domingo, 24 de fevereiro de 2013

A cozinha açafrão, de Yasmin Crowther

Editora: Suma de letras

ISBN: 978-85-60280-14-8

Tradução: Thelma Médici Nóbrega

Opinião: ★☆☆☆☆

Páginas 304

Sinopse: A partir de um acidente envolvendo a filha grávida, a iraniana Maryam Mazar se vê obrigada a reavaliar sua vida e a voltar para o Irã, de onde foi expulsa mais de 40 anos antes. O país, porém, não é mais o das lembranças da jovem que partiu para a Inglaterra em busca de liberdade e independência. Mas é ainda uma terra de lendas, aromas e sabores, retratados por Yasmin Crowther com delicadeza e emoção. Na remota aldeia Mazareh, no noroeste do Irã, Maryam é obrigada a enfrentar o passado e as lembranças de uma vida que tivera de abandonar quando seu pai a deserdou por um pecado que não cometera, quando ela era jovem, linda e obstinada.

Enquanto isso, na Inglaterra, sua filha Sara cuida do primo Saeed, que havia perdido a mãe, e de seu pai, desolado com o abandono da mulher. Juntos, trazem à tona o passado de Maryam a partir de fragmentos de conversas, fotografias e alguns versos de um poema. Na tentativa de reconstruir a família, Sara vai ao Irã descobrir as causas da infelicidade da mãe e tentar levá-la para casa.

A Cozinha Açafrão é uma história sobre traição e castigo, sobre segredos que podem ferir ou libertar, sobre a dor do exílio e a difícil alegria do retorno.



“Perguntei a Mairy que tecido ela queria comprar, e ela respondeu que compraria o bastante para fazer xadores novos para nós duas, mas que eu ficaria com o tecido mais simples, já que era muito mais bonita do que ela. Eu lhe dei um empurrão e disse para ela não falar bobagens. Ela riu e insistiu:

– Mas olhe para você, Maryan. Você é linda. – Ela puxou uma longa mecha de cabelo preto de sob meu lenço e o enrolou no dedo. – Você é a mais bonita de todas nós. Ouvi papai dizer isso.

Olhei para Mairy e ela se inclinou para beijar meu rosto.

– Eu preferiria ser feia e útil do que bonita e ornamental.”

 

 

“– Por favor, não aja como ou como meu pai. Olhe para mim – Sara ergueu o rosto. – A raiva não tem volta. Um tapa não pode ser apagado. Algumas ofensas nunca são esquecidas. Instalam-se dentro de nós, não importa o quanto lamentemos e rezemos para que fosse diferente, até que algo terrível aconteça.”

 

 

“– Era uma vez – disse Ali –, num tempo distante, uma menina que nasceu numa família de pastores nas encostas cor de açafrão de Gossemarbart, e por isso recebeu o nome da montanha. Sua mãe e seu pai a amavam muito, pois já tinham vários filhos e sempre quiseram ser abençoados com uma filha. Mas... – Ali fez uma pausa e olhou para os ouvintes, levantando o dedo – naquele tempo a terra era governada por um cruel e poderoso khan*, que a cada ano exigia que os aldeões lhe dessem um décimo do que ganhava. Mas no ano em que Gossemarbart nasceu, houve uma terrível seca, e o pastor, pai da menina, perdeu todo seu rebanho. Quando os homens do khan foram coletar sua parte, ele nada tinha a oferecer. O khan ficou furioso, e numa noite escura foi bater à porta do pastor. – Ali bateu as mãos com força três vezes, e Bijan Ku'cheek sorriu e se aproximou mais dele.

O khan entrou na casa do pastor e se recusou a dar ouvidos às súplicas do pobre homem. “O que você pode me dar no lugar?”, perguntou. Nesse instante ele viu a mulher do pastor, com os cachos macios que escapavam do lenço, os olhos negros como a noite. “Você tem uma filha que ao crescer será tão linda como esta mulher?”.

“Ela é apenas um bebê”, a mãe gritou. “Leve-me em seu lugar.”

O khan sorriu com maldade. “Não quero desfazer essa família feliz, mas voltarei quando a criança tiver 14 anos, e a levarei para ser minha esposa.” Dizendo isso, ele fechou a porta e desapareceu na noite.

Catorze anos parecia muito tempo, e a vida continuou mais ou menos como antes. Gossemarbart cresceu e se tornou linda como sua mãe, que lhe ensinou tudo que sabia. Mas, como nascera na montanha, Gossemarbart também tinha espírito selvagem, e os pais não conseguiam segurá-la dentro de casa. Nos dias quentes de verão, ela amarrava o lenço de cabeça num galho e corria descalça pela grama áspera, os cabelos castanho-dourados soltos ao seu redor como uma nuvem.

A cada dia ela se aventurava um pouco mais longe, até que um dia, pouco antes de completar 14 anos, ela encontrou uma caverna escura e profunda à sombra da montanha. Como tinha mais energia do que medo, ela deixou o calor do sol e penetrou na escuridão fria. Ouviu o doce murmúrio de uma fonte subterrânea e decidiu segui-lo, aprofundando-se cada vez mais na escuridão, até chegar a uma imensa gruta, iluminada por um único raio de luz que entrava por uma fenda no alto. A luz revelava longas estalactites, que cercavam uma piscina azul-turquesa. Ela se ajoelhou para beber água e lavar o rosto.

“Gossemarbart”, a piscina sussurrou e, ao erguer os olhos, ela viu no reflexo da água uma mulher muito velha, enrugada e ressequida como as rochas, com olhos aquosos e longos pelos que brotavam de seu queixo e narinas.

“Quem é você?”, Gossemarbart perguntou, passando os dedos pela água.

“Sou você como se tornará no futuro, se o mundo for bom e permitir que viva para sempre. Agora, pergunte-me o que quiser.”

Mais uma vez Gossemarbart estendeu a mão para a água e voltou a encontrar o rosto da velha. Mas, quando olhou ao redor, não viu ninguém à beira da piscina. Voltou a olhar para a água e para os olhos da velha. “Gostaria de saber o que fazer se o mundo não for bom”, disse ela, e a velha sorriu.

“Esvazie a garrafinha a seu lado e encha com água desta fonte. Se um dia correr perigo mortal, verta a água em suas mãos, e eu surgirei e a tornarei forte como esta montanha e livre como o vento. Mas, cuidado, poderá me chamar apenas uma vez. E é melhor que nunca me chame.” Em seguida, o rosto da velha desapareceu e Gossemarbart se viu sozinha novamente.

Ela fez o que a velha dissera e voltou para casa ao anoitecer. Tentou contar à mãe o que aconteceu, mas ela achou que fosse apenas um devaneio de menina. Mas, daquele dia em diante, Gossemarbart levou a garrafinha por toda parte, guardando-a debaixo da cama à noite.

O tempo passou, e em breve a menina faria 14 anos. Seu pai tinha certeza de que o khan já esquecera da dívida que cobrara naquela noite escura, e não fez nada, até que, na véspera do aniversário, ouviram pesadas batidas na porta: tum, tum, tum.

– Era o khan – continuou Ali –, que o tempo tornara grisalho e encarquilhado: “Vim cobrar a dívida: a mão de sua filha, Gossemarbart.”

“Como assim?”, Gossemarbart gritou, levantando-se. “Que dívida?”. Olhou para o pai que levara as mãos à cabeça, e para a mãe, que estendia os braços para o khan.

“Leve-me no lugar dela”, suplicou, como o fizera naquela longínqua noite.

“Não, quero a jovem e bela Gossemarbart”, disse o khan, e a agarrou pelos cabelos, mas não antes que ela pegasse a garrafinha do chão.

O khan a levou para longe de sua amada montanha e das planícies onde ela crescera, e Gossemarbart ficou cada vez mais triste. Da torre onde o khan a aprisionara, ela via as nuvens, que o crepúsculo tingia de laranja e vermelho, e desejava poder voar para longe com elas, mas ainda não achava que corria perigo mortal.

Com a aproximação do dia do casamento, Gossemarbart estava decidida a se libertar. Procurava um jeito de escapar, mas as paredes da torre eram lisas e altas. Ela era forte, mas não queria cair e morrer sobre as rochas. Tentou persuadir o khan a libertá-la, mas ele não deu ouvidos as suas súplicas. “Se não se calar, cortarei seus cabelos”, ameaçou. Mas Gossemarbart não era vaidosa, e logo seus cabelos foram tosados e caíram no chão a seus pés. Ela os levou ao rosto, lembrando das montanhas onde ela antes correra livre na fresca brisa da primavera, mas ainda não achava que corria perigo mortal.

Se o khan não queria ouvi-la, quem sabe lesse suas súplicas. Ela passou a escrever cartas noite após noite, até que o khan, mais uma vez, se cansou. “Se não parar com isto, cortarei seus polegares.” Mas porque tinha sede de liberdade, Gossemarbart não parou de escrever, até que o guarda prendeu sua mão contra a parede e a cortou no meio. “Nunca mais”, gritou ela, quando ele a atirou de volta ao cárcere. A dor de Gossemarbart tomou conta da cela, e ela desejou ser forte como as rochas, mas ainda não achava que corria perigo mortal. Chorou a noite inteira.

Quando faltava muito pouco para o casamento, o khan decidiu de uma vez por todas que estava farto daqueles lamentos. Disse ao guarda: “Não quero ouvir estas irritantes queixas quando ela se tornar minha mulher. Leve-a daqui e corte sua língua.” O guarda fez o que lhe foi ordenado. Quando voltou à torre, Gossemarbart tentou chorar, rezar, mas tudo que saiu de seus lábios foi um som como o do vento numa caverna. Agora ela tinha certeza de que corria perigo mortal, e, com as mãos trêmulas, pegou a garrafinha e derramou a água no que restara de suas mãos. Com os olhos cansados e inchados, ela viu a velha que ela nunca seria olhando para ela, a mulher que ela poderia ter se tornado se o mundo tivesse sido bom. “Por que esperou tanto?”, a velha perguntou.

“Esperança”, ela quis responder, mas tudo que saiu de seus lábios foi um grunhido animal.

“Você quer ser livre?”, a velha perguntou, e Gossemarbart assentiu a meio às lágrimas. Queria ser forte como as pedras e livre como as nuvens. “Então beba a água e faça seu pedido.” Assim fez Gossemarbart e quando o khan dirigiu-se à torre para tomar como esposa aquela menina tosqueada, muda e domada, não a encontrou mais.

Gossemarbart voltou a sorrir. Seu espírito se enlaçou às estrelas. Nos montes próximos à montanha que lhe deu seu nome, ela decidiu descansar, como descansa até hoje, uma mulher de pedra, que o líquen, o sol e a neve beijam, sempre olhando para sua amada terra. Os aldeões lhe oferecem sacrifícios, e ela atende os desejos dos que têm bom coração. E, nas noites solitárias, a brisa sopra das nuvens de Gossemarbart sobre as planícies, através dos furos e fendas da mulher de pedra. Ela canta, ecoando seu nome, às vezes doce como uma flauta, às vezes forte como um tambor, lembrando as famílias de manter os seus sempre próximos, de prestar atenção ao que dizem e sempre se proteger do lobo que pode bater à porta.”

* khan: título dos imperadores mongóis, descendentes de Gengis Khan; oficial comandante ou governador em algumas províncias da Ásia Central.

 

 

“– Você vem sempre aqui? – Sara perguntou a Ali.

– Venho o mínimo que posso. Uma vez por ano para rezar em Haram e comprar livros. Mashhad não é mais a mesma. Deixou de ser uma comunidade. Estão até construindo um metrô. Acho que um modo de vida termina quando as pessoas são obrigadas a viajar no escuro, debaixo do céu e das árvores, para cuidar da vida.”

 

 

“Os costumes demoram a morrer, aqui como em outros lugares. Opiniões se formam por bons motivos e são difíceis de mudar, por mais que o tempo passe. São as fronteiras dentro das quais temos de viver.”

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