que a solidão o estivesse enlouquecendo, levou o trabalho para o psicanalista Hélio Pellegrino examinar.

Pouco antes de morrer, Pellegrino ainda se surpreendia com a saúde mental de Cesinha: “"Apesar dos sofrimentos, das violências, do isolamento, ele estava mentalmente mais são do que nós. Que cabeça!”.

A saga de César Queirós Benjamin iria continuar. Em fevereiro de 76, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, ordenou a sua libertação. Mas só em agosto, depois de uma memorável campanha liderada pelo Comitê de Anistia, OAB, ABI, o advogado de Cesinha recebeu um telefonema do Procurador-Geral da República, convidando-o a ir a Brasília para tomar conhecimento de que o presidente Ernesto Geisel decidira “não dar um mártir para a oposição”. Isso significava que, diante das informações de que agentes do CENIMAR ameaçavam sequestrar o preso, se ele fosse solto, a Polícia Federal armaria uma operação, por ordem presidencial, para retirá-lo e depositá-lo dentro de um avião.

Assim, sem pisar o solo do aeroporto, César Queirós Benjamin foi levado para a Suécia.

Por isto, quando ele diz o que diz, ninguém ousa acusar a frase de retórica:

“Nós estávamos dispostos a morrer e morremos”.”

 

 

“Conciliando Marx e Freud, (o escritor francês marxista Marcuse) fornecia ambiciosos objetivos políticos ao movimento estudantil, já que o papel de vanguarda da revolução – ele dizia – se transferira da classe operária, engajada no processo produtivo, para as minorias raciais, para os marginalizados pela sociedade industrial e, principalmente, para os estudantes. Ele ensinava que, em lugar da exploração bruta, o capitalismo passava a impor “novas formas de controle social, mais efetivas e agradáveis”. Diante desse quadro, o proletariado seduzido pela sociedade de consumo, passava a não pensar mais em revolução, só em casa de veraneio.”

 

 

Revolucionários quase todos os estudantes, eles só divergiam em relação à natureza da Revolução – se socialista, se de libertação nacional, se democrática.

Essa geração, como lembra Vladimir, tinha tirado de 64 uma lição: “Não se pode confiar na legalidade burguesa. Perdemos em 64 porque os trabalhadores não reagiram.”

Raciocinando assim, eles achavam que as transformações sociais só viriam, de fato, pela luta armada.

          É fácil condenar hoje o voluntarismo daqueles jovens que acreditavam mais na vontade do que na razão. Mas como não ser voluntarista sendo contemporâneo de Fidel Castro, Che Guevara, Mao e Ho Chi Minh? Realmente, poucas vezes a História reunia tantos argumentos em favor das famosas “condições subjetivas”, em detrimento das “objetivas”.

A derrota de 64 desencadeara um processo de desencanto em relação à organização e ao debate político. Não havia mais tempo a perder com discussões. A prática ensinaria o caminho, como se podia ver nos textos de Mao, no exemplo de Ho Chi Minh e, principalmente, nos ensinamentos teóricos de Guevara e Debray.

Eles eram a melhor prova do poder deflagrador dos focos guerrilheiros. “O dever do revolucionário é fazer a revolução”, “Para fazer a revolução não é preciso pedir licença a ninguém”, ensinavam. Até os muros de Paris sabiam: “Uma revolução não se vota; faz-se.” O mais jovem revolucionário de então, Cesinha, acha que havia um dado novo na esquerda da época: “O que importava para nós era fazer a revolução, não discutir sobre ela ou sobre as possibilidades de fazê-la. O desafio era fazê-la”.”

 

 

“Segundo Cesinha, havia uma certeza que dava sentido a tudo:

O que se sentia, se dizia, o que se achava é que era possível fazer a revolução. Essa certeza dava sentido a tudo. Fora dessa ideia radical não tinha sentido jogar a sua vida. Ninguém joga a vida para virar deputado.”

 

 

“Apesar dos riscos que ofereciam, as passeatas são lembradas com doce nostalgia, talvez porque, quando a polícia deixava, elas correspondiam ao que havia de mais generoso naquela geração: a capacidade quase religiosa de comunhão, o impulso irrefreável para a doação. Se houve na história um movimento em que seus componentes não souberam o que era egoísmo, anulando-se como indivíduos para se encontrar como massa, esse movimento foi o da espetacular, pública e gregária geração de 68.”

 

 

“O Rio de Janeiro já foi uma cidade capaz de parar numa sexta-feira à tarde para enterrar um estudante morto pela PM.

Eram de fato outros tempos aqueles em que a revolta contra uma violência policial colocava milhares de pessoas nas ruas.

Agora, “como a morte aqui é tanta” – poderia dizer João Cabral de Melo Neto, sem pensar apenas no Nordeste. Em 68, a morte de alguém, mesmo a de um jovem desconhecido, podia levar o país a uma crise e o povo à indignação, como levou naquela sexta-feira, 29, em que 50 mil pessoas acompanharam o corpo de Édson Luís Lima Souto ao cemitério São João Batista.

Na então Assembleia Legislativa, velava-se ainda o corpo de Edson Luís, que no começo da noite anterior fora baleado no peito por um soldado da PM num choque estudantil do restaurante Calabouço. Durante a noite e a madrugada, estudantes, intelectuais e artistas lotaram o saguão onde se realizava o velório. Discursos indignados exigiam justiça e os oradores exibiam a camisa ensanguentada do morto. (...)

Duas horas antes do enterro, a Cinelândia já estava totalmente ocupada. As faixas, cartazes e slogans eram exibidos ou gritados: “Bala mata a fome?”, “Os velhos no poder, os jovens no caixão”. Uma palavra de ordem se destacava pelo irresistível apelo: “Mataram um estudante. E se fosse um filho seu?”

Às 16 horas, o padre Vicente Ádamo encomendou o corpo: “Depois desses acontecimentos”, ele disse, “não há mais possibilidade de diálogo entre jovens e adultos. Será preciso uma nova fórmula para resolver esse estado de coisas.” (...)

Sem horário de verão, às 6 horas da tarde já era noite, o que impediu que as testemunhas vissem que o tiro saía do revólver do aspirante da PM Aloísio Raposo para atingir mortalmente o coração do estudante Édson Luís. Quando chegaram ao local, o corpo já estava sendo conduzido.

Longe de ser um líder, Édson Luís era, como muitos de seus colegas, um daqueles jovens que vinham do interior tentar estudar no Rio, sobrevivendo graças à alimentação barata do Calabouço. Para estudar, Édson Luís era obrigado a recorrer a pequenos expedientes, inclusive na limpeza do restaurante. Ele não tinha nenhum dos componentes míticos para sonhar em ser o que acabou sendo: um mártir. (...)

A repercussão de certos acontecimentos políticos nem sempre é proporcional à importância dos atores neles envolvidos. O episódio do Calabouço, que desencadeou uma série de manifestações de protestos que iriam culminar com a lendária Passeata dos 100 Mil, três meses depois, ficou na História como um marco.

Pode-se dizer que tudo começou ali – se é que se pode determinar o começo ou o fim de algum processo histórico. De qualquer maneira, foi o primeiro incidente que sensibilizou a opinião pública para a luta estudantil. Como cinicamente lembrava a direita, “era o cadáver que faltava”.”

 

 

A sexta-feira sangrenta

Em meados de junho, o governo estava seriamente preocupado com a possibilidade de se repetir no Brasil o maio francês. Embora o movimento lá estivesse em descenso – De Gaulle já havia conseguido em Baden-Baden o apoio do direitista Massu – as autoridades brasileiras continuavam achando que havia um plano comunista de exportação das agitações estudantis. A matriz seria achienlit da França.

No dia 12, Costa e Silva, patético, prometia: “Enquanto eu estiver aqui, não permitirei que o Rio se transforme em uma nova Paris”. Por ocasião da greve de Osasco, o ministro do Trabalho Jarbas Passarinho também advertia: “O Tietê não é o Sena”. Alguns estudantes estimulavam essa paranoia. Luís Raul Machado dizia, durante a ocupação do CRUSP em São Paulo: “Os generais podem estar tranquilos que não se repetirá aqui o que houve na França. Vai ser muito pior”.

Durante os dias 19, 20 e 21 – quarta, quinta e sexta-feira – a promessa de Costa e Silva quase foi quebrada. Na sexta-feira, principalmente, conhecida como “a sexta-feira Sangrenta”, o Rio não ficou nada a dever à Paris das barricadas – e não por mimetismo, como temiam as autoridades militares. A motivação estava aqui mesmo.

Ao contrário do movimento francês, não se lutava no Brasil contra abstrações como a “sociedade de opulência” ou a “unidimensionalidade da sociedade burguesa”, mas contra uma ditadura de carne, osso e muita disposição para reagir. As barricadas de maio de Paris talvez não tenham causado tantos feridos quanto a “sexta-feira sangrenta” do Rio, para citar apenas um dia de uma semana que ainda teve uma quinta e uma quarta quase tão violentas.

Nesse dia, quando o povo – não só os estudantes – resolveu atacar a polícia, o centro da cidade assistiu a uma sequência de batalhas campais como nunca tinha visto antes e como não veria nos 20 anos seguintes. Nos seis governos militares pós-64, incluindo a Junta, foi o que mais se pareceu com uma insurreição popular.

Durante quase dez horas, o povo lutou contra a polícia nas ruas, com paus e pedras, e do alto dos edifícios, jogando garrafas, cinzeiros, cadeiras, vasos de flores e até uma máquina de escrever.

O balanço de alguns hospitais – nem todos divulgaram os totais – registrou: 23 pessoas baleadas, 4 mortas, inclusive o soldado da PM Nélson de Barros, atingido por um tijolo jogado de um edifício, 35 soldados feridos a pau e pedra, seis intoxicados e 15 espancados pela polícia.

No DOPS, à noite, amontoavam-se cerca de mil presos.

“O povo tomou partido”, escreveu José Carlos Oliveira, enquanto assistia aos acontecimentos de um lugar privilegiado, o 3° andar do JB, então na Avenida Rio Branco. “Baderna por baderna, violência por violência, a dos garotos é mais simpática”, observou o cronista.

O relato dos jornais no dia seguinte tinha a dramaticidade de uma cobertura de guerra. O Correio da Manhã cronometrou a batalha em todas as suas frentes. Alguns trechos do relato dão a ideia do clima:

13h 15min – Soldados da PM, armados de fuzil, não hesitam: dispersam a tiros os manifestantes nas proximidades do edifício Avenida Central. Populares e estudantes correm em várias direções. E uma jovem, baleada, permanece estendida na calçada em frente à Ótica Lux. Nas ruas laterais começa o pânico. Agentes do DOPS atiram mais

De 20 bombas de gás lacrimogêneo em populares. Dentro de uma lanchonete, duas senhoras grávidas desmaiam, após serem destratadas por dois agentes que pareciam estar sob efeito de estimulantes. Uma menina de dez anos perde-se da mãe, chora e recebe uma bofetada, de um agente.

13h30min – Na Avenida Rio Branco, os estudantes começam a erguer barricadas: a primeira, apenas com pedras; a segunda, com material de construção de obras próximas. Vai começar a batalha campal. Entre estudantes e populares, estão reunidos neste ponto cerca de 2 mil pessoas, que resistirão a carga policial durante quase duas horas. A cavalaria da PM vem da Cinelândia pela Rio Branco; dois batalhões de choque vão com ela encontrar-se na confluência de Assembleia e Rio Branco. Os policiais continuam sob o ataque dos populares postados à janela. Agora caem também vasos de flores e tampas de latrina. A polícia consegue passar a primeira barricada e abre fogo contra a segunda – tiros de fuzil e de pistola 45. Agentes do DOPS juntam-se à repressão. Enfurecidos com a adesão popular aos estudantes, os policiais passam a atirar também para cima, em direção aos edifícios.

14h30min – Já sem comando, a polícia passa aos ataques suicidas contra populares e estudantes. Em grupos de cinco, investem e entram em luta. Alguns manifestantes são presos. O jovem Jorge Afonso Alves tem a perna quebrada a chutes e cacetadas. Outro, de 17 anos, também com a perna quebrada, é socorrido no banco Andrade Arnaud. Um detetive de cor preta, gordo, camisa azul, atira uma bomba sobre as pessoas que estão na entrada do edifício. Aproveita a confusão, saca a pistola 45 e atira contra a multidão. Um senhor de 40 anos aproximadamente tomba com uma bala nas costas e outra na perna. Enquanto isso, a Biblioteca Nacional é invadida por policiais que atiram bombas sobre rapazes e moças. Seu diretor, Adonias Filho, sai à rua para protestar e é destratado por um elemento do DOPS.

As batalhas prosseguiram com essa intensidade até as 20 horas, com barricadas espalhadas pela avenida Rio Branco e pelas ruas México e Graça Aranha. Só não houve mais soldados feridos porque, diante da chuva de objetos jogados do alto, um superior de bom senso permitiu que eles se abrigassem debaixo das marquises.

A “sexta-feira sangrenta” desenrolou-se em duas etapas. Na primeira, que começou de manhã com concentrações estudantis em três pontos do Centro da cidade, ocorreram os distúrbios de sempre. Vladimir (Palmeira, presidente da UME e maior liderança estudantil da época) chegou à Praça Tiradentes com seu grupo às 8 horas da manhã. Pela primeira vez se marcava uma concentração naquele local pouco indicado, porque amplo e aberto. “Não sei se foi por excesso de segurança nossa”, ele explica, “ou porque eu tinha decidido que não dava para fazer mais nada escondido”.

O fato é que, às 8h30min, quando Vladimir subiu num poste para falar para uma plateia de umas 30 pessoas, as lojas, que mal acabavam de abrir, fecharam logo suas portas, inclusive a banca de jornais. Depois de apanhar umas pedras numa construção, líder e liderados marcharam na direção do MEC, via Esplanada do Castello, onde iriam encontrar Franklin Martins e seu grupo, que se haviam concentrado no pátio do Ministério. Preocupado com a demora do companheiro, Franklin deixara o posto, e assim, por acaso, acabaram se encontrando no meio do caminho – ele, Vladimir e Elinor Brito. No dia seguinte os jornais publicaram uma foto de dois jovens não identificados se abraçando. “Sou eu e o Franklin nos abraçando em pleno ar, como na comemoração de um gol”, relembra Vladimir. Cada um achava que o outro estava preso. Para eles, a “sexta-feira sangrenta” ia começar e acabar logo: algumas pedras jogadas nos vidros de frente da embaixada dos Estados Unidos, um discurso de Vladimir trepado num poste, as coisas de sempre. De repente, uma camioneta do DOPS aparece jogando bombas de gás lacrimogêneo. Os estudantes correm e são apanhados pelo fogo cruzado na esquina das ruas México e Santa Luzia: de um lado, agentes do DOPS e da Polícia Federal: do outro, dois soldados da PM de guarda na embaixada. Estabelece-se o pânico.

Os fugitivos tentam refugiar-se nos prédios, mas duas viaturas do DOPS surgem jogando mais bombas. Um helicóptero sobrevoa o local. Sirenes anunciam que estão chegando reforços. É um pandemônio. Policiais gritam: “Vamos atirar para matar!”. Em seguida, três moças caem feridas: Márcia Jurkiewe, com um tiro no tornozelo, é medicada no local; Jeni de Barros Lopes, com um tiro na coxa direita, é removida para um hospital; e Maria Ângela Ribeiro, ferida na fronte, é levada com vida para o QG da PM, onde morre em seguida.

É hora do almoço, e a reação popular vai começar. Alguém joga pedaços de gelo de um edifício, tentando acertar a polícia. Foi como um sinal. Uma chuva de objetos passa a cair em lugar do gelo.

Perto dali, em frente ao Teatro Municipal, Vladimir ainda discursava quando ouviu um tiroteio. Tentou dizer: “calma, companheiros”. Não tinha percebido que eram tiros de fuzil. “Quando vi, eu estava sozinho, porque a segurança não funcionou naquele dia, nada funcionou”. Vladimir saltou do poste com a velocidade que é possível a alguém meio gordo e asmático: “Peguei a rua México, sozinho, correndo, a polícia atrás dando tiro, aquela confusão”. Foi quando apareceu um português desconhecido, que podia ser até um policial, e o levou até seu carro, estacionado na Presidente Vargas. Para fugir daquele tiroteio, o presidente da UME era capaz de aceitar carona até de camburão.

A participação dos principais líderes terminou por aí. Às 4 horas da tarde, Vladimir já estava no Leblon, no restaurante Diagonal, que a liderança estudantil gostava de frequentar, esperando Franklin e Muniz. Na antevéspera, quarta-feira, as batalhas contra as várias tropas da PM tinham sido conduzidas por eles. O ministro da Educação, Tarso Dutra, ficara de recebê-los de manhã. Quando chegaram, encontraram o pátio do MEC cercado. “Recuem”, ordenou o presidente da UME, “mas voltem logo com paus e pedras”. Foi uma batalha campal que durou toda a manhã.

Por isso, já sentado no Diagonal, Vladimir ficou muito surpreso quando alguém informou que continuava a agitação no Centro da cidade – sem eles. Embora um pequeno grupo permanecesse guerreando na avenida – o pessoal do Calabouço, liderado por Brito, e a turma da Universidade Rural, que chegara atrasada –, o comando da batalha tinha mudado de mãos: a praça era do povo.

Nessa tarde, a infantaria da PM teve medo de entrar na Avenida Rio Branco. Os poucos que se aventuraram, esconderam-se logo sob as marquises. A única força a entrar foi a cavalaria, mas os cavalarianos não esconderam o medo. “Eu tinha que entrar”, relembraria o comandante das tropas, o major Rebouças, “e como é que eu entrei? Entrei motivando a tropa. Mandei o clarim tocar “carga”. Em seguida, o pelotão disparou a galope, a 450 metros por minuto”.

Para Rebouças, esse foi o momento mais difícil de um ano cheio de dificuldades para a PM. Aos 14 anos, ele tinha assistido ali à chegada dos pracinhas da FEB, cobertos por papel picado jogado do alto dos edifícios. “Era assim, não se via o outro lado. Só que agora, em vez de papel, o que caía era pedra, tijolo, cinzeiros, tudo”.

As tropas passaram, limpando a avenida, mas, na hora de dispersar, o comandante teve a clarividência de ordenar “dispersão em forrageadores”, o que, traduzido em linguagem paisana pelo próprio autor da ordem, significava: cada um por si.

Se a cavalaria não entrasse, seria convocada a Divisão Blindada.

“Você calcula tanques dentro da avenida dando tiro?” tremia com a hipótese Rebouças.

Num semestre marcado pela rotina diária de choques violentos, o que teria ocorrido de extraordinário para que a população se revoltasse com tanto ódio? Na mesma crônica em que narrou os acontecimentos, Carlinhos Oliveira explicava:

Os cariocas amanheceram hoje com as mãos trêmulas; no café da manhã, os jornais lhes serviram fotografias hediondas. Moças e rapazes deitados de bruços, com a cara enterrada na grama: moças forçadas a andar de quatro diante de insolentes soldados da PM; dezenas de estudantes encostados a um muro e com as mãos segurando a nuca, ou na mesma atitude, mas deitados de bruços.

Ele se referia aos episódios ocorridos na véspera, quinta-feira, no campo do Botafogo, para onde foram tangidos pela PM cerca de 400 estudantes, depois de uma assembleia na Faculdade de Economia. O que ocorreu ali no gramado do time que iria conquistar, naquele ano, o seu único campeonato nos últimos 20 anos, chocou a cidade, uma cidade que, desde a morte e as missas de sétimo dia de Édson Luís, achava que já tinha assistido a tudo em matéria de violência.

Mais do que pela agressão física, as fotos “hediondas” indignavam como símbolos do ultraje. A descrição de soldados urinando sobre corpos indefesos ou passeando o cassetete entre as pernas das moças, junto às imagens de jovens de mãos na cabeça, ajoelhados ou deitados de bruços com o rosto na grama, eram uma alegoria da profanação.

Quando se pergunta a Vladimir Palmeira qual o acontecimento mais importante de que ele participou em 68, a resposta, de certa maneira, surpreende. Não é a morte de Édson Luís – embora o enterro fosse, como ele disse, o espetáculo “mais impressionante” –, não é a Passeata dos 100 Mil, nem o Congresso de Ibiúna, mas a assembleia no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, na Praia Vermelha, que deu origem a toda essa degradante repressão do campo do Botafogo.

“Nessa manifestação”, explica Vladimir, “nós quebramos o laço dominante entre o professor que manda e o alunado que aprende”. A assembleia, para ele, significou a quebra do autoritarismo e o rompimento do domínio absoluto que os professores detinham na universidade até os anos 60. Na verdade, significou mais. Foi a subversão total da hierarquia dentro da universidade. “Era uma velharia com postos vitalícios”, constata Vladimir. “Ela não estava adaptada talvez nem ao século, quanto mais à década. Queríamos quebrar a dominação dos catedráticos e arejar a universidade”.

Da mesma opinião é Franklin Martins, para quem a manifestação foi importante para dentro e para fora da universidade: “Pra dentro, por mérito nosso, pra fora, por culpa da polícia. Ela desmistificou o último bastião que detinha dentro da universidade, os professores, muito conservadores”.

Naquela tarde, os estudantes iriam inverter os papéis, rebaixando os professores à condição de alunos.

A assembleia geral tinha sido convocada pela UNE e pela UME para as 10h30m da manhã de quinta-feira, mas às 9 horas, quando chegaram as primeiras representações de várias faculdades, portando faixas de “Abaixo a ditadura”, alguns choques da PM já estavam postados nos arredores da Praia Vermelha. Às 11h30m a liderança desistiu de realizar a reunião no campus e convocou os estudantes para o Teatro de Arena. Nesse momento, chegava outro caminhão da PM despejando mais soldados. Era visível que um cerco policial se armava em torno do conjunto onde se localizava também a reitoria.

Eram 12h15m quando Vladimir anunciou ter recebido a informação de que o esquema policial estava aumentando e que havia ordem de prender as lideranças na saída. “Desta vez ninguém vai preso”, prometeu o orador sob aplausos. “Nós é que vamos exigir a libertação de nossos colegas presos”.

Vários oradores falaram a seguir, inclusive Luís Travassos, até que Vladimir propôs que os estudantes subissem ao andar da reitoria, onde estava reunido o Conselho Universitário. A proposta foi logo aceita. As portas arrombadas, cerca de 1500 estudantes atropelaram-se pelos corredores e salões da reitoria. Não foi fácil fazer os conselheiros descerem. Enquanto as negociações se desenrolavam, os estudantes criaram um sistema de vigilância que previa inclusive o acompanhamento dos mestres nas suas eventuais idas aos banheiros, o que não impediu que o mais visado deles fugisse, o professor Hélio Gomes, da Faculdade de Direito, “um fascista”, como diziam os rapazes. Outros que também fugiram – Gérson Cunha Bueno, da Escola de Belas-Artes, Martins Alvarez, da Odontologia, Iolanda Ferreira e Dionídia Sodré, da Escola Nacional de Música, e Alfredo Amaral Osório e Oscar Oliveira, sub-reitores – não sofreram agressão física, mas foram demoradamente punidos com vaias.

A descida da escadaria foi penosa. Clementino Fraga Filho, reitor em exercício, e seus colegas de Conselho desceram aqueles dois andares virtualmente prisioneiros.

Vladimir se lembra da cena como se ela tivesse acabado de acontecer:

Descendo por aquela espécie de corredor polonês, eles sentem que não podiam continuar como antes. O passivo virou ativo. Os meros depositários dos conhecimentos – ou da ignorância – deles, estão agora cobrando, exigindo. Era uma ruptura na cabeça do professor.

Os estudantes brasileiros tinham mais petulância do que os seus colegas franceses. Em maio de 68, na porta do Hôtel du Levant, na rua de La Harpe, no Quartier Latin, o professor Fernando Henrique Cardoso costumava fazer o relato dos acontecimentos estudantis em Nanterre, onde lecionava. O que mais o impressionava, e à sua seleta platéia – Leon Hirszman, José Celso Martinez Corrêa, Ítala Nandi, Liana Aureliano –, era o respeito que o estudante francês ainda mantinha pelo professor no trato diário. Enquanto virava Paris pelo avesso, Cohn-Bendit, por exemplo, se perfilava diante dos seus mestres e dizia: “Oui, Monsieur le professeur”.

Sentados como alunos em cadeiras escolares de braços, formando um semicírculo na arena, os professores pareciam examinandos diante de uma interminável banca examinadora. Espremidos em fileiras que começavam no chão e subiam até o último degrau da arquibancada, os estudantes faziam um cerco intransponível.

O primeiro a falar foi o reitor, ressaltando que estudantes e professores tinham objetivos comuns – “apenas seguiam caminhos diferentes”. Os professores, segundo ele, de “forma silenciosa”, batalhavam também por mais verbas para a universidade e eram contra transformação em fundação.

O momento mais aplaudido foi quando o corajoso reitor respondeu à pergunta se era contra a repressão: “Vocês querem que eu diga que sou aqui ou que vá dizer lá fora para os policiais?” rebateu, arrancando risos e demorados aplausos.

Clementino iria demonstrar um grande desassombro não só diante dos estudantes, como, mais tarde, ao enfrentar a polícia. “Além de tudo ele era hábil”, depõe Vladimir. “Opôs-se a algumas teses nossas e dizia, quando era o caso ‘isso aqui, não’. Foi obrigado a conversar com a gente mas manteve um comportamento correto. Os outros professores só se levantavam para dizer: ‘concordo com os estudantes em gênero, número e grau’.

Às 15h30min, chegou a notícia de que tinham sido presos dois funcionários da UFRJ, além de vários estudantes, e de que chegava mais um carroção do DOPS. O reitor decidiu então sair para pedir a retirada do dispositivo policial.

Enquanto isso, a assembleia continuava ouvindo os professores, que em geral ressaltavam o caráter comum das reivindicações de mestres e alunos. O professor Hélio Luz, o diretor do Instituto de Nutrição, chegou a perguntar: “Como podemos ser contra vocês, se aí ao lado muitos de nós temos nossos filhos e filhas?”

Às 16h30m, voltava o incansável Clementino Fraga Filho informando que tivera entendimentos com o chefe do policiamento, obtendo a garantia de que os estudantes não seriam molestados, “desde que saiam em ordem, em pequenos grupos, sem fazer passeata ou qualquer manifestação”.

Mesmo assim, o reitor não ficou satisfeito com a resposta e disse que iria pedir diretamente ao governador Negrão de Lima para “retirar o policiamento”.

Às 18h30min, Clementino voltava finalmente com uma definitiva informação: dentro de 10 minutos as tropas seriam retiradas:

“O governador atendeu à solicitação de que saísse tanto o esquema ostensivo, como o de policiais à paisana”, informou o reitor, debaixo de uma aclamação.

Eles saíram e foram massacrados – da maneira como os jornais mostraram no dia seguinte. Todos tinham sido traídos, inclusive, ao que tudo indica, o próprio governador. O secretário de Segurança teria preferido obedecer ao comando do I Exército.

Se fosse possível precisar o momento exato em que o governo Costa e Silva perdeu definitivamente a batalha pela conquista da opinião pública, esse momento estaria situado entre os dias 19, 20 e 21 de junho – quarta, quinta e sexta-feira. Mais por insensatez própria do que por estratégia do adversário, as autoridades estaduais e federais, em três dias, atraíram para si o ódio da classe média, e aceleraram o que na época se chamava de “ascenso do ME”.

A morte de Édson Luís já tinha provocado uma grande comoção, a repressão na porta da Candelária chocara e indignara, mas o que de fato levou a população a tomar partido, a se revoltar, a entrar fisicamente na guerra, foi a “sexta-feira sangrenta”.

Graças a ela, a cidade estava quase pronta para a Passeata dos 100 Mil.”

domingo, 24 de fevereiro de 2013

A cozinha açafrão, de Yasmin Crowther

Editora: Suma de letras

ISBN: 978-85-60280-14-8

Tradução: Thelma Médici Nóbrega

Opinião: ★☆☆☆☆

Páginas 304

Sinopse: A partir de um acidente envolvendo a filha grávida, a iraniana Maryam Mazar se vê obrigada a reavaliar sua vida e a voltar para o Irã, de onde foi expulsa mais de 40 anos antes. O país, porém, não é mais o das lembranças da jovem que partiu para a Inglaterra em busca de liberdade e independência. Mas é ainda uma terra de lendas, aromas e sabores, retratados por Yasmin Crowther com delicadeza e emoção. Na remota aldeia Mazareh, no noroeste do Irã, Maryam é obrigada a enfrentar o passado e as lembranças de uma vida que tivera de abandonar quando seu pai a deserdou por um pecado que não cometera, quando ela era jovem, linda e obstinada.

Enquanto isso, na Inglaterra, sua filha Sara cuida do primo Saeed, que havia perdido a mãe, e de seu pai, desolado com o abandono da mulher. Juntos, trazem à tona o passado de Maryam a partir de fragmentos de conversas, fotografias e alguns versos de um poema. Na tentativa de reconstruir a família, Sara vai ao Irã descobrir as causas da infelicidade da mãe e tentar levá-la para casa.

A Cozinha Açafrão é uma história sobre traição e castigo, sobre segredos que podem ferir ou libertar, sobre a dor do exílio e a difícil alegria do retorno.



“Perguntei a Mairy que tecido ela queria comprar, e ela respondeu que compraria o bastante para fazer xadores novos para nós duas, mas que eu ficaria com o tecido mais simples, já que era muito mais bonita do que ela. Eu lhe dei um empurrão e disse para ela não falar bobagens. Ela riu e insistiu:

– Mas olhe para você, Maryan. Você é linda. – Ela puxou uma longa mecha de cabelo preto de sob meu lenço e o enrolou no dedo. – Você é a mais bonita de todas nós. Ouvi papai dizer isso.

Olhei para Mairy e ela se inclinou para beijar meu rosto.

– Eu preferiria ser feia e útil do que bonita e ornamental.”

 

 

“– Por favor, não aja como ou como meu pai. Olhe para mim – Sara ergueu o rosto. – A raiva não tem volta. Um tapa não pode ser apagado. Algumas ofensas nunca são esquecidas. Instalam-se dentro de nós, não importa o quanto lamentemos e rezemos para que fosse diferente, até que algo terrível aconteça.”

 

 

“– Era uma vez – disse Ali –, num tempo distante, uma menina que nasceu numa família de pastores nas encostas cor de açafrão de Gossemarbart, e por isso recebeu o nome da montanha. Sua mãe e seu pai a amavam muito, pois já tinham vários filhos e sempre quiseram ser abençoados com uma filha. Mas... – Ali fez uma pausa e olhou para os ouvintes, levantando o dedo – naquele tempo a terra era governada por um cruel e poderoso khan*, que a cada ano exigia que os aldeões lhe dessem um décimo do que ganhava. Mas no ano em que Gossemarbart nasceu, houve uma terrível seca, e o pastor, pai da menina, perdeu todo seu rebanho. Quando os homens do khan foram coletar sua parte, ele nada tinha a oferecer. O khan ficou furioso, e numa noite escura foi bater à porta do pastor. – Ali bateu as mãos com força três vezes, e Bijan Ku'cheek sorriu e se aproximou mais dele.

O khan entrou na casa do pastor e se recusou a dar ouvidos às súplicas do pobre homem. “O que você pode me dar no lugar?”, perguntou. Nesse instante ele viu a mulher do pastor, com os cachos macios que escapavam do lenço, os olhos negros como a noite. “Você tem uma filha que ao crescer será tão linda como esta mulher?”.

“Ela é apenas um bebê”, a mãe gritou. “Leve-me em seu lugar.”

O khan sorriu com maldade. “Não quero desfazer essa família feliz, mas voltarei quando a criança tiver 14 anos, e a levarei para ser minha esposa.” Dizendo isso, ele fechou a porta e desapareceu na noite.

Catorze anos parecia muito tempo, e a vida continuou mais ou menos como antes. Gossemarbart cresceu e se tornou linda como sua mãe, que lhe ensinou tudo que sabia. Mas, como nascera na montanha, Gossemarbart também tinha espírito selvagem, e os pais não conseguiam segurá-la dentro de casa. Nos dias quentes de verão, ela amarrava o lenço de cabeça num galho e corria descalça pela grama áspera, os cabelos castanho-dourados soltos ao seu redor como uma nuvem.

A cada dia ela se aventurava um pouco mais longe, até que um dia, pouco antes de completar 14 anos, ela encontrou uma caverna escura e profunda à sombra da montanha. Como tinha mais energia do que medo, ela deixou o calor do sol e penetrou na escuridão fria. Ouviu o doce murmúrio de uma fonte subterrânea e decidiu segui-lo, aprofundando-se cada vez mais na escuridão, até chegar a uma imensa gruta, iluminada por um único raio de luz que entrava por uma fenda no alto. A luz revelava longas estalactites, que cercavam uma piscina azul-turquesa. Ela se ajoelhou para beber água e lavar o rosto.

“Gossemarbart”, a piscina sussurrou e, ao erguer os olhos, ela viu no reflexo da água uma mulher muito velha, enrugada e ressequida como as rochas, com olhos aquosos e longos pelos que brotavam de seu queixo e narinas.

“Quem é você?”, Gossemarbart perguntou, passando os dedos pela água.

“Sou você como se tornará no futuro, se o mundo for bom e permitir que viva para sempre. Agora, pergunte-me o que quiser.”

Mais uma vez Gossemarbart estendeu a mão para a água e voltou a encontrar o rosto da velha. Mas, quando olhou ao redor, não viu ninguém à beira da piscina. Voltou a olhar para a água e para os olhos da velha. “Gostaria de saber o que fazer se o mundo não for bom”, disse ela, e a velha sorriu.

“Esvazie a garrafinha a seu lado e encha com água desta fonte. Se um dia correr perigo mortal, verta a água em suas mãos, e eu surgirei e a tornarei forte como esta montanha e livre como o vento. Mas, cuidado, poderá me chamar apenas uma vez. E é melhor que nunca me chame.” Em seguida, o rosto da velha desapareceu e Gossemarbart se viu sozinha novamente.

Ela fez o que a velha dissera e voltou para casa ao anoitecer. Tentou contar à mãe o que aconteceu, mas ela achou que fosse apenas um devaneio de menina. Mas, daquele dia em diante, Gossemarbart levou a garrafinha por toda parte, guardando-a debaixo da cama à noite.

O tempo passou, e em breve a menina faria 14 anos. Seu pai tinha certeza de que o khan já esquecera da dívida que cobrara naquela noite escura, e não fez nada, até que, na véspera do aniversário, ouviram pesadas batidas na porta: tum, tum, tum.

– Era o khan – continuou Ali –, que o tempo tornara grisalho e encarquilhado: “Vim cobrar a dívida: a mão de sua filha, Gossemarbart.”

“Como assim?”, Gossemarbart gritou, levantando-se. “Que dívida?”. Olhou para o pai que levara as mãos à cabeça, e para a mãe, que estendia os braços para o khan.

“Leve-me no lugar dela”, suplicou, como o fizera naquela longínqua noite.

“Não, quero a jovem e bela Gossemarbart”, disse o khan, e a agarrou pelos cabelos, mas não antes que ela pegasse a garrafinha do chão.

O khan a levou para longe de sua amada montanha e das planícies onde ela crescera, e Gossemarbart ficou cada vez mais triste. Da torre onde o khan a aprisionara, ela via as nuvens, que o crepúsculo tingia de laranja e vermelho, e desejava poder voar para longe com elas, mas ainda não achava que corria perigo mortal.

Com a aproximação do dia do casamento, Gossemarbart estava decidida a se libertar. Procurava um jeito de escapar, mas as paredes da torre eram lisas e altas. Ela era forte, mas não queria cair e morrer sobre as rochas. Tentou persuadir o khan a libertá-la, mas ele não deu ouvidos as suas súplicas. “Se não se calar, cortarei seus cabelos”, ameaçou. Mas Gossemarbart não era vaidosa, e logo seus cabelos foram tosados e caíram no chão a seus pés. Ela os levou ao rosto, lembrando das montanhas onde ela antes correra livre na fresca brisa da primavera, mas ainda não achava que corria perigo mortal.

Se o khan não queria ouvi-la, quem sabe lesse suas súplicas. Ela passou a escrever cartas noite após noite, até que o khan, mais uma vez, se cansou. “Se não parar com isto, cortarei seus polegares.” Mas porque tinha sede de liberdade, Gossemarbart não parou de escrever, até que o guarda prendeu sua mão contra a parede e a cortou no meio. “Nunca mais”, gritou ela, quando ele a atirou de volta ao cárcere. A dor de Gossemarbart tomou conta da cela, e ela desejou ser forte como as rochas, mas ainda não achava que corria perigo mortal. Chorou a noite inteira.

Quando faltava muito pouco para o casamento, o khan decidiu de uma vez por todas que estava farto daqueles lamentos. Disse ao guarda: “Não quero ouvir estas irritantes queixas quando ela se tornar minha mulher. Leve-a daqui e corte sua língua.” O guarda fez o que lhe foi ordenado. Quando voltou à torre, Gossemarbart tentou chorar, rezar, mas tudo que saiu de seus lábios foi um som como o do vento numa caverna. Agora ela tinha certeza de que corria perigo mortal, e, com as mãos trêmulas, pegou a garrafinha e derramou a água no que restara de suas mãos. Com os olhos cansados e inchados, ela viu a velha que ela nunca seria olhando para ela, a mulher que ela poderia ter se tornado se o mundo tivesse sido bom. “Por que esperou tanto?”, a velha perguntou.

“Esperança”, ela quis responder, mas tudo que saiu de seus lábios foi um grunhido animal.

“Você quer ser livre?”, a velha perguntou, e Gossemarbart assentiu a meio às lágrimas. Queria ser forte como as pedras e livre como as nuvens. “Então beba a água e faça seu pedido.” Assim fez Gossemarbart e quando o khan dirigiu-se à torre para tomar como esposa aquela menina tosqueada, muda e domada, não a encontrou mais.

Gossemarbart voltou a sorrir. Seu espírito se enlaçou às estrelas. Nos montes próximos à montanha que lhe deu seu nome, ela decidiu descansar, como descansa até hoje, uma mulher de pedra, que o líquen, o sol e a neve beijam, sempre olhando para sua amada terra. Os aldeões lhe oferecem sacrifícios, e ela atende os desejos dos que têm bom coração. E, nas noites solitárias, a brisa sopra das nuvens de Gossemarbart sobre as planícies, através dos furos e fendas da mulher de pedra. Ela canta, ecoando seu nome, às vezes doce como uma flauta, às vezes forte como um tambor, lembrando as famílias de manter os seus sempre próximos, de prestar atenção ao que dizem e sempre se proteger do lobo que pode bater à porta.”

* khan: título dos imperadores mongóis, descendentes de Gengis Khan; oficial comandante ou governador em algumas províncias da Ásia Central.

 

 

“– Você vem sempre aqui? – Sara perguntou a Ali.

– Venho o mínimo que posso. Uma vez por ano para rezar em Haram e comprar livros. Mashhad não é mais a mesma. Deixou de ser uma comunidade. Estão até construindo um metrô. Acho que um modo de vida termina quando as pessoas são obrigadas a viajar no escuro, debaixo do céu e das árvores, para cuidar da vida.”

 

 

“Os costumes demoram a morrer, aqui como em outros lugares. Opiniões se formam por bons motivos e são difíceis de mudar, por mais que o tempo passe. São as fronteiras dentro das quais temos de viver.”

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Manual de pintura e caligrafia – por José Saramago

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-7164-278-2
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 280
Sinopse: Manual de pintura e caligrafia é de 1977, anterior, portanto, a obras como Levantado do chão, Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis e outras que foram afirmando José Saramago como um dos mais conhecidos escritores da ficção portuguesa contemporânea.
O Manual é um romance, embora, como o nome diz, seja também um tratado, no sentido da pedagogia medieval, no bom sentido das obras de Rousseau e no melhor sentido do fingimento pessoano, este de que se faz a arte de imitar o mundo pela pintura, a pintura pela linguagem, a linguagem pelo mundo...



“Nada mais retórico neste lugar e nesta circunstância, e eu detesto a retórica, embora dela faça profissão, pois todo o retrato é retórico: “Retórica (um dos significados): Tudo aquilo de que nos servimos no discurso para produzir bom efeito no público, para persuadir os ouvintes.” Melhor está o “conhecimento”, pois desejá-lo, lutar por ele, sempre infunde algum respeito, mesmo sabendo-se quão facilmente se escorrega dessa sinceridade para um pedantismo insuportável: não têm conto as vezes que o conhecimento se entrincheira nos mais sólidos bastiões da ignorância e do desprezo do conhecimento: tudo está em usar a palavra sem reparar nela ou reparando demasiado, para que o simples entrelaçar dos sons que a repetem tome o lugar, o espaço (num simples oco explosivo da atmosfera onde a palavra se aloja e se mistura), do que deveria ser, se realmente compreendido e praticado, um trabalho que todo o mais excluiria.”


“Que quero eu? Primeiramente, não ser derrotado. Depois, se possível, vencer.”


“Tentei destruir este homem quando o pintava, e descobri que não sei destruir. Escrever, não é outra tentativa de destruição, mas antes a tentativa de reconstruir tudo pelo lado de dentro.”


“Quem sabe se a cegueira não seria preferível à visão agudíssima do falcão instalada em órbitas humanas? Para os olhos da águia, como é a pele de Julieta? Que foi que viu Édipo quando com as suas próprias unhas se cegou?”


“(A empresa) SPQR tem ainda uma daquelas portas giratórias que são para mim a versão burguesa do pano de rocha que era a entrada da caverna dos quarenta ladrões. Não tem nome de sésamo (gergelim, planta) e representa a suprema contradição em porta: esta, simultaneamente, sempre aberta e sempre fechada. É a glote do gigante, engolindo e expulsando, ingerindo e vomitando. Há temor quando se entra, alívio quando se sai. E há uma repentina angústia quando no meio do movimento já não estamos fora e ainda não estamos dentro: viajamos no interior de um cilindro como se atravessássemos uma parede de ar e esse ar fosse pastoso como a lama num poço ou rígido e comprimido como a base de um obelisco. Houve certamente sufocações na minha infância, figuras monstruosas ou apenas negras (brancas, diria um negro) sentadas no meu coração, para que este tambor rebrilhante invoque terrores tão primitivos. Sair, neste caso, é realmente surdir, emergir, ou irromper do elemento denso para o ar transparente e respirável.”


“Devo interrogar-me sobre o significado desta forma de complacência que é falar de Adelina, quando de Adelina se não trata. Talvez, porém, não deva ser conveniente fazer o inventário das forças e das debilidades de alguém, para lutar contra esse ou para simples registo estatístico, sem fazer prévio balanço das nossas próprias, e nessa ponderação será impossível ignorar aqueles que, no fim de contas, pesam em nós como grãos de chumbo arrastados no rodopio de um cilindro, na realidade movido por outra força, mas em cujo movimento os mesmos grãos actuam sem que o cilindro o sinta e sem que a força efectiva o suspeite. A pobre Adelina, como eu me divirto a chamar-lhe de mim para mim, é muito menos “pobre” do que disse: deita-se comigo, consente e exige que eu entre nela (esta virtuosa transposição resulta em obscenidade total, pois, literalmente, entrar eu nela significa que todo me reduzi a uma dimensão milimétrica, a qual me permitiria digressar [preferia que se pudesse dizer digredir] no interior dela, ou, pelo contrário, que esse mesmo interior ganhou tamanho de catedral, basílica de S. Pedro, igreja de Notre-Dame, gruta dourada e verde de Aracena, por onde passeio [penetro] em meu natural tamanho, patinhando nos humores, nas secreções, repousando na turgidez das mucosas, e avançando sempre até ao segredo do universo, ao laboratório dos ovários, ao estentor das trompas [mudas] de Falópio, respirando os cheiros primordiais da terra ali resguardados e em todos os sexos de mulher, agora já sem obscenidade, porque o sexo não é obsceno, isto é uma coisa que sei hoje) e por causa desse entrar nela, e ela estar, sem verdadeiramente o querer a minha vontade, na vida geral em que eu tenho parte e ela parte, e ambos num rebordo comum, numa cimalha estreitíssima de Chartres, não posso dizer “pobre Adelina” nem esquecê-la. No interior dela derramo de cada vez milhões de espermatozóides de antemão condenados à morte, envolvidos num fluido gomoso que sai de mim arfando, e mesmo não a amando eu nem ela a mim, nenhum de nós escapa ao brevíssimo momento em que os corpos lassos e satisfeitos repousam, o meu quase sempre sobre o dela, o dela às vezes sobre o meu e também sobre o outro o um de nós que suporta o peso do outro. No fim do acto sexual (também chamado acto do amor), o corpo de baixo pesa sobre o de cima, e quem isto não descobriu nunca, não tem corpo nem sexo nem consciência de si. Duas vezes se exerce então a força da gravidade, não para se anular, mas para ser total o esmagamento. Porque a levitação dos corpos não é possível quando o sexo do homem ainda está profundamente ancorado no sexo da mulher, derramando ou tendo derramado a branca secreção dos testículos e banhando-se entre as paredes rubras ou róseas, e ardentes, ao mesmo tempo que a remotíssima tristeza do coito cobre de véus o cérebro e esboroa um a um os membros abandonados.
Sabemos ambos, Adelina e eu, que um dia qualquer acabaremos esta relação: só a inércia a faz durar ainda. Não sou, evidentemente, o primeiro homem da sua vida: teve vários, alguns que eu conheço e lhe falam como amigos, porque não a amaram nem ela os amou, tal como eu lhe falarei quando sofrermos ambos o pequeno desgosto de nos separarmos. E talvez ela venha a minha casa quando outra Adelina aqui estiver para se deitar comigo mais tarde, e talvez ela saia com outro homem com quem vá deitar-se, e estaremos depois longe um do outro, fazendo os gestos que ambos conhecemos sobre o corpo doutros, nem sequer lembrados disso, mas tão absortos no novo sexo ou então distraídos dele que nenhuma memória comum ocorre, e ocorrendo seria puro pensamento, facto doutra vida ou mesmo de pessoa diferente. Por isso estou tão seguro desta minha simples verdade: o eu deste instante preciso é fundamentalmente diferente do que era um segundo antes, algumas vezes o contrário, mas sem dúvida, sempre, outro. Por isso é tão verdade para mim ser o passado morto (seria insuficiente dizer apenas: está morto). As mulheres que tive até hoje estão mortas, e tanto mais mortas quanto mais as amei. A nenhuma delas porém amei o suficiente para que eu próprio alguma coisa morresse na morte delas.”


“Não há portanto Deus. São muitos os modos de o saber, e o meu me basta. Quando a imagem antropomórfica da divindade se perdeu, perdeu-se tudo. Nenhuma tentativa depois feita para justificar a imaterialidade, pôde realimentar ou ressuscitar as crenças. Bons deuses eram os gregos que se deitavam nas camas suadas dos mortais e com eles fornicavam, bom era Moloch que provava a sua existência alimentando-se substancialmente, à vista de toda a gente, de carne humana, bom era Jesus filho de José que andava de burro e tinha medo de morrer – mas, acabadas estas histórias, que eram histórias de gente com a sua gente, Deus passou a não ter lugar nem tempo e não pôde conseguir mais do que Defoe escrevendo e tornando a escrever a vida de Robinson. Um Deus que não esteja majestosamente sentado nas nuvens, um Deus que não tenhamos a esperança de conhecer em pessoa una e trina, é um Robinson inventado, criador segundo de uma religião de medo que precisava de um Sexta-Feira para ser igreja.”


“Tantas palavras escritas desde o princípio, tantos traços, tantos sinais, tantas pinturas, tanta necessidade de explicar e entender, e ao mesmo tempo tanta dificuldade porque ainda não acabámos de explicar e ainda não conseguimos entender. Em Milão, algumas paredes falavam, diziam palavras para mim insólitas, proibidas no meu país de desgosto e medo: “luta contínua”, “poder operário”. Em Milão, a polícia entrou na universidade, feriu, prendeu, e a imprensa reaccionária deu palmas e felicitou as autoridades. Afirmo que os homens não são irmãos, ou melhor: os homens não podem ser irmãos todos. Rockefeller, Melo, Krupp, Schneider, Champalimaud, Brito, Vinhas, Agnelli, Dupont de Nemours não são meus irmãos nem os polícias que os servem são meus irmãos. Polícias e financeiros é que são irmãos uns dos outros, embora não filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Em Milão, os irmãos desta irmandade, bastardos pobres e bastardos ricos, foram felicitados pela bastardia dos jornais. O mundo está velho e dorido.
Terei nascido então? Não creio. Já o saberia antes, não estaria hoje, tantos anos passados, a interrogar-me, repetindo Adriano, sobre a data e o local do meu nascimento.
Mas sem dúvida poderia ter sido naquele dos anos da guerra de Espanha (1936-1939) em que um polícia de Lisboa me apanhou com uns papéis na mão, pobres e mal impressos rectângulos de papel, ainda com a tinta húmida, em que se protestava contra o envio de trigo para as tropas franquistas e se atacava o fascismo, tanto o de fora como o de dentro. Assinava esses papéis uma Frente Popular Portuguesa (influência onomástica da França, por certo, digo eu), que nem sonhava o que fosse. Era uma festa popular, nas Amoreiras, e eu fora lá, não sei porquê, tão pouco dado sou e era a folguedos, e para mais sozinho, a um passo já da melancolia que depois não remediei. Estavam os papéis num montinho, em cima de um muro baixo, e hoje sou capaz de imaginar o sobressalto de coração de quem os lá pusera, assim tão acamados, para que se servisse quem passasse e quisesse saber de crimes. Eu era pequeno demais. Agarrei nos papéis todos e cheguei-me a uma luz para ler melhor. Havia música, um tró-ló-ló de filarmónica, um estrado com gente que dançava, umas luminárias, umas barracas de tiro, alguma coisa mais que não recordo. Mas recordo muito bem (ódio velho não cansa, disse o Rebelo da Silva) a mão que me agarrou bruscamente um braço (com a violência caíram todos os papelinhos ao chão) e a voz do polícia. Apenas não consigo lembrar-me da cara dele. Sei que já não era novo, passaram anos bastantes para que ele justamente morresse, e apenas me pergunto se depois pensou no que fizera, se à hora da morte não sofreu um pouco mais por isso (se há justiça e se crimes maiores não tinha). Baixou-se para apanhar um papel, que leu, mandou-me que apanhasse todos os outros e lhos entregasse, enquanto continuava a segurar-me o braço com força escusada, porque eu nem solto seria capaz de fugir. Fiquei a conhecer uma forma de medo que até aí não sabia que existisse: o medo da vítima escolhida, condenada sem julgamento, o medo do réu que foi nascido para o ser. Estou a tentar definir hoje esse medo de então, propenso a exagerar para me aproximar do inexprimível. “Vamos para a esquadra”, disse o guarda. Jurei que não tinha feito nada de mal, supliquei que me deixasse ir embora, que apenas achara os papéis e que os lera para ver de que se tratava e nada mais. O homem quis saber se alguém me entregara os papéis para distribuir (“Andavas a distribuir, diz lá, malandro”) e eu repeti, chorando, a minha verdadeira mas não verídica história. Para o polícia, a minha verdade era a mentira. As pessoas que se tinham primeiro aproximado, afastaram-se logo que perceberam tratar-se de políticas: não se limitavam a olhar de largo, pelo contrário, mostraram-se desinteressadas, hoje sei que medrosas e felizes pelo perigo a que tinham escapado. E agora me ponho a pensar se ainda lá estaria quem deixara os papéis sobre o muro baixo, se me estaria olhando de longe com simpatia, e também com esperança de que não me fizessem muito mal. Fui levado para a esquadra, a muitos quarteirões de distância, metodicamente sacudido e ameaçado, pelas ruas naquele tempo e àquela hora silenciosas. Coisa tão sem importância, tão sem crime – porquê este tremor de raiva que mal domino?
Fui interrogado pelo chefe, eu de pé, ele sentado. Depois fecharam-me num quarto por mais de duas horas. Aí já não chorei. Fiquei todo o tempo quieto numa cadeira, quase às escuras, enquanto lá fora os guardas conversavam e o chefe telefonava sei agora para onde, duas vezes ou três, sempre perguntando se queriam que eu fosse “para baixo ou quê”. Enfim soltaram-me, dizendo que eu tinha muita sorte, que “lá em baixo” eram de opinião que não valia a pena. Mas ficavam-me com o nome e a morada. Cheguei a casa muito tarde para os simples hábitos que eram os meus e fui repreendido e interrogado por causa da demora. Calei-me. O mais certo foi terem meus pais pensado que eu me decidira nessa noite a perder a virgindade. Era verdade, mas não como eles julgaram, a única que eles podiam julgar.”


“O filme Morte em Veneza decorre na única Veneza real: a do silêncio e da sombra, da negra franja que a água dos canais desenha no rente das fachadas, do cheiro insidiosamente pútrido de uma humidade que nenhum sol levanta. De quantas cidades conheço, Veneza é a única que manifestamente morre, que o sabe, e, fatalista, não se importa muito.”


“No deserto, só o nada é tudo. Aqui, separamos, distinguimos, arrumamos em gavetas, em depósitos, em armazéns. Biografamos tudo. Às vezes, contamos certo, mas o acerto é muito maior quando inventamos. A invenção não pode ser confrontada com a realidade, logo, tem mais probabilidades de ser exacta. A realidade é o intraduzível porque é plástica, dinâmica. E dialéctica, também. Sei disto um pouco, porque o aprendi em tempos, porque tenho pintado, porque estou a escrever. Agora mesmo o mundo transforma-se lá fora. Nenhuma imagem o pode fixar: o instante não existe. A onda que vinha rolando já se quebrou, a folha deixou de ser asa e não tardará a estalar, resseca, debaixo dos pés. E há o ventre inchado que rapidamente desce, a pele esticada que se reabsorve, enquanto uma criança arqueja e grita. Não é tempo de deserto. Não é já tempo. Não é ainda tempo.”


“Não longe dali, na igreja de Santa Maria della Vita, está um dos mais dramáticos grupos escultóricos de barro cozido que alguma vez pude ver. É a Lamentação sobre Cristo morto de Nicolò dell”Arca, modelado depois de 1485. Estas mulheres que se precipitam para o corpo estendido, uivam de uma dor muito humana sobre um cadáver que não é Deus: ali ninguém espera que a carne ressuscite.”







“Morte e destruição. Algum tempo mais tarde, contado por anos, saberei do grito do franquista Millan Astray. E mais tarde ainda, enfim, aprenderei, e saberei quase de cor, as palavras de Unamuno: “Há circunstâncias em que calar-se é mentir”. Acabo de ouvir um grito mórbido e destituído de sentido: Viva a morte! Este paradoxo bárbaro repugna-me. O general Millan Astray é um aleijado. Não há descortesia nisto. Cervantes também o era. Infelizmente, há hoje em Espanha demasiados aleijados. Sofro ao pensar que o general Millan Astray poderia fixar as bases duma psicologia de massa. Um aleijado que não tenha a grandeza espiritual de Cervantes, procura habitualmente encontrar consolo nas mutilações que pode fazer sofrer aos outros.” E tarde por diante na vida terei corado de vergonha, quando pela primeira vez li a oração nacionalista espanhola do tempo: “Creio em Franco, homem todo-poderoso; criador de uma Espanha grande e da disciplina de um exército bem organizado; coroado dos mais gloriosos louros; libertador da Espanha que agonizava e cinzelador da Espanha que nasce à sombra da mais rigorosa justiça social. Creio na Propriedade e na grandeza da Espanha na qual se prosseguirá a rota tradicional, que todos nós, Espanhóis, seguiremos; no perdão para os arrependidos de coração; na ressurreição dos antigos corpos de ofícios organizados em Corporações; e na Tranquilidade duradoura. Ámen.”


“Porém, deste modo de vida que foi o meu de pintar caras, olhos, bocas, cabelos ou calvas, narizes, queixos, orelhas, ombros às vezes nus, fatos de cerimônias diversas, algumas fardas, e de vez em quando chegando às mãos, com ou sem anéis – deste modo de viver me ficou, ou não cheguei a perder, a fascinação obstinada do rosto humano, da pele e da sua fragilidade, da leve ou profunda ruga, do brilho do suor sobre a têmpora, ou, na mesma têmpora, o subterrâneo rio azul duma veia. Não só a beleza, tão rara, mas a fealdade também, que é o mais comum de nós, porque nós, humanos, não somos belos, não o somos em geral, mas aceitamos a fealdade com uma dignidade particular que talvez venha do interior, do espírito. Vamos cinzelando a nossa cara por dentro, porém, a brevidade das vidas nunca dá para acabar a obra: por isso os feios ficam feios, às vezes mais ainda, quando desistiram do trabalho minucioso dessa escultura interna, outras vezes doutra maneira, quando erraram a tentativa. Quero acreditar que se a espécie humana vivesse o dobro ou o triplo destes míseros setenta anos que a biologia aguenta (e setenta anos é grande vontade minha de os viver e não verdadeira média), os homens e as mulheres atingiriam o fim da vida em estado de pura beleza, diversa pela multiplicação das feições, das cores, das raças, mas una e inultrapassável. Hoje, os seres humanos começam (quando começam) pela beleza e acumulam fealdade todos os anos, todas as estações, todos os dias e noites, todos os segundos o pouco que cada segundo dá, mas certo uma vida longa (imagino) igualaria, no último dia de cada um, Helena de Troia e Sócrates. Helena não seria mais bela do que Sócrates: limitar-se-ia a esperar por ele e juntos sairiam da vida, belos.”